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Quarta-feira, 28 Maio 2008

Do Budismo ao Cristianismo (1)

Filed under: Religare — O. Braga @ 3:59 pm
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Há quem acuse o Budismo de ser uma religião imanentista (1), isto é, panteísta. A dificuldade de o Homem ocidental em compreender a filosofia budista prende-se com o facto de ela assumir simultaneamente dois níveis de realidade: a transcendência (2) e a imanência (3) (Nirvana e Samsara). Como as três grandes religiões monoteístas, o Budismo apresenta-se, na sua origem, como uma religião da transcendência, e deste ponto de vista, a lógica búdica opõe-se às lógicas pagãs ― que não fazem uma ruptura entre “o aqui em baixo” e “o além”. Contudo, a conjugação da imanência e a transcendência budista resulta num panenteísmo (não no sentido descrito na Wikipédia, mas neste sentido).

O panenteísmo não é só característica do budismo: Jesus Cristo, quando disse que o “Pai e eu somos só Um” (S. João, 10:30) , declara o Seu panenteísmo, que mais tarde foi escamoteado e adulterado pelos doutores da Igreja Católica nos vários concílios que antecederam a Idade Média.

Há quem seja da opinião de que o budismo é uma religião onde Deus está ausente ― onde não existe o Deus das religiões monoteístas. Para o Budismo original e doutrinariamente puro, o Nirvana é o Absoluto, e neste sentido, podemos dizer que é Deus. Porém, o Absoluto búdico não é o Alá castigador e justiceiro, não é o Jeová atemorizador e recompensador, nem é o Pai de Jesus Cristo: é a essência de tudo o que existe no espaço-tempo, fora do espaço-tempo, onde todas as almas almejam reunir-se através dos ciclos purificadores de morte e nascimento.

A influência do Budismo em Jesus

A filosofia de Jesus Cristo foi revolucionária porque (na minha humilde opinião) conseguiu aperfeiçoar o Budismo, ao substituir a essência do Nirvana pelo “Pai de Amor”, mas a verdade é que o Concílio de Niceia transmutou alguma da verdade original de Jesus Cristo. Sabe-se que a esposa do imperador Constantino era uma ex-prostituta, e que não lhe agradou a ideia de uma doutrina que previa a auto-punição ― pelos actos cometidos ― numa próxima reencarnação, e por isso, a metempsicose (entre outras substâncias doutrinárias do Cristianismo primordial) foi retirada da doutrina original cristã por imposição política.

É certo que o jovem Jesus foi criado no seio de uma família essénia; é certo que os Essénios, que se dedicavam ao comércio com o oriente, tiveram contacto íntimo com a filosofia budista e por esta foram influenciados. É certo que os Essénios ― que se vestiam de branco ― eram discriminados pelos fariseus do judaísmo ― nomeadamente quando estes não deixavam que no templo de Jerusalém entrassem pessoas vestidas de branco ―, pelo que os Essénios foram obrigados a frequentar o templo do Monte Carmelo ― evitando o grande templo de Jerusalém ― onde o jovem Jesus se apresentou aos sábios Essénios que ficaram impressionados com a sua inteligência.

É dado como certo que Jesus viajou pela Índia, pela região de Caxemira e pela base dos Himalaias, durante os anos que antecederam a sua odisseia em terras de Israel: quando os evangelhos falam do encontro de Jesus com João, o Baptista, Jesus andaria perto dos trinta anos, pelo que o tempo de Jesus entre os 20 e os 30 anos permanece desconhecido. Porém, existem relatos indianos escritos em sânscrito que revelam a passagem de “Isha” (ou Issa) nota, um “judeu iluminado”, por terras da Índia e de Caxemira. As influências do Budismo em Jesus são de tal forma constatáveis ― por exemplo, a não-violência, em contraponto ao “olho-por-olho” judaico ― , que podemos dizer que se existem duas religiões “irmãs”, elas são o Cristianismo original e o Budismo original. A originalidade de Jesus foi ter substituído a noção abstracta de “Nirvana” pela ideia de “Pai”. Existem nos evangelhos diversas referências de Jesus que passaram no crivo da censura do concílio de Niceia, referências essas que fazem alusão clara não só ao panenteísmo de Jesus, como à inclusão da metempsicose (reencarnação) na sua doutrina. Portanto, não há dúvidas absolutamente nenhumas de que Jesus Cristo foi influenciado pelo Budismo.

Assim como o Cristianismo original se modificou por pressões políticas do Império Romano em decadência e por influência da cultura greco-romana, assim aconteceu com o Budismo com a sua expansão a sul (Índia do hinduísmo) e a oriente (China e Japão). As versões populares do Budismo indiano assumem traços politeístas devido à influência do hinduísmo, porque esse Budismo desceu dos seus grandes princípios universalistas e abstractos para uma sacralidade concreta, local e imanente, efectuando assim um compromisso entre duas concepções muito diferentes do sagrado, ao encontrar estruturas antropológicas profundas e identificadas, não só com o subcontinente indiano, como com as diversas culturas asiáticas. O mesmo aconteceu na Europa cristã, com o desfile iconoclasta dos santos ― e portanto, não nos podemos arvorar de uma superioridade moral nesta matéria. O que interessa analisar é a filosofia de Jesus Cristo, e não as formas assumidas posteriormente na Europa por herança antropomórfica da sua filosofia, assim como o que interessa analisar é a essência original do Budismo, e não a sua herança adaptada às diversas culturas politeístas asiáticas.

A Lógica aristotélica e a congénere búdica

A filosofia grega fez surgir na Europa uma filosofia analítica que levou ao hiper-racionalismo contemporâneo. Quando lemos Derrida ou Habermas, compreendemos até onde a lógica analítica nos trouxe: a uma aberração racionalista. A lógica analítica é uma técnica que tem como fim produzir um determinado raciocínio linear, reduzindo o pensamento a um determinado “máximo denominador comum”, de forma a que seja utilizável numa ideologia que induza a uma determinada prática política ― eliminando as associações de ideias que comprometam ou causem dúvidas “desnecessárias” ao processo de apuro ideológico. Para este fim, a filosofia analítica usa a lógica herdada dos gregos.

Da lógica grega herdamos ― entre muitas outras coisas ― o “princípio da contradição”, o “princípio da identidade”, e o “princípio do terceiro excluído”, que podem ser resumidos na seguinte sentença:.

“A existência é identidade. Nenhuma coisa pode ser, e simultaneamente não ser. É impossível que o mesmo atributo pertença e não pertença simultaneamente ao mesmo sujeito. Por isso, e se Deus não faz parte da matéria tal qual a vemos, e conforme os princípios enunciados anteriormente, não existe”.

O princípio da contradição é, por definição, irrefutável (é impossível que o mesmo atributo pertença e não pertença simultaneamente ao mesmo sujeito); Aristóteles considerava-o como a definição do “incondicionado”, isto é, um princípio passível de aceitação sem remissão possível. Contudo, por detrás do princípio da contradição existe uma falácia, que consiste em confundir-se a definição com o objecto: a contradição só pode existir entre uma definição atribuível a um objecto e uma outra definição, e não entre um objecto e outro objecto. No discurso ordinário, dizer simultaneamente “sim” e “não”, é impossível, porque a sequência “sim-não” não tem o mesmo valor que a sequência “não-sim”: o “sim” que vem depois do “não” não é o mesmo “sim” que existiria se estivesse no início; a situação foi modificada pelo “não” ― e o inverso também é verdade (ver Vincent Descombes).

Subjacente ao “princípio da contradição”, existe o “princípio da identidade”, que resume a unidade na sua essência. “A existência é identidade”, é uma crença na existência sólida das coisas, baseada no bom-senso. Contudo, o Budismo chama ao bom-senso ocidental de “verdade convencional”, isto é, o “princípio da identidade” baseia-se numa verdade prática resultante do que Nietzsche chamou de “arte ao serviço da ficção” (in “Vontade de Poder”), na medida em que o permanente não existe no espaço-tempo, porque tudo se resume a um fluxo perpétuo. Para o Budismo, para além da “verdade convencional”, existe a “verdade relativa”, que é aquela verdade segundo a qual a realidade no nosso espaço-tempo é vista a partir do Absoluto. Não se trata aqui de um dualismo (4), mas de uma visão relativa que surgiu milénios antes de Einstein.

Segundo o Budismo, a “verdade convencional” aplica-se no nosso dia-a-dia, mas perde o seu sentido no domínio do Absoluto. O mundo real, aquele da “imanência transcendente” panenteísta, não está sujeito ao “princípio da identidade”, devido à sua independência em relação ao espaço-tempo.

O “princípio do terceiro excluído” pode ser constatado na frase “nenhuma coisa pode ser, e simultaneamente não ser”. Segundo a lógica aristotélica, entre enunciados contraditórios não podem existir definições contraditórias: se uma é verdadeira, a outra é necessariamente falsa. Dois enunciados contraditórios não podem ser, simultaneamente, verdadeiros ou falsos. “Ser ou não ser: eis a questão!” ― Hamlet (Shakespeare) . A lógica grega introduz a validade do dilema na lógica dialéctica, o que ― convenhamos ― simplifica muito o processo de tomada de decisão. Para um budista, não existem só dilemas, mas também e sobretudo tetralemas:

“1) o sujeito é X; 2) o sujeito é Y; 3) o sujeito é simultaneamente X e Y; 4) o sujeito não é nem X nem Y”.

Como podemos ver no nº 3 do axioma supra, existe a possibilidade do sujeito (objecto) ser simultaneamente “assim” e “não-assim”. Se o meu interlocutor tem uma tese que deduz uma contradição, a minha tese, sendo contraditória à dele, fica verificada na decorrência dessa mesma contradição. Não há teses excluídas à partida. O que acontece é que a base de discussão, para se chegar a um consenso, é mais alargada.

Se o sujeito é simultaneamente X e Y, as características do sujeito estão intimamente ligadas à decorrência do espaço-tempo. Se um determinado indivíduo foi um homicida aos 20 anos de idade, cumpriu pena de 25 anos de prisão, e hoje é um cidadão pacato com 75 anos, podemos dizer que ele é hoje um assassino? Segundo a lógica grega, o indivíduo é hoje um assassino, porque matou há 50 anos atrás, isto é, não há terceira alternativa para o enunciado: ou é ― qualitativamente ― um assassino, ou não é. Dizer-se que alguém foi um assassino e já não é, é um contra-senso, segundo a lógica aristotélica, exactamente porque “nenhuma coisa pode ser, e simultaneamente não ser”. Dizer-se que alguma coisa foi e já não é, e que por isso essa coisa ― hoje ― é e não é simultaneamente, traduz a impossibilidade do “sim-não” de Descombes.
Para a lógica búdica, o indivíduo é assassino e simultaneamente não o é, porque enquanto inserido no espaço-tempo, está sujeito à mudança permanente e à lógica cármica.

Podemos ver em Jesus Cristo a prática corrente do tetralema em parábolas (S. Marcos 12:1; S. Mateus, 25:14): Jesus apresenta várias hipóteses (normalmente, quatro) para depois retirar uma decisão moralmente ponderada. É também isto que a dialéctica búdica faz.

Verificamos, então, que a dialéctica budista é muito diferente da dialéctica herdada dos gregos: os budistas partem do princípio de que, ao excluirmos radicalmente uma possibilidade, podemos estar a incluir uma possibilidade contrária àquela que pretendemos ― o que faz todo o sentido.

Contudo ― dirão vocês ― foi a lógica grega do princípio da contradição dualista e do dilema que, introduzida na matemática, deu origem à linguagem binária (sequências de 1 e de 0; “sim” e “não”; positivo e negativo) que me permite estar agora a escrever neste computador; mas esquecemo-nos de que o tetralema está presente na linguagem hexadecimal, que faz a diferença entre um software de um computador que funciona a 32 bits e um outro a 64 bits.
Porém, que fique claro que a dialéctica búdica não menospreza o dilema: acrescenta-lhe só o tetralema quando necessário para uma mais ponderada tomada de decisão. Note-se que Aristóteles conhecia o tetralema oriental, mas desprezou-o.

Naturalmente que o(a) leitor(a) estará a pensar que o tetralema leva inexoravelmente ao relativismo de valores; se assim fosse, não seria um tetralema, mas um simples e apático enunciar de possibilidades. O tetralema, como o dilema, impõe uma decisão, seja por consenso de opiniões, seja pela verificação empírica.

Se o(a) leitor(a) pensar que quantas mais hipóteses existirem numa equação ou problema, melhor e mais refinada é a escolha, rapidamente verificará que o relativismo de valores não surge automaticamente do tetralema búdico. Assim como o dilema aristotélico implica uma escolha dialéctica imperiosa (sim ou não, uma coisa ou outra) baseada na opção lógica, o tetralema búdico obedece à mesma necessidade de escolha, só que é mais cuidadoso na equação das possibilidades e tem em consideração alguns valores que não são considerados pela lógica aristotélica ― como o “eterno escoamento” (como escreveu Nietzsche) do espaço-tempo.
O relativismo é exactamente o oposto ― está nos antípodas ― do dogmatismo, e neste sentido, o tetralema búdico procura sempre colocar todas as hipóteses possíveis antes de uma tomada de decisão, exactamente para assim escapar ao relativismo, por um lado, e ao dogmatismo, por outro. Como acontece com o dilema, o tetralema tem como única intenção a tomada de decisão ponderada, e não a relativização de valores (no sentido de “relativismo moral”).

(a continuar: Do Budismo ao Cristianismo 2)


    (1)Antes que me acusem de heresia, quero afirmar aqui o meu Cristianismo indefectível ― o Cristianismo dos Evangelhos, e só esse.
    (2)Em filosofia, a “transcendência” contrapõe-se à “imanência”, aplicando-se especialmente a Deus, quando se admite que Deus é uma Entidade que “ultrapassa” o universo, concebido como Sua criação; o Deus cristão e o Nirvana budista estão para “além” do Universo do espaço-tempo.
    (3)Termo atribuído ao Absoluto, “pessoal” (Deus panteísta) ou não-pessoal (Samsara) pelas doutrinas que o declaram “inseparável” do mundo material e nele “residente”. O panteísmo de Espinoza constitui um imanentismo. O Budismo é simultaneamente uma doutrina “transcendental” e imanentista, isto é, um panenteísmo.
    (4)Doutrina que admite dois princípios irredutíveis e opostos; maniqueísmo; o contrário de “monismo”.

    Nota: ver The Unknown Life of Jesus Christ

1 Comentário »

  1. […] @ 5:41 pm Tags: budismo, cristianismo, Iluminismo, nirvana, panenteismo, religião, samsara A ler: Do Budismo ao Cristianismo (1) “A fragilidade lógica do ateísmo é pouco relevante por ser um fenómeno elitista ocidental […]

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    Pingback por Do Budismo ao Cristianismo (2) « perspectivas — Sexta-feira, 30 Maio 2008 @ 5:41 pm | Responder


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