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O dia que mudou a Madeira para sempre [grande reportagem]

19 fevereiro 2020 18:07

Marta Caires

Marta Caires

Texto

Jornalista

Tiago Miranda

Tiago Miranda

Fotografia e vídeo

Fotojornalista

Tiago Pereira Santos

Tiago Pereira Santos

Edição de imagem

Design e Vídeo

Jaime Figueiredo

Jaime Figueiredo

Infografia

Jornalista/Coordenador-Geral de Infografia

Joana Beleza

Joana Beleza

Coordenação e edição de vídeo

Dez anos volvidos desde as grandes cheias que mataram 51 pessoas e desalojaram 600 na Madeira, ainda há cinco corpos por descobrir, cinco famílias por realojar, feridos à espera de cirurgia e máquinas a trabalhar nas ribeiras

19 fevereiro 2020 18:07

Marta Caires

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Tiago Miranda

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Tiago Pereira Santos

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Jornalista/Coordenador-Geral de Infografia

Joana Beleza

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Todos os madeirenses sabem onde estavam naquele sábado. As cheias de 20 de fevereiro de 2010, que varreram a costa sul, são um marco da ilha, uma cicatriz profunda, deixada pelos 51 mortos, 600 desalojados e mil milhões de euros de prejuízos. Foi uma das maiores tragédias deste século, superada apenas pelos incêndios de 2017. Uma década volvida, cinco famílias continuam à espera de realojamento definitivo, tantas quantas as que nunca puderam enterrar os que lhes desapareceram. Dentro das ribeiras ainda há máquinas a trabalhar em obras de prevenção de riscos. A aluvião alterou toda a zona ribeirinha do Funchal e mudou para sempre quem vive na ilha.

Manuel Nunes, antigo sacristão da Sé, saiu de casa naquela manhã para alertar o vizinho. O ribeiro que separa as duas propriedades, no Laranjal, zona alta do Funchal, ia cheio e havia já água a entrar por um anexo. Nunca mais foi visto, nem vivo nem morto. O seu nome consta da lista de desaparecidos cuja morte presumida só agora será declarada, a 20 de fevereiro de 2020, quando se cumprem 10 anos sobre a aluvião que assolou a Madeira. É só uma formalidade legal, pois a família há muito que lhe fez o luto.

Hugo Nunes ficou orfão de pai, cujo corpo nunca apareceu

Hugo Nunes ficou orfão de pai, cujo corpo nunca apareceu

tiago miranda

Mas houve dias de esperança. Hugo, o filho mais velho, acreditava que o ia encontrar logo nas primeiras horas que se seguiram ao telefonema da mãe, aflita, a pedir-lhe que fosse ver do pai. “Não fazia ideia de que estava a chover tanto assim”, recorda. Era um sábado normal na empresa de instalação de eletrodomésticos e só quando saiu percebeu a dimensão do dilúvio. As estradas estavam interrompidas e alagadas. Demorou a chegar à curva da estrada, na confluência de dois ribeiros, onde Manuel Nunes fora visto pela última vez.

As horas começaram a passar e nem sinal dele. Foram feitas buscas, limpou-se o entulho debaixo da ponte, os cães da Marinha bateram o ribeiro, as autoridades vasculharam a costa, e do antigo sacristão da Sé, à data com 66 anos, nem vestígio. Sem corpo para fazer o funeral, a angústia prolongou-se, sobretudo nos dois anos seguintes. De cada vez que apareciam restos mortais, a ferida reabria-se.

“Quando perdemos alguém e não nos despedimos, não temos um lugar, mesmo que simbólico, em que pensamos que está ali. Essa é a pior parte. O meu pai dizia que, quando morresse, não queria campas, queria ir para a terra. Foi para a terra, foi sem caixão, mas foi para a terra.” Hugo compensou parte da dor no muito trabalho que se seguiu à aluvião, quando a sua empresa foi chamada a equipar casas para realojar os que ficaram sem nada. “O 20 de fevereiro não foi só a morte do meu pai, muita gente precisou de ajuda. Havia uma necessidade de realojar estas pessoas e até existiam apartamentos, mas não havia um fogão, um exaustor, nada.”

A ÚLTIMA CIRURGIA

Além dos 51 mortos, a tragédia fez mais de 250 feridos. Daquelas duas horas de chuva intensa, há quem tenha escapado vivo não sabe bem como — como Dúlio Freitas, então com 19 anos, colhido pela água quando estava no quintal de casa, na Estrada da Levada dos Tornos, Monte, zona alta do Funchal.

Tinha-se levantado para ir ajudar o pai. Uma primeira enxurrada deixara o caminho cheio de entulho. Estava na entrada da casa quando ouviu um barulho e o irmão mais velho a gritar para fugir. “Era como uma onda, com pedras, paus e pinheiros inteiros”, recorda o agora chefe de cozinha. Apanhou-o logo ali. Tem memória de se ter agarrado à porta e de ser arrastado, de ir “no meio daquilo tudo”, de querer respirar e não conseguir. “Já não sentia dores, só pancadas, sentia-me jogado de um lado para o outro. Pensei que me podia agarrar à ponte, mas lembro-me de estar a cair e bater no fundo. A partir daí não sei de mais nada.”

Dúlio Freitas foi arrastado três quilómetros pela enxurrada e ainda lhe falta fazer uma cirurgia

Dúlio Freitas foi arrastado três quilómetros pela enxurrada e ainda lhe falta fazer uma cirurgia

tiago miranda

Quando voltou a si estava a três quilómetros de casa, sozinho, no meio da lama e com um carro em cima. Tinham passado três horas e, em casa, a família temia o pior. Ele pensou que acabava ali. “Naquele momento percebi que aquilo era morrer.”

Todos os anos, no dia 20 de fevereiro, agradece a Nossa Senhora do Monte. Foi a ela que a mãe se agarrou. “O meu pai tinha uma parte da casa que era a capelinha do fado — ele canta. Numa parede estavam vários santos, e entrou uma árvore que arrastou com ela a imagem de Nossa Senhora. A minha mãe diz que ela me foi salvar”, explica.

Dúlio esteve três semanas internado, fez duas operações e sofreu com infeções nos ouvidos e na garganta por ter engolido terra. A perna levou nove meses a recuperar. Durante os primeiros tempos custava-lhe sentir o cheiro de terra molhada e de eucalipto, mas garante que vive bem com o que lhe aconteceu. Só desespera com a vaga que não chega para fazer a última operação à perna. Está em lista de espera há 10 anos. Em 2019 telefonaram-lhe do hospital a perguntar se continuava interessado. “Eu disse que sim.”

Naquele dia, a chuva intensa provocou deslizamentos de terras — só no Funchal registaram-se mais de 150 derrocadas quase em simultâneo — e fez transbordar as três ribeiras (e os seus afluentes) que atravessam a Baixa da capital madeirense e a ribeira da Ribeira Brava, localidade a oeste do Funchal. A água e lama arrastaram tudo o que encontraram pela frente. Os prejuízos, no balanço feito à época, ascenderam a mil milhões de euros. A conta soma os estragos em estradas, edifícios públicos, empresas e casas de 1200 famílias.

RECOMEÇAR NOUTRO LUGAR

Para metade das famílias cujas moradas foram atingidas, a vida teve de recomeçar noutro lugar. António tem orgulho na casa que levou seis anos a construir, um pouco abaixo do lugar onde viveu 40 anos, até ao dia da tragédia, nos Lombos, zona alta do Funchal. Quando acordou, alertado pela mulher, havia água por todos os lados. No quintal dava pelo peito. Quando viu rebentar uma parte da frente da casa, percebeu que era hora de correr.

Foi buscar o filho que ainda dormia e fugiram pelo terraço da casa, passaram para o telhado da casa ao lado e para outro ainda, até que os vizinhos os retiraram com uma escada de seis metros. A enxurrada levou tudo, até os cães. “Andei na SPAD [Sociedade Protetora dos Animais Domésticos] a ver se estava lá algum, mas nada.” De uma vida de trabalho ficou com o pijama que tinha vestido, que acabou no lixo — não tolerava aquele cheiro a lama.

António Leça viu a água levar-lhe a casa e só seis anos depois se instalou numa nova, e segura

António Leça viu a água levar-lhe a casa e só seis anos depois se instalou numa nova, e segura

tiago miranda

Viveu com um irmão durante uns meses, depois arranjaram-lhe um andar no bairro social do Galeão, mas António Leça tinha um lote de terra e foi lá que construiu a casa nova. Levou seis anos a instalar-se na sala onde recebeu o Expresso. O dinheiro prometido — €80 mil da Cruz Vermelha, Governo Regional e da República — demorou a chegar e não deu para tudo. O resto pediu ao banco.

Agora, numa casa feita pelas novas regras de construção, confortável, bendiz a segurança, plantou árvores novas e foi buscar um cão à SPAD.

Para quem ficou sem casa, como António, existiram diferentes soluções de realojamento. Algumas famílias puderam reconstruir as casas após a consolidação das escarpas, outras foram para bairros sociais, e na Serra da Água — na Ribeira Brava — construíram-se moradias em áreas seguras.

Porém, 10 anos depois, cinco famílias continuam sem uma solução definitiva de alojamento. Vivem desde 2010 no Complexo Habitacional do Estabelecimento Prisional do Funchal, um conjunto de blocos de apartamentos construídos em meados dos anos 90 para guardas prisionais deslocados.

As autoridades apresentaram várias soluções, mas as famílias recusaram. Viviam em vivendas de que eram proprietárias e resistem à ideia de ficar num bairro social. A família de Gabriela Andrade, de 77 anos, faz parte deste último grupo de desalojados — ela, o filho, a nora e os dois netos. “Estamos assim à espera que um dia nos deem um cantinho num lugar bom e sossegado.”

O que está para trás é a história de um dia terrível. Gabriela, que vivia na Choupana, na zona alta de São Gonçalo, no Funchal, saiu cedo para ir ao mercado. Foi lá que viu a água saltar fora da ribeira. Nessa altura, em sua casa, a nora tirava os netos da cama a correr. Um filho foi salvo da lama por um irmão, e daí correram para casa de uma tia.

Os telefones falharam, e Gabriela passou o resto do dia junto a um centro comercial na periferia do Funchal. A família deu-a como morta, e a irmã ligou para a Austrália, para França e para Jersey para avisar que tinha ido com a água, que não aparecia. Só a voltaram a ver à noite. A casa nunca mais a viram.

“Nem sequer tive coragem de ir lá ver. As minhas coisinhas todas... Está tudo lá, debaixo da terra. Só fiquei com a roupa que tinha no corpo. Comecei de novo com ajudas de pessoas da Madeira, e até do continente mandaram bonecas para a minha neta, que era pequenina, não tinha 6 anos ainda. Quando me lembro disto, custa.”

Estão provisoriamente há 10 anos no bairro dos guardas, de onde é preciso dois passes para ir ao mercado. “Aqui à volta há gente que veio do 20 de fevereiro e do lume [realojados dos incêndios de agosto de 2016]”, explica Gabriela, que ainda se espanta com o que lhe aconteceu. “Trabalhar noites inteiras e depois num segundo ficar sem nada.”

Dos mil milhões de euros previstos na lei de meios — de financiamento da reconstrução — foram executados €600 milhões e, para este ano de 2020, estão previstos mais €60 milhões. Ainda há máquinas a trabalhar dentro da Ribeira de Santa Luzia, na Baixa do Funchal, e na zona ribeirinha. No local do aterro do entulho das enxurradas nasceu uma área de lazer, juntou-se a foz de duas ribeiras e desviou-se o troço de outra que passava debaixo de um prédio.

“HOUVE ALI MUITOS HERÓIS”

Para conter o material sólido, foram construídos açudes — uma espécie de pente com dentes em betão —, a montante, nas três ribeiras que atravessam o centro da capital madeirense. E, para ajudar na prevenção, foi instalado um radar meteorológico, que entrou em funcionamento em 2018.

Apesar da chuva intensa que caía naquela manhã, os modelos usados pelo IPMA colocaram a Madeira sob aviso laranja, que só evoluiu para vermelho já com a catástrofe instalada. Alberto Borges, bombeiro dos agora Sapadores do Funchal (na época Municipais), recorda que os alertas começaram a chegar pouco depois das 9h, mais ou menos em simultâneo. Primeiro, risco de inundação no La Vie, centro comercial a poucos metros do quartel; depois, desmoronamento de uma casa no Vasco Gil; carros arrastados na Estrada Luso-Brasileira; e, do Monte, na Corujeira, a informação que o gelou: um camarada da corporação tinha sido apanhado pela enxurrada e morrera.

Alberto integrava o grupo que foi resgatar o bombeiro morto, mas o caminho até lá chegar foi demorado, com tantos pedidos de ajuda. “Foi preciso retirar pessoas e colocá-las em lugares seguros, algumas em pânico a agarrar-nos.”

Tantos anos depois, lembrar aquele dia ainda mexe com ele. A semana que se seguiu à aluvião foi passada a retirar corpos de carros e casas. “No Laranjal estavam três pessoas num quarto. Fugiram do rés do chão para o primeiro andar e foram colhidas pela água. E a cozinha no rés do chão estava impecável, ainda lá havia fruta”, recorda.

Alberto Borges, hoje chefe dos Sapadores do Funchal, caminha no ribeiro onde esteve três dias a resgatar os corpos de um casal

Alberto Borges, hoje chefe dos Sapadores do Funchal, caminha no ribeiro onde esteve três dias a resgatar os corpos de um casal

tiago miranda

Antes, nas Babosas, por debaixo da capela, a equipa de Alberto foi salvar uma mulher com lama pelo peito. “Um colega nosso foi lá buscá-la com água a tapá-lo. Foram feitas coisas que, pensando bem, foi um doping. Andámos perdidos. Era preciso fazer, ajudar, entregar os corpos às famílias. Na Luso-Brasileira fomos recuperar um casal de um carro caído dentro de um ribeiro. Estivemos lá três dias. O homem era filho de um antigo chefe daqui da corporação.”

De fora veio ajuda da PSP, da Marinha, do Exército, da GNR e da comunidade. Alberto não tem dúvidas de que “houve ali muitos heróis. Uma pessoa vê, vai e mete-se”. Ele viu, foi e meteu-se... em água e lama. E hoje, como há 10 anos, dói.

jaime figueiredo

OS NÚMEROS DA TRAGÉDIA

51


pessoas morreram em consequência do deslizamento de terras e cheias, cinco das quais nunca foram encontradas; registaram-se ainda 250 feridos

600


madeirenses ficaram desalojados, havendo ainda hoje cinco famílias à espera de casa definitiva. Mais de 1200 habitações foram afetadas na vertente sul da Madeira, 400 com perda total. Foram gastos €600 milhões na reconstrução, que incluiu a edificação de dois novos bairros habitacionais

60


milhões de euros estão orçamentados para obras na zona afetada este ano. Dez anos depois, os trabalhos ainda não foram concluídos. Os prejuízos totais ultrapassaram os mil milhões de euros

1


radar meteorológico foi instalado no Porto Santo, em janeiro de 2019, para proteger a Madeira de aluviões; permite prever cargas de água ou índices de pluviosidade muito elevados

2016