Quando Adão conheceu Eva

Omenihu Amachi

Omenihu Amachi

Quando o assunto é amor, a Bíblia oferece centenas de passagens para ajudar a lançar alguma luz sobre esse fenômeno misterioso e arrebatador. Em se tratando especificamente do amor na sua dimensão de relacionamento afetivo entre um casal, a Bíblia possui alguns livros consagrados por estudos teológicos, como Cantares, Coríntios, Mateus e Efésios. Seria possível escrever um único livro sobre cada passagem e sua interpretação sobre o amor, mas não é o que faremos.

É importante dizer que não estamos diante de um tratado teológico, mas de uma leitura interpretativa que identifica na relação entre Adão e Eva do Gênesis, uma apresentação da vivência amorosa.

A questão que se levanta, então, é simples: o que Adão e Eva têm a nos dizer sobre o amor conjugal?

A partir de Freud e de Nietzsche, descobrimos que Adão e Eva são símbolos dos desafios de uma fantasia que se tornou a base cultural do casamento ocidental. E ainda sob a luz da psicanálise e da filosofia, é possível fazer uma leitura da história do casal como sendo história de amor, identificando ainda que durante a estadia no paraíso, os dois estavam apaixonados.

Por meio de um diálogo com a psicanálise, a teologia e a antropologia, podemos, então, aprender com a Bíblia um pouco dos desafios da convivência com a pessoa amada.

Vale lembrar ainda que há relatos e estudos nos quais se afirma que a primeira mulher de Adão foi Lilith.[1] Entretanto, apesar de criada da mesma matéria que o marido, também pelas mãos de Deus, Lilith não se tornou a esposa que Adão queria. Alguns dizem, inclusive, que ela teria se recusado a deitar-se com ele acabou indo embora do Éden.

Só depois, com o intuito de dar uma nova companheira para Adão, Deus teria criado Eva.

Dessa vez, a mulher não foi criada do mesmo barro que Adão, mas da própria costela do homem. O curioso sobre essa imagem é que ela apresenta uma fantasia da paixão que até hoje domina nossa cultura ocidental: a de que amantes seriam seres feitos de uma mesma substância, que, ao se encontrarem, se encaixariam um no outro perfeitamente. Até que veio o diabo.

Note que a etimologia da palavra “diabo” revela que ela significa “o que dá temor, o que desune, caluniador”.[1] Ou seja, diabo é o que divide. Quando a serpente diz a Eva que ela pode comer o fruto da árvore do conhecimento, o diabo incentiva a mulher a abandonar a ignorância, o relaxamento cognitivo.

É a serpente que mostra a Eva que é preciso ficar alerta, julgar com a razão e, por meio dela, distinguir as coisas umas das outras. Antes, imersa na inocência, a mulher não sabia a diferença do bem e do mal.

Antes, Adão e Eva viviam imersos em uma paixão quase simbiótica. Compartilhavam de uma relação “paradisíaca”, na qual formavam uma unidade um com o outro e da humanidade com a natureza. Pelo fruto, os dois ganham a capacidade de discernir os elementos do mundo e, com isso, essa simbiose é quebrada. Então, como entender o romance nesse contexto?

Por um lado, a desobediência do casal – primeiramente, de Eva – ofereceu a eles a possibilidade de raciocinar diante de emoções e paixões. E o conceito de união entre amantes que vigorava na relação até então perfeita do casal preconizava certa inocência.

Por outro lado, o mito é uma formulação machista, pois atribui à Eva a culpa pela quebra de tão perfeito cenário. E, por causa da simbólica desobediência de Eva, ficou entendido que as mulheres deveriam ser submissas no casamento.

É bem verdade que, antes do pecado original, o modelo da mulher na Bíblia já havia sido concebido como inferior. Eva surge não só como um pedaço de Adão, mas também como uma “auxiliadora”. Adão seria o homem, o esposo e também o comandante, o dominador e enunciador da natureza. Eva é só uma coadjuvante.

Esse mito fundador da cultura judaico-cristã revela o machismo (a supervalorização das características masculinas), o sexismo (estereótipo de gênero) e a misoginia (desprezo pelas mulheres) que permeiam a visão que temos ainda nos dias de hoje sobre o amor. Sob essa ótica, entendemos que a relação de Adão e Eva já começa em pé de desigualdade. É o homem que desbrava o mundo. Eva só segue ao seu lado. Isso constituiria a perfeita harmonia, não fosse pela serpente.

Abdicando-se desses predicamentos preconceituosos, há lições importantes a serem tomadas com o mito de Adão e Eva.

De acordo com Freud, no paraíso da paixão, eles viviam a fantasia de desejarem a mesma coisa, juntos e ao mesmo tempo. Esse seria o primeiro estágio de uma relação amorosa: o delírio da paixão.


[1] Dicionário Houaiss.

A neurociência contemporânea explica que é um estado temporário de demência, no qual há um relaxamento da racionalidade. Na psicanálise, corresponde ao amor narcísico, no qual o sujeito que ama projeta seus desejos no objeto amado.

Mas, ao comer o fruto, Adão e Eva passaram a ter consciência de si próprios, como se o outro fosse um espelho que os devolveria o reflexo de sua própria nudez, (...) Adão e Eva precisam lidar com a realidade diabólica de se entenderem como seres individuais, com atribuições específicas diante dos desafios da vida. E é aí que se instaura a possibilidade do amor no interior de um casamento.

(. . .)

Todo relacionamento começa com uma lua de mel até que chega nos portões do inferno. Sabendo disso, somos tomados pela insegurança – como permanecer junto se sabemos que, no futuro, nem nós nem o outro continuará envolto na névoa da paixão?

Renato Noguera

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[1] NOGUERA, Renato. Por que amamos: o que os mitos e a filosofia têm a dizer sobre o amor. Rio de Janeiro:  Editora Harper Collins,  2020, trechos capítulo, “Quando Adão conheceu Eva”

[1] NOGUERA, Renato. Mulheres e deusas. HarperCollins: Rio de Janeiro, 2017, pp. 123-124.


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Renato Noguera é Professor Associado do Departamento de Educação e Sociedade (DES), do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGeduc), do Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGFil) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Pesquisador do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Leafro), coordenador do o Grupo de Pesquisa Afroperspectivas, Saberes e Infâncias (Afrosin) e, possui doutorado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) . Noguera é ensaísta, com destaque para o livro "Por que amamos: o que os mitos e a filosofia têm a dizer sobre o amor", além de ser roteirista e dramaturgo com destaques para os trabalhos voltados para o público infantil que tratam das aventuras de Nana & Nilo.