Batuque, a ancestralidade que acolhe

Marianna de Azevêdo
10 min readJun 22, 2023

A religião única no Rio Grande do Sul que é conhecida por acolher seus filhos e consulentes também é vítima de denúncias de intolerância religiosa no estado.

Mesa de Ibejis — um dos doze orixás cultuados pelo Batuque — realizada em 2015 pelo Pai Roni de Ogum na Casa Ilê Orixá em Gravataí (RS) — Crédito: Divulgação

Por Marianna de Azevêdo e Natália Piva

Segundo o censo de 2010 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, há mais praticantes das religiões de matriz africana no Rio Grande do Sul do que nos estados da Bahia e Rio de Janeiro. O Batuque é uma das ramificações das religiões de matriz africana que foram trazidas para a Região Sul do Brasil junto com escravizados, representando a ancestralidade e parte da história do Rio Grande do Sul. Apesar de nem todos os gaúchos serem praticantes, existiam cerca de 60 mil terreiros espalhados por todo estado, de acordo com o IBGE. A partir das entrevistas realizadas para esta reportagem, é possível entender como o Batuque contribui para a identidade cultural riograndense, que, segundo o Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, é o quinto estado com mais denúncias de intolerância religiosa no país.

Jovani Scherer, pesquisador da história da religião, explica que para entender a relevância do Batuque para o estado, é necessário compreender que o Rio Grande do Sul, não é apenas um estado eurobrasileiro mas sim a mais evidente perseverança de uma organização ligada a cultos, e uma cultura de várias origens africanas dentro de sua formação. Além disso, ele explica que a identidade que é expressada através do Batuque é importante para que o povo consiga entender e compreender a diversidade cultural que forma o estado dos gaúchos, das raízes profundas que temos com o continente africano e especialmente com os povos da costa ocidental como o Congo, Angola, Benin e até da Nigéria. A identidade Batuqueira e as tradições de origem africana que são manifestas dentro do Batuque são importantes para perceber a diversidade cultural que forma o Rio Grande do Sul e a origem dessa manifestação antiga, que como o Jovani diz, é a semente.

Além da questão histórico-cultural, também é possível entender a contribuição da religião para o estado de mais algumas maneiras como a questão econômica, social, a contribuição espiritual que ele dá para seus praticantes e não praticantes. Como elucidado pelo Presidente da Associação das Religiões AfroBrasileiras, muitas vezes o babalorixá, yalorixá ou diligente espiritual acaba sendo um psicólogo para os consulentes, dando conforto e acolhimento em um momento de necessidade.

O Dr. José Antônio Salvador, presidente da AfroBras, esclarece que é difícil chegar num denominador comum, pois a Nação do Batuque movimenta bem o comércio e a economia através da venda de roupas, animais, velas, comidas, dentre outros itens que são utilizados dentro das religiões de matriz africana. A questão social também é muito forte dentro dos terreiros, ‘’Daqui um pouco um adolescente que tá indo para uma festa, deixa de ir pra festa porque ele tem uma obrigação religiosa. Que é o momento de preceito, momento em que gente não pode participar de alguns lugares públicos com bebida alcoólica, e coisa parecida. Então tira essa pessoa de algum evento danoso. O Batuque contribui de todas as formas possíveis, imagináveis e inimagináveis’’ diz, José Salvador.

José Antônio Salvador, presidente da AfroBras e babalorixá — Crédito: Marianna de Azevêdo

Dentre diversos pontos ouvidos por pesquisadores, praticantes religiosos e dirigentes espirituais, o principal ponto é a questão social e todo suporte e acolhimento que o Batuque dá a seus praticantes. Jeferson Sabino, pesquisador da área também disserta a respeito explicando que a mais importante contribuição é a diversidade cultural que a Nação dá para o Sul, que embora algumas narrativas tenham a tentativa de homogenizar há uma diversidade imensa e que isso é muito importante principalmente para o povo negro que traz o Batuque como uma fonte de força e resistência diante tudo que já lhe foi imposto.

Rayane Schumacker, dirigente espiritual do Reino de Sobaro, é iniciada na Nação Cabinda desde seus 14 anos e hoje vive para a religião. Mãe Ray, como é conhecida no meio Batuqueirístico, diz que a religiosidade faz com que a gente viva com uma visão mais positiva do mundo, e segundo ela muitas histórias de vida difíceis acabam indo para o Batuque, que as acolhe sem querer mudá-las. Rayane diz que a influência da religião africana é importante, para que a pessoa se sinta aceita.‘’É a religião do gay, pobre, do preto. O Batuque é a religião do escravo, é a que aceita as pessoas com suas diferenças, sem querer mudar ninguém’’, conta a Yalorixá.

Além de sua contribuição histórica, social, econômica e dentre algumas outras, um forte ponto é que religião também tem muito a ensinar a pessoas que não são praticantes, e como principal foco é o respeito e cuidado com a natureza. Tudo que religião tem a ensinar é cultural, é a força da raiz religiosa, a resistência negra, que como dito pela pesquisadora e socióloga Nina Fola, em entrevista a Sextante, existem muitas pessoas brancas na matriz religiosa e nem por isso elas são impedidas de sofrer racismo religioso e de passar por situações que eram comuns apenas para pessoas pretas.

Rayane Tamara Oliveira Schumacker (à direita) em seu ilê na zona sul de Porto Alegre com sua ancestralidade, mãe e filhas carnais — Crédito: Ilê Reino de Sobaro / Divulgação

O que é o Batuque

Entendendo toda sua contribuição para o Rio Grande do Sul, é importante saber o que de fato é a religião. O Batuque, como é popularmente chamado no estado gaúcho, conhecido também como Nação, é a vertente religiosa crescente que contém mais características dos cultos da cultura africana. Ele faz parte de três principais linhas: Umbanda, Quimbanda e a Nação. Dentro do Batuque são cultuados 12 orixás, sendo eles: Bará, Ogum, Yansã, Xangô, Ibejis, Odé e Otim, Obá, Ossanha, Xapanã, Oxum Iemanjá e Oxalá. Dentro do Batuque também há separações realizadas dentro da Nação, contendo elas nomes de regiões africanas: Oyó, Jeje, Ijexá, Nagô e Cabinda.

Segundo Jovani, o Batuque é uma religião baseada no culto aos orixás que contém tradições africanas em sua expressão, a religião é fruto de uma formação, já que nem sempre ele existiu da maneira como é hoje. O pesquisador disserta a respeito da tese em que vem trabalhando ‘’O que defendo, seria a presença demográfica das populações que a gente chama genericamente de Iorubá ou Nagô, que chegaram no Rio Grande do Sul, em torno de 1830, mais ou menos no mesmo contexto do levante dos malês na Bahia. A partir de 1835 começa a ter um peso maior essa aculturação no estado, sobretudo nos centros urbanos, como Porto Alegre, Pelotas, Rio Grande, essa população de origem Iorubá começaria ali a ganhar uma importância muito grande dentro do contexto africano e afro-brasileiro, eles tinham uma importância muito grande nesses centros’’. De uma forma mais simples, é possível ver o Batuque como a fé dos fiéis, ele representa além da fé para os Batuqueiros todo apoio espiritual e emocional que um praticante pode ter.

O Batuque e a ancestralidade

Quando fazemos menção aos gaúchos é comum que as pessoas façam referência a alemães, italianos, poloneses e outros povos europeus que também estão ligados a história rio-grandense, com tudo esta referência homogeniza a cultura do Rio Grande do Sul deixando de lado contribuição feitas pelo povo negro, sejam culturais ou econômicas e religiosas.

Baseado no artigo “O Batuque como Símbolo de Resistência do Povo Negro no Sul do Brasil”, podemos compreender que a Nação do Batuque está diretamente ligada a história do povo negro no Rio Grande do Sul, sendo uma de suas principais representações. Levando em consideração sua origem, ele surge em meio a um cenário de escravidão no país, assim se tornando uma das formas de expressão e resistência do povo negro no extremo Sul. Pode-se dizer que a colonização europeia apagou parte da história que pertencia ao povo negro e por consequência sua identidade.

Joelma Santos é iniciada no Candomblé desde seus cinco anos de idade, e além disso se tornou mãe de santo recentemente, depois de se mudar para o Sul do Brasil. Em comparação as vertentes ela diz que, ‘’O Batuque, a religião de matriz africana aqui tem uma importância enorme no estado, porque ela tem uma cultura própria, ela tem algo que se tu vai pra outros estados fora do RS tu não consegue ver, o que tu vê é que o gaúcho conseguiu fazer com que a religião fosse única aqui, nas vestimentas também’’.

O Batuque é o símbolo da grande diversidade cultural presente no Sul, ele abrange algumas influências locais determinando que alguns orixás se alimentam de pratos típicos, como polenta, mieró e churrasco. Além das influências gastronômicas também há influência nas vestimentas como por exemplo o uso da bombacha. ‘’É a comida, as roupas já que o estilo da roupa do estado é próprio, as roupas pros orixás, para os exus, e pombagiras, são uma cultura própria, a comida que é feita para os orixás também é própria, a dança, a música, a espiritualidade em si e isso é muito fundamental para se ter um estado que valoriza a religião de matriz africana, porque a gente sabe que tem um preconceito e que infelizmente hoje em dia não mudou muito, somos vítima de muito preconceito’’, diz Joelma.

Axé -prato oferecido a divindade- do Orixá Ogum realizado por Pai Roni no Ilê Orixá. Crédito / Divulgação.

No estado é comum encontrar a presença de despachos e lojas de artigos religiosos, o que facilita a popularização da religião trazendo mais visibilidade para a resistência do povo negro, contudo, também é um ponto de crescimento da intolerância religiosa já que o desconhecimento das práticas faz com que o Batuque seja criticado, e por muitas vezes demonizado pelo desconhecimento dos preconceituosos, já que a religião não cultua tais seres.

Este preconceito está extremamente ligado a casos de cunho racial, já que o Batuque é a religião do povo negro gaúcho, a identidade gaúcha é o Batuque. Infelizmente esse preconceito não é algo interno do estado, a visão que se tem de fora por muitas vezes pode ser negativa, como explicado pela mãe Joelma, ‘’Este preconceito também há fora daqui, das pessoas de fora do estado que não conhecem, não como a gente que conhece, participa, que é do meio da religião. Elas criticam, o meio de vestir, como são feitos os axés, as cores usadas, sem entender o fundamento, que é algo que foi criado, adaptado e que se transformou em algo original do RS, ele não copiou o candomblé, ele fez algo diferente’’.

Joelma Santos, em homenagem à sua Orixá na cachoeira em Dois Irmãos (RS). Crédito / Divulgação

A ancestralidade africana carregou consigo toda a herança cultural que o povo gaúcho tem hoje, trazendo sua religião, costumes e a resistência. Estes pontos são muito debatidos dentro dos terreiros para que essa herança não se perca, por conta disso muitos pais de santo carregam os ensinamentos passando para seus filhos, como a mãe Joelma faz valorizando a luta, o legado e a herança. ’’Os nossos tataravós, eles lutaram para hoje a gente ter a nossa casa, o nosso terreiro aberto e cultuar os nossos orixás. Inclusive quando eu sento os meus filhos para falar sobre o fundamento da religião, a gente sempre fala que houve uma luta lá atrás pra gente ter a nossa herança cultural hoje’’, explica ela.

‘’A gente tem que ter a noção de tudo o que os nossos ancestrais passaram e que trouxeram, nos dando a oportunidade de conhecer a nossa cultura e saber defendê-la com unhas e dentes do que for preciso, principalmente do preconceito religioso”, fala Joelma.

Desmistificando Tabus

É uma crença popular que tudo que as pessoas desconhecem atrai medo e por consequência uma visão pejorativa. José Salvador, presidente da AfroBras, relata que gostaria que as pessoas tivessem mais atenção com a religião, que vissem o Batuque como ele realmente é, e não como dizem que ele é. “Eu gostaria que terminasse essa questão de sermos os demônios. Nós não somos comedores de criancinha, nós sacralizamos os animais. Nós usamos o sangue, comemos a carne, usamos o coro e tudo, e nós somos os demônios?. Quem não come carne aqui no RS? Uma parcela muito pequena que são os veganos e vegetarianos, o restante da população é extremamente carnívora. E como é que se sacrifica um animal?. Nós sacralizamos e comemos ainda. Quando nós não comemos toda carne que às vezes é muita carne pro momento, nós doamos, a gente vai na vila para doar, então tem o serviço social também”, explica ele.

A sacralização é o ritual que envolve ‘’o sacrifício’’ animal, porém é conhecido como sacralização pois não há desperdícios no processo nem sofrimento para o animal. A lei estadual 12.131/2004, e o decreto nº 43.252, regulamentam as práticas religiosas buscando proteger os praticantes e animais. Segundo a lei, é permitido que as sacralizações sejam feitas desde que não sejam utilizados recursos de crueldade para sua morte e que sejam destinados à alimentação humana. Do ponto de vista religioso a sacralização faz parte dos fundamentos Batuqueirísticos, sendo a alimentação de seus orixás para que assim eles possam proteger e passar esta força para seus filhos.

Em relação aos Babalorixás e Yalorixás também há uma contribuição particular deles, com a religião e o povo de fora, “como tenho experiência do candomblé do Batuque consigo entender uma visão diferente. Como funciona, o porquê da diferença e de cada individualidade, então como eu consigo entender melhor, eu consigo explicar isso. Consigo explicar no meu canal, consigo explicar no meu Instagram, no meu TikTok. Eu faço questão de postar, quando tem gira, quando tem xiré. Eu faço questão de filmar, deixar alguém responsável pela filmagem, para divulgar para as pessoas passarem entender que o Batuque que ele tem um fundamento, uma origem, que ele tem herança afro, coisa que muita gente não sabe e acha que os orixás são exclusividade do candomblé”, conta Joelma.

Embora o estado dos gaúchos seja o quinto estado com maior denúncias de intolerância religiosa, o Batuque se mantém sendo a religião que representa o acolhimento, a força e a resistência. Em meio a todas as dificuldades do preconceito enfrentadas pelas religiões de matriz africana, ele não pode apagar parte da história do Rio Grande do Sul e do povo negro.

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