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Alexandre O'Neill em Lisboa, em 1971 (fotografia de Teresa Patrício Gouveia)
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Alexandre O'Neill em Lisboa, em 1971 (fotografia de Teresa Patrício Gouveia)

Alexandre O'Neill em Lisboa, em 1971 (fotografia de Teresa Patrício Gouveia)

A entrevista de Baptista‑Bastos a Alexandre O'Neill: "Escrever mal é misturar a própria vidinha com a literatura"

"Diz-lhe que estás ocupado" é o novo livro que reúne várias entrevistas concedidas por Alexandre O'Neill entre 1944 a 1985. O Observador publica um excerto da conversa com Batista-Bastos, de 1982.

Diz a lenda que Alexandre O’Neill não era avesso a entrevistas, mas que entrevistá-lo não era tarefa fácil. Uma das figuras que se propôs a correr esse risco foi Armando Baptista-Bastos. O jornalista conversou com O’Neill em 1982, para o semanário O Ponto, jornal que fundou e no qual publicou uma série de entrevistas semanais. Uma conversa que faz parte do volume “Diz-lhe que estás ocupado”. Conversas com Alexandre O’Neill, da qual o Observador publica um excerto.

Com edição, organização e introdução de Joana Meirim, “Diz-lhe que estás ocupado”, que foi publicado a 1 de julho pela Tinta-da-China, reúne entrevistas dadas por Alexandre O’Neill entre 1944 e 1985. Os temas abordados são variados: a política, a poesia ou o surrealismo, que, para o autor, estava por altura da entrevista com Baptista-Bastos “gloriosamente empalhado”. “Pelo menos em Portugal. Até já há teses universitárias sobre o surrealismo… Quando há tese, há cadáver.”

“Diz-lhe que estás ocupado”, publicado pela Tinta-da-China, já está à venda

O’Neill, costela de quê?
Costela irlandesa. Não tem mistério nenhum. Há para aí 150 anos uns irlandeses fugiram para Portugal, acho que eram católicos e eles, lá, perseguidos… É essa a costela; ou desses…

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«Alexandre, meu projecto / estás a bater errado ou certo?» São dois versos de um poema seu. Ora bem: 20 anos depois de o ter escrito, como está você a bater?
Hoje, já não poria da mesma maneira esse errado ou certo. E não poria, hoje, porque deixei de ser o tema da minha própria poesia. Mas acho que estou a bater certo. Foi, antes, uma reflexão de tipo ético sobre o lugar onde se está, a pátria que se tem.

A partir de 1975, um sector da esquerda começou a criticá‑lo com certa aspereza. Comente.
Não me consta ter sido criticado com certa aspereza. Note que eu não segui o movimento geral de adesão a um partido, ao PCP, por exemplo, que se verificou entre os intelectuais… A crítica veio não de um sector da esquerda; sim de certas pessoas, e mesmo antes de 1975, por ter colaborado na televisão, como independente. Essa gente julgava que não se devia ir à TV.

E você achava que sim…
Desde que tivesse garantia de liberdade de actuação, o que, de facto, sucedeu. Tive um programa, Museu Aberto, que não foi objecto de qualquer pressão. Penso, aliás, que a TV é um meio de comunicação como qualquer outro. Como, por exemplo, o Diário Popular, onde eu entrei como cronista, aliás pela sua mão, Baptista‑Bastos.

Mas, vejamos, ó O’Neill: a circunstância de intelectuais de esquerda serem sistematicamente postos de parte ou ignorados pela televisão não o confrangia?
Confrangia. Mas eu suponho que essa situação era geral. A Sophia de Mello Breyner Andresen, por exemplo, esteve proibida de escrever nos jornais, e não me consta que os intelectuais portugueses tenham deixado de escrever nesses mesmos jornais.

Que lhe diz o nome de Mário Castrim?
O de um homem que podia ter sido, eventualmente, um bom escritor, mas que se sacrificou (o que, aliás, não deixa de ter o seu mérito) à critica de televisão, como serviço prestado aos leitores do Diário de Lisboa. Foi um homem com bastante graça, mas que foi estreitando os seus critérios, a tal ponto que ficou muito sectário. O que é do foro do próprio Mário Castrim: ele é que sabe, não sou eu.

"Está gloriosamente empalhado. Pelo menos em Portugal. Até já há teses universitárias sobre o surrealismo… Quando há tese, há cadáver."

E o de Proença de Carvalho?
É um homem da AD2, que foi posto na televisão para executar objectivos muito concretos. Teve atitudes prepotentes, por exemplo em relação ao programa “Prata da Casa”. Não são maneiras que se tenham, numa sociedade que se quer democrática…

O que é arte reaccionária e arte revolucionária?
Diria que arte reaccionária é aquela que aponta, sistematicamente, para o passado como valor inamovível; e a revolucionária segue o movimento contrário: aponta para o futuro.

O surrealismo, hoje, tem qualquer expressão?
Acho que não. Nenhuma. Está gloriosamente empalhado. Pelo menos em Portugal. Até já há teses universitárias sobre o surrealismo… Quando há tese, há cadáver.

E o neo‑realismo?
Bem, eu nunca acreditei muito no neo‑realismo. Não basta ser generoso para se fazer boa literatura. Suponho que os próprios neo‑realistas acabaram por transcender os esquemas da escola. Olhe: fui, agora, agradavelmente surpreendido pelo livro do Saramago, Levantado do Chão, o qual, a nível de escrita, me parece interessante. Uma tentativa diferente do que tem aparecido por aí.

Julien Benda escreveu: «Nós formamos a maior parte das nossas ideias, e, frequentemente, as mais justas, através dos livros.» Está de acordo?
Não. As nossas ideias formam‑se através da nossa prática.

Então e os livros?
Bem, os livros fazem, de facto, parte da nossa prática. É evidente que, ao nível das ideias, somos influenciados pelos livros. Mas a nossa prática, em definitivo, é que determina as nossas ideias.

O que é um grande escritor?
Um grande escritor não é, certamente, o Henry Miller. O Céline é, certamente, um grande escritor. O Musil é, também, um grande escritor. O Roger Vailland, por exemplo, é um escritor muito por baixo. Serve?

Serve. Vejamos, agora: o que é um escritor menor?
Nuno Bragança. E, já que estamos nos Nunos, o Nuno Júdice. E, já que estamos nos enes, o Namora.

Um bom escritor pode escrever um mau livro?
Pode. Por exemplo, o Cardoso Pires, n’O Anjo Ancorado.

E um mau escritor pode escrever um bom livro?
Pode. Por exemplo, o Alves Redol escreveu o Barranco de Cegos, um bom livro.

"Diria que arte reaccionária é aquela que aponta, sistematicamente, para o passado como valor inamovível; e a revolucionária segue o movimento contrário: aponta para o futuro."

Há anos, você disse‑me que considerava Guimarães Rosa o maior escritor contemporâneo de língua portuguesa. Ainda mantém essa opinião?
Mantenho. Nunca a língua portuguesa, que eu saiba, até agora, foi tão bicicletada como nele. E não só no Grande Sertão: Veredas, mas já anteriormente, na Sagarana e depois.

A sua opinião sobre a telenovela?
Nunca vejo. Acho que é uma chatice. Acho que aquilo invade, de tal modo, a vida das pessoas, no que diz respeito ao tempo, que isso me parece extremamente prejudicial. Estou convencido, porém, de que não traz nada de nefasto, nem sequer nos modismos brasileiros, os quais, com o tempo, se desfazem. A telenovela é uma necessidade de rêverie das pessoas; mas pode tornar‑se perigosa, porque as arrebata, porque as leva para outros mundos, sem pedir nenhuma espécie de esforço mental ao telespectador.

Uma definição de libertinagem?
Quando penso em libertinagem, penso sempre no poema do Manuel Bandeira. Mas, se quer uma definição rápida, é a liberdade com garagem e, portanto, com carro. Tenho outra palavra, a libertinura, para fazer rima com literatura.

Um exemplo de terror?
A burocracia e os seus vagares.

Um conceito de felicidade?
Estar com amigos, ler, dormir. Sobretudo ler, outra vez. E, porém, mais bem‑estar. Talvez felicidade seja excessivo.

Que lhe sugere a palavra fascismo?
Uma grande mediocridade. Sobretudo isso.

E a palavra socialismo?
Está sujeita a muitos tratos de polé. Gostaria que houvesse socialismo sem a carga da burocracia. Embora também não acredite no socialismo à Otelo.

Então, qual é o socialismo em que acredita?
Não existe, ainda, para mim. Não acredito no eurocomunismo, no comunismo brejneviano; não acredito na social‑democracia. Em todo o caso, surpreendentemente, talvez a social‑democracia seja o modelo que, até agora, menos limitou a pessoa humana. Mas há muitos sítios onde a social‑democracia não provou ser eficaz. Não acredito na conciliação Capital‑Trabalho. O socialismo à Mitterrand está muito longe daquilo que é o socialismo. Embora tivesse ficado satisfeito com a vitória de Mitterrand, é claro.

Isso é um cepticismo total, não é?
Não é bem cepticismo: é verificação. Mas a verdade é que ainda não vi o socialismo em parte nenhuma…

Que jornais costuma ler?
Há os consabidos… Le Nouvel Observateur, como não podia deixar de ser. Mas também leio L’ Express, Le Monde. A maior parte destas leituras é feita por motivos literários. Também leio El País, Corriere della Sera, O JornalO Expresso, raramente… engalinho… mas, volta e meia, tem coisas engraçadas. Passo os olhos pelo Diário de Notícias. Leio O Ponto. E ficamos por aqui.

"Escrever bem é escrever de tal forma que o que fica escrito se torna independente da biografia do autor. Escrever mal é misturar a própria vidinha com a literatura."

A sua opinião sobre Cunhal, Soares, Freitas e Balsemão?
Cunhal: coerente, mas ultrapassado. Soares: sobram‑lhe palavras. Freitas: sobrevivente do passado. Balsemão: o homem errado no sítio errado.

Eanes, que simboliza, para si?
Acima de tudo, o respeito pela Constituição.

O que é escrever bem e escrever mal?
Escrever bem é escrever de tal forma que o que fica escrito se torna independente da biografia do autor. Escrever mal é misturar a própria vidinha com a literatura. Em todo o caso, há quem tenha conseguido misturar as duas coisas e escrever uma obra‑prima: Chateaubriand, nas Mémoires d’Outre‑tombe.

Sexo, que significado tem para si?
Uma coisa que se devia usar, mas de que, normalmente, se abusa.

André Breton, como sabe, era contra o homossexualismo. O papa do surrealismo, neste caso, afigura‑se‑me aquele tipo que diz, liberdade, sim, mas selectiva. Que pensa disto tudo?
Acho um disparate, essa posição do Breton. Normalmente, quando se é contra a pederastia, é porque se tem medo que haja em nós tendências pederásticas. Haveria no Breton? O homossexualismo é uma realidade com que se pode nascer ou a que se pode chegar, mas que, se for socialmente compreendido, será tomado como um facto banal.

Poeta e publicitário. Chocam um pouco, não?
Não chocam nada. Até se entreajudam. Relativizemos: no meu caso. O fazer um slogan dá tanto gozo como fazer um verso. Eu tenho excelentes slogans, modéstia à parte, tais como: «Há mar e mar; há ir e voltar», «Parker preenche em silêncio o seu papel» (é óptimo, não acha?) e «A segurança volta sempre».

Para si, o que foi o 25 de Abril?
Libertou‑nos da mediocracia. O que não quer dizer que não estejamos a cair noutra.

E o 25 de Novembro?
O regresso a um certo bom senso. Aliás, suponho que os comunistas pensam a mesma coisa.

Olá! Você era contra as bem‑pensâncias. Agora, fala em bom senso… Como é isso, ó O’Neill?
Respondo‑lhe da seguinte forma: se não gosto de atropelos da direita, também não gosto de atropelos da esquerda. E suponho que o PCP percebeu isso a tempo.

O que lhe diz o nome de Vasco Gonçalves?
O de um homem bem intencionado, mas muito inábil.

E o de Ary dos Santos?
O de um homem que, por generosidade, cedeu à facilidade.

O de Cesariny?
O de um homem que, como grande poeta que é, ainda não se habituou à ideia de que é um grande poeta.

O de João Gaspar Simões?
O de um homem que é uma instituição e a quem os próprios inimigos enviam os livros. Ah!, se as dedicatórias falassem…

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