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Os testes em animais na indústria de cosméticos

Entenda como funcionam os testes em animais, o que torna um produto Cruelty Free e como a campanha “Salve o Ralph” vem alertando as pessoas do problema de abuso de animais

Você sabia que muitos dos produtos que estão sentados no seu banheiro agora foram testados em animais antes de serem aprovados para uso domiciliar? Segundo a Humane Society International (HSI), organização internacional que trabalha promovendo o convívio animal/humano sem crueldade, os testes em animais estão presentes na maioria dos laboratórios que verificam a segurança e eficácia de produtos e/ou remédios.

“O termo “teste em animais” refere-se a procedimentos realizados em animais vivos para fins de pesquisa em biologia básica e doenças, avaliando a eficácia de novos produtos medicinais e testando a saúde humana e/ou a segurança ambiental de produtos de consumo e da indústria, como cosméticos, produtos de limpeza domésticos, aditivos alimentares, produtos farmacêuticos e industriais/agroquímicos.”

Conceito disponibilizado pela Humane Society International

Promovidos em larga escala e mundialmente, animais como coelhos, ratos, porquinhos da índia, hamsters, porcos, ovelhas, cachorros, macacos e até cavalos sofrem abuso e são submetidos a processos cruéis que, quando não tiram suas vidas, deixam sequelas irreversíveis. 

Animais e a ciência

Rato da espécie Wistar, usado em testes de laboratório (disponível em https://vidanimal.com.br/animais-de-laboratorio/) 

As experiências conduzidas em animais fazem parte do cotidiano da ciência há séculos. No momento em que o ser humano começou a interferir ativamente na natureza, por meio da agricultura, a relação com os animais, consequentemente, se alterou.

Apesar de andarem lado a lado com o desenvolvimento político e social humano, os testes de maior intensidade em animais se deram no início do século XX, nos primeiros tratamentos contra a raiva e lepra, por exemplo. Isso aconteceu porque cientistas e pesquisadores descobriram que alguns animais compartilham similaridades genéticas com os humanos, e que seria mais fácil e menos perigoso testar substâncias de todos os tipos neles, para garantir a segurança do usuário mais tarde.

Dentre a lista de espécies usadas como cobaias, animais como ratos e macacos são manipulados aos milhares na execução de testes de laboratório, já que foi comprovado que seus organismos compartilham similaridades com os dos seres humanos, o que, na teoria, deveria fazer com que os resultados das experiências fossem mais conclusivos. 

De acordo com uma reportagem divulgada pela revista Super Interessante em janeiro de 2020, ratos e camundongos foram comprovadamente registrados como mamíferos geneticamente parecidos com as pessoas, mesmo que não completamente.

“Cientistas conseguiram sequenciar o DNA do camundongo no ano de 2002 – tornando-o o segundo mamífero a ter o genoma mapeado, atrás apenas dos humanos. […] O sequenciamento genético de roedores confirmou que, apesar de não se parecerem muito conosco, são mais próximos do homem do que a maioria dos mamíferos. Nosso último ancestral comum data de 75 milhões de anos – pouco, em escala geológica de tempo; nosso último com os gorilas tem 20 milhões – e compartilhamos com eles, segundo diferentes estimativas, ao menos 80% do código genético.” (Trecho retirado da revista Super Interessante)

Como a escolha de espécies para testes é feita

Coelhos são imobilizados para que cientistas possam aplicar substâncias e analisar os resultados (disponível em: https://www.amda.org.br/index.php/comunicacao/noticias/5071-animais-sao-cruelmente-torturados-para-testar-cosmeticos-e-produtos-de-higiene) 

Além dessa semelhança genética, animais de pequeno porte como camundongos, ratos e coelhos são escolhidos pelo simples fato de serem facilmente manipuláveis. No caso de pequenos roedores, o custo de criação é baixo e, como eles se reproduzem rapidamente, com gestações que duram menos de um mês, é ainda mais simples de obter resultados exatos comparando a linhagem de uma mesma família.

Os coelhos, por sua vez, são escolhidos por seu temperamento dócil, fácil manuseio e reprodução acelerada. De acordo com notas divulgadas pelo People for the Ethical Treatment of Animals (PETA), uma das maiores ONGs ambientais do mundo, os coelhos são submetidos a diversos experimentos abusivos. Já que são maiores que ratos e camundongos, os resultados para testes de cosméticos, por exemplo, se tornam mais palpáveis.

“Apesar da disponibilidade de alternativas mais modernas, humanas e eficazes, os coelhos ainda são atormentados em teste como o de irritação ocular de Draize, no qual cosméticos, detergente para louça, limpador de ralos e outras substâncias são pingados nos olhos dos animais, muitas vezes causando vermelhidão, inchaço, secreção, ulceração, hemorragia, turvação ou cegueira. Os coelhos são mortos após o término do experimento.”

O que diz a lei 

Países e estados brasileiros que não permitem mais testes em animais (disponível em https://www.hsi.org/issues/be-cruelty-free/

De acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), cosméticos são produtos de higiene pessoal, que não precisam fornecer informações detalhadas quanto ao seu modo de usar e suas restrições. Perfumes, ríméis, batons, cremes, shampoos, condicionadores, blushes, demaquilantes, desodorantes e esmaltes são alguns exemplos de cosméticos usados diariamente por todas as pessoas.

A legislação brasileira não proíbe a prática de testes animais, nem a comercialização de cosméticos que usam essa técnica. No entanto, oito estados já proibiram esses testes pela indústria cosmética, em seus territórios. São eles: São Paulo (o primeiro, em 2014), Mato Grosso do Sul, Amazonas, Paraná, Pará, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Pernambuco (unindo-se ao grupo em 2018).

Em entrevista ao Colab, Antoniana Ottoni, Relações Governamentais e integrante do Departamento de Pesquisa e Toxicologia da Humane Society International (HSI) no Brasil, afirmou que atualmente o problema ainda é que a lei exige que testes em animais sejam conduzidos, no caso de cosméticos, e que a erradicação da prática depende de uma mudança do próprio governo.

“Testes de cosméticos em animais acontecem porque são exigidos por lei. Se uma empresa quer vender seus produtos em um território precisa seguir as leis daquele lugar. Por isso é tão importante a mudança legislativa. Só assim colocaremos um fim nessa prática. Trabalhamos essa temática desde 2013 no Congresso Nacional e agora estamos trabalhando para colocar urgência nessa matéria, junto com a Senadora Eliziane Gama. Queremos colocar um fim, de uma vez por todas, nessa prática cruel, ultrapassada e desnecessária.” 

A indústria de cosméticos 

Com o desenvolvimento da tecnologia, novas alternativas estão surgindo que substituem o uso de testes em animais por parte das empresas de cosméticos, que junto com a aprovação da lei pelo Congresso Nacional, ajudariam a impedir que mais procedimentos do tipo aconteçam. No entanto, ainda são registradas ocorrências de marcas que, mesmo dispondo de meios para banir a prática em seus respectivos estados, optam por continuar testando em animais vivos.

De acordo com Amanda Coelho, empresária e engenheira química especializada no desenvolvimento de cosméticos, empresas que teriam recursos suficientes para optar por produtos que não abusam de animais desistem, mesmo assim, por praticidade.

“Muitas empresas ainda optam por testar em animais por praticidade e baixo custo. Praticidade por ser uma técnica já muito conhecida, “fácil de ser realizada” e que apresenta resultados de maneira rápida; e custo pelo fato de utilizar animais de alta reprodução e que não necessitam de altos gastos por terem baixa expectativa de vida.”

Ela completa: “Aliado a isso, grande parte das empresas alegam ainda testar em animais pelo fato de atuarem na China, local em que os testes ainda são exigidos por lei. Há também uma lei nacional brasileira, 17.794, que restringe a realização de testes em animais, porém não proíbe por completo, o que contribui para a não erradicação das atividades até o momento”.

O Brasil ocupa a quarta posição do ranking de países que mais lucram e produzem produtos para o mercado de beleza. De acordo com um levantamento divulgado pela revista Forbes, em julho de 2020, o país ficou atrás somente dos Estados Unidos, China e Japão. Além disso, o lucro obtido pela comercialização desses produtos vem crescendo consideravelmente nos últimos anos.

“O número de empresas registradas na Anvisa em 2018 era de 2.794, segundo a Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Abihpec). Entre 2013 e 2018, houve crescimento de 24,5% em valor de vendas no varejo em reais, mesmo tendo ocorrido uma queda de 0,3% entre 2014 e 2015; para 2023, a previsão do Euromonitor International era de um aumento de 20,6%.” (Trecho retirado da revista Forbes)

Existem alternativas para testes em animais?

Pele 3D artificial desenvolvida em laboratório pela startup Eleve Science (disponível em https://cosmeticinnovation.com.br/cientistas-brasileiros-criam-pele-3d-e-tecnologia-pode-melhorar-testes-cosmeticos/

Alternativas para impedir com que testes em animais ainda sejam aplicados na indústria de cosméticos vêm ganhando espaço. Já existem métodos confiáveis e até mais eficazes para comprovar a segurança de um produto e que estão sendo usados em diversos laboratórios.

De acordo com a Cruelty Free International, um grupo de proteção e defesa de animais, que organiza campanhas pela abolição de todos os experimentos com animais, cientistas já aprovaram alternativas que não prejudicam os bichos e ainda contribuem com o avanço das pesquisas. São elas: culturas de células, tecidos humanos produzidos com tecnologia 3D, modelos de computador capazes de “modelar” ou replicar aspectos do corpo e até testes humanos voluntários, que não possuem riscos à saúde.

De acordo com Paulo Figueiredo, professor de Análises Clínicas da Fundação de Ensino de Contagem, os testes em animais já vem provando sua ineficácia em resultados de maior precisão, o que seria motivo suficiente para que essa prática já pudesse ser anulada.

“Sobre a eficácia, especificamente para cosméticos, vários estudos apontam que, olhos e pele de animais como coelhos, reagem diferentemente do nosso organismo. Isso provavelmente tem relação com processos evolutivos distintos (nós e coelhos) porque nossa pele e nossos olhos têm uma “reatividade” a agentes externos , diferente de outros animais.”

Campanha “Salve O Ralph”

No dia 6 de abril deste ano foi divulgado o curta-metragem Save Ralph, no canal do YouTube da HSI. O vídeo da campanha, que se originou nos Estados Unidos, mostra a rotina de um coelho usado em procedimentos em nome da indústria de cosméticos. Ele conta sobre suas cicatrizes, problemas de saúde e outras sequelas após ser usado para testes em laboratório, como se estivesse em uma entrevista. Com mais de 12 milhões de visualizações no vídeo original, a campanha foi dublada para o português pelo ator Rodrigo Santoro e foi republicada no dia 16 de abril. 

De acordo com Antoniana Ottoni, que também é responsável pela campanha “Salve O Ralph” da Humane Society International no Brasil, essa iniciativa teve o propósito único de divulgar para a população como os animais sofrem quando submetidos a experimentos abusivos.

“A campanha “Salve O Ralph” veio para mostrar que os testes de cosméticos em animais ainda são uma realidade em vários lugares do mundo. Hoje, já é possível produzir cosméticos seguros e inovadores sem novos testes em animais. Por isso, continuar testando  é inadmissível e o Ralph veio para mostrar essa realidade. O filme foi feito para construir a realidade dos animais usados em laboratórios, mas que criasse um produto final que as pessoas quisessem assistir e compartilhar.”

Desde o seu lançamento, o curta vem se destacando nas mídias sociais. Além das milhões de visualizações no YouTube, o Instagram já conta com mais de 50.000 publicações que usaram a #SaveRalph e no Twitter a hashtag ficou tão popular que passou a valer $3,185.87 no mercado digital, de acordo com relatórios recolhidos no Tweet Binder.

Produtos Cruelty Free

Selos Cruelty Free conferidos a empresas que não testam em animais

Com a crescente onda de engajamento contra os testes em animais na indústria de cosméticos, o termo Cruelty Free (livre de crueldade) foi adotado para classificar produtos que são livres de crueldade animal. Organizações como o PETA recolhem dados de empresas que se comprometeram a produzir suas mercadorias sem qualquer tipo de teste que prejudique a integridade e a saúde dos animais. 

Existem diversos selos que garantem a integridade do produto, no entanto, os que se destacam e que são os mais cobiçados pelas marcas são o Leaping Bunny, concedido pela Cruelty Free International, utilizado em marcas como a Natura, Costa Brasil, CoverGirl, O Boticário, Garnier, The Body Shop e o próprio selo PETA, que aparece em marcas como Australian Gold, Dove, Living Proof, Quem Disse Berenice?, Ruby Rose e Sallve.

Segundo a organização do PETA, para que uma empresa ou marca consiga ganhar o selo de Cruelty Free internacionalmente, ela deve apresentar uma declaração de garantia assinada pelo(a) CEO, verificando que ela e seus fornecedores de ingredientes não conduzem, comissionam, pagam, ou permitem quaisquer testes em animais para ingredientes, formulações ou produtos acabados em qualquer lugar do mundo, e não o fará no futuro.

Além disso, as candidatas aos selos precisam enviar documentos detalhados que descrevem como as empresas testam seus produtos, onde são vendidos, que tipos de produtos oferecem e que tipos de ingredientes usam, para que possam ser comprovadamente Cruelty Free.

O impacto causado ao meio ambiente 

De acordo com Catalina Portales, gestora América Latina da ONG Te Protejo, organização que promove o uso de produtos de higiene pessoal e de limpeza não testados em animais, essa prática também deixa marcas profundas no meio ambiente.

“Acreditamos que seja um impacto na natureza e um impacto ético. Os animais usados nesses procedimentos são criados em biotérios, em um espaço exclusivamente dedicado a este fim, e sofrem consequências como cegueira, irritação aguda da pele e dos olhos, intoxicação e, em última instância, como ocorre no teste DL50 (Dose Letal 50), a morte de pelo menos metade da população usada no procedimento. É importante mencionar que todos os animais usados para testes cosméticos são, então, sacrificados. A beleza não deveria custar tão caro.”

Ela ainda completa: “Ao contrário do que poderíamos pensar, agora está provado que testes alternativos em cosméticos são mais confiáveis e eficientes do que testes em animais. Isso se deve não apenas a uma questão ética, mas também porque testes modernos, sem animais, podem prever de uma forma muito mais realista possíveis reações no corpo humano, atingindo de 80%até 100% de eficácia”, conclui.

Stela Cambraia

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