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D. JANUÁRIO TORGAL FERREIRA: “TENHO MEDO QUE, NO PORTO, SEJAM DESPREZADAS AS LIBERDADES DE GENTE QUE NUNCA TEVE LIBERDADE!”

Tripeiro de gema. Nado há 81 anos na freguesia de Santo Ildefonso. Januário Torgal Mendes Ferreira é uma referência na Igreja Católica e na sociedade, e não só por ser Bispo Emérito das Forças Armadas e Segurança. Verdade seja dita: este senhor filósofo não tem “papas na língua”.

O menino que frequentou a escola primária na Ordem Terceira da Santíssima Trindade, e o Liceu Alexandre Herculano quando jovem, e que, em 1948, foi admitido no Seminário Diocesano de Ermesinde, passando pelos Seminários Menores de vila Nova de Gaia e Vilar e pelo Seminário Maior onde terminou o Curso de Teologia, já em 1960, é um lutador por causas humanas.

Que, após ter realizado os exames das cadeiras de Letras no Liceu de Viana do Castelo, ingressou no curso de Filosofia da Faculdade de Letras do Porto, e em 1970 obteve a licenciatura com a dissertação “A noção de pessoa em Louis Lavelle”.

E mais: que teve, e tem, como referência o Bispo do Porto – que para os tripeiros continua a ser o seu Bispo, D. António Ferreira Gomes -, de quem foi chefe de gabinete,  e que o admirou pela sua coragem e luta simples e direta contra o anterior regime (fascista), é algo que o acompanha, ainda hoje, no seu contacto com o povo, e na solidariedade que tem para com ele.

Um homem que de 1969 a 1989, foi assistente do grupo de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde lecionou várias disciplinas relacionadas com a Filosofia e História. E de 1977 e 1979 frequentou uma pós-graduação na Universidade de Paris X – Nanterre, orientada pelo Prof. Paul Ricoeur, para nos anos 80 prosseguir a sua atividade de docência em escolas católicas tendo sido diretor do secretariado da Pastoral Universitária, bem como reitor da Igreja de S. José das Taipas.

É esse senhor, nomeado Bispo das Forças Armadas e da Segurança, a 03 de maio de 2001 – resignando onze anos mais tarde -, que, em exclusivo ao “Etc e Tal jornal”, fala da sua cidade de sempre; do flagelo da droga e de muitas outras questões que não deixará qualquer leitor(a) indiferente às suas posições.

José Gonçalves                Roberto L. Fernando

(texto)                                       (fotos)

Como tripeiro de Santo Ildefonso, como vê, atualmente, a sua, que é nossa, cidade? O Porto tem vindo a ganhar ou a perder?

“O Porto ganhou muito nestes últimos anos! O Porto adquiriu um certo tipo de humildade nos seus limites, e obretas próprias. Deixou, a não ser no futebol, a hostilidade surda ou aberta contra Lisboa, que só o prejudicava. Verifico no Brasil, os paulistas são contra os do Rio de Janeiro; em França, os habitantes da cidade de Bordéus a não querem aceitar o primado de Paris… Mas, isto é natural, até sadio! A miséria de tudo isto é quando se cai na hostilidade e no fanatismo.

Neste aspeto, o Porto progrediu. Soube aceitar o que há de valioso, de competente. Quem é que não gosta de Lisboa? Só um tipo de mau-gosto! Quando miudito conheci Lisboa – talvez com 12 anos, o meu pai levou-nos lá com a nossa mãe e passámos lá cinco dias -, fiquei espantado, sem nunca negar a beleza do Porto.

Acho que o Porto tem algo que não existe em Lisboa – e peço às pessoas que me aceitem, e se estiver enganado que me corrijam –, que é o afeto pessoal. O Porto é melhor que Lisboa na simplicidade das pessoas – disseram-me lisboetas! É melhor, na alegria, no acolhimento, na hospitalidade…

As pessoas param, falam com o senhor, de irmão para irmão; de humano para humano. Em Lisboa, andam com tanta pressa, que não olham e nem têm oportunidade de ligar às pessoas. Nós, no Porto, ligamos às pessoas!”

O Porto, com este “boom” turístico, perdeu, ou, pelo contrário, consolidou as suas caraterísticas?

“O Porto mantém as suas caraterísticas! Encontro os turistas e pergunto-lhes o que é que acham de Lisboa e do Porto, e dizem que gostam mais do Porto. E por quê do Porto? Na hospitalidade, pelo aspeto primário de falarem imediatamente; de nos indicarem uma direção, e até vão connosco ao sítio pedido. A alegria! O portuense é assim. O lisboeta não é nada disso!”

Se calhar estamos mais próximos da Galiza, em termos de espírito que do Sul do país, é isso?

“Nós estamos mais próximos da civilização, no sentido que significa «civilização»: eu reconheço o cidadão e estimo-o, dou-lhe categoria e não quero ser o primeiro, nem o segundo… somos iguais!”

“PASSAMOS A SER UMA CIDADE EM GRANDEZA MATERIAL, MAS O MAIS IMPORTANTE É O ESPÍRITO”

O Porto foi durante muitos anos, como que uma grande aldeia fechada ao mundo, e agora abriu as portas e está a mostrar-se, e o mundo a gostar… é isso?

“Tem uma certa razão, mas eu nunca julguei o Porto fechado. Sempre achei que o espírito das pessoas do Porto – ao contrário do que pensava quem era de fora da cidade -, é quente e aberto! É o «venha lá jantar a casa». Em Lisboa, por exemplo, já é o «venha ao restaurante».

Eu achava que estava a fazer a figura de fanático ao defender o Porto. Sempre achei que o Porto teve espírito bairrista, mas que é um espírito natural de reconhecimento, de fraternidade e de hospitalidade perante o próximo. Em Lisboa eu não encontro essa naturalidade.

É certo, que, agora, com a abertura das fronteiras do Porto, as pessoas começaram a descobrir uma cidade típica, ali quase como plantada no rio, ou valorizada pelo rio a desaguar no mar. Mas isso, já estava valorizado há muito tempo. A verdade é que, nessa altura, éramos diminutos; éramos uma aldeia, agora passamos a uma cidade em grandeza material. Mas, o mais importante é o espírito…”

NO PORTO, NÃO GOSTO DE DESALOJADOS

… e a cidade, em grandeza material, está bem entregue a quem a lidera politicamente?

“Esta na boa e na má direção. Na boa direção, nesse sentido de se abrir a cidade a toda e qualquer pessoa, logo que ela respeite o ritmo e as leis da democracia, porque a democracia tem regras e tem uma disciplina que nunca é ditatorial. Eu vou na estrada e o Código da Estrada tem regras, mas é democrático! Nós abrimo-nos, e acho que lindamente. O que seria do Porto, e de outros sítios de Portugal, se não tivéssemos o Turismo?

Li, no «Nouvel Observateur», que Portugal é um país e meio na Europa, porque recebe bem os turistas, porque Portugal tem uma política para os reformados, porque Portugal, pobrezinho, cometeu uma dívida mas encetou um caminho de pagamento, e de sensibilidade pelos direitos da pessoa. Portanto, Portugal, hoje, na cultura europeia, é um tigre… ou seja, uma força, diz o «Nouvel Observateur».

O que é que não gosto neste Porto? Fundamentalmente, não gosto de desalojados. É muito bonita a Ribeira sob o ponto de vista turístico; é muito bonita a freguesia de Campanhã. Mas, e aquela gente que viveu em situação miserável durante tantos anos, e tem de abandonar a casa que foi dos avós?

«Sais daqui que a coisa será entregue a uma construtora de luxo». Estes nossos cidadãos do Porto, que são nossos irmãos, para onde é que vão? Irão para bem? Eu gostava de saber! Esses irmãos que saíram da Ribeira, ou de Lordelo do Ouro, ou da Pasteleira, para onde é que vão?

O receio que tenho do Porto é que despreze os pobres e as suas liberdades. Tenho medo que sejam desprezadas as liberdades de gente que nunca teve liberdade. Ou seja, aqueles que tinham a sua casa; tinham o seu pé-de-meia; tinham os vizinhos … o seu ninho de afetos…”

E isso, independentemente de poderem ir para um bairro social, entretanto, requalificado e pronto a recebê-los com o mínimo de dignidade?

“Se disserem que «para nós foi ótimo», eu fico feliz! Se disserem que «não temos frio; temos uma casa aquecida, temos espaço para os filhos e para os netos». Se me disserem isso, estou de acordo.

Agora, o que eu gostava de saber é se eles estão num sofrimento, ou se foram despromovidos? Tinham uma casa quente de afetos, de tradições. E agora? A casa é o espelho da família.”

Nem que fosse numa casa de “ilha”?

“…nem que fosse numa ilha! A verdade é que perderam uma casa. A casa que para eles era um museu! Tenho medo é que as pessoas do Porto não sejam promovidas…sejam desprezadas!

A CIDADE TEM DE ENCONTRAR UMA SOLUÇÃO PARA ESSE GRANDE SOFRIMENTO RELACIONADO COM A DROGA

Por falar em dificuldades relacionadas com problemas sociais, vem hoje, mais do que nunca, ao de cima a questão relacionada com o tráfico de drogas e o flagelo que afeta milhares de pessoas toxicodependentes…

“… a cidade, através dos seus vários partidos representados no conselho autárquico, tem de encontrar uma solução para esse grande sofrimento. É um sofrimento atroz! Hoje, é a destruição de um setor populacional, e, sobretudo, é a destruição de vidas.

Se tudo isso não for reconstruído, com a delicadeza exigível, teremos, por um lado, os que não são drogados e que olham para os drogados como os novos terroristas da cidade; e os chamados novos e velhos drogados, a olharem para os seus concidadãos, como uma entidade a abater. Teremos aqui uma guerra campal.

Já começo a pressentir que se reforce a Polícia, que a Polícia venha; que a Polícia detenha! Acho que a Polícia, com o devido respeito, é necessária, sim, mas para ajudar e promover e defender liberdades, e não para prender. Tudo isto tem de ter um trabalho social muito sério…”

… que demorará o seu tempo…

“…sim! Mas, esse trabalho é conhecido e é efetuado pelos assistentes sociais. É importante ouvir os promotores sociais; ouvir o mundo clínico. Temos hoje especialistas de pura água aqui no Porto. Por que é que essas pessoas não são ouvidas? Eu espero que sejam! Por que é que essas pessoas não dão os seus conselhos valorativos para haver uma transformação, ou uma ajuda social? Deitou-se o prédio abaixo, e os ratos desapareceram?! Mas, os humanos por muito perdidos que andem, são ratos? É esta a sociedade que temos? É uma sociedade de bandidos? Diz-se que um drogado é um rato?! É um tipo viciado, desvirtuado…

HÁ UMA HISTÓRIA GLORIOSA DO PORTO NA PROMOÇÃO SOCIAL DAS NOSSAS «ILHAS»… É PRECISO PROMOVER AS PESSOAS QUE DELAS SAÍRAM

O que está em causa, no essencial, são os traficantes.

“Claro. Com certeza. Mas, esse trabalho tem de ser tratado com pinças. Com a maior delicadeza! Hoje, repito, temos especialistas na matéria de promoção e reformulação social.

Há uma história gloriosa do Porto na promoção social dos bairros, das nossas ilhas, mas é preciso promover as pessoas que delas saíram, porque dá a impressão que as ilhas dão dinheiro para gente que vem de fora. A ilha pode ser construída como um museu, como uma memória sagrada que essas pessoas não viveram, mas que, com dinheiro, conseguirão construir, e construirão coisas magníficas. E a demonstração afetiva, psicológica, familiar de gente que foi arredada dessas casas? Sinto muito essa caravana de gente que foi espoliada. É preciso provar que essa gente não foi espoliada! Que essa gente foi promovida e amada… é preciso ouvi-la.

Por exemplo, a zona oriental foi desprezada, ou pelo menos, esquecida do cuidados sociais da cidade. O próprio presidente da Câmara o disse publicamente. Nos últimos tempos, não estive no no Porto mas já estou aqui há dois anos, e com o tempo suficiente para ter compreendido isso. A própria zona da estação, em Campanhã, precisa de uma intervenção…”

Já há um projeto para isso, e que se encontra em andamento… o Terminal Intermodal de Campanhã.

“Espero que seja cumprido, mas disso sabem os autarcas, e sabem os partidos. Como cidadão, quem sou eu? Há outras pessoas que têm a capacidade para saberem muito mais. Eu, como cidadão, não concordo com a situação que está.”

CONHECER O SENHOR DOM ANTÓNIO FERREIRA GOMES FOI UMA GRAÇA ÚNICA QUE TIVE

E estou a falar com um lutador, um homem dedicado à Igreja, um “alexandrino”…

“… fiz lá, no Alexandre Herculano, a admissão ao Liceu.”

E estamos a falar de grande nomes que a cidade criou, a começar pelo Bispo do Porto, basta referir «Bispo do Porto» para se falar em Dom António Ferreira Gomes.

“Fui chefe de gabinete do Bispo do Porto. O secretário foi o Dr. Arnaldo Pinho…”

Deve ter sido uma experiência de todo o tamanho…

“Uma Graça única que tive, como aconteceu com todas as pessoas que com o senhor D. António viveram naquelas circunstâncias. Para mim, a grande lição nem foi tanto conhecer o senhor Dom António. Eu comecei a trabalhar no Paço Episcopal…

… quantos anos tinha na altura?

Tinha 29 anos. Comecei a trabalhar em outubro de 1969. Visitei o senhor Dom António no exílio em 1968”.

No exílio?!

“Sim. Estive com ele, quando se encontrava no exílio. Eu ia para Paris, para estudar, e estive com ele em novembro de 1968. Depois tornei e encontrar-me com ele em abril de 1969. Estava em Espanha. Dom António depois entrou no país, em junho, e, então, nomeou-me chefe de gabinete.

Mas – como ia dizendo -, o que me tocou no senhor Dom António foi a imagem que dele recolhi, e que foi a da coragem única, no último século, de um português. Houve muita gente com uma coragem inolvidável, mas olhando à situação da Igreja, em que ninguém se mexia…

… conivente com o regime?!

“… o homem que se mexeu mais – e logo um homem introvertido, um pensador -, foi Dom António. Como é que ele teve a coragem de afrontar Salazar? Foi um problema de consciência, e não foi por ele. Ele, até à altura, não tinha sofrido nada com o regime….”

Terá sido incentivado pela campanha de Humberto Delgado?

“Não nego que tenha havido influências muito grandes da situação social e até da política. Mas, ele já há muitos anos andava atento a certas coisas e começava a ficar incomodado. Ele há muito tempo tinha colocado dentro de si uma interrogação muito grande quanto ao futuro de Portugal.

Isto era uma Pátria vendida, era uma Pátria miserável, e o senhor José Gonçalves se leu alguma coisa do senhor Dom António, terá reparado que aquilo que ele disse ao Salazar, e que lhe tocou na alma, foi o mundo de farrapões, de pobres desprezados que aqui vivia,; foram os problemas laborais, sobre os quais ele achava que o operário era tratado como objeto, e nunca como pessoa. Aquilo que lhe doeu foi o facto dos frutos do trabalho, não serem, em justiça, distribuídos. O patrão ficava com 90 e o operário com 10. Foi todo o sistema económico-social que o revoltou, e que nós observamos ainda nas últimas eleições…”

Como assim?

“As grandes deceções são a pobreza do país, o desemprego – hoje felizmente quase resolvido –  e as desigualdades sociais que são menos graves… mas ainda graves. O problema do mundo da Saúde, que temos que soluciona-lo…

(HOJE) UM MUNDO DE RESSENTIMENTOS QUE SE COLOCAM AO CAPITALISMO E A UMA DIREITA DESENFREADA, COMO SEMPRE FOI A DIREITA

… e agora, o tal populismo, pró-racista, que a Igreja tem vindo a condenar e que chegou à Assembleia da República…

“Sim. Não acredito que haja racismo, mas é preciso o maior cuidado. Quem fomenta o racismo é o capitalismo. Portanto, quem é negro é perseguido por ser considerado como alguém que nos vem roubar o trabalho, que não é da família, e que não serve a pátria, não dá lucro, etc.

E ouvi isto há dias: um afegão fugiu da guerra, estava em Budapeste, na Hungria, entra no autocarro, viu uma senhora de idade, ninguém se levantou, ele levantou-se e disse: faça o favor de se sentar. Ela sentou-se, virou-se para ele e disse: o senhor não fez mais que o seu dever, porque o senhor não é daqui, o senhor está a mais cá na terra.

Portanto, é isto! Uma senhora de idade, a dizer que o “senhor não fez mais que o seu dever; que o senhor não tem nada que estar à minha frente; que o senhor não é húngaro; que o senhor está a mais nesta casa. Nós não fazemos isso em Portugal. É capaz só de acontecer um ou outro caso…

Eu assisti à crise de emigração de 2001. Você não imagina as reações que havia contra os negros. Que é como quem diz: contra a gente que veio da situação geográfica de onde se fala o português. Os ressentidos do regime diziam que, se eles quiseram a independência, então que lá ficassem Isto quando as pessoas a que eles se referiam ainda não eram nascidas na altura da independência. Há um mundo de ressentimentos, de preconceitos ideológicos que se colocam ao capitalismo e a uma direita desenfreada, como sempre foi a direita…”

Que agora tem no Parlamento um radical.

“Acho que vai ser uma oportunidade para ver se somos capazes, ou não, de um diálogo, de modo a dizer às pessoas que estamos em desacordo. Nós não defendemos a pena de morte; somos contra a pena de morte! Nós não vamos fuzilar ciganos, nem vamos pôr fora das fronteiras a gente de raça negra ou amarela, ou vermelha que para cá venham. Nós somos um país hospitaleiro…”

NO PROBLEMA DE TANCOS VI PESSOAS A CAIR NO INSULTO E A QUEREREM «A» E «B» NA CADEIA. ESSAS PESSOAS TÊM O ESPÍRITO DO FURÃO QUE ANDA À CAÇA. SÃO FURÕES!

E acha que haverá essa capacidade de diálogo?

“Eu acredito. Temo reações pontuais. Eu vi nesta campanha pessoas educadas, e relativamente ao problema de Tancos, a cair num insulto, e demonstraram quase que uma sensualidade feroz: queriam “a” e “b” na cadeia. Se as pessoas manifestam essa ferocidade, essas pessoas têm o espírito do furão que anda à caça. Esses são furões!”

Há tratamento para este caso, ou vamos ter de nos habituar a conviver com ele?

“Em muitos casos há orquestração, mas eu acho que faz parte de certo tipo de reações humana. Acredito que a democracia – que é um conflito entre diferenças, mas que também é um diálogo entre diferenças – não permitirá ataques à dignidade humana. Isso devia começar a corrigir-se na própria Assembleia da República, onde estão pessoas como representantes do povo, e, na primeira atitude, não permitirão atentados a essa democracia…”

A DEMOCRACIA É A FORMA CIVILIZADA E BEM COMPORTADA DE DIZER «EU DISCORDO DE TI, MAS NÃO VOU FAZER GUERRA CONTRA TI»

Uma postura idêntica à de Dom António Ferreira Gomes ainda que em tempos, e regime, diferentes?

“Sim. Não usou o desaforo, não usou o insulto, não promoveu a perseguição. Um individuo cá fora diz: o fulano é um mentiroso; é pá, temos de ter cuidado… fulano é um perigo e tal… O Dom António disse, eu discordo, mas de uma forma civilizada.

A democracia é a forma civilizada e bem comportada de dizer eu discordo de ti, mas não vou fazer guerra contra ti. Não vou pôr um tanque à tua porta, nem te vou levar para a Polícia, nem te vou matar. Agora, quando as pessoas entram a dizer que são capazes de promover a pena de morte – que eu não acredito – é problemático. Isso vai ser um tema um pouco intempestivo, intranquilo, mas será um tema a discutir…”

EU VOU PERSEGUIR ALGUÉM QUE TEVE UM CASAMENTO HOMOSSEXUAL? A VERDADE É ALCANÇADA ATRAVÉS DO SANGUE? ATRAVÉS DE UM TIRO? MAS JÁ VAMOS EM CEM OU OITENTA MORTES, DE HOMENS QUE MATARAM MULHERES, E DE MULHERES QUE MATARAM HOMENS…

Esse, como a Eutanásia e outras questões que poderão ser levantadas…

“Doa a quem doer, e sobretudo se a pessoa perder numa votação, não pode enveredar por caminhos de destruição relativamente a quem votou contrário. Acho que Portugal tem dado o exemplo de diálogo e compreensão

Vamos ver outro tipo de casos: um homem casado com outro homem, ou uma mulher com outra mulher. Eu posso não concordar, mas vivendo numa sociedade destas, eu vou perseguir alguém que teve um casamento homossexual? Sou eu que vou criar perseguição a estas pessoas? A verdade é alcançada através do sangue? Através da morte? Através de um tiro?

Esta questão não tem dado problemas, mas sabe que homens e mulheres que se casaram entre si… matam-se?! Como é que já vamos em cem, ou oitenta ou noventa mortes, de homens a matarem mulheres e mulheres matarem homens?! Vamos resolver uma crise conjugal, mesmo quando há uma infidelidade, com um tiro de pistola? Eu nada resolvo com violência…

A Igreja tem, nesse aspeto, um papel preponderante…

“Sim, penso que a Igreja terá de ter uma missão pioneira nesse aspeto de civilização. Não é o facto de ser ou não ser católico, mas a minha conceção católica defende a paz. Tenho de estar ao lado da Paz. E não posso, do ponto de vista intelectual, estar de acordo com quem promove o sangue, a destruição, a indignidade das pessoas.”

O PAPA FRANCISCO É UMA BÊNÇÃO PARA A IGREJA! É HOJE A PRIMEIRA PERSONALIDADE DO MUNDO

O Papa Francisco veio dar como que uma lufada de ar fresco à Igreja? Tem ele tido um papel extremamente difícil para levar – como popularmente se diz no Porto -, a água ao seu moinho?

“O Papa Francisco é uma bênção para a Igreja, para o mundo. É um Bem! É hoje a primeira personalidade do mundo, não há mais ninguém! Não é por ele ser católico, é por ele ser quem é. Se ele fosse o Dalai Lama ou o Martin Luther King, eu diria o mesmo. Mas, já encontrei pessoas que não gostam dele…”

É um Papa progressista…

“… felizmente! É um Papa como deve ser. O progresso é para a frente, e a Igreja tem de ser progressista nesse sentido. Há situações que tem de resolver. Há experiências que deve ter…”

… e o D. Januário sempre foi progressista?

“Eu sempre procurei o respeito pelo parecer de outros”.

Não foi fácil ser progressista na Igreja, outrora mais conservadora que hoje?

“Na outra época era difícil. Lembro-me muito bem – estava no Paço com o senhor D. António -, de um professor da Universidade que veio queixar-se de um padre, só porque ele defendia a independência das chamadas províncias ultramarinas. Ele pediu para falar com o Bispo. Disse-lhe que falar com ele falo, mas não o vou converter, porque eu penso como ele. Mas, fui falar com ele, e o tal padre disse-me que continuava a pensar daquela forma, que ninguém lhe tirava aquela ideia.

Agora, esse senhor professor foi – disse, então, o padre – extremamente malcriado comigo…. insultou-me!E a mulher desse senhor usou expressões extremamente malcriadas.

Falei com esse professor e disse-lhe: oh senhor professor, o senhor pode ir falar com o senhor Bispo para levar o problema ao chamado Tribunal Eclesiástico. Bem, ele ficou muito aflito, quando lhe sugeri que fosse ele a falar com o Bispo e que tivesse uma conversa a três. Depois também lhe disse para escrever tudo num caderninho, e que com isso iria mais tarde ficar envergonhado, porque Angola havia de ser livre um dia, e Moçambique na mesma. Dessa altura até a independência mediaram quatro anos.

O 25 DE ABRIL FOI UM DIA FELICÍSSIMO!

E como é que se viveu o 25 de Abril na Igreja e, no seu caso particular, como é que o viveu? Acreditou-se que havia a mudança, ou que se trataria de um golpe de Estado?

“Eu vivia ali na Torre da Marca. Foi um dia felicíssimo. Encontrei um rapaz que morava aqui perto, conheci-o numa colónia de férias que tínhamos organizado para miúdos de bairros pobres do Porto durante três meses, e foi um dia em que ninguém sabia o que estava a acontecer.

Eu pela rádio francesa, depois de vir da Faculdade, ouvi o Mário Soares a dizer que lhe garantiam de Lisboa que não era um golpe da direita. Portante se não era da direita era tudo bom…”

A SENSIBILIDADE DO CLERO, AQUI NO PORTO, ERA MUITO MAIS A FAVOR DO 25 DE ABRIL DO QUE EM OUTRO LADO

E quando é que se dá o 25 de abril na própria Igreja?

“Acho que o 25 de Abril na Igreja começou, apesar de tudo, mais cedo que o civil…. o Concílio do Vaticano terminou em 1965. Acho que o 25 de Abril ajudou muito a Igreja no sentido de uma liberdade civil plena, porque eu dei conta de padres que tinham uma grande sensibilidade social e que eram postos de reserva quando focassem um tema do género. E tenho a prova daquele professor, que há pouco falei, e que lhe bati com o pé.

A sensibilidade do clero, aqui no Porto, era muito mais a favor do 25 de Abril do quem em outro lado. E esta era considerada uma cidade muito conservadora. Aqui no Porto, antes do 25 de Abril havia um número considerável de padres e leigos a pensar de forma extremamente avançada…

O PARTIDO COMUNISTA FOI UM FAROL NA LUTA CONTRA O ESTADO NOVO, E ISTO CUSTA A MUITA GENTE

… e o Porto teve grandes nomes na luta pela democracia.

Sim, do Partido Socialista, do Partido Comunista, todos a defenderem a democracia. Houve também um grande número de pessoas que foram democratas mas só pelo 25 de Abril, ou seja, na altura em que ele se deu, porque antes do 25 de abril, alguém a defender a democracia era logo considerado comunista. O Partido Comunista, honra lhe seja, foi um farol na luta contra o Estado Novo, e isto custa a muita gente!

Olhe o Dom Manuel Falcão, que foi Bispo de Beja, foi um homem que nasceu em Lisboa, de família rica, recebeu bens de família e deu tudo, não ficou com nada! E algum dia alguém lhe perguntou se ele era comunista, e sabe qual foi a resposta que ele deu? O Partido Comunista foi o Partido que deu voz ao Alentejo. Quem é que deu voz aos oprimidos do Alentejo? O que é que vocês querem ouvir de mim? Foi o PCP que deu voz ao Alentejo! Eu sei que muita gente a partir do dia 25 de Abril, hipocritamente, continuava a baixar a cabeça perante o senhor D. Manuel Falcão, mas, com ele de costas,não diziam nada bem dele”.

O Dom Januário passou também por situação ou situações idênticas?

“Não. Eu tenho uma situação contrária. Mas conheço muitos cobardes. Há um grande número de pessoas que não tem coragem de dizer, frontalmente, que discorda de mim. Já tive também pessoas que o disseram, e com muita calma perguntaram: por que é que caiu nessa forma de defender isto e coisa e tal? Porque a minha consciência me pediu isso. Não pertenço a partidos, não tenho partido. Foi e é a minha resposta”.

NA DEMOCRACIA O QUE NÃO É NORMAL É AS PESSOAS PERDEREM O RESPEITO PELA DIGNIDADE DO OUTRO

O contacto com o povo foi fundamental.

“Sim. O andar na rua, o tomar o transporte público, ir ao café, ir a grupos, e dentro da Igreja ouvir muita gente do mundo do Trabalho e ter discussões relacionadas com diversos temas. Ler, estudar, atravessar a Faculdade. Na democracia o que não é normal é as pessoas perderem o respeito pela dignidade do outro… é denunciar à polícia, é ir à navalhada, é dar um tiro… é criar uma calunia…

…agora são as fake news…

“Isso é uma coisa horrível! Está a ver aquela última cena com o António Costa – que poderia ter sido com Rui Rio ou com a Catarina Martins -, do tipo que aparece, mesmo a terminar a campanha eleitoral, a dizer que o primeiro-ministro estava de férias aquando dos fogos? Um grande número de pessoas com quem falei deu razão ao senhor que efetivou o Costa. O único que defendeu o Costa fui eu.

E defendi o Costa, mas, em caso do género, defenderia o Rui Rio ou outro candidato …  Então, por que é que o tipo, velhinho de cabelos brancos e óculos escuros, apunhalou o Costa e houve quem quisesse que o tipo apunhalado é que tivesse calma? Isto foi uma jogada! E o que é triste é que ninguém do CDS desmentiu que tudo foi uma jogada. Esse velho foi autarca do CDS.

O CDS enviou depois uma comunicado a dizer que nada teve com o caso. Se estivesse no lugar do CDS – e logo neste momento que está numa situação tão crítica -, teria a hombridade e a dignidade de falar com o tal senhor e depois dar uma explicação pública, porque ficou a sensação na opinião pública que aquilo foi encomendado”.

GOSTAVA QUE A GERINGONÇA CONTINUASSE!

A verdade é que António Costa (e o PS) ganhou as eleições, ainda que sem maioria absoluta. Em seu entender o país vai continuar bem entregue?

“Gostava da forma da Geringonça e que ela continuasse. Não nego que já fui assaltado por um ou outro receio, mas acredito na inteligência quer do Bloco de Esquerda, quer da CDU, do Livre e do PAN. Mas, principalmente do BE e da CDU pois têm uma longa maratona política e um historial de luxo.

Vamos ver coisas concretas: vai aparecer a questão da Saúde e dos professores. Tudo isto mete dinheiros. Vão aparecer as questões laborais, que são estruturantes. Estas são questões necessárias, como é o facto de termos de salvar o Serviço Nacional de Saúde; temos de salvar a vida das pessoas!

Escrevi um prefácio ao livro do João Semedo e do António Arnaut. Vejo o que as pessoas sofrem na Saúde. Tenho, porém, receio que se possa criar um certo divisionismo. A diferença tem de existir, mas espero que as pessoas não acabem com o diálogo”.

A direita diz-se aberta ao diálogo.

“Nunca estiveram abertos a diálogo algum. O CDS nunca esteve. No PSD há uma grande luta, e os que são «não-Rio» dizem que ele é muito pró-PS.

O principal objetivo é resolver os problemas das pessoas! Quais? Sempre e em primeiro lugar os pobres. Mas, pelo que parece, os pobres não interessam para nada!”

01nov19

 

 

 

 

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