Cultura

Nascidos para morrer

15 outubro 2017 16:00

Reinaldo Serrano

d.r.

Em abril de 1975 terminava o mais traumático conflito envolvendo os Estados Unidos da América. Mais de 40 anos depois, eis que um documentário lança um novo olhar sobre as origens, os fins e as sequelas da guerra do Vietname

15 outubro 2017 16:00

Reinaldo Serrano

“O preço da Liberdade é sempre alto; mas os Americanos sempre o pagaram” John Fitzgerald Kennedy

Entre 1955 e 1975, os Estados Unidos intervieram no conflito que, até hoje, mais abalou a América. A participação norte-americana na Guerra do Vietname abriu feridas que, mais de 4 décadas depois, ainda não estão completamente saradas para boa parte de uma opinião pública que não gosta de falar sobre as incidências físicas, psicológicas e políticas da guerra.

O tema foi por demais abordado por jornalistas, historiadores, agentes políticos e militares, protagonistas. O cinema e a televisão deram à Guerra do Vietname uma dedicada atenção ao longo de um tempo que ainda se não esvaiu. Prova disso, a estreia no passado mês de setembro, de um importante documentário assinado pela dupla Ken Burns e Lynn Novick. A assinatura é importante, pois que ambos os realizadores têm no currículo outros documentários de cariz histórico, nomeadamente sobre as duas guerras mundiais e sobre a Guerra Civil norte-americana.

Desta feita, o que torna este documentário diferente (e melhor) de todos os outros é o facto de nos apresentar um notável enquadramento que explica de forma nada hermética os factos que conduziram ao traumático conflito, pedra maior no sapato da superpotência. Para tal recua até meados do século XIX (mais precisamente até 1858), aquando da colonização francesa da Indochina, seguindo depois o percurso histórico e político dos acontecimentos seguinte, nomeadamente o advento da I Guerra Mundial, a emergência de Ho Chi Minh e os eventos que criaram e dividiram em Norte e Sul o território vietnamita.

Sob a sólida narração de Peter Coyote (um ator subestimado na história do cinema, talvez por não se enquadrar no “mainstream”), o trabalho de Burns e Novick estende-se ao longo de 18 horas, repartidas em 10 episódios, cada um mais apetecível que o outro. Cerca de 100 testemunhos foram recolhidos para este épico, entre protagonistas de primeira linha e familiares dos milhares de soldados norte-americanos enviados para os confins de um mundo que desconheciam, a esmagadora maioria no batismo de uma guerra que, para muitos, nunca foi sua. Um dos “marines” que desembocou no conflito vietnamita disse, sem rodeios, fazer parte da última geração de jovens norte-americanos que acreditou realmente que o seu Governo nunca lhes mentiria...

Com um acervo de imagens deveras impressionante, um guião particularmente bem orquestrado, uma edição cuidada e uma soberba utilização do som, este documentário será um dos maiores trabalhos de investigação e divulgação de uma guerra onde participaram, direta ou indiretamente, cerca de 2 milhões e meio de norte-americanos, cerca de 600 mil na frente de combate; 58 mil perderam a vida, muitos mais ficariam para sempre afetados com o stress pós-traumático em resultado do que fizeram, do que viram fazer e do que não queriam ter feito.

A abordagem política, a estratégia militar, a contestação interna nos Estados Unidos, a influência da Guerra Fria, as inúmeras sequelas para as forças em conflito, de tudo isto e muito mais se constrói este notável exemplo de como a televisão pode e deve aproximar o público das grandes questões da História. “The Vietnam War” cumpre plenamente o seu papel de documento imprescindível para todos aqueles que queiram mergulhar na incrível trama que ainda hoje aflige os que nela participaram, porventura recordando os quase 7 milhões de toneladas de bombas lançadas pela força aérea dos Estados Unidos no território que, ao sul, era económica e militarmente apoiado por Washington, enquanto o norte tinha na China e na União Soviética os seus principais aliados.

O documentário chega a ser visceral nalguns momentos, assombroso noutros, mas também intrigante, equilibrado, ousado e desafiante. É, acima de tudo, um novo olhar sobre um dos conflitos mais escrutinados na história e que, 42 anos depois do seu fim, ainda pode ser início de discussão, sobretudo quando a História ameaça tomá-lo como exemplo e não como lição...