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Melhores do Ano. Serralves acolheu um “Terçolho” de João Maria Gusmão e Pedro Paiva

A evocação de uma origem percorre a obra de Gusmão e Paiva, desde que a vimos irromper no início do milénio
A evocação de uma origem percorre a obra de Gusmão e Paiva, desde que a vimos irromper no início do milénio
Filipe Braga

A reunião da obra da dupla artística portuguesa mais idiossincrática que o novo milénio viu nascer tem um resultado exaltante. No sábado, o Expresso revela a lista completa dos livros, filmes, séries, discos, teatro, dança e exposições que marcaram 2021

Num texto de 2006 em que se pergunta “O que é o contemporâneo?”, o filósofo italiano Giorgio Agamben diz a certa altura: “De facto, a contemporaneidade escreve-se no presente assinalando-o antes de tudo como arcaico, e somente quem percebe no mais moderno e recente os índices e as assinaturas do arcaico pode dele ser contemporâneo. Arcaico significa: próximo da arké, isto é, da origem. Mas a origem não está situada apenas num passado cronológico: ela é contemporânea ao devir histórico e não cessa de operar neste, como o embrião continua a agir nos tecidos do organismo maduro e a criança na vida psíquica do adulto.”

A evocação de uma origem, de qualquer coisa miticamente “antiga”, percorre toda a obra do coletivo artístico composto por João Maria Gusmão (Lisboa, 1979) e Pedro Paiva (Lisboa, 1977), desde que com adorável espanto a vimos irromper no início do milénio.

Depois de uma década que — dos dispositivos artísticos às estratégias críticas — tinha uma particular ansiedade com um presente inevitavelmente tecnológico, os seus anacrónicos filmes de 16 mm, tomavam distância desse presente, ofereciam-lhe perspetiva. Como sugere Agamben nesse texto que lhes é posterior, ser contemporâneo para Gusmão e Paiva, foi sendo encontrar interstícios de onde se pudesse puxar à linha uma genealogia não-cartesiana de místicos, alquimistas, patafísicos, dadaístas e desse caldo heterodoxo se pudesse oferecer ao presente uma deslocação que o fizesse estalar revelando a sua crise. Por isso, esta obra, cuja diversidade e liberdade de manifestações não esconde uma vertigem do obscuro, tem de ser vista a uma luz mais alargada e menos reificada que a da chamada arte contemporânea.

“Terçolho”, um nome adequado para uma mostra de um coletivo que sempre trabalhou com humor os limites do olhar, é comissariada por Marta Moreira de Almeida e Philippe Vergne e reúne um alargado corpo de 75 obras na mais vasta apresentação da dupla que agora termina a sua colaboração criativa. Para o público português, esta é também a possibilidade de travar contacto com muitos trabalhos que só foram mostrados nas andanças de uma internacionalização precoce.

Como em quase todas as suas apresentações, um sentido cénico impera. Veja-se a estrutura montada para receber as pequenas esculturas negras em bronze e que lhes concede nichos enquadradores; ou o corredor final onde se sucedem projeções de vários dos filmes em 16 mm realizados ao longo destes anos que se prolonga para a garagem numa lógica caleidoscópica. Essa ordenação nunca trai o espírito de uma obra que recorrendo a meios tão diferenciados como a fotografia, a escultura, o filme ou o desenho e valorizando a tangibilidade dos meios, a usa sempre para nos projetar para o não visível.

As esculturas parecem deixar-nos entrever uma cena, como se fornecessem um parêntesis de uma narrativa que antecede e procede o que vemos. Uma banheira, um cavalo sobrevoando-nos do alto de uma estrutura, objetos em equilíbrio, animais cilindrados ou o “Modelo da Caverna de Platão” encontram no bronze uma vida encapsulada e atemporal como a de uma fotografia.

Nos filmes, sucedem-se os prodígios e os atos xamânicos como os que dão vida a uma corda serpenteante (2013); equilibram “A Coluna de Colombo” (2006); irrompem num movimento hipnótico como em “Rodas” (2011) filmado em São Tomé; ou nas lisérgicas geometrias anamórficas nas quais o próprio movimento gera a forma.

Neste contexto, a produção em fotografia ocupa um lugar sintomaticamente iluminador na medida em que, pela sua paradoxal relação com a verosimilhança e com o quotidiano, revela no mundo comezinho do dia-a-dia um eco fantasmagórico. Vemo-lo na imagem de um tigre de peluche dentro de uma máquina de lavar roupa ou naquela em que o esparguete parece voar como uma entidade viva. Noutras situações, a fotografia anima procedimentos escultóricos miniaturizados que são reenquadrados pela imagem, como se essa marcação servisse uma segunda distância que adensa o seu sortilégio. O que Paiva e Gusmão fazem, genericamente, é emoldurar uma janela para um mundo do qual só vemos uma pequena parte como se, através dela, acedêssemos ao outro lado do espelho de Alice ou a um portal para outra realidade, abissal, abismada.

Na suspensão das leis da física, das fronteiras entre os saberes e as diferentes tradições culturais e cosmogonias, todas habilmente ficcionadas; na detonação esotérica dos olhares regulares e na abertura a todas as margens extraviadas, esta obra sugere uma reconstituição da vida, na qual origem e futuro se encontram.

TERÇOLHO

João Maria Gusmão e Pedro Paiva
Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Porto

Não perca este sábado as escolhas de 2021 do Expresso na revista E.

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