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Educação literária: do texto à experiência (trans)formadora


do leitor

Chapter · March 2021

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1 author:

Cristiano Camilo Lopes


Universidade Presbiteriana Mackenzie
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Crônicas de Nárnia do texto para a tela: uma análise comparatista entre o texto literário e o filme View project

EDUCAÇÃO LITERÁRIA E LIVROS DE LEITURA: um estudo sobre a Série Braga na literatura infantil brasileira da primeira metade
do século XX View project

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DOI: 10.11606/9786587621418

Narrativas & Enigmas da Arte


FIOS DA MEMÓRIA, FRESTAS E ARREDORES DA FICÇÃO

Maria Zilda da Cunha


Lígia Menna (orgs.)

São Paulo, 2021


UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Reitor: Vahan Agopyan
Vice-reitor: Antonio Carlos Hernandes

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


Diretor: Paulo Martins
Vice-diretora: Ana Paula Torres Megiani

DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS


Chefe: Manoel Mourivaldo Santiago Almeida
Vice-Chefe: Adma Fadul Muhana

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS


COMPARADOS DE LITERATURAS DE LÍNGUA PORTUGUESA
Coordenador: Emerson Inácio
Vice-coordenador: Paulo Motta

CENTRO DE ESTUDOS DAS LITERATURAS


E CULTURAS DE LÍNGUA PORTUGUESA
Diretora: Rejane Vecchia
Vice-diretora: Paola Poma
Secretaria: Giovanna Usai; Marinês Mendes

CONSELHO EDITORIAL
Maria Auxiliadora Fontana Baseio (Universidade de Santo Amaro, Brasil)
Maria Cristina Xavier de Oliveira (Universidade de São Paulo, Brasil)
Maria dos Prazeres Santos Mendes (Universidade de São Paulo, Brasil)
Maria Zilda da Cunha (Universidade de São Paulo, Brasil)
Ricardo Iannace (FATEC/Universidade de São Paulo, Brasil)

COMISSÃO CIENTÍFICA
Diógenes Buenos Aires (Universidade Estadual do Piauí, Brasil)
Eliane Debus (Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil)
José Jorge Letria (Associação dos Escritores Portugueses, Portugal)
José Nicolau Gregorin Filho (Universidade de São Paulo, Brasil)
Rosangela Sarteschi (Universidade de São Paulo, Brasil)
Rita de Cássia Silva Dionísio Santos (Universidade Estadual de Montes Claros)
Sérgio Paulo Guimarães Sousa (Universidade do Minho, Portugal)
Susana Ventura (Universidade de São Paulo, Brasil)
Ricardo Ramos de Medeiros Filho (União Brasileira dos Escritores, Brasil)

Revisão
André Luiz Ming Garcia
Bruno Anselmi Matangrano
Cristina Casagrande
Dayse Oliveira Barbosa
Joana Marques Ribeiro
Juliana Pádua Silva Medeiros
Lígia R Máximo Cavalari Menna
Luciana de Paula
Nathália Xavier Thomaz
Oscar Nestarez
Paulo César Ribeiro Filho
Roseli Gimenes
Sandra Trabuco Valenzuela
Selma Simões Scuro

Capa
Jéssica Bombonato

Projeto gráfico e DIAGRAMAÇÃO


Bruno de Oliveira Romão
Catalogação na Publicação (CIP)
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo
Maria Imaculada da Conceição – CRB-8/6409

Narrativas e enigmas da arte [recurso eletrônico] : fios da memória, frestas e


arredores da ficção / Maria Zilda da Cunha, Lígia Menna (orgs.). – São Paulo :
FFLCH/USP, 2021.
9.743 Kb ; PDF.

ISBN 978-65-87621-41-8
DOI 10.11606/9786587621418

1. Literatura. 2. Ficção. 3. Linguagem. 4. Memória. 5. Narrativa.


I. Cunha, Maria Zilda da. II. Menna, Lígia.

N234 CDD 808.07

Esta obra é de acesso aberto. É permitida a reprodução parcial ou total


desta obra, desde que citada a fonte e autoria e respeitando a Licença
Creative Commons indicada”
Sumário

Apresentação...........................................................................................................................10

A ampliação das formas de representação e a


humanização em sala de aula por meio da literatura...........................16
Luciana de Paula

A construção do sentido paradoxal no


livro infantil ilustrado de Edward Lear......................................................... 34
Fernanda Marques Granato, Vera Bastazin

A construção metafórica da criança


em Kiarostami, Panahi e Majidí..................................................................................... 58
Dayse Oliveira Barbosa

A criatividade e a narrativa como experiência.


Estética e leitura vistas pelo design...................................................................76
Michaella Pivetti

Alice in Disneyland: apontamentos


sobre a ficção na indústria cultural............................................................ 100
Klaus Eggensperger

A literatura como fio de Ariadne: A formação


do leitor literário na Educação Infantil
no Instituto Dom Barreto............................................................................................. 118
Juliana Pádua Silva Medeiros

A mais linda de todos os Filhos de Ilúvatar:


Lúthien e o feminino nos contos de fadas......................................................143
Cristina Casagrande
Ana Maria Machado: da criação ficcional
à crítica — o valor da leitura literária........................................................... 171
Gabriela Trevizo Gamboni Patrocinio

Angela Lago
Figuração autoral – pinceladas
poéticas de uma alma lúdica..................................................................................... 187
Maria Zilda da Cunha, Maria Auxiliadora Fontana Baseio

As leituras da literatura oriental clássica no mundo


atual: Relatos de fatos antigos e a cultura pop japonesa .......... 213
Lica Hashimoto

Branca de Neve: a mulher no conto dos


Irmãos Grimm e na série de TV Once Upon a Time........................................232
Sandra Trabucco Valenzuela

Caio Fernando Abreu


e o diálogo com o jovem leitor...............................................................................253
Graziele Maria Valim

Cibercepção:
poéticas de criação digital....................................................................................... 268
Maria José Palo

Deusas, sábias, guerreiras: do imaginário


pagão germânico aos contos de fadas
e outras narrativas populares .......................................................................... 280
Karin Volobuef

EDUCAÇÃO LITERÁRIA: do texto à


experiência (trans)formadora do leitor.................................................... 300
Cristiano Camilo Lopes
Escrever poesia [durante] Auschwitz:
Concepções do universo concentracionário
nos poemas das crianças de Terezín................................................................... 319
Luciane Bonace Lopes Fernandes

Hans Christian Andersen: entre o


imaginário cristão e o maravilhoso pagão................................................342
Lígia Regina Máximo Cavalari Menna

Histórias em quadrinhos e narrativas literárias


de horror: aproximações e distanciamentos............................................ 368
Oscar Nestarez

Honwana e a língua do avesso............................................................................... 389


Marana Borges

Infância, jogo mimético e experimento da língua.................................. 407


Maria Rosa Duarte de Oliveira

Intertextualidades em quadrinhos:
a arte em diálogo em Don Juan di Leônia.........................................................427
Nathália Xavier Thomaz

Literatura e artes plásticas no livro ilustrado


contemporâneo: a formação do leitor em tela......................................454
Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira, João Luís Ceccantini

Literatura Infantil e Juvenil africana de


língua portuguesa: um olhar para Cabo Verde........................................481
Avani Souza Silva

Livros-jogos literários no Brasil......................................................................504


Pedro Panhoca da Silva
Lógicas do poder e ilusão ideológica
em O planalto e a estepe, de Pepetela................................................................522
Sérgio Guimarães de Sousa

Marie-Catherine d’Aulnoy e o conto de fadas de


autoria feminina nos termos de Nelly Novaes Coelho.....................540
Paulo César Ribeiro Filho

Matrix, uma guerra de tempos.................................................................................556


Felipe Leonardo Ferreira, Bruno Anselmi Matangrano

O poema na formação do leitor literário....................................................582


Norma Seltzer Goldstein, Luciana Taraborelli

O universo verbovisual em José Saramago:


uma leitura de A maior flor do mundo e O silêncio da água.......... 601
Nefatalin Gonçalves Neto

O uso narrativo das cores em


Olavo e O Matador, de Odilon Moraes............................................................... 619
Luara Teixeira de Almeida, Diana Navas

(Re)lendo os clássicos:
A multimodalidade em Era uma vez......................................................................633
Diana Navas

Uma experiência narratológica com


o uso de vídeo em dispositivos móveis............................................................... 648
Roseli Gimenes, Cielo G. Festino

Sobre as autoras e os autores............................................................................. 668


Apresentação

Palavras das organizadoras

Ao escrever a nossa apresentação, ao ler os textos aqui dispostos, foi


inevitável constatar como o assunto de que este livro trata não é tão novo
assim. Nova, possivelmente, nesta publicação, que se faz em 2021, é a forma
como se fia o narrar de experiências tão atentas e sensíveis que miram, neste
contemporâneo tão incerto, a potência da arte da ficção, capaz de construir
por seus próprios meios a reinvenção do presente.
Se ao longo dos tempos, essa arte ganhou esferas de compreensão diversas,
reservou a si, no entanto, uma força – a de empreender, nos muitos enovelares
do tempo, a função de registrar pautas da memória da humanidade e a inter-
pretação contida das imagens que vivificavam as semioses do narrar. Passou,
ao longo de seu perfazer nas artes, a reclamar um modo de ver interpretativo
do imaginário do leitor e a estabelecer campos discursivos diversos em que
personagens pudessem habitar, capazes de experimentar metamorfoses, nos
lances daqueles jogos que se fazem entre a ficção e a não-ficção.
De algum modo, essa arte engendra-nos pelo narrar, e assim, retoma a
relação entre memória, vida e formação de nosso ser humano - a singulari-
dade de nossa constituição psíquica e social; sobretudo porque traz muitas
interrogações, corriqueiras e ao mesmo tempo ontológicas. Convirá lembrar

10
ainda que é arte que não se livra facilmente das estranhas dificuldades e de-
safios, não só das atividades da escrita, mas de outras linguagens, e que vão
se configurar na face entranhada da leitura.
Neste liame, é no perscrutar das técnicas da narrativa contemporânea
(que enfrenta a lógica da descontinuidade e fragmentação, cujos fios tra-
zem potentes reflexos do homem da atualidade) que poderemos encontrar
frestas, nas quais se escondem enigmas tão caros à arte, e, que a narrativa
humana, nos enlaces de seus fios, deixou por decifrar. Esta é uma direção
que assumiu o livro: Narrativas & Enigmas da arte - Fios da memória, frestas
e arredores da ficção, constituindo-se em uma obra de cunho interdisciplinar
com perspectivas teórico-metodológicas diversas, mas que reúne pensares
consonantes da importância da arte como um fenômeno social, histórico e
complexo do imaginário humano.
Destacam-se intrigantes estudos concernentes à literatura para a infância
e a juventude, sobretudo, atentos aos desafios da contemporaneidade, que
enlaçam discussões sobre a formação do leitor literário, em face das novas
tecnologias, contexto que faz emergir um novo perfil: o leitor “ubíquo”, nos
termos de Lucia Santaella.
Se como preconiza Walter Benjamin, a arte de narrar está em vias de
extinção, posto estarmos “privados de uma faculdade que nos parecia se-
gura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências” (BENJAMIN,
1994, P.1981), compreendemos ser uma forma de resistência o fato de voltar
nosso olhar para a dinâmica viva da matéria narrativa que alimenta a Li-
teratura. Matéria que engendrou parte importante do cânone da Literatura
para crianças e jovens. E, como sabemos, gênero que está a congregar textos
denominados: contos de magia, de encantamento, contos de fadas, contos
maravilhosos, contos fantásticos, em suas realizações nas matrizes de pen-
samento e linguagem, a saber verbal, visual, virtual, e que advém, não raro,
de fontes míticas, mas sobretudo engendram relatos de experiências exis-
tenciais, sociais repletas de afecções e paixões humanas.
Convirá dizer que a literatura infantil juvenil, e não somente ela, é res-
ponsável pela disseminação de objetos artísticos complexos sustentados em
diferentes eixos de linguagem que são postos em diálogo. Os livros ilustrados,
livros com ilustrações, livros-jogo, histórias em quadrinhos, entre outros, que

11
exigem perspectivas de análise específicas, levando-se em conta, inclusive,
a materialidade do objeto de estudo.
Além dessas considerações, vale retomar a noção de nomadismo dos
textos da tradição, cuja semiose perfaz um amplo processo de movência,
projetando os textos em criação contínua; no dizer de Zumthor:
Para além do espaço-tempo de cada texto, desenvol-
ve-se outro, que o engloba e no bojo do qual ele gravita
com outros textos e outros espaços-tempos, movimento
perpétuo feito de colisões, de interferências, de transfor-
mações, de trocas e de rupturas. (ZUMTHOR,1993, p.1502).

A movência implica processos de tradução entre línguas diferentes, trans-


criações, adaptações e trânsito de linguagens e entre sistemas semióticos di-
versos, como o dos audiovisuais, por exemplo, entre a tradição e transgressão,
ou a temas ligados às Tecnologias Digitais da Comunicação e Informação
(TDCI), aos ambientes virtuais e a produção de hipermídias inseridas em um
ciberespaço. Vários artigos deste e-book evidenciam tal processo, alinhando
as trocas e as transposições que engendram a arte da ficção nos diversos su-
portes, nas estruturas textuais que assumem, na emergência de novos perfis
de leitores, nas alterações perceptivas e cognitivas que as novas tecnologias
resultantes da revolução digital imprimem aos internautas.
Esses pressupostos alinham-se ao fato de ser a literatura ou a arte em
geral, um direito de todos, um elemento essencial para nossa humanização,
como nos explica o professor Antonio Candido:
Entendo aqui por humanização (já que tenho falado
tanto nela) o processo que confirma no homem aque-
les traços que reputamos essenciais como o exercício
da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para
com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade
de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza,
a percepção da complexidade do mundo e dos seres,
o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a
quota de humanidade na medida em que nos torna mais
compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o
semelhante. (CANDIDO, 1995. p. 1803).

12
Dessa forma, os 32 textos que compõem esta obra reverberaram a força
indômita da linguagem, da arte da ficção, da experiência do narrar que nos
tece humanos no tempo, da energia poética que enlaça a potência da razão
aos rumores insistentes dos arcanos de nossa alma lúdica.
As vozes que aqui ressoam são vozes da crítica advinda de reflexões rea-
lizadas por profissionais de várias áreas do saber, de especialistas em vários
campos de estudo, de diversas universidades, nacionais e estrangeiras, cuja
contribuição foi essencial para desenvolvermos mais este projeto do Grupo de
Pesquisa “Produções Literárias e Culturais para crianças e jovens” (USP/CNPQ),
liderado por Maria Zilda da Cunha, docente da USP e pesquisadora do CNPQ.
Com a parceria das professoras Maria Zilda e Lígia Menna, a organização
deste ebook ganhou força reflexiva. Importa, acima de tudo, neste contexto,
agradecer aos profissionais que assinam as reflexões que aqui ganharam corpo.

Com a palavra, Susana Ventura:

Narrativas & enigmas da arte: fios da memória, frestas e arredores da ficção


reúne artigos de pesquisadoras e pesquisadores que, a partir de suas investi-
gações acadêmicas e de campo, nos trazem reflexões sobre as obras de uma
miríade de artistas: escritores, ilustradores, cineastas, editores, designers,
pintores, quadrinistas, gamers, que trabalham a partir de um caldeirão de
referências culturais extremamente variadas e, por vezes, nos levam tam-
bém para os caminhos da necessária teorização a partir da multiplicidade
da experiência dos que fruem as obras.
Vários dos ensaios que compõem este livro são resultantes de anos de estudos
e trazem a depurada observação que só pode ser obtida pelo trabalho realizado
ao longo do tempo, revelando, em poucas páginas editoriais, camadas de inves-
tigação que podem iluminar caminhos dos que têm pesquisas em andamento.
Nas páginas que seguem, há tanto panorâmicas, majoritariamente, da
produção de literatura infantil e juvenil de todo um conjunto de países (que
têm o português como língua oficial), quanto o acompanhamento crítico da
obra de um único criador de livros-álbum.

13
Investigam-se tanto as origens da LIJ, território de apropriações das mais
diversas há pelo menos três séculos quanto as suas extrapolações e incor-
porações em sétima, oitava e nona artes, mostrando aos leitores que o des-
temor estético é moeda corrente de criadores e a amplitude de ferramentas
de análise uma marca dos investigadores dessa área ampla e caracterizada
pelo arrojo.
Livros, séries, filmes, livros-jogos, livros-álbum/ livros ilustrados, app
books, ebooks e outras criações, são vistos em sua materialidade e especi-
ficidade. O conjunto não esquece do público-alvo das produções artísticas,
também contemplado e pensado a partir da exposição de estudos de caso e
da revelação de pesquisas que retomam teorias pensadas há décadas para
realizar avanços teóricos capazes de colaborar para o mapeamento de tão
grande e pulsante coletivo de criadores/fruidores.
O convite para adentrar frestas, tatear e seguir fios da memória e caminhar
com palavras pelos arredores da ficção foi respondido com brilhantismo e
ousadia neste livro que será, com certeza, ponto de partida para o desenvol-
vimento de novos grupos de pesquisa e possibilidade de encontros científicos
para investigadores e professores espalhados pelo mundo.

Susana Ventura
Escritora e Pesquisadora

14
Notas

1 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e his-
tória da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet.São Paulo: Brasiliense, 1994.
2 ZUMTHOR, Paul. Letra e a voz: a “literatura” medieval. Trad. Amálio Pinheiro
e Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
3 CANDIDO, Antonio. O direito a literatura. In: Vários escritos. São Paulo: Duas
cidades, 1995.

15
h
A ampliação das formas de
representação e a humanização
em sala de aula por meio da
literatura
Luciana de Paula

Introdução

A transformação do texto de um objeto artístico a um objeto escolarizado,


utilizado apenas como pretexto para a observação de determinada constru-
ção gramatical, ainda tem sido muito comum no ambiente escolar. De toda
riqueza de formas ordenadas em termos de possibilidades verticais de repre-
sentação, significação e fruição, o texto se reduz a ambiente de observação do
uso de uma vírgula ou emprego de uma forma gramatical de concordância.
Muito mais do que uma violência contra o texto enquanto obra artística,
tal ação redunda em uma limitação preocupante das formas de entendimento
e de interpretação dos alunos, que passam a compreender o texto, não como
um lugar de exploração e construção de sentidos, mas apenas como exemplo
do uso de um arranjo gramatical estudado.
A compreensão do ambiente escolar em tais termos evidencia um movi-
mento, não de construção de saberes, mas de limitação, de barreiras impostas
ao imaginário enquanto repertório de formas através das quais se passa a
refletir e compreender a realidade que nos cerca.
Contudo, essa faceta limitadora não representa a totalidade da ação da
escola em relação ao seu corpo discente. Compreendendo a escola como um
ambiente de oscilação entre uma vertente mais alienante e uma vertente mais

16
libertária, eu elaborei e registrei uma sequência didática por meio da qual
eu buscava expandir, mesmo que inicialmente, os horizontes representati-
vos dos alunos em contato com a narrativa como objeto de fruição estética.
Com base nesse desejo eu, enquanto autora do presente artigo, tenho como
objetivo principal observar as trilhas percorridas ao longo da intervenção
pedagógica implementada, perseguindo uma ampliação, mesmo que de forma
inicial, do repertório de formas representativas dos alunos.
Sendo assim, passemos a uma observação um pouco mais detida acerca
da composição da escola como esse lugar de oscilações entre um ambiente
ora mais libertador, ora mais ideológico.

A escola enquanto instituição


contemporânea

A contemporaneidade pode ser compreendida como o lugar da oscilação


entre elementos opostos tais como o presente e um passado revisitado sob a
luz de uma necessidade atual. Em sua obra O que é o contemporâneo? e outros
ensaios (2009), o filósofo italiano Giorgio Agamben afirma:
[...] o contemporâneo não é apenas aquele que, per-
cebendo o escuro do presente, nele apreende a resoluta
luz; é também aquele que, dividindo e interpolando o
tempo, está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em
relação com os outros tempos, de nele ler de modo iné-
dito a história, de “citá-la” segundo uma necessidade
que não provém de maneira nenhuma do seu arbítrio,
mas de uma exigência a qual ele não pode responder.
(AGAMBEN, 2009. p. 72)

Assim, o indivíduo contemporâneo, dividido, caminha por vias tortuosas


entre opostos tais como luz e trevas, presente e passado. Essas vias também
configuram o cenário no qual se inserem as atuais instituições sociais que,

17
como órgãos desse grandioso organismo que é a contemporaneidade, aca-
bam por absorver e incorporar, em suas estruturas, questões fundamentais
de seu tempo.
Com a escola, enquanto instituição contemporânea, não seria diferente.
Esta congrega em si momentos de um fazer libertário em contraposição a
um fazer ideológico. De acordo com Paulo Freire em Pedagogia da autono-
mia (1997), é forçoso reconhecer na educação, enquanto ação humana, um
veio libertador, capaz de conduzir o aprendiz à conquista de sua própria au-
tonomia; e um veio ideológico, multiplicador das dinâmicas neoliberais de
mercado e de acúmulo. Sobre o caráter ideológico da educação e da escola,
Freire irá ponderar:
A capacidade de nos amaciar que tem a ideologia nos
faz às vezes mansamente aceitar que a globalização da
economia é uma invenção dela mesma ou de um destino
que não poderia se evitar, uma quase entidade metafísi-
ca e não um momento do desenvolvimento econômico
submetido, como toda produção econômica capitalista,
a uma certa orientação política ditada pelos interesses
dos que detêm o poder. (FREIRE, 1997. p. 142)

Essa “capacidade de nos amaciar” mencionada por Freire vai ao encontro


da reflexão de Michel Foucault, apresentada na obra Vigiar e punir (1987),
quando o pensador francês observa a extensão da “violência contra a alma”
(1987; 20) abarcando a instituição escolar, instalando um processo de doci-
lização do corpo discente:
Encontramo-lo (o processo de violência contra a
alma) em funcionamento nos colégios, muito cedo; mais
tarde nas escolas primárias; investiram lentamente o es-
paço hospitalar; e em algumas dezenas de anos reestru-
turam a organização militar. Circularam às vezes muito
rápido de um ponto a outro (entre o exército e as escolas
técnicas ou os colégios e liceus), às vezes lentamente e
de maneira mais discreta (militarização insidiosa das
grandes oficinas). A cada vez, ou quase, impuseram-se
para responder a exigências da conjuntura: aqui uma ino-
vação industrial, lá a recrudescência de certas doenças

18
epidêmicas, acolá a invenção do fuzil ou as vitórias da
Prússia. O que não impede que se inscrevam, no total,
nas transformações gerais e essenciais que necessaria-
mente serão determinadas. (FOUCAULT, 1987. p. 165.)

Reconhecendo assim a escola como uma instituição inserida na dinâmica


contemporânea espiralada entre elementos opostos, observa-se, na própria
instituição escolar, a ocorrência de um espaço ora de reflexão libertária,
ora de docilização e de privação dos elementos constitutivos da formação
humana em sua integralidade por meio da violência simbólica.
Aproveitando-nos das brechas humanizadoras frente às ocasiões de vio-
lência simbólica e buscando ressaltar o trabalho da instituição escolar como
um lugar de recuperação dos processos de simbolização e de significação, o
presente trabalho se apresenta e se justifica na tentativa de lançar um olhar
sobre uma prática escolar, pontuando elementos daquilo que se entende
pela experimentação de um processo de humanização em contraposição a
elementos de um desenvolvimento de castração simbólica.

Humanização e arte: um caminho narrativo

Toda a observação da dinâmica entre o papel libertador e alienador exer-


cido pela instituição escolar se dará em torno do conceito de humanização,
compreendendo a ação da autonomia, no ambiente escolar, como um processo
de humanização e a ação da alienação, como um processo de desumanização.
Para tanto, é importante observar de forma um pouco mais detida o conceito
de humanização. De acordo com Antônio Candido, na obra O direito à litera-
tura, o conceito de humanização é sintetizado da seguinte forma:
Entendo aqui por humanização (já que tenho falado
tanto nela) o processo que confirma no homem aque-
les traços que reputamos essenciais como o exercício
da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para
com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade

19
de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza,
a percepção da complexidade do mundo e dos seres,
o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a
quota de humanidade na medida em que nos torna mais
compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o
semelhante. (CANDIDO, 1995. p. 180)

Depreende-se, da citação anterior, o conceito de humanização como um


processo que torna o ser vivente mais próximo de características tidas como
“humanas” tais como a boa disposição para com o próximo, o afinamento
das emoções, entre outras. Muito embora essa síntese seja um ponto inicial
importante, é igualmente relevante compreender o processo em si no qual
o indivíduo chegaria ao fim das “características humanas”. Observe que a
citação anterior oferece duas pistas elementares no encaminhamento da
reflexão em torno do conceito de humanização: a primeira é a afirmação da
humanização enquanto processo e a segunda é o fato da literatura ter um
papel significativo no processo de humanização.
O fato da humanização se desenvolver ao longo de um processo implica
um formato cognoscente narrativo, com um contexto inicial, no qual há o
estabelecimento de certa ordem; um obstáculo que tende a interferir na orga-
nização previamente estabelecida, instalando um sentimento de desarranjo,
desajuste, desconstrução, busca; e, finalmente, uma reorganização, na qual
o obstáculo tende a se ajustar à nova ordem estabelecida seja como perten-
cente ao conjunto, seja como a “exceção que confirma a regra”.
Quanto à importância da literatura ao longo do processo de humani-
zação, é fundamental observar mais um trecho de O direito à literatura, no
qual Candido trata, de forma um pouco mais objetiva, da ação da literatura
no processo de humanização em si:
Toda obra literária é antes de mais nada uma espé-
cie de objeto, de objeto construído; e é grande o poder
humanizador desta construção, enquanto construção.
De fato, quando elaboram uma estrutura, o poeta ou o
narrador nos propõem um modelo de coerência, gera-
do pela força da palavra organizada. Se fosse possível
abstrair o sentido e pensar nas palavras como tijolos de
uma construção, eu diria que esses tijolos representam

20
um modo de organizar a matéria, e que enquanto or-
ganização eles exercem papel ordenador sobre a nossa
mente. Quer percebamos claramente ou não, o caráter
de coisa organizada da obra literária torna-se um fator
que nos deixa mais capazes de ordenar a nossa própria
mente e sentimentos; e, em consequência, mais capazes
de organizar a visão que temos do mundo. Por isso, um
poema hermético, de entendimento difícil, sem nenhu-
ma alusão tangível à realidade do espírito ou do mundo,
pode funcionar neste sentido, pelo fato de ser um tipo
de ordem sugerindo um modelo de superação do caos.
A produção literária tira as palavras do nada e as dispõe
como todo articulado, Este é o primeiro nível humani-
zador, ao contrário do que geralmente se pensa. A or-
ganização da palavra comunica-se ao nosso espírito e o
leva, primeiro, a se organizar; em seguida, a organizar o
mundo. Isto ocorre desde as formas mais simples, como a
quadrinha, provérbio, a história de bichos, que sintetizam
a experiência e a reduzem a sugestão, norma, conselho
ou simples espetáculo mental. (CANDIDO, 1995. p. 177)

Enquanto objeto resultante de uma construção, a obra literária conserva


em si um todo articulado, organizado e verossímil, que lida com um objeto,
um fato, um sentimento ou uma lembrança por meio de um jogo sonoro, uma
disposição narrativa ou qualquer que seja o arranjo de sua forma coerente.
Essa forma empresta sua disposição coerente como um modelo para a
observação do meio que nos cerca, proporcionando um novo ângulo de visão,
uma nova perspectiva por meio da qual novas grandezas podem ser com-
preendidas. A literatura enquanto forma proporciona novas oportunidades
de organizar aquilo que ainda não fomos capazes de limitar em termos cog-
noscentes, ela oferece uma via de compreensão para o desconhecido, para
aquilo que se mostra, ainda, dissolvido no caos da mente.
Quanto mais variadas são as formas cognoscentes no decurso das quais
o ser vivente passa a observar o mundo ao seu redor, mais rico tende a ser
o seu imaginário, entendido como repertório de formas, e maiores e mais
complexas serão as suas possibilidades de compreensão. Consequentemente,

21
maior autonomia ele conquista diante de interpretações prontas oferecidas
por meios autoritários de manipulação e condução das massas. Além da
conquista dessa autonomia, o ser vivente fica, ainda, mais próximo das ca-
racterísticas tidas como “humanas” mencionadas anteriormente na citação
de Candido (1995).
Assim, é importante ressaltar a íntima relação que existe entre humani-
zação, autonomia e imaginário enquanto repertório de formas de represen-
tação e de simbolização.
Muito embora Candido trate da obra literária em geral, mencionando as
possibilidades de humanização até mesmo de um poema hermético, centra-
remos o presente estudo no uso da narrativa para a elaboração de formas de
representação. Mais especificamente, esse olhar acerca do uso da narrativa
para a elaboração de formas de representação se apresentará no decorrer
de duas perspectivas maiores: a primeira tem como foco de observação a
narrativa elaborada pela professora, em forma de relato de prática; a se-
gunda, interna a essa primeira, parte da leitura de uma narrativa, um conto,
a versão de O pescador e o gênio, elaborada por Ruth Rocha e presente na
obra Almanaque Ruth Rocha, estabelecida como via pela qual a professora
elabora sua intervenção.

Um mapa para o caminho

O presente estudo se vale do método de observação intitulado como aná-


lise temática dialógica, uma metodologia bastante flexível e eficaz no sentido
de colocar em questão aspectos humanos por uma perspectiva qualitativa.
De acordo com Silva e Borges (2017), o método da análise temática dia-
lógica ancora-se sobre cinco etapas elementares a saber: a transcrição das
entrevistas, a definição da unidade analítica, a leitura intensiva do material
transcrito, a organização das enunciações em temas e a elaboração da aná-
lise propriamente.
Valendo-se da flexibilidade oferecida pelo método em questão, o presente
estudo estrutura-se sobre as seguintes etapas: a transcrição da prática rea-

22
lizada pela professora, o levantamento de temas a serem questionados e a
análise propriamente dita.

Relato de experiências: uma intervenção


pedagógica

Percorrendo as vias do método da análise temática dialógica e observando


o processo de humanização descrito por Candido (1995) como um processo
narrativo, iniciemos com a transcrição narrativa de uma intervenção peda-
gógica1 na qual a tensão “representação X não representação” fica evidente2:
Tudo teve início no dia 23 de maio de 2019, em uma sala de sexto ano
de uma escola estadual situada na periferia da cidade de Mogi das Cruzes,
quando principiei uma aula na qual se daria a correção da 22ª edição da
Avaliação da Aprendizagem em Processo – AAP. Tal avaliação inicia-se com
a apresentação do conto O vendedor de pérolas, de Denyse Cantuária.
O texto mencionado trata da difícil realidade do menino Miraldo que via
seus pês ficarem achatados, a maneira de barbatanas, por tanto andar des-
calço pelos lamaçais do cais do porto, ajudando a carregar sacolas.
Ao acompanharem a leitura de tal passagem, muitos alunos ficaram im-
pressionados com a transformação que Miraldo ia vivendo e ficaram com
medo de terem os seus próprios pés achatados, dado o fato de que muitos
deles a maior parte do tempo, descalços.
Diante da angústia apresentada por meus alunos, tentei explicar que aquilo
que se dava no texto não era uma “ocorrência real”, orientada pelas regras
de nossa realidade objetiva, mas que se tratava de uma fantasia, criada pela
autora, para tratar da difícil realidade imposta pelo trabalho infantil. Além
disso, perguntei aos alunos presentes se eles nunca tinham visto ou ouvido
falar de uma história na qual o autor usasse da fantasia para observar ele-
mentos presentes na realidade objetiva. Obviamente, eu não esperava que
os alunos, tão fortemente atados à concretude dos fatos reais, observassem
a construção da crítica via fantasia, mas eu esperava alguma comparação,

23
alguma lembrança de alguma outra história na qual houvesse uma transfor-
mação, ou a ocorrência de algum fato incrível ou maravilhoso, até mesmo
porque a sala vinha realizando leituras do livro O sobrinho do mago de C. S.
Lewis, obra na qual a realidade toda se transforma da objetividade de Londres
de 1900 para as mais variadas ocorrências em mundos paralelos.
Diante da pergunta feita, houve um momento de silêncio seguido pelo
gesto de um aluno que levantou a mão, pedindo a palavra. Passei-lhe a pala-
vra e ele assim o disse: “Professora, e de chinelo, meu pé vai ficar achatado?”.
Ao ouvir tal pergunta, esperei pelo riso da turma ... que não veio. Todos ali
estavam muito encerrados em uma realidade concreta, objetiva, realizando
uma leitura “ao pé da letra”, uma leitura superficial.
Constatando a situação na qual se encontravam meus alunos, passei a
buscar por formas de evidenciar a riqueza de possibilidades de representa-
ção presentes nos textos. Assim elaborei uma aula na qual usei o conto O
pescador e o gênio, em uma versão de Ruth Rocha.
Logo após a leitura, conversei brevemente com os alunos sobre as impres-
sões que eles tiveram sobre o texto. A maior parte das colocações dos alunos
acerca da leitura realizada era bastante limitada a adjetivos tais como “legal”,
“boa”, mas, quando indagados acerca do porquê de a leitura ter sido “legal” ou
“boa”, a sala se encerrava em silêncio. Eu, insistindo, perguntei: “pessoal, se
esse texto estivesse passando uma lição, ou se esse texto tivesse uma ‘moral
da história’ qual seria?”. Eu tentava fazer com que alguém ali explorasse as
possibilidades de síntese, de comparação da história com outras histórias
ou com fatos reais, cotidianos, mas foi inútil, a sala continuava em silêncio.
Estava muito claro para mim que, meus alunos liam decodificando as
palavras, mas não processavam, não extraiam da leitura um significado
maior. Como tal constatação já estava evidente desde a correção da AAP, eu
havia preparado a aula no sentido de observar a semelhança entre o conto
lido e outras histórias, esperando que a observação de uma representação
sob arranjos narrativos variados, talvez, ajudasse a ampliar a capacidade de
observação para uma percepção um pouco mais ampla. Assim, perguntei
aos meus alunos se eles conheciam alguma outra história parecida com a do
conto lido. O silêncio persistiu. Assim eu continuei dizendo que eu conhecia
uma história parecida, a história de Odisseu e o Ciclope. Contei, brevemente, a

24
história para a sala e, logo após, perguntei: “E agora, o que tem de parecido nas
duas histórias?”. Uma das mãos se levantou e o aluno disse: “É que nas duas
histórias tem um pequenininho que enfrenta um grandão.”. Elogiei a resposta
e retomei a pergunta: “Mais alguém conhece uma história parecida?”. Outra
mão se levantou e o aluno disse: “Professora, tem aquela história lá do Davi
e Golias.”. Novamente elogiei a resposta e perguntei se os alunos conheciam
as histórias do ciclo do João e o pé de feijão, alguns responderam que sim.
Dessa forma, prossegui perguntando o que todas essas histórias estavam
querendo representar sobre a nossa realidade, sobre as nossas vidas. Outro
aluno pediu a palavra e narrou um fato vivido por ele, na própria escola,
numa ocasião na qual um “grandão do 9º ano” lhe pediu um pedaço de pão.
O aluno continuou: “Nossa, professora, fiquei com medo, pensei que ele ia
‘catá’ meu pão, só porque ele é grande, daí eu pensei, vou tirar um pedacinho
assim, com a minha mão, e vou dar pra ele, se ele pedir mais eu não vou dar
não. Daí eu dei pra ele o pedaço de pão e ele foi embora. Mas eu fiquei com
medo porque aqui nessa escola tem uns grandão folgado”. Muitos alunos da
sala concordaram com a última afirmação e passaram a contar, com grande
revolta, fatos da própria vida nos quais eles se viam diante de “um grandão”
que eles precisavam enfrentar.
Notando a revolta de alguns alunos diante dos “grandões”, perguntei o
que esses “grandões” representavam para eles, indaguei acerca do motivo
para que eles se lembrassem desses fatos com tanta revolta. Algumas respos-
tas apareceram, até que um aluno sintetizou o seguinte: “Ah professora, dá
raiva porque é injusto.”. Elogiei a colocação e perguntei, retomando o texto:
“Pessoal, será que esse gênio, que aparece nas histórias, será que ele repre-
senta alguma coisa?”. Ao que um aluno respondeu: “Representa a injustiça”.
Encerramos a aula nesse ponto.
Na aula seguinte, entrei na sala e os alunos estavam muito agitados, di-
zendo que a sala precisava muito falar comigo. Eles disseram que, por uma
travessura de determinado aluno, a sala havia levado uma ocorrência coletiva.
Estavam totalmente alterados e indignados, reclamando acerca da injustiça
que sofreram e, na descrição de tal injustiça, um aluno disse: “Mas, profes-
sora, (nome da pessoa que, ao olhar dos alunos, havia cometido a injustiça)
entrou aqui que nem o gênio lá da história que nós leu, não quis nem saber

25
de nada não e falou que a ocorrência era pra sala toda”. Ao observar que o
aluno retomava a aula anterior, conversamos longamente, primeiro, para que
os alunos se acalmassem; segundo, na tentativa de expandir a representa-
ção do gênio como um elemento opressor na escola, na vida cotidiana, na
comunidade, na política etc.
Depois desse longo trabalho com as possíveis representações que o “gênio”
poderia tomar em nossa sociedade, relembrei ao grupo o texto de Cantuária,
no qual o personagem Miraldo se transformava em um ser aquático, e per-
guntei se alguém saberia me dizer o que essa transformação representava.
Houve algumas tentativas até que o sinal soou, todos os alunos guardaram
o material e foram embora, exceto uma aluna que carregava o seu material
nas mãos. Ela caminhou em minha direção, parou ao lado da minha mesa e
disse: “Professora, meu pai trabalha na roça, né? Daí a mão dele é tudo cheia
dessas coisas duras, sabe? Calo. Daí, um dia, minha mãe pegou na mão dele
e falou ‘Credo, tá virando tatu!’ Daí, eu pensei: ‘igual o Miraldo do texto que
a gente leu na escola’”. Nós duas rimos, ela me deu um beijo e foi embora.

Pontos de ancoragem

A análise que se apresentará a seguir conta com dois pontos iniciais de


observação. O primeiro é o percurso realizado pela professora no sentido de
conduzir os alunos ao longo da complexidade da forma representativa usada
por Ruth Rocha (2011) em O pescador e o gênio. O segundo será a observação
das colocações dos alunos, evidenciando a compreensão que eles constroem
com base nas representações das narrativas estudadas.

26
A narrativa em análise:
uma busca por vias humanizadoras

Iniciando a reflexão sobre a sequência narrada, observa-se uma grande


dificuldade, por parte dos alunos, na realização de uma leitura um pouco
mais aprofundada, evidenciando sua submissão a um movimento limitador
em relação ao texto como uma obra de exploração de sentidos e fruição.
Mesmo reconhecendo que se trata de uma sala de sexto ano, e sem nutrir
expectativas superiores à capacidade dos alunos envolvidos, a quase total
apatia dos alunos diante do conto dá indícios da presença de um movimento
ideológico, conforme Foucault (1987) e Freire (1997) por parte da instituição
escolar, reduzindo o texto estudado do status de objeto artístico, rico em suas
significações verticais, a um objeto escolarizado, pretexto para o estudo da
estrutura textual de determinado gênero ou conceito gramatical.
Pontuando essa situação inicial, a professora recorre ao conceito de huma-
nização estabelecido por Candido (1995) no sentido de empregar estruturas
narrativas semelhantes para ampliar as possibilidades de representação dos
alunos, na esperança de que, expostos a arranjos narrativos semelhantes, os
alunos consigam compreender a representação ou as representações possí-
veis de serem observadas nos textos trabalhados.
O conto inicialmente selecionado para tal intento foi, conforme o apontado
anteriormente, O pescador e o gênio na versão de Ruth Rocha (2011). Mesmo
contando com a leitura propriamente deste, a professora muniu-se de um
pequeno repertório de textos que apresentavam um arranjo narrativo para o
enfrentamento do grandioso pelo diminuto. Houve a leitura e, antes mesmo
de qualquer explicação, a professora estimulou seus alunos a buscarem por
representações semelhantes em seus repertórios prévios. Observando que
os alunos tinham dificuldades em estabelecer a relação de semelhança, ela
mesma fez essa aproximação, narrando brevemente a história do Odisseu e
o ciclope.
Com esse movimento de aproximação, efetuado pela professora, um dos
alunos realiza o recorte nas narrativas, selecionando a questão do enfren-
tamento daquilo que é grandioso pelo que é pequeno. O aluno apresenta a

27
sua síntese nas seguintes palavras: “É que nas duas histórias tem um pe-
quenininho que enfrenta um grandão”. Observe que há maior dificuldade
na observação do recorte dessa representação quando se realizou, apenas,
a leitura do primeiro conto, no entanto, com a apresentação do segundo e
com a possibilidade de comparação entre ambos, logo o aluno foi capaz de
realizar o recorte.
Com esse primeiro passo estabelecido, outro aluno apresenta a inserção
da ideia do enfrentamento do grandioso pelo pequenino em uma narrativa
por ele conhecida, mencionando a história de Davi e Golias.
Esse movimento continua com a menção da professora sobre as narra-
tivas do ciclo do João e o pé de feijão até que, com a indagação da professora
sobre a observação da ideia do enfrentamento do grandioso pelo diminuto
em suas vivências prévias, um dos alunos responde com a narrativa do epi-
sódio do pão, na qual ele vê a si mesmo no lugar do personagem pequeno
que enfrenta do grandioso, no caso, o aluno do nono ano. Essa transposição
foi o estopim para uma série de outras transposições nas quais outros alunos
passaram a reconhecer, em suas experiências, ocorridos tais como os apre-
sentados nas narrativas estudadas. Observando essa passagem, é possível
que ao passar das narrativas para a experiência pessoal, o aluno realizou um
recorte, pontuando as representações narrativas a um nível no qual outros
alunos puderam reconhecer situações semelhantes em suas vivências. Por
uma perspectiva inicial, é possível que esteja nesse movimento realizado
pelos alunos o reconhecimento da forma coerente da narrativa como uma
elaboração racional que ordena o caos da mente e enriquece as formas de
compreensão com as quais se passa a observar o mundo, realizando assim o
que Candido estabelece como sendo o “primeiro nível humanizador” (1995).
Com esse movimento memorativo, um sentimento muito intenso foi aflo-
rado: a revolta diante da injustiça. A ação dos sentimentos diante do deslo-
camento empático do leitor para o lugar do personagem do pescador levou à
compreensão da situação do personagem “pequeno”. Na ocasião registrada,
nenhum dos alunos presentes se colocou no lugar do gênio, do personagem
opressor, tão pouco houve uma condução ou estímulo por parte da professora
orientando as reflexões nesse sentido o que é compreensível dado que a aula
estava concentrada em trazer à tona uma ampliação dos horizontes repre-

28
sentativos dos alunos e, até aqui, os alunos haviam completado dois passos
importantes nesse percurso: observar, nos arranjos narrativos estudados, a
representação do enfrentamento do grandioso pelo pequenino e transpor
tal arranjo para o rol de experiências prévias, o que aflorou um sentimento
intenso de revolta.
Assim, a primeira aula da intervenção se encerrou não apenas com os
dois passos estabelecidos anteriormente, mas também com a associação do
personagem do gênio à opressão e à injustiça.
No início da aula seguinte, o movimento realizado se deu pela inversão da
dinâmica estabelecida: ao invés de iniciar as reflexões nos textos estudados e
chegar às vivências, o relato do aluno acerca da ação de um elemento externo
à sala e pertencente à escola evidencia um movimento no qual se parte de
uma experiência que se abstrai das formas concretas reais e se recupera a
representação textual. Com tal movimento, o aluno comprova a colocação
de Candido na qual a forma narrativa se torna uma estrutura coerente, uma
via para a compreensão de si próprio e do mundo a sua volta.
Repetindo esse movimento, outra aluna, ao final da aula vem até a profes-
sora e, em sua fala, também parte de um fato de sua realidade e enxerga neste
a estrutura narrativa estudada, porém, agora, a estrutura narrativa utilizada
é a do texto de Cantuária, acerca da metamorfose do menino Miraldo. Nas
palavras da aluna: “Professora, meu pai trabalha na roça, né? Daí a mão dele
é tudo cheia dessas coisas duras, sabe? Calo. Daí, um dia, minha mãe pegou
na mão dele e falou ‘Credo, tá virando tatu!’ Daí, eu pensei: ‘igual o Miraldo
do texto que a gente leu na escola’”. Quanto a essa colocação, é importante
salientar que a aluna ainda não percebe a crueldade que há além da meta-
morfose presente tanto no texto quanto na realidade de seu pai, contudo, ela
estabelece uma percepção um pouco mais apurada entre a representação
articulada no conto e a sua realidade. A compreensão em termos sociais dessa
metamorfose virá com o tempo se ela continuar no exercício perceptual das
representações artísticas, se ela aprender que tanto os textos como os fatos
representam muito mais do que a aparência objetiva pode revelar.

29
Considerações finais

A dificuldade inicial dos alunos em relação à exploração do texto em suas


possibilidades representativas evidencia a ação de uma escola ideológica,
conforme Freire (1997) e Foucault (1987), que trabalha no sentido de podar
as possibilidades de significação e de percepção das representações cons-
truídas, diminuindo os níveis de reflexão e a percepção crítica mais apurada.
Essa mesma escola, como qualquer instituição contemporânea, oscila
entre o papel ideológico e a ação libertária. Assim, a professora pôde elabo-
rar uma intervenção pedagógica na qual seus alunos tiveram a oportunidade
de se deparar com variadas estruturas narrativas que buscavam representar
uma ideia semelhante.
Observando a via utilizada pela professora, perseguindo uma ampliação,
mesmo que de forma inicial, do repertório de formas representativas dos
alunos, constatou-se que a apresentação de duas narrativas, detentoras de
a, foi importante por facilitar aos alunos a limitação de pontos de ancora-
gem para a busca, em seu repertório prévio, de outras narrativas ou fatos
semelhante. Assim, os alunos envolvidos na intervenção puderam perceber
que, além das palavras concretamente registradas na impressão do texto,
havia um sentido maior: o do enfrentamento do grandioso pelo pequenino.
Com essa derivação, os alunos foram capazes de transpor tal ideia a outros
contextos, mencionando a narrativa de Davi e Golias e observando fatos de
seu repertório de vivências prévias.
Após esse movimento, partindo do reconhecimento de um arranjo coeren-
te na estrutura narrativa e transpondo-o para outras histórias e ocorrência
da vivência real, os alunos também foram capazes de realizar o movimento
inverso, partindo de ocorrências da vivência real e reconhecendo nestas o ar-
ranjo narrativo fornecido pelas narrativas estudadas, confirmando o processo
de humanização conforme o estabelecido por Candido (1995) e assegurando
a intenção primeira da professora de ampliar, em seus alunos, mesmo que
de modo inicial, o repertório de formas representativas.
É possível que, ao perceberem o arranjo narrativo de textos variados,
presentes em suas experiências reais, os alunos estejam mais preparados no
sentido de observarem suas vivências de forma um pouco menos concreta,

30
abandonando uma percepção mais imediata e adotando uma postura um
pouco mais elaborada em termos de linguagem, percebendo a construção
textual como um objeto em si, passível das mais ricas representações e arran-
jos cognitivos em suas significações verticais. Em outras palavras, é possível
que os alunos estejam caminhando no sentido de compreender os textos, não
apenas em sua dimensão de registro concreto e objetivo, mas, sobretudo, em
sua perspectiva artística, em toda a sua riqueza de possibilidades.
Com o tempo, é importante ressaltar que essa expansão em relação à
percepção das formas textuais artísticas passa a ser acompanhada por um
amadurecimento da visão de mundo, tornando o aluno não apenas um leitor
ativo em termos estéticos fruitivos, mas um leitor ativo da realidade que o
cerca, livre de uma percepção imediatista limitada e das imposições de um
senso comum alienante e manipulador.

31
NOTAS

1 Trata-se de um registro informal, um diário de práticas, elaborado pela profes-


sora Luciana de Paula, autora do presente artigo, no desejo de refletir e produzir
estudos sobre essas mesmas práticas.
2 Essa mesma situação foi objeto de análise do artigo “Leitura e construção sim-
bólica independente: o imaginário como via de resistência” publicado nos anais
do 8º Seminário de Literatura Infantil e Juvenil, disponível em https://literalise.
files.wordpress.com/2020/06/rexsistc3aancias-literc3a1rias-na-contemporaneida-
de-cc3b3pia.pdf na página 380.

32
Referências Bibliográficas

AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Trad. Vinícius


Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, Editora da UNOCHAPECÓ, 2009.
CANDIDO, A. O direito a literatura. In: Vários escritos. São Paulo: Duas ci-
dades, 1995.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel
Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática edu-
cativa. 25 ed. São Paulo. Paz e Terra, 1997.
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO – SECRETARIA DA EDUCAÇÃO
22ª Edição da Avaliação da Aprendizagem em Processo. Língua Portu-
guesa, 6º ano do ensino fundamental, 1º bimestre de 2019.
ROCHA, R. Almanaque Ruth Rocha. São Paulo: Salamandra, 2011.
SILVA, C. C. BORGES F. T. Análise Temática Dialógica como método de aná-
lise de dados verbais em pesquisas qualitativas (2017). Disponível em:
https://www.redalyc.org/pdf/1935/193554180002.pdf Acesso em: 02
de agosto de 2020.

33
M
A construção do sentido paradoxal
no livro infantil ilustrado de
Edward Lear
Fernanda Marques Granato
Vera Bastazin

Este artigo tem como objetivo tratar de algumas questões que perpassam a
obra de Edward Lear (1812-1888), expoente do nonsense inglês vitoriano, e que
configuram a construção de sua literatura. Sua obra, A book of nonsense, traz
limericks, ou seja, pequenos poemas de quatro ou cinco versos com esquema
de rimas AABBA, sempre acompanhados de ilustrações do próprio autor,
que inovou no aspecto do formato – flipbook – e no projeto, acabando por
trazer novas perspectivas de significação, principalmente quando analisado
a partir das relações entre o verbal, o visual e o estrutural. A configuração
de seu nonsense – que é caracterizada pela constante tensão entre o sentido
e a sua ausência, pelo jogo com as palavras, pelos paradoxos deleuzianos
de puro devir e pela oposição de forças de acordo com Ogden (1923) – pode
ser considerada uma colcha de retalhos de possibilidades significativas, que
desorganiza o mundo a partir de uma organização da linguagem, e propõe
novamente ambiguidades, ambivalências, repetições, espelhamentos e in-
versões. Esse conjunto de elementos composicionais perpetua a polissemia
característica do nonsense de Lear, que não se conforma com uma definição
e está em permanente movimento.

34
Capa de A book of nonsense, de 1846.

Seu livro A book of nonsense, publicado em 1846 por Mclean do Haymar-


ket e depois de várias republicações, em 1862 já estava em sua quinta edição
pela Routledge, com 45 limericks a mais do que a primeira versão, fez tanto
sucesso que a editora queria adquirir, além dos direitos de publicação, os
direitos autorais. Conforme um dos responsáveis pela editora, Sr. Dalziel, o
livro nasceu de um momento de criação pictórica:
When a young man he studied very much at the Zoo-
logical Gardens in Regent’s Park. While he was engaged
on an elaborate drawing of some “Parrots”, a middle-a-
ged gentleman used to come very frequently and talk to
him about his work, and by degrees took more and more
interest in him. One day he said, “I wish you to come on
a visit to me, for I have much that I think would interest
you”. The stranger was the Earl of Derby. Lear accepted
the invitation, and it was during his many visits at Kno-
wsley that these “Nonsense” drawings were made, and
the inimitable verses written. They were generally done
in the evening to please the Earl’s young children, and
caused so much delightful amusement that he redrew

35
them on stone, and published them as before stated. That
is how this clever, humorous book came into existence;
a work that will cause laughter and pleasure to young
and old for all time1. (2002, p.V-VII)

Quando Lear era jovem, costumava estudar nos Jar-


dins Zoológicos no Parque Regent. Enquanto ele estava
concentrado, fazendo um complexo desenho de alguns
periquitos, um cavalheiro de meia-idade costumava vir
conversar com ele sobre seu trabalho, e gradualmente foi
se interessando por seus desenhos. Um dia, este cavalhei-
ro lhe disse: “Gostaria que você me visitasse, pois tenho
muita coisa que lhe seria de grande interesse”. O estranho
era Conde de Derby. Lear aceitou o convite, e durante
as muitas visitas a Knowsley, as ilustrações “nonsense”
foram criadas, e os versos que a acompanham foram
escritos. Esse trabalho era geralmente criado no fim da
tarde para agradar as crianças do Earl, e era considerado
um entretenimento tão agradável que ele decidiu refazer
as ilustrações em pedra e publicá-las em 1846. Foi assim
que esse livro cômico e inteligente veio ao mundo; uma
obra que leva jovens e adultos ao riso e ao deleite.2

36
There was an Old Derry down Derry,
who loved to see little folks merry;
So he made them a Book,
and with laughter they shook
At the fun of that Derry down Derry3.

Havia um velho que podava no bosque de carvalho


Que amava ver criancinhas felizes
Então ele as presenteou com um livro
E elas tremeram de tanto gargalhar
Diante dos escritos do velho4.

Neste primeiro limerick, There was an Old Derry down Derry, podemos
observar que Edward Lear se inscreve em sua ilustração, representando-se
em meio às crianças. É possível dizer que sua criação já nasce de um diálogo
interartes e, portanto, polissêmico: um espaço entre o nonsense e a relação
paradoxal texto-ilustração. O Derry down Derry era uma personagem que
fazia o tipo social do bobo nas músicas populares inglesas nos idos do século
XV. Derry é uma cidade no norte da Irlanda, próxima a Limerick, onde teria
nascido a tradição. Lear não chamava seus poemas dessa forma: denomina-
va-os nonsense, colocando-os em uma categoria à parte.
Considerando as peculiaridades da obra, observamos que o livro já ino-
vou em termos de formato, pois foi produzido de maneira muito semelhante
ao flipbook, em que cada ilustração tem um “frame” do movimento e, se as
página forem passadas de forma rápida, cria-se a sensação de passagem e
mesmo de animação. Entretanto, o livro de Lear precede o flipbook. Ele traz
a ilustração quase que em estilo de rascunho; são traçados sem cores, cada
um deles colocado em uma página, na parte central, seguido imediatamente
do texto verbal. Na obra, diferentemente de outras do período, as ilustrações
não são redundantes; elas acrescentam não uma, mas diversas camadas de
sentido, e quando se considera a relação do texto com a ilustração. essas ca-
madas se multiplicam. A ilustração, também, não é apresentada como menos
importante que o texto, e a própria disposição dos elementos na página, no
caso da na publicação tipo brochura em horizontal, valoriza a ilustração,

37
contrastando com o fundo branco. Pelo exposto, o trabalho de Lear é consi-
derado como um livro infantil ilustrado.
Vejamos alguns dos limericks do autor, assim como a maneira como eles
podem revelar o seu sentido por meio do nonsense, da tensão, da oposição e
do paradoxo de puro devir.

There was an Old Man with a beard,


Who said, “It is just as I feared! –
Two Owls and a Hen, four Larks and a Wren
Have all built their nests in my beard!”.

Havia um velho com uma barba,


Que disse, “É como eu temia! –
Duas corujas e uma galinha, quatro cotovias e uma carriça
Construíram ninhos na minha barba5!”

Neste limerick, There was an old man with a beard, o texto verbal apre-
senta um homem com uma longa barba que revela já ter antecipado o que
ocorre no momento: duas corujas e uma galinha, uma cotovia e uma carriça
fizeram ninho em sua barba. Quando se observa a ilustração, logo se percebe
o paradoxo de puro devir, conceito de Gilles Deleuze exposto em Lógica do

38
sentido (2011), no capítulo Primeira série de paradoxos de puro devir, que é
definido como “simultaneidade de um devir, de um tornar-se, cuja propriedade
é furtar-se ao presente, avançando nos dois sentidos ao mesmo tempo” (2011,
p. 1). Esse paradoxo de puro devir deleuziano trata do que é um e o outro ao
mesmo tempo, do crescer e diminuir, que leva a outro conceito deleuziano
de tornar-se infinito, ilimitado, de não ser e ser simultaneamente, de habitar
os dois pólos opostos de uma extensão sem se deixar estar em uma posição,
em uma definição, em um local com altura e profundidade, com contornos e
referências. O homem tem uma barba gigantesca que se projeta para frente
de forma diagonal, com espaço suficiente para diversos pássaros fazerem
seus ninhos; pela posição de sua sobrancelha, percebe-se que o homem está
irritado com o fato de ter de enfrentar a situação em que se encontra: a bar-
ba longa e provavelmente pesada pela presença dos pássaros o coloca em
desequilíbrio, como se pode observar pela inflexão do tronco e dos braços e
pernas que buscam criar equilíbrio.
Esse ser excêntrico, que não habita o centro, mas a lateral da ilustração,
tem seu paletó e a posição de seus braços estendidos para trás, remetendo à
ideia de um impulso para voar. O homem, apesar da posição em desequilí-
brio e de estar bem próximo a uma cadeira, não senta, mas também não voa;
também não se coloca exatamente em pé, mas também não cai; O conjunto
de elementos descritos não oferece ideia sobre a forma como ele poderia sair
desse oxímoro visual. Vários sentidos coabitam simultaneamente o texto e
a ilustração, mas nenhum se impõe, ou indica qualquer tipo de hierarquia.

39
There was a Young Lady of Dorking,
Who bought a large bonnet for walking;
But its color and size so bedazzled her eyes,
That she very soon went back to Dorking.

Havia uma jovem dama de Dorking,


Que comprou um gorro grande para caminhar;
Mas a sua cor e tamanho a fascinavam tanto,
Que ela logo voltou para a cidade de Dorking6.

Nesse limerick, There was a Young Lady of Dorking, conforme o texto


verbal, uma jovem dama comprou um chapéu grande para passear; o ta-

40
manho e a cor do chapéu a deixaram tão fascinada que ela logo voltou para
Dorking. Ora, se o problema era o chapéu, por que ela não o retirou? Por
que a volta seria uma solução? Também não fica claro porque ela precisa-
ria de um chapéu tão grande para andar; a ilustração revela inclusive uma
relação de opostos que interagem no espaço tensional na constituição do
nonsense: o chapéu é muitas vezes maior do que a mulher e parece estar
flutuando no ar, sugerindo um desequilíbrio em relação ao corpo e, princi-
palmente, à diminuta cabeça da mulher. Com todo o volume e extensão do
chapéu, o guarda-chuva que ela segura na mão faz, na realidade, as vezes de
uma bengala. Interessante observar que apenas um dos pés da mulher serve
de apoio para o seu equilíbrio, e que nem mesmo o guarda-chuva assume
a função de ajudá-la a se manter caminhando sem risco. Na ilustração, ele
também reafirma-se como componente das vestes femininas, pois retoma
o desenho quadriculado e pontilhado de sua saia, reafirmando-se, contudo,
como chapéu pela pena, que é um adorno próprio desta vestimenta feminina.
As ambiguidades e ambivalências da composição fazem com que o texto se
proponha e permaneça na superfície de seus prováveis significados, quase
que negando uma possível profundidade na articulação de seus significantes
e significados, que se repropõem numa arbitrariedade circular de estado de
dicionário, que situa a mulher, apresenta uma caracterização e a deixa fora
do contato com outras formas vivas de língua, ficando na superfície, negan-
do a profundidade.

41
There was an Old Person of Buda,
Whose conduct grew ruder and ruder,
Till at last with a hammer
They silenced his clamor.
By smashing that Person of Buda.

Havia um velho de Buda,


Cuja conduta se tornava cada vez mais rude,
Até que, finalmente, com um martelo,
Silenciaram seu clamor.
Esmagando o velho de Buda7.

Neste limerick, There was na Old Person of Buda, temos um velho da região
de Buda que, segundo o texto verbal, é extremamente rude e acaba sendo
esmagada com um martelo pelos demais. É interessante a união de opostos
pela rima de “Buda” e “Ruder” com pronúncia britânica, que soa paradoxal,
e se considerarmos a ilustração, temos à esquerda um sujeito diminuto com
vestes extremamente justas, braços estendidos para trás, uma perna dobrada
para trás, como que hesitante, e, ao que parece, esta é a pessoa de Buda, que,

42
no texto visual, parece mais assustada do que rude; o indivíduo à direita,
muito maior que a outra, aproxima-se com um martelo imenso. Esse tempo
presente, congelado, é também característico do paradoxo de puro devir, que
existe no instante decisivo entre o passado e o futuro, entre o cortar demais e
não o suficiente, entre o já e ainda não. A solução para a conduta inadequada
da pessoa de Buda é outro comportamento que não se deixa estar, e fica no
entre, no meio do caminho, não resolvida.

There was an Old Man on a hill,


Who seldom, if ever, stood still;
He ran up and down in his Grandmother’s gown,
Which adorned that Old Man on a hill.

Havia um velho num terreno elevado,


Que raramente, ou nunca, ficava parado,
Para cima e para baixo ele ia, com o vestido longo da tia,
Que ornava o velho num terreno elevado8.

43
There was an Old Man of Aosta,
Who possessed a large Cow, but he lost her,
But they said, “Don’t you see
She has run up a tree,
You invidious Old Man of Aosta!”

Havia um velho de Aosta


Que tinha uma grande vaca, mas a perdeu,
Mas lhe disseram, “Você não vê,
Ela está em cima de uma árvore,
Ingrato homem de Aosta9!”

Neste limerick, There was an Old Man of Aosta, temos um velho homem
de Aosta, região do noroeste da Itália que faz fronteira com França e a Suíça;
só nesta questão já temos a instabilidade: é norte e oeste, é Itália, mas são
também França e Suíça; ele tem uma vaca grande, mas diz que a perdeu, pois
não consegue encontrá-la. Todavia, outros revelam que ela subiu em uma
árvore, e ainda o chamam de ingrato. Observe-se que a solução do problema
– uma vaca perdida – acontece de forma surpreendente: o animal de grande
porte está em cima de uma árvore.

44
There was a Young Girl of Majorca,
Whose Aunt was a very fast walker;
She walked seventy miles,
And leaped fifteen stiles,
Which astonished that Girl of Majorca.

Havia uma mocinha de Cascais,


Cuja tia andava depressa demais,
Setenta milhas caminhou e quinze muretas pulou,
O que pasmou a mocinha de Cascais10.

Neste limerick, There was a Young Girl of Majorca, temos uma jovem cuja
tia andava muito rápido; andou 70 milhas e pulou 15 obstáculos, o que deixou
a sobrinha espantada. Entretanto, se observarmos a ilustração, a menina à
direita está com os braços esticados para trás e para cima; ela está na ponta
dos pés, e parece calma, – talvez até alegre, pelo formato da boca –, e não
chocada. A tia se lança para saltar e também deixa os braços estendidos,
mas ambas são capturadas, parecendo suspensas no ar. O chapéu e a saia
da tia, além do obstáculo que nos lembra do hipismo, tornam toda a cena
polissêmica: sabemos que a menina é de Majorca e que sua tia anda rápido
e salta, ou ou faz os dois movimentos ao mesmo tempo.

45
There was an Old Man of Peru
Who never knew what he should do;
So he tore off his hair, and behaved like a bear,
That intrinsic Old Man of Peru.

Havia um velho do Peru


Que nunca sabia o que devia fazer
Então ele arrancou o seu cabelo, e se comportou como um urso,
Aquele intrínseco velho do Peru11.

Neste limerick, There was an Old Man of Peru, temos um homem provenien-
te do Peru que nunca sabia o que deveria fazer e, por esse motivo declarado,
arrancou seus cabelos e se comportou como um urso, uma característica
que remete ao próprio homem, talvez ao seu interior, e que nada realmente
revela sobre ele: ao definir, indefine; ao buscar relações, torna-as complexas
com ambiguidades repropostas.

46
The Fizzgiggious Fish,
Who always walked about upon Stilts
because he had no Legs.

O peixe efervescente Giggious,


Que sempre andava com pernas de pau,
Pois não tinha pernas12.

Na letra F de um dos alfabetos compostos por Edward Lear, encontra-se


um peixe caracterizado, inicialmente, por um neologismo, “Fizzgiggious”,
e, depois, como um peixe que anda com pernas de pau, pois não as tem.
A composição tanto verbal quanto visual remete a uma desconstrução da
identidade do peixe: propõe, concomitantemente, uma reconstrução den-
tro de um universo nonsense, pela interação com outros, representando um
“erro de categoria” (conceito de category mistakes, de Olga Magidor, 2013),

47
ao colocá-lo como um sujeito portador de pernas, ou seja, um ser composto
de partes que nunca serão verdadeiramente dele, colocando-o mais longe
ainda da água e criando um paradoxo infinito, de um peixe eternamente se
transformando em algo que se afasta de sua identidade. Entretanto, ao se
aproximar dessa alteridade, ele não se torna o outro, mas habita esse limiar
paradoxal (o paradoxo de puro devir de Deleuze, que não se deixa estar, e
permanece em movimento, num perpétuo tornar-se), ambivalente (pode
ser qualquer um dos dois e nenhum dos dois ao mesmo tempo), e mesmo
ambíguo (um peixe nada, portanto não precisaria de pernas de pau para se
locomover, e, se as tivesse, morreria fora da água), ou mesmo um oxímoro
(pois o absurdo coabita, transbordando sentido).
A seguir, temos o “magnânimo besouro”, retomando o paradigma do non-
sense de Lear ao construir o sentido a partir da tensão entre seu significado
e a sua ausência, e que tem como lógica o jogo enquanto referência de estru-
turação de sua realidade linguística, considerando-se a ilustração um tipo
de linguagem representada graficamente. Abaixo, temos um dos alfabetos
de Lear; neste caso, a letra B é representada por um besouro que carrega um
guarda-chuva bem menor do que ele próprio. Todavia, o inseto só o carrega
apenas quando não chove, pois, quando ele é necessário, ele o deixa em casa,
desconstruindo sua relação de funcionalidade. A caracterização de animais e
mesmo a organização de conhecimento acerca do mundo e a reorganização
das referências a partir de outro ângulo, esse paradigma construído a partir
de uma estrutura paradoxal, em constante oposição, que nunca cessa de parir
sentidos que não levam à fusão e à criação de uma unidade.

48
The Bountiful Beetle,
Who always carried a Green Umbrella
When it didn’t rain,
And left it at home when it did.

O magnânimo besouro,
Que sempre carregava um guarda-chuva verde
Quando não chovia,
E o deixava em casa quando a chuva vinha13.

No limerick a seguir, a oposição que separa o humano de um animal como


o pássaro é sugerida pelo fato de que o homem, assumindo a posição das
aves para comer as migalhas, incorpora concomitantemente características
semelhantes às aves, irmanando-se a elas. Nesse sentido, a ponta dos pés, a
inclinação do corpo, a posição dos braços e das roupas, sugerem o posiciona-
mento das aves; dessa forma, o nariz assemelha-se ao bico, e ambos acabam
por somar, dentro de um único conjunto, uma composição harmoniosa e
disparatada ao mesmo tempo.

49
There was an old man of El Hums,
Who lived upon nothing but crumbs,
Which he picked off the ground,
With the other birds round,
In the roads and the lanes of El Hums.

Havia um velho de Araras


Que sobrevivia à base de migalhas
Que ele colhia do chão
Com outros pássaros em volta
Nas ruas e ruelas de Araras14.

Entretanto, essa oposição homem-pássaro é simultaneamente descons-


truída quando o homem, com seu casaco que sugere penas, seus braços que
sugerem asas, seu nariz que sugere um bico e seu posicionamento de cabeça
baixa e quadril alto, alimentando-se de migalhas no chão, indica que há uma
linha tênue entre as definições de categorias, ao vestir um chapéu, e viver
em meio aos pássaros, como um igual e ao mesmo tempo diferente, pois
apesar de sua atividade peculiar distingui-lo dos demais, ele é um velho de
Araras que, entre os pássaros, sugere ser igual, pelo seu posicionamento e
fisionomia, mas não o é, e, entre humanos, é reconhecido como igual, mas
não há sugestão de pertencimento. O eu-lírico pode se definir como quiser,
pois sempre habitará o limiar, o entre, o meio do caminho. Suas roupas confir-

50
mam que é um homem e que está em outra categoria e ao mesmo tempo que
é um pássaro e que pertence a esta categoria, mas nenhuma das categorias
é totalmente comprovada ou negada, e ambas são sugeridas.
No limerick a seguir, temos uma garça, caracterizada, como bondosa no
texto verbal (por carregar a coruja). Ela leva uma coruja – que não pode na-
dar – até o outro lado do rio. Novamente, se repropõe o dilema do peixe com
pernas de pau: a garça leva a bolsa da coruja no bico, sugerindo que a coruja
se assemelha a uma coruja, mas não o é, pois não pode usar as suas asas para
voar e atravessar o rio dessa forma. O animal, talvez por ser velho – como
sugere o texto –, não pode nadar, e, por isso, precisa da assistência da garça,
mas a ausência da habilidade de nadar não seria algo que necessariamente
a colocaria fora de sua categoria, pois aves não nadam; ao contrário, nadar
seria algo que a separaria das demais corujas. Uma negativa que a caracte-
riza, corujas não nadam, aqui é tida como um impedimento, causado talvez
pela velhice, e essa mesma negativa é aqui apresentada como afirmativa,
corujas nadam (essa apenas não nada porque é velha) a leva a recorrer a
outra espécie de ave para pedir auxílio, algo que a afasta ainda mais do que
tanto o texto verbal quanto a ilustração sugerem (que é uma coruja, animal
solitário e noturno, diferente da garça, animal diurno). Ao aproximar a garça
da coruja (por colocá-las juntas) e a coruja de uma pessoa (que não voa e
precisa de auxílio para atravessar o rio), todas as categorias caem por terra
e o que permanece é o tornar-se ilimitado de um paradoxo sem fim que sub-
siste no caminho do meio do nonsense.

51
The Goodnatured Grey Gull,
Who carried the Old Owl, and his Crimson Carpet-bag,
Across the river, because he could not swim.

A bondosa Garça Cinzenta,


Que carregava a Velha Coruja, e sua bolsa vinho,
Para atravessar o rio, pois a coruja não podia nadar15.

No limerick a seguir, uma lagosta, caracterizada como dinâmica e culta, é


capaz de consertar suas roupas sozinha armada apenas de uma agulha e linha.
No texto verbal, temos várias inconsistências que, pelo do caminho do meio
do nonsense, levam a um questionamento das categorizações, das identidades,
e dos próprios conceitos que criamos e com o qual nos referimos ao mundo:
uma lagosta, um crustáceo marinho que conta com uma casca protetora (o
que é enfatizado pelo texto visual e tornaria o uso de roupas desnecessário)
tem vestimenta e as conserta com agulha e linha, ou seja, remenda e costura
com suas presas extremamente afiadas. O trabalho delicado com a linha e
a agulha é incompatível com as presas, o habitat natural ou mesmo com o
corpo da lagosta. Entretanto, aí está, no meio, entre a lagosta que costura e
é culta e a pessoa que pode se assemelhar a uma lagosta, que, de fato, não é
nem pessoa, apesar de ser culta, de se sentar em uma cadeira, de usar roupas
e de ser capaz de costurar, nem lagosta, pois suas presas não permitiriam a

52
delicadeza da atividade da costura. Esses dois estados opostos, em extremos,
em permanente tensão, em desequilíbrio, formam um paradoxo de tornar-se
lagosta com presas e lagosta que costura, lagosta com casca e lagosta que veste
roupas, paradoxo infinito que se transforma em um e outro simultaneamente
de modo ilimitado, de forma que nenhuma das duas categorias se sustenta,
em que uma definição não se ampara, em que o caminho do meio, do en-
tre um e o outro, é o único que perfaz o caminho sinuoso da construção e
atribuição do que é percebido percebido neste limerick que torna o sentido
ilimitado e o tornar-se circular uma estrutura a partir da qual, no nonsense,
tudo se forma e nenhuma forma é assumida.

The Lively Learned Lobster,


who mended his own Clothes with
a Needle and a Thread.

53
A Dinâmica e Culta Lagosta,
Que consertava suas próprias roupas com
uma agulha e uma linha16.

The Enthusiastic Elephant,


who ferried himself across the water with the
Kitchen Poker and a New pair of Ear-rings.

O Elefante Entusiasmado,
Que atravessava o rio sozinho de balsa com
Um espalhador de brasa e um novo par de brincos17.

Para concluir, neste último limerick selecionado, um elefante caracteri-


zado como entusiasmado atravessa um rio em uma pequena balsa (no texto
visual, temos um pequeno barco; no verbal, uma balsa) com um novo par de
brincos e um espalhador de brasa de lareira, que usa como remo. Um elefante
– animal que pesa em torno de 6.000 quilos – posiciona-se em um pequeno
barco, o que sugere leveza; porém, por ocupar quase todo o texto visual e
deixar pouco espaço para o barco, isso indica também seu peso excessivo. O

54
espalhador de brasa, usado comumente nas lareiras, aqui tem seu sentido e
sua função invertidos completamente ao se tornar um remo. Apesar de en-
tusiasmado, o elefante é representado em um momento congelado no tempo,
neste tempo do presente do nonsense, um instante fugaz e que praticamente
não permite captura: logo, é passado ou futuro, quase sempre se esvai, só é
presente por uma brevidade e é limiar por muito tempo, para o que já foi e
para o que virá a ser. O limerick se estrutura, então, pelo caminho do meio,
o caminho entre as duas margens do rio, o caminho da travessia que nunca
acaba e nunca começa; da movimentação permanente e, ao mesmo tempo,
estática; do peso leve e pesado do animal, do barco pequeno que o abarca.
Do rio, vemos apenas o meio; do bicho, vemos a sua centralidade no meio da
travessia, que é entusiasmada e retida, movimentada e estática; que sugere
movimento pela continuidade do nariz e do espalhador de brasa e nega esse
movimento pela imensidão do elefante, imensidão capturada no tornar-se
ilimitado possível no caminho do meio do nonsense. Esse caminho do meio
encontra ressonância no caminho do meio do livro infantil ilustrado, que
serpenteia entre visual, verbal e projeto gráfico, criando uma gramática outra
que opera pela sintaxe das relações entre as partes e os sentidos múltiplos
gerados, que não seriam possíveis sem a interação verbovisual promovida
pelo projeto gráfico idealizado por Edward Lear em seu primeiro livro, A book
of nonsense, já publicado neste formato em 1846.

55
Notas

1  Retirado da nota do editor do livro A book of nonsense.


2  Tradução de Fernanda Marques Granato.
3  Limericks retirados dos livros A book of nonsense, de 1846 e de 1855, e de More
nonsense, pictures, rhymes, botany, de 1872.
4  Tradução de Fernanda Marques Granato.
5  Tradução de Fernanda Marques Granato.
6  Tradução de Fernanda Marques Granato.
7  Tradução de Fernanda Marques Granato.
8  Tradução de Dirce Waltrick do Amarante In: Viagem numa peneira, 2011, p.
43. Essa tradução troca avó por tia para manter o esquema de rimas do original.
9  Tradução de Fernanda Marques Granato.
10  Tradução de Dirce Waltrick do Amarante, in: Viagem numa peneira, 2011, p.
36.
11  Tradução de Fernanda Marques Granato.
12  Tradução de Fernanda Marques Granato.
13  Tradução de Fernanda Marques Granato.
14  Tradução de Fernanda Marques Granato.
15  Tradução de Fernanda Marques Granato.
16  Tradução de Fernanda Marques Granato.
17  Tradução por Fernanda Marques Granato.

56
Referências

DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Título original: Logique du sens. Tradu-


ção: Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2011.
____. Logic of sense. Translated by Constantin V. Boundas. Bloomsbury Re-
velations, Bloomsbury Publishing: London, 2015.
LEAR, Edward. A book of nonsense. Routledge: London, 2002.
OGDEN, C. G. The meaning of meaning. Contemporary Literature Press:
Bucareste, 2013. [1923].
_____. Opposition: a linguistic and psychological analysis. Indiana: Indiana
University Press, 1967 [1932].
Tigges, Wim. An anatomy of literary nonsense. Amsterdam: Rodopi B. V., 1988.
Explorations in the field of nonsense. Edited by Wim Tigges. Amsterdam:
Rodopi, 1987.

57
o
A construção metafórica
da criança em Kiarostami,
Panahi e Majidí
Dayse Oliveira Barbosa

Apresentação

Neste artigo serão apresentados os mecanismos de construção da metá-


fora em três filmes iranianos que trazem crianças como protagonistas. São
eles: Onde fica a casa do meu amigo? (Abbas Kiarostami), O espelho (Jafar
Panahi) e A cor do paraíso (Majid Majidí).
Para melhor compreensão da importância da metáfora nesses filmes,
será realizada uma breve exposição do contexto histórico-político-religioso
da sociedade iraniana e do desenvolvimento da indústria cinematográfica
no Irã, antes de adentrar na análise dos filmes.

Contextualização

O Irã é habitado há sete mil anos a.C. Os elamitas foram as primeiras


tribos a ocupar a região – inventaram a escrita cuneiforme, domesticaram
animais e criaram sistemas de irrigação. Tribos indo-germânicas (arianos)
foram as primeiras invasoras, que criaram os reinos dos medas e dos persas.
Os medas, provavelmente, chegaram à Ásia Ocidental aproximadamente

58
mil anos a.C. Eles contribuíram com a língua ariana, o alfabeto de 36 letras,
a substituição da argila pelo pergaminho, o uso de colunas na arquitetura, o
código moral e o zoroastrismo, que perdura até hoje no Irã.
Zoroastrismo é uma doutrina religiosa baseada na dualidade cósmica entre
bem e mal. A doutrina recebeu esse nome porque foi fundada por Zoroastro,
também conhecido por Zaratustra, profeta que viveu por volta do século VII a.C.
Apesar de terem criado um Império, os medas foram rapidamente domi-
nados pelos persas, que tiveram três importantes imperadores.
Ciro foi o primeiro imperador persa, por volta de 546 a.C., fundando a
dinastia Aquemênidas. Na época de Ciro, a capital do império era Pasárga-
da e o domínio persa estendia-se do Mediterrâneo à Índia, englobando 31
nações, entre elas, o Egito.
Ciro foi substituído por Dario I, que transferiu a capital do império para
Persépolis. Dario I foi o responsável pela modernização da arquitetura persa
– com construções imponentes – e pela construção da rede rodoviária, além
da criação de um novo sistema administrativo – as satrapias – fundamentado
na hierarquização das funções administrativas. Xerxes continuou o trabalho
de Dario I, as invadiu algumas cidades gregas e foi retaliado por Alexandre,
o Grande (da Macedônia), que pôs fim ao reinado de Xerxes e ampliou a in-
fluência cultural grega da Pérsia ao Egito, passando pela Índia e pela Síria.
Em 642, o islamismo foi introduzido na Pérsia por meio da invasão árabe.
De acordo com Coggiola (2008):
O Islã iraniano teve seu próprio perfil, diferente-
mente do restante do mundo muçulmano. Os persas
adaptaram a forma xiita heterodoxa do Islã, utilizando-a,
inclusive, como uma arma contra os chefes supremos
árabes. A língua dos conquistadores substituiu a língua
pahalavi (persa ou farsi), o que freou o desenvolvimento
da literatura e da poesia persas. Isso acabou, em reação
dialética, reafirmando o espírito nacional. Durante cin-
co séculos as obras literárias e a história do país foram
escritas em arábico.
No século IX, o controle árabe do país enfraqueceu
e o império dividiu-se em pequenos reinos com gover-
nantes iranianos. (2008, p.22)

59
O islamismo é uma doutrina religiosa fundada por Mohammad, conhecido
também por Maomé. Segundo Hourani (1994), acredita-se que Mohammad
nasceu em uma aldeia da Arábia Ocidental, por volta de 570 d.C. e faleceu
no ano de 632, em Meca. Por volta dos seus 40 anos de idade, Mohammad
teve contato com o sobrenatural. Este episódio ficou conhecido como a Noite
do Poder ou do Destino. A partir dessa experiência, ele começou a recitar
versos do que viria a ser o Alcorão – livro sagrado do islamismo.
No Alcorão estão contidos os cinco pilares que fundamentam a religião
islâmica até hoje. Lewis (1996) os organiza da seguinte maneira:
1. Profissão de fé (shahada): declaração de que “Deus é um só e Maomé
é seu profeta”.
2. Oração (salat): prece que consiste na declaração da shahada e de al-
guns trechos do Alcorão, realizada cinco vezes ao dia – ao amanhecer, ao
meio-dia, à tarde, ao pôr do sol, à noite – com palavras e movimentos pres-
critos. O devoto deve realizar a salat com o rosto virado na direção de Meca.
3. Peregrinação (hajj): pelo menos uma vez na vida, todos os muçulmanos
devem fazer a peregrinação a Meca e a Medina.
4. Jejum: durante o Ramadã, nono mês do ano, todos os muçulmanos,
incluindo mulheres e crianças devem jejuar do amanhecer ao pôr do sol.
Os idosos, doentes, pessoas em viagem ou em alguma jihad (guerra) estão
dispensados do jejum.
5. Esmola (zakat): doação financeira dos muçulmanos à comunidade ou
ao Estado. Originariamente, a contribuição era voluntária. Com o passar do
tempo, tornou-se obrigatória. Todos que aceitam o islã devem cumprir a zakat.
Posteriormente, a Pérsia foi dominada pelos turcos, pelos mongóis, e entre
os séculos XI e XIX foi governada por quinze dinastias diferentes.
No início do século XX, mais precisamente, em 1926, o xá (rei, em farsi)
Reza Pahlevi assume o poder, com o nome Reza Xá Pahlevi. Foi responsável
por mudar o nome do país para Irã e, posteriormente, entrou na II Guerra
Mundial favoravelmente à Alemanha nazista. Devido a isso, o Irã foi ocu-
pado, em 1941, por tropas inglesas e soviéticas. Reza Pahlevi abdicou em
favor de seu filho, Mohammad Reza Pahlevi, que administrou a ocupação
estrangeira até 1946.
Com o intuito de aproximar-se dos costumes ocidentais, Reza Xá, na

60
década de 1930, permitiu que as mulheres não mais usassem o chador e os
véus que cobriam as faces (chamado de burka).
O maior marco do xá Mohammad Reza Pahlevi para a arte iraniana,
especialmente, a cinematografia, foi a fundação do Instituto para o Desen-
volvimento Intelectual da Criança e do Adolescente, o Kanun, na década
de 1960, pela princesa Farah, esposa do xá. De acordo com Meleiro (2006):

Uma das mais importantes organizações que cons-


tituíam e constituem (após a mudança do regime) um
forte sustentáculo para o cinema nacional é o Institu-
to para o Desenvolvimento Intelectual da Criança e do
Adolescente (Kanun-e Parvaresh-e Fekri-ye Kudakan va
Nowjavanan), conhecido como Kanun. O principal atrati-
vo da instituição era possibilitar que os artistas tivessem
uma liberdade de expressão em suas produções, maior
do que qualquer outro lugar, incentivando a produção
de obras destinadas ao público jovem.
O Instituto foi fundado pela princesa Farah, mulher
do xá Reza Pahlevi, dentro de uma política voltada aos
usos da cultura, ocupando-se da criação de condições
da população ampliar seu universo cultural e desfrutar
atividades de iniciação e compreensão da cultura por
meio de bibliotecas, ateliês de pintura e escolas de tea-
tro. A sessão de cinema tornou-se a mais produtiva do
Instituto, em poucos anos. (2006, p.41 e 42)

Mohammad Reza Pahlevi prevaleceu no poder até o início de 1979, quan-


do o aiatolá Ruhollah Khomeini assumiu o governo do Irã, após uma grave
crise econômica, denúncias internacionais de abusos dos direitos humanos,
protestos e massacres da população promovidos pelo xá.
Khomeini, em 1º. de abril de 1979, instaurou a República Islâmica do Irã.
Dessa forma, o Irã passou a ser o único sistema de governo do mundo em que
república e Islã equiparam-se. Na prática, o país começou a ser governado
por dois líderes, um líder religioso e um líder político, sendo que a autoridade
do líder religioso se sobrepõe à do líder político.
O aiatolá Khomeini deu continuidade às atividades do Kanun; contudo,

61
determinou que a Lei Islâmica fosse a lei suprema do país. Isso significou o
retorno à obrigatoriedade do uso do véu para todas as mulheres bem como se
exigiu que todos os segmentos artísticos – inclusive, o cinema – obedecessem
aos princípios islâmicos, sob risco de severa censura.
Lewis (1996) define da seguinte forma a fase pós-revolução iraniana:
Foram difíceis para o Irã os anos que se seguiram.
O povo sofreu muito com guerras externas, conflito e
repressão interna e agravamento ininterrupto da crise
econômica. Como em outras revoluções, ocorreram
choques repetidos entre facções rivais, algumas vezes
descritas como extremistas e moderadas; mais corre-
tamente, tratavam-se de ideólogos e pragmáticos. De-
vido a essas e outras mudanças, o ideal da revolução
islâmica, estilo iraniano, perdeu parte de sua atração
– mas não toda. Movimentos revolucionários derivados,
inspirados ou simultâneos com a revolução no Irã sur-
giram em outros países muçulmanos, onde se tornaram
pretendentes sérios e às vezes bem-sucedidos ao poder.
(1996, p.333)

Posteriormente ao aiatolá Khomeini, a situação sócio-político-econômi-


ca do Irã agravou-se ainda mais, inclusive, no cenário internacional, com o
envolvimento do país em vários conflitos no Oriente Médio, especialmente,
com o Iraque, país vizinho.
Atualmente, o Irã vive grave tensão em relação aos Estados Unidos. Essa
tensão afeta todos os aspectos da sociedade iraniana, inclusive, a produção
cultural.

62
Instituto para o Desenvolvimento
Intelectual da Criança
e do Adolescente – Kanun

De acordo com Meleiro (2006), o Instituto para o Desenvolvimento Intelectual


da Criança e do Adolescente (Kanun) foi a mola propulsora do cinema iraniano.
Segundo Meleiro:
Embora o objetivo principal do Kanun fosse produ-
zir filmes para crianças, a maior parte dos filmes era
feita por intelectuais, e claramente nem todos os filmes
eram para crianças, sendo que a maioria deles era sobre
crianças. (2006, p.42)

Houve três períodos de desenvolvimento do Kanun.


O primeiro período estende-se de 1966, quando Abbas Kiarostami criou o
Departamento de Cinema, quando se inicia a revolução iraniana (1970-1979).
Nesse período, Abbas Kiarostami e, posteriormente, Ebrahim Forouzesh fo-
ram encarregados do departamento. A marca desse período foi a produção
de filmes de animação de excelente qualidade artística.
O segundo período perdurou do início da revolução até o início da década
de 1990. A partir daí, os roteiros fílmicos passaram a ser submetidos ao Mi-
nistério da Educação. Alguns podiam obter autorização para produção, mas
não para exibição – é quando Abbas Kiarostami, Ebrahim Forouzesh, além
de outros cineastas hoje consagrados, como Bahram Beizaie, Amir Naderi,
começaram a produzir longas-metragens de temáticas sociais.
O terceiro período inicia-se em meados da década de 1990. Assiste-se ao
acirramento do controle sobre os cineastas, que preferiram procurar produ-
toras independentes para realizar suas filmagens. Com isso, a produção do
Kanun decai significativamente. Filhos do paraíso, de Majid Majidí, primeiro
filme iraniano a ser indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro, pertence
a esse período do Kanun.
A respeito da censura no cinema iraniano, Martins esclarece (2014):

63
As determinações referentes ao cinema e ao teatro
não aparecem no texto constitucional, mas são julgadas,
conforme o caso, em termos de respeito ao Islã, à Sha-
ria, à ordem pública ou à imagem do Irã. Assim como
em outros regimes totalitários, a censura encontra-se,
em larga medida, “naturalizada” na sociedade iraniana.
Ainda que esta seja denunciada, sobretudo por jornalis-
tas e artistas exilados, a passagem pelos órgãos oficiais
a fim de obter liberação para um filme ou uma peça é
vista como parte integrante do processo de produção.
No caso do cinema, esse processo inclui duas fases
distintas: a liberação para produzir o filme e a seguir
para distribuí-lo. A autorização para fazer o filme come-
ça com a entrega do roteiro ao Ministério da Cultura e
Orientação Islâmica, que irá determinar se a proposta é
ou não adequada. Nessa fase, também são avaliadas as
competências do roteirista, do diretor, dos atores e de
outros participantes, bem como a idoneidade da equipe
em relação às manifestações político-religiosas no Irã.
Essa fase pode durar até mais de um ano. (2014, p.220)

No tocante à mulher, a questão da censura é ainda mais delicada. De


acordo com Meleiro (2006, p.90), para o islamismo, “o chador (capa que
cobre a cabeça e o corpo) e o hejab (lenço que cobre a cabeça e o peito) são
exteriorizações de uma verdade divina e a adoção dessas vestimentas islâ-
micas seria uma maneira de preservar a identidade iraniana”. Assim, ainda
que uma personagem seja mostrada em seu lar, entre familiares, ela não
pode mostrar os cabelos.
Além disso, o preto é a cor recomendada para o chador e o hejab. Oficiais
do governo alegam que a escolha do preto não se deve especificamente a uma
restrição islâmica, mas à praticidade do uso de um uniforme.
As mulheres não podem ser filmadas maquiadas, com roupas colorida.
Não pode haver contato físico entre elas e os homens, deve-se evitar os olha-
res, especialmente, os que incitem desejo sexual. Até a década de 1980, as
mulheres apareciam apenas em posições estáticas ou sentadas, para impedir
que o caminhar delas chamasse a atenção do público.

64
Outras proibições formais nos filmes iranianos são: insultos aos princípios
que sustentam o governo islâmico no Irã; piadas sobre exército, polícia ou fa-
mília; músicas estrangeiras ou qualquer tipo de música que evoque prazer ou
alegria; filmes que tratem de violência, sexo explícito, prostituição ou corrup-
ção; exibição positiva de uma personagem que prefira a solidão à vida coletiva.
Depois da montagem, o filme deve ser entregue ao Ministério da Cultu-
ra e Orientação Islâmica para os censores verificarem se as normas oficiais
foram cumpridas. O filme pode ser proibido, liberado ou o cineasta receberá
instruções para rever ou cortar cenas. Na sequência, as autoridades do Mi-
nistério determinam em quais cinemas pode ser exibido.
De acordo com Martins, “a censura impulsiona o aparecimento de es-
tratégias discursivas que permitem, em alguma medida, passar ao largo das
interdições” (2014, p.221). Segundo Martins, uma das estratégias discursivas
mais recorrentes é a metáfora, tão bem explorada nas produções de Abbas
Kiarostami, Jafar Panahi e Majid Majidí, por exemplo.
A seguir, serão apresentadas as análises dos filmes Onde fica a casa do meu
amigo?, O espelho e A cor do paraíso. Os três filmes apresentam a criança como
personagem central, exemplificando o emprego da metáfora no cinema iraniano,
uma vez que o papel encenado pelos respectivos protagonistas sempre conduzem
o espectador a uma leitura mais ampla dos valores sociais veiculados na obra.

Onde fica a casa do meu amigo?

Onde fica a casa do meu amigo? foi dirigido por Abbas Kiarostami, em 1987.
O filme inicia-se em uma sala de aula, com um professor corrigindo os
cadernos dos alunos. Mohammad realiza a lição de casa em uma folha avul-
sa. Irritado, o professor rasga a folha e adverte o menino – diz a ele que se,
no dia seguinte, fizer a lição novamente em folha avulsa e não no caderno,
irá expulsá-lo. Mohammad chora de desespero. O primo dele, estudante da
mesma sala, conta ao professor que estava com o caderno de Mohammad,
por isso ele não fez a lição no caderno. O mestre compreende, mas mantém
a ameaça a Mohammad.

65
Ahmad, o protagonista, está sentado ao lado de Mohammad, presencia
atônito o choro do amigo. Ao final da aula, Ahmad e Mohammad saem jun-
tos, brincando, Mohammad cai e seu material espalha-se no chão. Ahmad o
ajuda a recolher o material e eles se despedem.
Em casa, Ahmad fica desolado quando percebe que guardou o caderno
de Mohammad em sua pasta, conforme evidencia a imagem a seguir. Tenta
contar o ocorrido para a mãe, explicar que precisa entregar o caderno para
Mohammad.
Nesse momento, fica explícito algo que será a tônica do filme: a falta de
comunicação entre adultos e crianças.
A mãe de Ahmad ignora-o completamente quando ele tenta falar sobre
o engano dos cadernos. A exemplo dela, as demais personagens adultas do
filme conversam apenas entre si – ninguém ouve Ahmad.
Sozinho, a pé, sem qualquer referência de endereço significativa, ele re-
solve procurar a casa do amigo, que fica em um bairro distante. É notável,
ao longo do filme, como os adultos são centrados neles mesmos; quando,
a caminho, Ahmad pede alguma orientação, os adultos, sem interromper
os passos, oferecem respostas monossilábicas, ou continuam conversando
naturalmente; às vezes, andando a cavalo, ignoram a presença do menino.
Somente uma criança concede certa orientação mais expressiva a Ahmad.
Blikstein (2002), analisando a estrutura essencial da comunicação es-
crita, afirma que essa tem sua origem em uma necessidade do emissor que,
por sua vez, aguarda a resposta do destinatário para estabelecer a fluidez
da comunicação.
A comunicação oral apresenta a mesma estrutura básica. No filme, no-
ta-se que Ahmad tenta comunicar-se. Mas, não há resposta. Logo, não há
interação. Percebe-se, dessa forma, que crianças e adultos vivem em espaços
sociais bastante distintos e cabe àquelas crescer para ocupar o espaço social
reservado aos mais velhos, hierarquicamente superior ao delas.
Apenas um idoso, ávido por uma companhia para conversar, dá atenção
a Ahmad e ajuda-o a encontrar a casa de Mohammad. Ambos perambulam
juntos pelos labirintos das construções feitas nas rochas iranianas. Contudo,
não encontram a casa de Mohammad.
Em Ahmad, é característico o olhar de solidão e o semblante de deses-

66
pero ao pensar que o amigo pode ser expulso no dia seguinte por um equí-
voco provocado por uma brincadeira na saída da escola, como é exposto na
imagem abaixo.

Figura 1 – Momento em que Ahmad percebe a troca


de cadernos entre ele e o amigo, Mohammad

Um diálogo do avô de Ahmad com um amigo evidencia o pensamento


típico dos adultos que estão sendo representados no filme. O senhor diz ao
amigo que, quando criança, apanhava todos os dias de seu pai e acredita que
toda criança precisa apanhar diariamente, mesmo sem motivo algum, para
lembrar-se da disciplina.
À noite, Ahmad retorna para casa sem sucesso na busca por Mohammad.
Cansado e frustrado, Ahmad não janta, prefere fazer a lição para Mohammad,
demonstrando o verdadeiro sentimento de amizade que há entre os dois.
O filme encerra-se com Ahmad sussurrando a Mohammad na sala de aula que
fez a lição para ele. O professor corrige a lição de ambos, sem conflito aparente.

O espelho:

O espelho foi dirigido por Jafar Panahi, em 1997. O filme inicia-se com
Mina, a protagonista, sentada à beira do portão da escola, aguardando a mãe

67
que deveria ter ido buscá-la no final da aula. Um pai de aluno oferece carona
em sua motocicleta à Mina até um ponto de ônibus. O problema é que Mina
não sabe o endereço de sua casa.
A menina embarca em um ônibus acomoda-se e observa, com aparência
de cansaço, as pessoas que dialogam sobre diferentes assuntos, conforme
mostra a imagem abaixo.

Figura 2 – O olhar e a expressão facial de Mina no ônibus denotam


a tristeza da garota, que não sabe como retornar para casa

No ponto final do ônibus, Mina pede orientações ao motorista para che-


gar em casa. Ele percebe que a menina está perdida, indica alguns pontos de
referência e ela embarca em outro ônibus. Nesse ônibus, o cobrador irrita-se
com Mina, ela começa a chorar, tira o lenço dos cabelos e a tipoia que usava
no braço esquerdo, olha para a câmera e diz que não quer mais participar
daquele filme, está cansada de fazer aquela representação.
Nesse momento, o público compreende que ela não está perdida: a atriz
encena a procura pela própria casa. Mina desce correndo do ônibus, senta
na calçada ainda chorando. Uma das pessoas da equipe de filmagem con-
versa com a garota, convencendo-a a recolocar o lenço nos cabelos e a usar
um microfone.
Mina resolve pegar um táxi; a partir de então, a equipe de filmagem
segue-a à distância. A menina troca de táxi aleatoriamente várias vezes. O
desenvolvimento de O espelho mostra ao público o trânsito caótico da capi-
tal iraniana, as ruas movimentadas das regiões centrais de Teerã, além de

68
trechos de conversas dos taxistas com Mina ou de passageiros que aceitam
dividir a viagem de táxi com ela.
No final da história, Mina retorna para casa, devolve o microfone contra
a vontade da equipe de filmagem, que faz questão da presença dela no filme.
A menina insiste que não vai mais participar do filme, que não gostou de ser
atriz e não voltará para o restante das filmagens.
Percebe-se que O espelho é um filme metalinguístico, ou seja, um filme
que aborda a problemática de uma filmagem cinematográfica. Ao colocar
como protagonista uma criança que se rebela e desiste de representar, O
espelho traz à tona duas questões delicadas.
A primeira trata dos cuidados que a equipe de filmagem deve ter ao lidar
com uma criança em cena (afinal, ela é um profissional, possui responsa-
bilidades dentro do filme, contudo tem limitações físicas e psicológicas de-
correntes da idade). Isso O espelho exprime quando uma representante da
equipe de filmagem insiste que Mina deve continuar usando o microfone,
porque o longa-metragem não pode ser interrompido. Todos necessitam da
atuação da menina.
A segunda é o modo como a própria criança se sente no cotidiano das
gravações, pois na rotina (algumas vezes desgastante) de uma filmagem de
cinema a criança é obrigada a abrir mão das atividades características da
faixa etária dela para assumir uma agenda profissional. Isso é evidenciado
em O espelho quando Mina chora desesperada, tira o lenço dos cabelos, a ti-
poia e fala que não deseja mais participar da gravação. O semblante da atriz
mostra seu desgaste emocional.
Além disso, O espelho lida com o que Howard e Mabley (1996) definem
como o poder da incerteza.
Então, qual é o truque para manter a participação do
público e criar a reação emotiva da qual depende o dra-
ma? Respondendo numa só palavra: incerteza. Incerteza
sobre o futuro imediato, incerteza sobre o desenrolar dos
acontecimentos. (1996, p.72)

O público fica ciente de que Mina não está perdida, mas participando de
uma filmagem cinematográfica em processo. Qual o roteiro? Que persona-

69
gem Mina está representando? Qual o gênero do filme em que Mina atua?
Há outras personagens no filme? Essas perguntas, possivelmente, são feitas
pelo público, que deseja saber qual será o futuro de Mina.
Mas, nenhuma dessas perguntas é respondida. Apenas no desfecho de O
espelho é possível compreender que a temática central da obra é o cotidiano
de uma criança em um set de filmagem.

A cor do paraíso:

A cor do paraíso foi dirigido por Majid Majidí, em 1999.


Mohammed, o protagonista, tem por volta de oito anos, estuda em um
internato para garotos cegos na capital iraniana. Nas férias, as crianças re-
tornam para casa. O pai de Mohammed vai buscá-lo contrariado para passar
as férias junto com a família em uma aldeia distante da capital.
No desenvolvimento do enredo, percebe-se que Mohamed é muito querido
pelas irmãs – Bahare e Hanie – e pela avó paterna; a mãe das crianças faleceu há
alguns anos. São comuns as cenas em que ele brinca alegremente com as irmãs
na paisagem campestre e passeia com a avó, que o ensina a reconhecer as plantas
por meio do toque. A imagem abaixo ilustra o menino divertindo-se no campo.

Figura 3 – Mohammed sorri enquanto passeia na


paisagem campestre junto com as irmãs e a avó

70
Contudo, as atitudes de desprezo do pai, especialmente o olhar de fú-
ria dele para Mohammed, demonstram o quanto se sente contrariado pela
presença do menino no seio familiar. O pai de Mohammed deseja casar-se
novamente e acredita que se a família da noiva souber da existência do filho
cego não permitirá o casamento. Por isso, deseja afastar o garoto da convi-
vência familiar a qualquer custo.
A alegria estampada no semblante do menino sinaliza como ele se sente
acolhido e estimado pela família. Apesar de, às vezes, identificar o distan-
ciamento do pai, Mohammed não o repele. Ao contrário, quer estar junto
dele e compartilhar suas experiências – por exemplo, quando o pai chega
com horas de atraso ao colégio interno para buscá-lo, Mohammed abraça-o
feliz, e, durante o percurso para casa, no ônibus de viagem, mesmo o pai o
tratando com frieza, o menino tenta estabelecer um diálogo.
Para afastar o filho de casa, o pai de Mohammed abriga-o na casa de um
carpinteiro cego, que lhe ensinará o ofício. O menino sente muita tristeza,
pois acredita que ninguém gosta dele e terá que viver sempre isolado da fa-
mília. Em razão do afastamento, a avó de Mohammed falece. Após o enterro,
a família da noiva do pai do menino desfaz o noivado, alegando que a morte
repentina da senhora – eles desconheciam os fatos sobre Mohammed – era
sinal de mau agouro no casamento.
Infeliz e com remorso por se sentir responsável pela morte da mãe, o
pai de Mohammed busca o filho, reconduzindo-o à casa da família; porém,
devido a uma chuva torrencial, a ponte de madeira desaba com o peso do
cavalo que transporta Mohammed e tanto o animal quanto o menino são
arrastados pela forte correnteza do rio em que caem.
Desesperado, o pai joga-se no rio para tentar resgatar o menino. Na se-
quência, o pai acorda em uma praia; a seu lado, está o corpo do filho.
A cena final é comovente: o pai chora, ajoelhado, abraçado ao corpo
do menino. Do céu, desce uma luz brilhante que ilumina a mão do garoto,
representando a morte dele. O garoto cego, que conhecia o mundo apenas
pelo tato; conheceria “a cor do paraíso”, conforme ilustra a imagem a seguir.

71
Figura 4 – A mão de Mohammed iluminada, simbolizando a morte do garoto

Cabe ressaltar que o cineasta é islâmico e, no Irã, todos os filmes devem


se adequar a um regimento firmado no país, sob pena de severa censura. No
islamismo, vigora o entendimento de que há um Deus criador do Universo.
Deus é uma energia brilhante. Por não ser matéria, não é visto pelos olhos
materiais, mas percebido pela sensibilidade humana. Deus concede às boas
pessoas, especialmente, àquelas que superaram intensos sofrimentos em
vida, o direito de viver no paraíso (local de paz e serenidade permanente)
após a morte.
Dessa forma, a última cena do filme afigura uma delicada metáfora. O
menino cego não via as cores do mundo material, mas o sentia com as mãos.
Depois de morto, sua mão pueril atrai a cor brilhante do paraíso no qual, su-
gestivamente, viverá ao lado da mãe e da avó já falecidas, que tanto o amavam.
O cineasta Majidí, por ocasião do prêmio recebido no Ibn Arabi Film
Festival, em 2010, pelo conjunto de sua obra, em entrevista a Pablo Beneito,
fez a seguinte declaração sobre A cor do paraíso:
En El color del Paraíso vemos cómo el niño, a pesar
de no poder más que palpar el mundo que lo rodea, es
capaz de captar la verdad de la existencia. Palpa las flo-
res, palpa el trigo, y comprende el sentido de la belleza.
Sin embargo el padre, a pesar de ver, no percibe nada
de esa belleza. Transforma la belleza en negrura, como

72
carbonero que es. De modo que no tiene ninguna per-
cepción de la belleza. Puede decirse de alguna manera
que el auténtico ciego es el padre, no el niño. (2010, p.14)

Assim, o enredo de A cor do paraíso evidencia que Mohammed, apesar do


infortúnio da cegueira, apresenta-se como uma criança feliz, expressa enorme
vitalidade e enfrenta os desafios assertivamente. O pai do protagonista, no
entanto, independentemente de sua condição física favorável, recua diante
dos desafios e aniquila a vida da mãe e do filho.

Considerações finais

Neste trabalho procurou-se explicitar como são construídas as metáfo-


ras em três filmes de singular importância na cinematografia iraniana. São
eles: Onde fica a casa do meu amigo? (1987), de Abbas Kiarostami; O espelho
(1997), de Jafar Panahi; A cor do paraíso (1999), de Majid Majidí.
Por meio da análise dos filmes, percebeu-se que Kiarostami ressalta a
solidão vivida pela criança, apartada dos diálogos no seio familiar e também
na coletividade; Panahi destaca as dificuldades da criança que vivencia uma
agenda profissional em um set de filmagens; Majidí evidencia o drama da
criança especial (no caso do filme, cega) discriminada pelo pai, que se sentia
envergonhado do filho.
Com essas análises, é possível afirmar que Kiarostami, Panahi e Majidí
utilizam o recurso metafórico com primazia para trazer à luz questões mar-
cantes na vida das crianças, em especial, crianças iranianas.

73
Referências

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tes: Salime Feizi, Elham Sharifi, Farahnaz Safari e outros. Irã. 1999.
90 minutos, sonoro, colorido. Dublado. Português. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=qj_AKOq7mcA. Acesso em: 10
de janeiro de 2019.
ALCORÃO. Desenvolvido pelo Centro Cultural Beneficente Árabe Islâmico
de Foz do Iguaçu. Disponível em: www.islam.com.br. Acesso em 10 de
dezembro de 2018.
AUMONT, Jacques e outros. A estética do filme. Trad. Marina Appenzeller.
Campinas: Papirus, 1995.
BENEITO, Pablo. El cine de la naturaleza original: la alquimia de la imagen
em Majid Majidí. Arte y politicas de identidad. Murcia, v. 3, n. 2, p.
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BLIKSTEIN, Izidoro. Técnicas de comunicação escrita. São Paulo: Ática, 2002.
COGGIOLA, Osvaldo. A revolução iraniana. São Paulo: UNESP, 2008.
ENCICLOPEDIA IRANICA. Desenvolvida pela Universidade de Colúmbia.
Disponível em: <http://www.iranicaonline.org>. Acesso em: 30 de
junho de 2017.
HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. Trad. Marcos Santarrita.
São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
HOWARD, David e MABLEY, Edward. Teoria e prática do roteiro: um guia
para escritores de cinema e televisão. Trad. Beth Vieira. São Paulo:
Globo, 1999.
JULLIER, Laurent e MARIE, Michel. Lendo as imagens do cinema. Trad.
Magda Lopes. São Paulo: Senac, 2009.
LEWIS, Bernard. O Oriente Médio: do advento do Cristianismo aos dias de
hoje. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Trad. Paulo Neves. São Paulo:
Brasiliense, 2013.
MARTINS, Ferdinando. A censura e o cinema na República Islâmica do Irã.
In: COSTA, Maria Cristina Castilho (Org.). A censura em debate. São
Paulo: ECA/USP, 2014.

74
MELEIRO, Alessandra. O novo cinema iraniano: arte e intervenção social. São
Paulo: Escrituras Editora, 2006.
METZ, Christian. A significação no cinema. Trad. Jean Claude Bernardes. São
Paulo: Perspectiva, 2006.
O ESPELHO. Direção, produção e roteiro de Jafar Panahi. Intérpretes: Aida
Mohammadkhani, Kazem Mojdehi, Naser Omuni e outros. Irã. 1997.
95 minutos, sonoro, colorido. Legendado. Português. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=peTqzmY0bCo&t=2s. Acesso em:
20 de dezembro de 2018.
ONDE FICA A CASA DO MEU AMIGO? Direção e roteiro de Abbas Kiaros-
tami. Produção de Ali Reza Zarrin. Intérpretes: Babek Ahmed Poor,
Kheda Barech Defai, Biman Bouafi e outros. Irã. 1987. 90 minutos,
sonoro, colorido. Legendado. Português. Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=EstZtXbcZHA. Acesso em: 10 de janeiro de 2019.

75
M
A criatividade e a narrativa como
experiência. Estética e leitura
vistas pelo design
Michaella Pivetti

Neste artigo procuro destacar algumas definições que fundamentaram as


propostas de “A fantasia, o design e a literatura para a infância”1 para ensaiar
novas hipóteses de trabalho, a partir da seguinte questão:
Como configurar um estudo da criatividade nos livros de infância que con-
sidere também a dimensão da leitura?
Uma análise de tipo estético e material, portanto, e também cultural e
histórica, uma vez que, considerando a forma tangível da obra literária e
seus usos, é preciso levar em conta o sistema social e político em que os há-
bitos de leitura acontecem, principalmente em contextos de formação. Um
estudo que relacione processos cognitivos e psicológicos, apreendidos na
modernidade do século XX e revistos segundo as transfigurações do atual,
pelos quais poder observar a construção do imaginário na relação com os
objetos e o mundo. Uma revisão dos fenômenos da linguagem para dar conta
de compreender, no paradigma tecnológico, os vieses estéticos e pedagógicos
com que os livros de infância dialogam. Ou mesmo, uma revisão do sentido
de literatura na contemporaneidade para conseguir captar nossa humana
existência, sempre por um mínimo de perspectiva histórica e social, em
tempos em que parecemos patinar em um estado transitório de tudo. Esses,
alguns cenários para uma possível configuração.
Entre o poético, a ciência e o método, o trabalho sobre uma gramática

76
contemporânea da fantasia para leitura de livros ilustrados, apresentado
em meu livro, tangenciou alguns dos universos mencionados, à procura de
referências para um denominador estético comum, a literatura, e fazia isso
a partir do design – um campo que, tradicionalmente, opera na articulação
de saberes diversos (ARMSTRONG, 2015).
Recompondo determinada noção de fantasia, originariamente encontrada
em Gianni Rodari (“Gramática da fantasia”, 1973) e Bruno Munari (“Fanta-
sia”, 1977), como conceito de criatividade que segue por princípios lógicos, o
trabalho apresentava a fantasia como conjunto crítico analítico para leitu-
ra de obras da literatura para crianças e jovens, especificamente, os livros
ilustrados, propondo quatro categorias que verificava de maneira ensaística
em livros selecionados da produção internacional contemporânea. Para o
trabalho, a fantasia passa a ser a criatividade posta em ação pelo dar-se a ver
das obras, materializada pelos livros, e interpretada pelo design.
A análise se desenvolvia com base na ideia central de projeto que, defini-
ção própria do design, tornou-se princípio norteador na relação conceitual
e metodológica com a literatura. Na compreensão de poética como projeto,
encontrada para definição do romance moderno (ARRIGUCCI, 2018), estabe-
lecia conexões com a estratégia narrativa de Eco, os princípios da construção
fantástica de Todorov, ou a leitura das fábulas, em Vigotski. Escolhidos para
servir de objeto dessa leitura da fantasia-criatividade, por corresponderem a
uma tipologia estética que expressa bem a “escrita” artística contemporânea,
os chamados álbuns ou livros ilustrados: criações de feitura híbrida, entre
signos, linguagens e materialidades, que incorporam a característica fluidez
de e entre suportes do paradigma tecnológico do século XXI, ao mesmo tempo
que trazem em si o passado, no caso, a tradição narrativa mais arcaica, como
fábulas e contos populares. Pelo fio condutor do planejamento gráfico-nar-
rativo desses livros, a análise desenvolvia-se a partir da definição de poética
visual que, no entendimento de poética como projeto, passa a ser entendida
como a estratégia narrativa da obra – conceituação fundamental do trabalho.

77
Os livros ilustrados

Os chamados álbuns, ou picturebooks, são aqueles livros em que a estética


visual prevalece, não somente pela quantidade de imagens ou figuras – o que
não exclui a importância do signo verbal – mas, e sobretudo, em termos de
composição narrativa. Há também os casos em que o texto escrito desapare-
ce, como nos livros só de imagens, conhecidos como silent books, ou textless
picturebooks (TERRUSI, 2017b, p. 31). Estes levam ao extremo a problemática
narrativa pela semiótica não linguística, uma vez que o papel de narrar é re-
servado inteiramente às imagens (PIVETTI, 2019, p. 217)2. Posto, então, que,
com ou sem figuras, a estratégia narrativa dos livros ilustrados se constrói
por meio do visível que, trabalhando com enunciados de diferentes nature-
zas, projeta a composição da obra literária para o campo perceptivo, passei
a considerá-los objetos narrativos ou literários. Nesse recorte, não estavam
incluídos álbuns de viagem, foto-livros e livros de artista em seu sentido mais
estrito: justamente por fugirem à condição de ser literário do objeto livro.
Os livros ilustrados implicam uma leitura múltipla, tanto mais complexa
quanto for o trabalho de composição narrativa, caracterizada pela concor-
rência de signos, códigos e figurações, com ampla possibilidade de variação
de repertórios estéticos. Em razão da característica “crossover” que em ge-
ral define as obras, ou seja, permitir níveis diversos de leitura e portanto de
tipos de leitores, fatores cognitivos, de experiência e de cultura dependem,
primeiramente, da faixa etária de quem lê, mas não somente. Uma leitura
para cognição de crianças já alfabetizadas, que pode acontecer sem interlo-
cução dos adultos, nesse caso, variando o fator de maturidade, e mediada,
quando adultos se dispõem a “traduzir” o que leem ou veem, subsidiando
ou colaborando com a experiência do leitor implícito original da literatura
para a infância: a criança. Há também projetos pensados para uma leitura
pré-alfabetização, ou anterior ainda, a literatura para bebês, por exemplo,
em que, explorando aspectos de plasticidade e tato, a condição de ser obje-
to do livro funciona como um dispositivo ativo da vivência poética, que só
pode ser chamada assim em termos ontológicos – a experiência de leitura
acontecendo ao redor da linguagem. Ainda, dependendo dos contextos, a
mediação pode acontecer entre adultos, como nos processos de formação de

78
professores ou em leituras para dinâmicas terapêuticas, quando a literatura
entra no campo da saúde.
Configurando um caminho fluido entre a estética e o leitor, o leitor crian-
ça – seja ela real, interior (do adulto) ou em potência (linguagem) – a força
poética e o fascínio que esses livros exercem são em todo caso marcados por
essa condição “crossover”, pois como afirma Sandra L. Beckett (2013, p. 95):
“livros ilustrados que cruzam as fronteiras de idade constituem uma das
mais excitantes áreas da literatura contemporânea”, o que define, também,
as características de sua tipologia na experiência da leitura.
Como toda obra literária, o álbum ilustrado é tam-
bém uma “obra aberta”, ou seja, enquanto de um lado
postula a intervenção da interpretação liberta do leitor
(nas modalidades de completude do significado por in-
ferência do leitor, chamada de closure), do outro exibe
características próprias, de estrutura formal e especifici-
dade comunicativa, capazes de guiar, acolher e suscitar
a experiência da leitura. (TERRUSI, 2017a, p. 94, trad.
nossa, In: PIVETTI, 2019, p. 116)

De todo modo resultando em um processo sofisticado (no sentido de


articulado), a complexidade estética que deriva da experimentação e inter-
secção de linguagens, geralmente central no projeto narrativo desses livros,
ao mesmo tempo que atrai, eventualmente, inibe – como é possível verificar
entre os educadores, sejam eles professores ou pais. Um aspecto que parece
problematizar ao extremo o princípio de “obra aberta”, destacado por Terrusi
e outros autores. O recriar do leitor, a partir da obra, acontece, por vezes,
completamente à deriva da literatura: não apenas por caminhos estranhos
ao universo ficcional, pela memória ou arredores da ficção, como processo
inerente e comum na experiência da leitura, mas na atribuição de sentidos
ou funcionalidades que evidentemente extrapolam o âmbito do literário. Uma
abertura particularmente ampla que a partir dos aspectos estéticos de cria-
ção traz questões para a formação do leitor literário, como sugere o aspecto
do letramento visual em processos formativos, destacado anteriormente.
Nessa ponte entre estética e leitura, a abertura e a condição “crossover”
das obras contemporâneas, representadas pelos livros ilustrados, constituem

79
aspecto importante na análise da criatividade, segundo o recorte da poética
visual como estratégia narrativa na leitura da fantasia. Como nos demonstra
Eco, a partir de Collodi, na introdução de “Pinocchio” (p. 120), a ambiguidade
do que chamei em meu trabalho “o interesse de quem” (PIVETTI, 2019, p. 114),
representada pelo aspecto da “dúplice leitura” (LINDEN, 2011) – pelo qual a
obra se dirige tanto às crianças quanto aos adultos – pode ser aproveitada
como recurso valioso que a literatura para a infância permite. No entanto,
na dimensão poética dos livros ilustrados contemporâneos, esse efeito de
ambiguidade da “dúplice leitura”, que pode ser explorado pela estratégia
como recurso criativo de contraponto (NICOLAJEVA; SCOTT, 2011), se di-
lui. O que acontece é mais um jogo múltiplo de contraposições do que um
contraponto nítido de deslocamento, trabalhado intencionalmente sobre a
“dúplice leitura”. Nos livros ilustrados, a fricção entre os tipos de linguagem
concorrentes na composição narrativa, notadamente, visual e verbal, de-
senvolvida na coreografia do universo de cada página, ou dupla de páginas,
desloca a ênfase do recurso estratégico narrativo para a performance estética
visual, esses dois fundindo-se na poética visual. Tal condição, mais do que
uma ênfase na leitura dúplice, indica uma leitura múltipla e transversal de
tipo poético – em correspondência de uma assumida característica “cros-
sover” que possibilita aos autores trabalhar livremente, bastante à margem
das questões de recepção. Estaríamos mais no âmbito da poesia do que do
romance? Assim, a brincadeira em torno do “pacto ficcional”, que a “dúplice
leitura” permite explorar, como demonstrou Eco por meio da famosa criação
collodiana, perde força. Conceitualmente e esteticamente, trata-se de um
vigor entre polaridades opostas que, veremos, interessa particularmente à
gramática da fantasia.
A abertura dos livros de infância não é nova na literatura, sendo sua
matéria poética heterogênea e híbrida por natureza (HUNT, 2010). O que
torna a tipologia picturebooks uma produção de artefatos particularmente
contemporânea é a maneira como acontece a ênfase dada ao trabalho es-
tético-visual, de experimentação plástica, linguagens visuais e suportes, no
paradigma tecnológico e cultural do século XXI: um campo fértil de possibi-
lidades, a partir do qual é possível observar diversos aspectos que envolvem a
literatura, desde criação, produção e leitura. Aparentemente sem restrições

80
formais e com aproximações entre livros de arte e outros gêneros, as oca-
siões de criação que os projetos oferecem são muitas, também em termos de
autoria. Trata-se de uma literatura que atrai um público artístico bastante
eclético, o que amplia a quantidade de iniciativas, em termos de edição e
volume de publicações.
Aqui, é preciso destacar a relevância dos modelos de autoria para a pers-
pectiva do projeto narrativo desses livros, na análise da criatividade: como
se articula, e como se apresenta, uma poética visual concebida por mais vo-
zes? Também sob este aspecto, a tipologia picturebooks parece corresponder
a um padrão bastante contemporâneo, por onde ver a mudança de ênfase
dada aos papéis na criação das obras, atualmente resumível em três mode-
los. Além do tradicional, que corresponde à fórmula da ilustração (artista
visual) encomendada (editor) para seguir a história de um texto (escritor),
existe, de um lado, a figura do “autor-ilustrador”, que, como artista-curador,
articula toda a concepção narrativa no manejo dos diversos tipos de “escrita”.
Segundo Nikolajeva e Scott (2011, p. 33):
Muitos dos casos mais estimulantes de contraponto
entre texto e imagem serão encontrados em livros de um
mesmo autor-ilustrador, que tenha total liberdade para
escolher qual dos dois aspectos do iconotexto levará a
carga principal da narrativa.

Do outro, a dupla-autoria ou dupla de autores, em geral correspondendo


ao escritor e ao ilustrador. Nesse caso, reconhecem-se os domínios distintos
de linguagem concorrentes na obra, como visual e verbal, mas aceitando
sua complementaridade na condição híbrida da composição estética assu-
me-se a necessidade de uma autoria compartilhada, que pode contemplar
até mais de dois autores. Caso de dupla-autoria é o de “A menina dos livros”,
livro ilustrado apresentado por seus dois autores, na 54a edição da Feira de
Bolonha, na Itália.

81
“A menina dos livros”, de Oliver Jeffers e Sam Winston, editado pela Walker Books, ganhou
o Bologna Ragazzi Award 2017 – Fiction, na Itália. Durante a premiação, os dois autores
apresentaram a obra juntos, como resultado de um processo criativo compartilhado (em
2018, o livro foi publicado em edição brasileira, pela Zahar). Na ocasião, a apresentação foi
mediada pela especialista e professora Marcella Terrusi.

Outro aspecto, sempre relacionado ao modo contemporâneo que ca-


racteriza os livros ilustrados e sua feitura, é a qualidade que apresentam
no padrão de edição e gráfico, demonstrando um domínio editorial difu-
so e consolidado internacionalmente nesse tipo de produção, de um lado
apoiado pelos avanços técnicos gerais e específicos (impressão), do outro,
na existência de leitores, ou nichos, cada vez mais familiarizados com esse
universo poético eclético, que o mundo em rede permite conhecer em suas
diversas expressões e recortes. Da criação à leitura, e pela via da produção,
o fator tecnológico contribui para as potencialidades estéticas desses livros,
tornando-os veículos de uma rápida e ampla circulação, em nível global. De
expressões culturais locais em torno da literatura para a infância e jovens,
por meio dos livros difundem-se, também, parâmetros e gostos que se somam
na experiência narrativa dos leitores. Um fenômeno que pode ser observado
em bibliotecas, escolas, livrarias, clubes de leitura, ou, acompanhando a pro-
gramação das feiras – desde as internacionais àquelas da chamada produção
editorial independente.3

82
Diante desse cenário de experimentação e intensa produção de artefatos
bem feitos, cabe investigar como se coloca a criatividade em termos críticos, de
originalidade narrativa e de inovação literária, que o design permite observar.

O processo crítico da fantasia

Neste ponto, chega-se ao tema da criação em arte, aqui representada


pela literatura, que é, também, o tema da originalidade e da invenção. É
neste momento que a revisão da fantasia, partindo das propostas de Munari
e Rodari, trouxe sua contribuição metodológica e crítica para uma análise
da criatividade na literatura para a infância, aplicada aos livros ilustrados –
conforme defendido em meu trabalho.

Esquema de Munari no seu livro “Fantasia”, publicado em 1977.

Munari categoriza e põe em relação quatro faculdades humanas referentes


ao processo criativo, que seriam ativadas pela inteligência e pela memória
(PIVETTI, 2019, p. 83), segundo o esquema acima (MUNARI, 1995, p. 19): a
fantasia, a invenção, a criatividade e a imaginação.
Fantasia. Tudo aquilo que anteriormente não existia, ainda que irrealizável.
Invenção. Tudo aquilo que anteriormente não existia, mas exclusivamente
prático e sem problemas estéticos.
Criatividade. Tudo aquilo que anteriormente não havia, mas realizável
de uma forma essencial e global.
Imaginação. A fantasia, a invenção, a criatividade pensam, a imaginação vê.
O autor caracteriza a fantasia como “a faculdade mais livre de todas” —

83
definição em consonância com a potência poética da literatura de e para
a infância. Mas Munari também afirma que a imaginação “vê” e a fantasia
“pensa”, juntamente com a invenção e a criatividade, e é partir daí que ele
oferece a chave para uma leitura crítica. Ao definir uma distinção entre dois
termos que normalmente se confundem – o da fantasia e o da imaginação
– ele estabelece para a fantasia um caráter operativo de grande valia para
análise do trabalho estético de linguagem a partir do imaginário literário,
especialmente aquele da literatura infantil. A faculdade fantasia, cuja potên-
cia criativa se confunde com a potência evocativa da palavra que a nomeia,
ressignificando o vir a ser poético de infância e da arte, passa, então, a operar
pela lógica de uma razão criativa.
Rodari, o “pai” da fantasia – tendo investigado sobre ela durante anos,
em sua atividade de escritor e educador – fundamenta essa noção lógica já
no início do seu livro “Gramática da fantasia. A arte de inventar histórias”,
provocando o leitor com a citação de Novalis: “Se tivéssemos uma Fanta-
sia assim como temos uma Lógica, estaria descoberta a arte de inventar”
(RODARI, 1982, p. 9). Rodari apresenta o sentido de um operar criativo da
fantasia, conferindo-lhe um papel ao mesmo tempo transgressor e crítico,
por exemplo, a partir do conceito de “binômio fantástico” (RODARI, 1982,
p. 20), associável ao principio de deslocamento (PIVETTI, 2019, p. 136) das
vanguardas modernas. A palavra “gramática” assume um caráter jocoso,
provocador, quando associado a “fantasia”: a sisudez da primeira palavra em-
prestando seriedade científica ao sentido anárquico da segunda. Brincando
com as palavras, desde o título, o autor revela o espírito que move suas ideias
a respeito da literatura e das crianças, por meio do jogo e da invenção, ao
mesmo tempo que fornece pistas sobre a filiação conceitual e artística dessas
ideias. O vigor da interpretação rodariana pode estar resumido no efeito que
o oximoro provoca até hoje: o sentido paradoxal da associação de “gramática”
com “fantasia” aguça a curiosidade de quem ouve ou lê, renovando o efeito
de estranhamento da estratégia original.
Prosseguindo nas definições ao redor do processo criativo, Munari afirma
que a criatividade representa um uso finalizado da fantasia e que, por isso, no
campo do design, serve para projetar (MUNARI, 1995, p. 22). Assim, soman-
do-se à noção de projeto aquela de gramática, o ciclo conceitual e metodo-

84
lógico da minha proposta se fecha. Se a fantasia pensa, é lógica e operante,
a ponto de ser possível identificar os caminhos de sua construção, tanto na
comunicação visual, quanto na criação narrativa – como os dois autores
irão demonstrar, por meio do exemplo das vanguardas artísticas do século
XX – segundo o meu trabalho, na literatura para a infância ela passa a ser a
própria criatividade posta em ação pelo projeto narrativo. Conceitualmente,
um passo a mais em relação à classificação munariana: entendendo a fan-
tasia como operar estético sobre a linguagem (literária), a fantasia passa a
ser o operar criativo sobre a imaginação – uma vez que a literatura trabalha
com o imaginário. É desse modo que a fantasia, “a faculdade mais livre de
todas”, torna-se um instrumento de análise da criatividade na literatura, ao
mesmo tempo em que se configura como uma proposta de leitura dos livros
ilustrados, como obras da produção contemporânea.

Gramática contemporânea da fantasia nos


livros ilustrados: categorias e leitura

Para a leitura, aplicada a sete obras selecionadas da produção contem-


porânea de livros ilustrados, meu trabalho chegava à contribuição metodo-
lógica e instrumental do conjunto sobre a fantasia, propondo quatro catego-
rias, resultado das análises anteriores do estudo. São estas: experimentação,
transgressão; humor/medo e absurdo.

Experimentação
— Fazer uma coisa de forma diferente para ver no que resulta.
— Fazer uma coisa totalmente nova (invenção).

Transgressão
— Romper com uma ordem estabelecida.
— Deslocar, causar estranheza.
— Negar, do ponto de vista dialético de um contraponto.

85
Humor/Medo
— Provocar riso, sentido de humor.
— Provocar medo, sentimento de espanto ou mesmo terror.

Absurdo
— Provocar perplexidade a partir de situação absurda.

As categorias giram em torno do estranhamento, entendido como prin-


cípio geral da leitura da fantasia nos livros ilustrados. Eixo central da fan-
tasia e da gramática rodariana (RODARI, 1982), que interessa conforme
considerado na seção sobre “O humor, o medo e o estranhamento” do meu
livro (PIVETTI, 2019, p. 137), o estranhamento se relaciona com o conceito
de estranheza, apresentado por Todorov a respeito da literatura fantástica,
transposto às artes visuais pelos movimentos de vanguarda, a exemplo do
surrealismo, conforme o acompanhamento de minhas análises.
Sobre o humor, cheguei ao entendimento que é a partir do deslocamento
na percepção de realidade, representado pelo efeito cômico, que se desen-
cadeia a possibilidade de sua realização, e que tanto humor quanto medo
são reações possíveis ao efeito de estranheza da lógica fantástica. Esse efeito
de estranheza também pode ser causado pela dinâmica do absurdo, que nos
deixa perplexos com o que está sendo representado em determinada com-
posição narrativa. Por fim, a transgressão representa outra possibilidade
de deslocamento, a partir de uma ruptura com o senso comum na maneira
como percebemos as coisas.
De modo geral, observei como a transgressão compartilha com a fan-
tasia um vigor criativo que advém de uma percepção não convencional da
realidade, dos objetos e das relações entre eles. Ponto que Munari e Rodari
têm em comum em suas propostas, ao introduzir uma noção de fantasia que
rompe com o sentido estabelecido das coisas.
A fantasia, ela mesma elemento transgressor, agindo como componen-
te de deslocamento do olhar, se converte em chave de leitura dos aspectos
mais divergentes de estética, linguagem e projeto. Ela não corresponde a um
ponto fixo ou pré-definido, mas a possíveis relações entre os componentes
da estratégia narrativa, que respondem às categorias propostas, como lances

86
de jogo de maior ou menor impacto para o efeito desejado, dentro de cada
universo poético e fabuloso. Com base nos parâmetros dessa gramática,
pautada pelo estranhamento e por algum tipo de transgressão, seria então
possível identificar a fantasia em cada novo contexto de projeto narrativo.
Como instrumental analítico de apoio para realizar a leitura da fantasia,
à luz das categorias propostas, foram considerados também:
1) os padrões de contraponto, de Nikolajeva e Scott (2011);
2) os tipos de diagramação classificados por Linden (2011)4;
3) as relações descritas por Munari para construção visual da fantasia.
Os padrões de contraponto (1) auxiliaram na compreensão da dinâmica
texto/imagens na perspectiva do contraponto, representando noção concei-
tualmente próxima a do “binômio fantástico” proposto por Rodari – corres-
pondendo, por isso, a propósitos construtivos de criatividade que interessam
à fantasia. Esse conjunto ajudou a identificar as possibilidades expressivas
distintas de cada signo, verbal e visual, dentro da composição geral de sig-
nificados. Uma visão que privilegiava a semântica das e entre as estruturas
principais da construção narrativa da obra, representadas pelas páginas ou
conjunto de duplas.
Os tipos de diagramação (2), por sua vez, permitiram observar a compo-
sição global da linguagem por todo o suporte. Agora, era possível perceber
outras relações de composição da estratégia narrativa, a partir da relação
sintática entre os elementos da estrutura de projeto.
Destacava-se como Linden (2011) pretende superar as noções de repeti-
ção, complementaridade ou contradição dos outros autores, propondo três
chaves de classificação, segundo sua própria definição: redundância, quando
há sobreposição total dos conteúdos, em que nada no texto ou na imagem
vai além do outro (isotopia narrativa), ou parcial, em que há congruência do
discurso, mas um deles diz mais que o outro; colaboração, quando, apesar de
acontecer divergência construtiva, cada qual conduzindo a narrativa, ocorre
colaboração de um e de outro signo em preencher as lacunas; e disjunção, em
que textos e imagens seguem narrativas paralelas, entram em contradição
e provocam uma disjunção de conteúdos. De um modo ou de outro, todas
formas de observar um mesmo fenômeno, que é a dinâmica textos/imagens,
ou enunciados verbais e figurativos, na interação dos distintos signos e va-

87
riados códigos gráficos que compõem a linguagem dos livros ilustrados, em
que cada “objeto narrativo” convoca leitura própria.
Constituindo o ideário figurativo da fantasia de Munari, o conjunto de
relações apresentado por ele, em “Fantasia”, correspondia às seis operações
mentais que o autor considera possíveis para uma construção fantástica,
“colocando em relação os dados conhecidos” nas operações feitas por nossa
memória, conforme ele próprio define (MUNARI, 1995, p. 34, trad. nossa):
1) Relação de inversão. Inverter uma situação, pensar o contrário, o oposto
(como se diz: “o mundo de cabeça para baixo”).
2) Relação de repetição. Repetir sem mutações alguma coisa. Muitos em
vez de um. Todos iguais ou com variações.
3) Relação de sentido. Relações entre afinidades visuais ou funcionais.
Por exemplo: perna da mesa = perna de animal.
4) Relação de troca ou substituição de alguma coisa. Troca de cor, de peso,
de matéria, de lugar, de função, de dimensão, de movimento etc.
5) Relação de várias coisas entre si. Relacionar várias coisas diferentes,
torná-las uma única coisa, representável nas artes visuais, no desenho, na
pintura, na escultura, no cinema – “como os monstros”, diz Munari.
6) Relação das relações. Uma coisa que é o contrário de outra, mas está
num lugar que não é o seu, trocando de matéria e de cor.

88
“Tríptico das delícias”, de Hieronymus Bosch, Museo do Prado, Madrid.
Exemplo reportado por Munari (1995, p. 119) em “Fantasia”,
como composição complexa da “Relação das relações”.

As relações encontram referência na figuração popular e artística, como


o próprio Munari apresenta em seu livro. Por exemplo, a relação de repetição
pode ser vista em alguns desenhos dos limeriques de Lear, analisados no meu
livro, ou na pop art, como no retrato de Marylin Monroe (Marilyn Diptych,
1962) de Andy Warhol, repetido em cores diferentes em técnica de alto con-
traste. Já a relação de troca ou substituição de alguma coisa é identificável
em algumas composições surrealistas, como “Le Château des Pyrénées”
(1959), de René Magritte, e “A persistência da memória” (1931), de Salvador
Dalí. Os “monstros” do quinto caso, a relação de várias coisas entre si, podem
ser identificados nos animais fantásticos do bestiário medieval — espelho
importante de uma cultura do imaginário ocidental de que falam tanto Ba-

89
khtin (2011) quanto Le Goff (1988) —, nas figuras grotescas da pintura orna-
mental renascentista, bem como em algumas figuras híbridas encontradas
na tradição cultural de regiões do Brasil. Por fim, a relação das relações, em
que são operados vários níveis de deslocamento de forma e sentido, pode
corresponder à complexidade das pinturas do artista holandês Hieronymus
Bosch (século XV) ou aos retratos do italiano Giuseppe Arcimboldo (século
XVI). Nesse caso, a complexidade da composição demanda do observador,
ou “leitor”, um tempo de “circum-navegação” proporcional à elaboração
estética, como se vê na modalidade narrativa da “divagação” e Eco (2007).
Apesar de o quadro de Munari não se referir, especificamente, à estru-
turação de um contexto narrativo, mas a uma figuração da fantasia que se
resolve apenas pelas imagens, diferentemente do que acontece nos padrões
de contraponto de Nikolajeva e Scott e nos tipos de diagramação de Linden,
foi possível estabelecer correspondências interessantes entre esses repertó-
rios analíticos. Por exemplo, entre a composição complexa da relação das
relações de Munari, entendida como imagem, e a tipologia indicada por
Linden, da diagramação por conjunção — em que “os diferentes enunciados
se organizam de modo coerente numa composição única que poderia ser
comparada à do cartaz” (LINDEN, 2011, p. 70). Ao redor de um cartaz, ou de
uma tela de Bosch, a circum-navegação ocorre em torno de um “discurso
mais poético do que narrativo”, circunscrito no universo poético-perceptivo
das páginas isoladas, mais do que na leitura do objeto narrativo em sua to-
talidade temporal e espacial. Ficava deste modo reforçada a distinção entre
“poético artístico” e “poética visual do projeto”, na ponte entre moderno e
contemporâneo, que a correlação entre os modelos de Munari e de Linden
permitia observar.
A condição de complexidade do exemplo munariano, em que são exigidos
diferentes repertórios e um certo tempo de circum-navegação para percep-
ção e “leitura” de uma obra, remete ao aspecto da leitura “sofisticada” dos
livros ilustrados, interessando à análise do projeto gráfico-narrativo. Como
observado inicialmente neste artigo, a leitura desses livros permite diferentes
níveis e camadas, de certa forma proporcional ao “treinamento” percepti-
vo-narrativo ou narrativo-perceptivo do leitor, condicionada por fatores de
maturidade cognitiva bem como de experiência, inclusive estética e cultural:

90
o exercício da leitura em sentido amplo (mediado ou não), de que faz parte
o letramento visual.
Ao modelo do “cartaz”, entre Munari e a diagramação por conjunção de
Linden, reportava-se também o contraponto de natureza metafictícia de Ni-
kolajeva e Scott, em que sentidos diversos são trabalhados por meio da figu-
ração a partir do recurso da simultaneidade das mensagens e dos discursos,
dentro de uma mesma composição – casos em que podem ser exploradas as
“possibilidades de enquadramento múltiplo, com isso implementando com
sucesso os desafios mais ousados da estética ‘pós-moderna’” (NIKOLAJEVA;
SCOTT, 2011, p. 44), relembrando o que dizem as autoras. É desse modo que a
construção por imagens munariana refletia-se na diagramação por conjunção
de Linden e, pela leitura dos contrapontos de Nikolajeva e Scott, retomada
como forma compositiva gráfica da tipologia contemporânea — nos livros
ilustrados, correspondendo a uma dimensão de narratividade pós-moderna
[“Tais diagramações são características da produção dos últimos dez anos”,
confirma Linden (2011, p. 70)]. Nesse tipo de representação, em que cada
virada de página pode corresponder a um universo narrativo autônomo,
tem-se duas possibilidades: ou a diagramação se torna ela mesma imagem,
ou as imagens constituem os elementos mais importantes da narrativa.
Assim, relacionando essas noções e conceitos, traduzia-os, literalmente,
em imagens, concluindo que a fantasia não estaria no “monstro” de confi-
guração híbrida e “fabulosa”, mas na hibridização das linguagens circuns-
critas em um mesmo plano do suporte, em que diversas narrativas, e seus
respectivos enunciados, estão suspensos por um fio de efabulação difuso.
Considerava que nessa narratividade múltipla, o vigor da fantasia também
se dilui, formulando que a fantasia contemporânea nos livros ilustrados po-
deria ser justamente esta: a de “fingir” que se está narrando, no sentido mais
tradicional. Na composição de uma história a várias vozes, não raro inde-
pendentes entre si e em contradição, a narrativa fica, explicitamente, como
uma questão em aberto. Uma análise em sintonia com as considerações de
Linden (2011, p. 121) sobre a relação de disjunção: “A contradição flagrante
questiona o leitor, mas, ao contrário do distanciamento ‘causador’ de ironia
[nonsense, por exemplo], deixa em aberto o campo das interpretações sem
que o leitor seja orientado para um sentido definido”. Essa é a condição da

91
poesia, qualidade que se impôs em meu trabalho como variante a ser consi-
derada no conjunto das categorias para análise da fantasia.

A leitura e a narrativa como experiência

Para tentar esclarecer o sentido do que possa ser uma perspectiva global
de projeto narrativo, relaciono-a com a ideia de narrativa como experiência
(PIVETTI, 2019), lançada apenas em meu livro, mas na qual tenho pensado
e que me parece estabelecer um bom diálogo com o tema da formação do
leitor literário – sempre a partir dos mesmos objetos, os livros ilustrados, e
da noção central de poética como projeto, conforme descrito até agora, no
caminho da fantasia.
As análises consideravam a criação estética observando em conjunto os
elementos e aspectos da linguagem que concorrem ao construto poético final.
Na hipótese de uma perspectiva global de projeto narrativo, olhar de forma
global corresponde a ir para a outra ponta da narrativa, aquela da experiên-
cia de leitura, o que acrescentaria, às análises sobre a fantasia-criatividade,
a observação dessa experiência. Em uma tal perspectiva de projeto, não
somente a materialidade do livro conta, mas, também, as tantas dimensões
com que é possível relacionar-se com a literatura.

Em maio de 2018, conforme anotações pessoais que tomei como ouvinte,


em seminário realizado na PUC-SP5, logo que terminei meu trabalho sobre a
fantasia, Maria José Palo distinguia entre narrativa, voltada para ela mesma,
sob o olhar estético, e o livro, voltado para o leitor, afirmando que o livro tem
o projeto narrativo incorporado à sua lógica em busca de uma totalidade. Uma
definição que, segundo minha perspectiva, reforçava o sentido do meu estudo.
Nos livros ilustrados, o design ajuda a compreender como se realiza a
“lógica em busca de uma totalidade”, aproximando a narrativa ao livro. Essa
aproximação é também aquela com a leitura, que completa o ciclo de uma
experiência maior. Pensando, então, em termos de “dentro” e “fora” da nar-
rativa, mais do que em uma distinção entre esta e o livro, é possível alargar o

92
sentido, e entender a narrativa, também, como experiência. Nesse caso, seria
necessário fazer o caminho inverso e olhar para os livros de “fora” para “dentro”.
A narrativa parece representar o fio condutor sobre o qual se medem as
mudanças na concepção estética entre o passado e o presente da dimensão
literária, inclusive ao carregar os traços de uma oralidade mais antiga, ou até
de certa corporalidade. No processo de intercâmbio silencioso entre o a obra e
o leitor, a narrativa se estende para fora dos livros, deixando vestígios múlti-
plos de seu projeto, para além das dimensões ficcionais ou materiais do livro.
Em escala maior, a narrativa constitui a relação de experiência da literatura,
também nas dimensões sociais de história e cultura. Essa experiência pode ser
dividida em duas instâncias, que a visão do como do design ajuda a observar.
A primeira é relativa à criação estética, propriamente dita, correspon-
dendo à relação obra-leitor pela via dos “textos” em seu sentido amplo. A
segunda, à relação obra-leitor no contexto externo à narrativa, de que faz
parte a condição material e fenomenológica da experiência, desde a relação
do indivíduo com o objeto que dá corpo à obra, o livro (ou outros supor-
tes), aos outros fatores e aspectos que a compõem. Para o conjunto dessas
dimensões, material, fenomenológica e social, são observáveis as práticas
de leitura, documentadas pela historiografia dos livros, ou os registros de
pesquisa experimental em processos de formação e ambientes de circulação
de livros, em espaços e contextos determinados.
Segundo exposto no início, mesmo que um estudo da criatividade, como
o proposto pela gramática contemporânea da fantasia, se concentre nos
aspectos internos da narrativa, relacionados à poética visual da obra, é
condição própria do design considerar as dimensões de produção, uso, con-
textos e práticas dos objetos, implícitas na perspectiva de projeto: conjunto
particularmente importante para os livros de infância. Assim, a gramática
da fantasia, que se tornasse também uma pragmática para processos de
formação, poderia contribuir tanto aos propósitos de uma análise observa-
cional quanto crítica a respeito da formação do leitor literário. É com base
nesse quadro que aqui se considera a experiência leitora como extensão da
narrativa e, por isso, parte mais ampla da totalidade do projeto narrativo,
que do livro se estende ao leitor.

93
Hipóteses críticas

Sempre a partir do design, segundo a noção da poética visual como es-


tratégia narrativa, proposta em meu trabalho, a imanência poética e a in-
tencionalidade do projeto gráfico se complementam em uma mesma noção
de projeto, na medida em que obra (narrativa) e livro, também se comple-
mentam – não porque sejam a mesma coisa, mas porque a leitura da obra
literária, em um livro ilustrado, acontece por articulações poéticas feitas a
partir do tangível-visível ativado pelo leitor. Segundo a perspectiva de uma
análise crítica feita estritamente do campo da teoria literária, principalmente
pelo viés filosófico, mesmo a funcionalidade do design estando a serviço do
poético, como o percurso até aqui sinalizou, a condição narrativa do objeto
afasta, mas não elimina, a hipótese de uma irredutibilidade entre as condi-
ções de imanência e de intencionalidade6. No entanto, pela lógica da “busca
da totalidade” do projeto narrativo, a complementaridade estética, de lite-
ratura e design, em um livro ilustrado, valida, no plano crítico, uma análise
da criatividade da obra literária a partir do objeto. Na hipótese da narrativa
como experiência, seria possível estender essa validade crítica em torno de
uma estética de projeto mais global que incorporasse a dimensão de leitura,
buscando fundamentação em outros campos interpretativos.
O início deste artigo especulava sobre as possíveis dimensões de confi-
guração para um estudo da criatividade que considere a dimensão da leitura
em uma interpretação global do projeto narrativo. No esforço de identificar
aspectos em diálogo com o tema da formação do leitor literário, a partir de
interesses atuais, profissionais e de estudo, as incursões deste texto tangen-
ciaram algumas dessas dimensões, para isso, trilhando os percursos meto-
dológicos e críticos do meu trabalho sobre a gramática contemporânea da
fantasia para os livros ilustrados. Reafirmando as potencialidades analíticas
do design, para o campo da literatura para a infância – propus alargar a con-
cepção de projeto narrativo, da noção de totalidade a uma perspectiva mais
ampla, que a partir da dimensão estética chegue a da leitura.
Em meu livro, “O design, a fantasia e a literatura para a infância”, foi
observado como, por meio de uma determinada noção de fantasia e de gra-
mática, pela qual fazer uma análise da criatividade, podem ser identificados

94
padrões que, por sua vez, dão visibilidade a modelos de pensamento e cultura,
com base nos quais se engendra o motor e o fazer criativo de cada época.
Considerada pela arte e pelo design, a criatividade-fantasia é conceito, tem
forma e corresponde a um tipo de linguagem, cuja gramática se renova con-
forme fatores estéticos e culturais; ela também serve como método, como a
leitura de livros ilustrados quis demonstrar, permitindo analisar a narrativa
em sua dimensão de projeto estético, pelos caminhos da poética visual. Na
outra ponta, segundo a narrativa como experiência, noção retomada por este
artigo, a fantasia pode se traduzir em método para processos de mediação
e formação de leitores literários, permitindo observar o projeto narrativo
também na dimensão da leitura. É com a finalidade de estender um padrão
crítico de análise, ao redor do conceito de fantasia, que proponho olhar para
o projeto narrativo nessa perspectiva que chamei aqui de global.

95
Notas

1  Título do livro publicado em 2019, pela editora Limiar. O trabalho sobre uma
gramática da fantasia para os livros ilustrados é resultado de estudo de douto-
rado desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Design e Arquitetura da
FAUUSP, defendido como tese em 2018, sob a orientação da Profa. Dra. Clice de
Toledo Sanjar Mazzilli. Em setembro de 2019, “A fantasia, o design e a literatura
para a infância” foi apresentado no Ciclo de Palestras “Narrativas e Enigmas
da Arte”, a convite da Profa. Dra. Maria Zilda da Cunha, líder do Grupo de Pes-
quisa Produções Literárias e Culturais para Crianças e Jovens e coordenadora
da área de Literatura Infantil e Juvenil, do Departamento de Letras Clássicas e
Vernáculas da FFLCH.
2  Segundo Pino Boero, estudioso italiano de referência de literatura infanto-
-juvenil, o empenho de confiar a narração somente às imagens apresenta um
caráter educativo, que é o de “alfabetizar” o leitor no campo das figuras. Aspecto
que me parece interessante destacar quando se fala em leitura, pois o esforço de
“ler” a narrativa por imagens é diretamente proporcional ao esforço de “narrar”
por imagens. Ao falar em formação do leitor literário, é preciso considerar essa
noção de letramento visual que os livros só de imagens trazem, como componen-
te importante na experiência entre obra e leitor, que mais adiante vou chamar
experiência da narrativa.
3  Eu mesma, mãe de filhos em idade escolar, venho acompanhando essa relação
estética com os livros ilustrados há alguns anos, por meio do estudo e da troca
com editores e bibliotecários. A observação direta, em processos de formação de
professores, em escolas públicas e particulares, confirma, de maneira mais espe-
cífica, o que minha prática profissional como designer, e docente, me sinalizam
há mais tempo: 1) o letramento visual é complexo, mas se ensina e se aprende; 2)
como todo conhecimento de caráter interdisciplinar, e articulado entre a técnica
e a estética, o letramento visual contribui para uma compreensão da linguagem
mais ampla, desde que inserido no contexto maior em que atua – neste caso, o
narrativo e o literário. O papel formativo dos livros ilustrados, mencionado por
Boero, com o exemplo dos livros só de imagens, é justamente esse.
4  Os repertórios analíticos de contraponto (sete categorias), de Nikolajeva e Scott
(2011), e de diagramação (quatro tipos), de Linden (2011), conforme descritos

96
no terceiro capítulo do meu livro.
5  “I Jornada da Literatura de Infância: linguagem”, realizada pelo Grupo de
Pesquisa “A voz escrita infantil e juvenil: práticas discursivas”, do Programa de
Estudos Pós-graduados em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP, do qual,
hoje, faço parte, como pesquisadora integrante.
6  Devo a oportunidade dessa reflexão crítica, a partir de conversa que tive com
a Profa. Dra. Maria José Palo, líder do Grupo “A voz escrita infantil e juvenil:
práticas discursivas”, quando tive o prazer de convidá-la para apresentar uma
palestra no Seminário “Design dos livros ilustrados como projeto interdiscipli-
nar”, evento que organizei, na FAUUSP, em outubro de 2018, pelo Programa de
Pós-Graduação em Design. Em seguida à defesa da minha tese, as interlocuções
com Palo e, posteriormente, com os pesquisadores do GP, representaram (e ainda
representam) fonte rica para uma melhor compreensão dos aspectos concer-
nentes à crítica literária, nas especificações do infantil e juvenil.

97
Referências bibliográficas

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98
VIGOTSKI, L. S. Imaginação e criatividade na infância. São Paulo: Martins
Fontes, 2014.

99
z
Alice in Disneyland :
apontamentos sobre a ficção
na indústria cultural
Klaus Eggensperger

Os livros de Carroll

Os dois contos Alice’s Adventures in Wonderland e Through the Looking-


-Glass and What Alice Found There são famosos pelos diálogos excêntricos
que desenvolvem, pelos paradoxos e pelo nonsense – o não-sentido –, que
apresentam. Há anos, essas histórias têm provocado as mais variadas inter-
pretações e recebido uma crítica acadêmica ampla, principalmente nos cam-
pos da filosofia, linguística e semiótica. Seu autor, Lewis Carroll, apresentou
para o público da Inglaterra vitoriana problemas como a arbitrariedade e a
potencialidade de uma língua natural bem antes de Wittgenstein, Austin e
Searle. Diferentemente desses pesquisadores famosos do século XX, Carroll
não discutiu fenômenos de uso linguístico na sua vasta produção de cunho
acadêmico ou de outra natureza não-ficcional. Quando assinava com seu
nome real, Charles Lutwidge Dodgson, na função de respeitado professor de
matemática e lógica em Oxford, defendeu a maneira rigorosa de raciocinar,
a doxa acadêmica, contra a paradoxal lógica do absurdo. Parece ter sido um
conservador em termos políticos, religiosos e pessoais, sustentando intelec-
tualmente o conjunto de juízos que a sociedade vitoriana havia elaborado.
No entanto, as duas narrativas carrollianas sobre Alice são muito mais
do que um divertimento filosófico disfarçado em livro infantil (HAUGHTON,

100
2009); abrangem uma comédia da ordem social vigente, paródias à cultura
vitoriana, farsas hermenêuticas, tudo isso apresentado dentro da história
de aventuras da protagonista de sete anos. O tradicional let’s pretend que a
protagonista propõe no início de Through the Looking Glass – “Vamos fazer
de conta que você é a Rainha Vermelha, Kitty!” – convida leitoras e leitores
à participação em um jogo narrativo-literário. “Dodgson’s genius was to make
the construction of meaning a intrinsic part of the narrative of the children’s
dream experience” (HAUGHTON, 2009), observa um dos seus editores atuais.
A lógica diferente que reina no País das Maravilhas aparece nos níveis fo-
nético, morfológico, sintático, semântico e pragmático (LECERCLE, 2002),
ou seja, em todos os níveis linguísticos, questionando a concepção daquilo
que chamamos de “normal” e “natural”. Dessa forma, semântica e referência
perdem seu status ontológico. Mostram-se como operações linguísticas liga-
das ao sentido comum e dependentes de um observador. Com os meios da
ficção literária, Lewis destrói o bom senso e o senso comum, como analisou
Gilles Deleuze (2011, p. 3).: “O paradoxo é, em primeiro lugar, o que destrói
[...] o senso comum como designação de identidades fixas”.

Alice in Wonderland, Disney, 1951

Com o desenho animado Alice in Wonderland, a protagonista carrollia-


na sai de seu contexto da Inglaterra da segunda metade do século XIX com
seus códigos vitorianos, para entrar na esfera moderna da cultura de massas
norte-americana, uma cultura de entretenimento popular e comercial que
se espalha pelo globo durante todo século XX.
Transpor um texto de nonsense para a tela de cinema obviamente não é
tarefa fácil. No caso específico dos desenhos animados americanos, o contraste
não poderia ser maior. O conto de Carroll, com seus jogos de linguagem, suas
questões hermenêuticas e questionamentos lógicos, faz parte integral do mun-
do letrado britânico do século anterior. Com os chamados funnies (tirinhas
dominicais), porém, a narrativa vitoriana entra no mundo da performance
visual desenfreada. A paródia e o absurdo em Carroll se desenvolvem prin-

101
cipalmente nos diálogos que exigem do leitor adulto um acompanhamento
atento, um esforço mental, enquanto o desenho animado se concentra na
expressão corporal e ação física dos actantes (seres ou coisas) envolvidos,
priorizando a performance de seus protagonistas.
Nesse contexto, a palavra-chave é slapstick, pastelão. Trata-se de um en-
tretenimento teatral popularíssimo nos palcos da music-hall britânica e do
vaudeville americano na segunda metade do século XIX e no início do século
XX. Com o advento da sétima arte, o slapstick foi transferido para as telas
(ainda mudas) do cinema por artistas como Charlie Chaplin e cultivado aos
extremos pelos funnies americanos. Alice in Wonderland da Disney encon-
tra-se nessa tradição performática. Cenas que originalmente constaram da
obra de Carroll tornam-se pastelão puro na tela. Como exemplo pode-se citar
o curto diálogo entre os três jardineiros “cartas de baralho”, pintando as ro-
sas brancas no início do capítulo VIII do livro. No desenho animado, a cena
ganha destaque e dinâmica própria. Outro exemplo é o final do julgamento
de Alice: no livro, não passa de duas frases, enquanto no filme desenvolve-se
toda uma sequência de movimentos mais disformes e fantásticos.
Ao comparar as narrativas de nonsense literário carrolliano com o desenho
animado em tecnicolor oito décadas mais tarde, percebe-se que o elemento
excêntrico-carnavalesco da desrazão está presente em ambos. Podemos iden-
tificar, portanto, uma continuidade entre as linguagens artísticas tão dife-
rentes, a literária e a audiovisual. No desenho animado da Disney, o absurdo
(linguístico e social) da narrativa original foi transposto para a linguagem
corporal grotesca dos funnies americanos – um meio de comunicação que
todo espectador compreendeu, independentemente de sua língua materna
ou do seu grau de escolaridade.
Existe um certo momento democrático-popular nessa transposição. Em
1951, quando a animação estreou nos cinemas, a Disney era uma empresa
consolidada no coração da indústria cultural, vendendo entretenimento
como mercadoria produzida em escala larga (WELLS, 2002). Consciente de
sua importância, a empresa via-se na vanguarda do progresso moderno con-
tra um suposto elitismo cultural europeu, o qual, ao mesmo tempo, tentava
integrar com a produção de Fantasia (1940). Nesse contexto, a função da
primeira cena de Alice in Wonderland, aquela que antecede a passagem da

102
protagonista para o País das Maravilhas, vai além de uma simples introdução
à trama. Lembramos: em vez de prestar atenção na lição da sua governanta
que faz leitura em voz alta de um livro de história, Alice, entediada, reclama
de livros sem ilustrações e de livros impressos em geral: “In my world, the
books would be nothing but pictures”. Com essa fala que almeja pelo moderno
entretenimento visual, a jovem está preparada para entrar no país maravi-
lhoso das imagens vivas, ignoradas pela professora tradicionalista.
Quando levamos em consideração sua identidade corporativa, entendemos
que a Disney manifesta nessa cena uma posição altamente programática:
a empresa, que nos anos cinquenta está no caminho de se tornar o maior
conglomerado de mídia e entretenimento do planeta que é até hoje, anuncia
o fim da Galáxia de Gutenberg e o começo da nova era audiovisual. Desse
modo, o desenho animado apresenta-se como obra da “contracultura” popular,
contrária à cultura letrada tradicional e às ideias vitorianas de formação da
personalidade (para utilizar uma expressão de FLUCK, 2009, p. 249).
Sabemos que a disposição contrária às hierarquias e autoridades, que
se anuncia assim no começo do filme, já está presente na Alice carrolliana,
o que remete a uma concordância básica: tanto os dois livros de Carroll
quanto o desenho animado da Disney não visam atingir uma mensagem ou
finalidade específica, pois seu caráter essencial é lúdico, sem metas didá-
ticas ou representacionais. Quem aprecia encontrar uma moral em tudo é
a Duquesa feia do País das Maravilhas, mas os leitores do livro certamente
não são induzidos para tal atividade irrisória. Por consequência, essa figura
não aparece no desenho animado americano.
Obviamente, o divertimento carrolliano envolve um nível linguístico-inte-
lectual que um produto audiovisual popular não pode apresentar. Contudo, à
sua maneira, o animado pode ser considerado herdeiro do nonsense britânico
do século XIX. Lewis Carroll já havia elaborado desenhos que acompanharam
a primeira versão manuscrita da obra, Alice’s Adventures Underground. As
ilustrações de John Tenniel (1ª versão) são conhecidas e populares até hoje,
mas muito daquilo que o narrador carrolliano conta pode ser visualizado
melhor no desenho animado. Trata-se de uma técnica que não encontra o
menor problema, por exemplo, em representar as mudanças abruptas de
tamanho da menina e as constantes transformações físicas de seres vivos

103
ou de um simples objeto. Paul Wells comenta em termos gerais, não especi-
ficamente sobre a Disney:
Animation [...] in many of its forms can literally
change properties, having the capacity through meta-
morphosis, to translate some figures, objects, and envi-
ronments from one state to another. Animation can erase
and efface a former image and create another image,
showing another state, creating not merely new physical
relationships but achieving translations that create unu-
sual, alternative, or seemingly impossible relationships.
Animation can achieve material change and operate as
an almost inherently metaphorical, if not metaphysical,
form. (WELLS apud GOLDMARK/KEIL, 2011, p. 20)

Considerando que as possibilidades de representação aumentaram bas-


tante com a técnica do desenho animado, não é de estranhar que muitas das
extravagancias presentes no texto de Carroll ocupam facilmente seu lugar
no mundo excêntrico da animação. Mesmo quando inventa seus próprios
exemplos, o filme mantém-se fiel à lógica de ações completamente fora
das referências habituais. Assim, na famosa cena da Mad Tea-Party, do chá
maluco, a chaleira da Disney produz, juntamente com o chá que despeja, o
próprio pires e a xícara, exibindo o poder criativo inerente ao desenho ani-
mado. Ou o Cheshire Cat balança, na vertical, com uma perna sobre a própria
cabeça separada do corpo, ao invés de tomar a postura invertida do corpo,
com a cabeça sobre as palmas das mãos. Trata-se de uma visualização de
um problema semântico, da interpretação literal da pergunta a Alice: Can
you stand on your head?
Semelhante a isso é a oferta de meia xícara de chá, interpretada literal
ao invés de metonimicamente, como uma xícara cortada ao meio. Antes da
era das imagens digitais, somente o desenho animado oferecia essas possi-
bilidades visuais.

104
Figura 1 – Interpretação literal de “meia xícara” na animação Alice in Wonderland (1951).

Aliás, durante a pré-produção, a produtora decidiu filmar convencional-


mente cenas centrais do enredo com atores agindo e objetos sendo manipu-
lados em frente à câmera. Ao chá maluco foi convidado um sobrevivente do
Vaudeville de décadas anteriores, o ator Ed Wynn, para interpretar o chape-
leiro. O humor por ele desenvolvido pode ser de cunho linguístico, baseado
p. ex. na identidade de certos fonemas, ou totalmente slapstick, como no
caso dessa estranha maneira de encher a xícara com o chá que entra pelo
colarinho e sai pela manga.

105
Figura 2 - Chapeleiro maluco servindo chá.

Todos os exemplos mencionados aqui são criações novas da Disney que


não constam nos dois romances de Lewis Carroll, mas seguem seu espírito.
Assim, surgiu um belíssimo chá maluco ligada ao universo dos grandes hu-
moristas de ação ao vivo, referência a uma tradição que já não existia mais
no mundo pós-guerra. Poderíamos até falar em “memória cultural”: o filme
de animação do ano 1951 conseguiu, de maneira mais implícita, lembrar de
certas práticas antigas da cultura massificada norte-americana das décadas
anteriores.
Ademais, convém mencionar pelo menos o papel importante da música
no filme. Em Alice in Wonderland , ouvimos mais canções do que em qual-
quer outra animação da Disney. O conjunto das músicas executadas vai de
melodias populares simples, marchinhas, jazz, blues, às cenas de musicais
da Broadway; abrange, enfim, boa parte do repertório da música popular
dos Estados Unidos da época. Criou-se um enredo musical forte que deixa
o filme mais coeso.

106
Alice in Wonderland, Disney, 2010

Alice in Wonderland, de 2010, com direção de Tim Burton, baseia-se na


técnica contemporânea denominada CGI (computer generated images), que
combina as imagens de estúdio, onde os atores representam um papel em
frente à câmera digital, com imagens exclusivamente geradas nos computa-
dores da produtora. Essa técnica contribui para o efeito de hiper-naturalismo
em um filme que encena um mundo completamente fantástico. A primeira
obra desse tipo, que fez sucesso comercial no mundo inteiro, foi a trilogia
Lord of the Rings 2001-2003), que seguiu – com um enredo completamente
fantástico – a estética naturalista do cinema comercial hollywoodiano desde
Griffith, durante os inícios da indústria cinematográfica. Ismael Xavier (2008)
observa que, “no caso da estória deliberadamente fantástica, a visão direta
do naturalmente impossível ganha todo o seu poder de atração justamente
pela espetacular precisão com que o fantástico parece real na tela”.
Diferentemente do gênero fantasy, nos dois romances carrollianos, ins-
pirados pela tradição britânica de nonsense, não existem nem forças so-
brenaturais, nem a luta do bem contra o mal. Tratam-se de componentes
importantes do fantástico popular que foram introduzidas na versão mais
recente da Disney, onde o País das Maravilhas está dividido em dois reinos
liderados por uma rainha branca, de um lado, e sua irmã vermelha malvada,
por outro lado. No encontro final decisivo, os dois representantes dos reinos
antagonistas, o monstro Jabberwocky e a moça Alice, uma loira de cerca de
vinte anos, travam uma luta mortal.
Um autêntico trecho de nonsense vitoriano − neste caso, a paródia da
prosa épica anglo-saxã medieval juntada à paródia da sabedoria filológica
vitoriana em Through the Looking-Glass, capítulo I, − é encenado na tela sem
humor, mas com o já mencionado hiper-realismo.

107
Figura 3 Alice lutando contra o Jabberwocky.

Na sua adaptação, Tim Burton optou por aplicar o esquema narrativo de


“jornada do herói” (hero’s journey), com todo o simbolismo, a dramatização
e o emocionalismo conhecidos do cinema mainstream contemporâneo. O
esquema convencional utilizado nesse filme foi elaborado pelo roteirista
Christopher Vogler que já tinha trabalhado para a Disney, inspirando-se
pelo conceito de monomito de Joseph Campbell. Nos anos noventa, Vogler
publicou o livro The Writer’s Journey: Mythic Structure for Writers, no qual
apresentou um modelo narrativo arquetípico que, na sua e na opinião de seus
seguidores, pode oferecer a base para roteiros contemporâneos.
Sem entrar na discussão do mérito do modelo, devemos lembrar que, nos
dos dois livros de Alice, a trama não é orientada por coerência. As unidades
narrativas são conectadas de forma superficial pelo narrador e a causalida-
de narrativa é reduzida, sendo a conexão principal a presença da mesma
protagonista. Não existe nexo orgânico no sentido de uma parte da trama
levar à parte seguinte pela lógica da ação. Mesmo quando aparentemente
um nexo é estabelecido, trata-se de uma conexão externa. No início de Loo-
king-Glass, o narrador comunica que a trama teria como modelo a estrutura
de um jogo de xadrez, contudo, esse anúncio não leva à maior coerência. Em
seguida, lugares, seres e ambientes aparecem e desaparecem à vontade (do
narrador), por vezes anunciados ao menos antecipadamente. A aparência

108
da figura Humpty Dumpty, por exemplo, é motivada a partir da fala de Alice
na lojinha escura, onde a protagonista é forçada a dizer que deseja comprar
um ovo. Lewis Carroll certamente não está comprometido com o modelo
clássico aristotélico de narrativa, no qual a sucessão de acontecimentos que
constituem a ação de uma obra de ficção deve acontecer conforme regras
da probabilidade (Aristóteles 2011, p.7).
Comparado à narrativa literária carrolliana, mas também ao antecessor
cinematográfico, o filme de 2010 revela-se mais como apropriação do que
adaptação (no sentido de Sanders, 2016). Infelizmente, a apropriação mais
recente da Disney anula completamente o espírito lúdico-rebelde da obra
original e da animação clássica de seis décadas atrás. Quando Adorno fala
da “obra, que outrora trazia a ideia e com essa foi liquidada” (2012, p. 14),
comenta, em geral, sobre o destino da obra artística na indústria cultural.
No caso específico de Alice, um efeito da apropriação atinge o nonsense: os
diálogos humorísticos agora dão espaço aos diálogos comuns, que podemos
encontrar nos conhecidos gêneros cinematográficos da indústria fílmica.
Com o desaparecimento do humor linguístico nos diálogos, desaparece
também o humor nos personagens. Comparamos, por exemplo, a represen-
tação de Tweedledum e Tweedledee nos dois filmes em questão.
No desenho animado clássico são duas figuras cômicas com descendên-
cia nítida do Vaudeville, enquanto no filme recente assemelham-se a duas
crianças anêmicas e impassíveis, revelando pachorra ao invés de agilidade.
Outra figura que perdeu seus traços cômicos anárquicos é o chapeleiro, o
máximo de vitalidade que consegue expressar é uma pequena dança narci-
sista e solitária no final do filme, após a inevitável vitória do bem. O papel
representado por Johnny Depp lembra-nos outra atuação do mesmo ator:
em Dead Man, de Jim Jarmusch (1995), filme em preto e branco e extrema-
mente melancólico, no qual um Johnny Depp bem mais jovem é protagonista
de uma narrativa de viagem rumo ao encontro definitivo com a morte. Um
chapeleiro tipo Dead Man certamente tem seu charme próprio, mas como
personagem tem nada mais em comum com suas origens literárias do que o
nome e um chapéu na cabeça.
Outra diferença fundamental consiste no tratamento dos episódios que
formam o encaixe narrativo, tanto no primeiro quanto no segundo romance

109
de Lewis Carroll. No filme recente, a narrativa encaixe foi aumentada para
ganhar peso próprio. Contra sua vontade, a jovem Alice, bonita, mas empobre-
cida, deve aceitar um casamento por interesse com outro jovem rico. Depois
da jornada fantástica no País da Maravilhas, retorna a sua realidade vitoriana
para a festa de noivado onde seria anunciada a união conjugal. Rejeitando
agora o caminho convencional, Alice renuncia ao noivado e decide por uma
carreira de comerciante colonial. O filme fecha com essa cena: Alice parte em
um navio mercantil para fazer negócios com a China. Assim, a hero’s journey
é transformada numa jornada de business hero’s journey, uma jornada do
indivíduo empreendedor feminino para conquistar mercados mais difíceis.
Em geral, a suposta universalidade e neutralidade da chamada “jornada
do herói” é questionável. Não por acaso, esse conceito narrativo profunda-
mente ligado ao individualismo foi desenvolvido nos Estados Unidos. Ganhou
atração global através da potência de Hollywood, mas é bastante ambivalente,
pois está marcado parcialmente por aquilo que se chama american dream,
o sonho americano. Americanistas críticos como Winfried Fluck ressaltam
a importância dessa ideia para a cultura estado-unidense: “America carries
this wish for individual and imaginary self-empowerment to ever new extre-
mes” (Fluck, 2009, p. 264).

A ficção na indústria cultural

Apresentamos aqui somente alguns apontamentos breves em torno das


duas noções: da “ficção” – discutido internacionalmente e nos estudos lite-
rários brasileiros – e da “indústria cultural”, conceito sociológico meio que
ignorado após seu começo promissor em Adorno. Existem alguns esforços
teóricos de reunir as duas noções, mas ainda andamos muito devagar nessa
direção, devido talvez à complexidade dos fenômenos.
Visto de perto, a indústria cultural parece mais um campo volúvel de
relações sociais e midiáticos do que um bloco monolítico. Nas duas adap-
tações fílmicas da Disney aqui apresentadas, a lógica mercantil está nítida,
mas ela não se aplica independentemente dos seus respectivos contextos

110
sócio históricos. Os dois filmes homônimos, mas tão diferentes, mostram
que não existe um só destino da ficção na indústria cultural moderna, pois
sua configuração acontece sempre em circunstâncias históricas concretas.
No contexto cultural da Alice de 1951, a literatura vitoriana de nonsense
perdeu sua importância; entretanto já existia uma poderosa cultura de massas
estado-unidense. Dentro dela desenvolveu-se a animação audiovisual como
mercadoria que promete entretenimento junto ao maior público possível.
As histórias em volta da Alice carrolliana foram adaptadas pelo estúdio
Disney para serem compatíveis com um dos formatos midiáticos contem-
porâneos mais populares – adaptados no nível macro da trama em geral e
especificamente da estrutura narrativa do filme. Na perspectiva de Adorno,
a alta cultura é o lugar do não-idêntico, sempre oferecendo ao público um
potencial crítico (que pode ser entendido ou ignorado); o mesmo vale tam-
bém, mas de forma mais limitada, para a cultura popular. Observamos aqui
que a animação clássica da Disney conseguiu manter pelo menos parcial-
mente o impulso crítico da obra original, mostrando um certo respeito pelo
patrimônio cultural que foi adaptado no campo da indústria moderna de
entretenimento. Não podemos afirmar a mesma coisa da filmagem recente.
Assim, a constatação de Adorno de que toda cultura de massa é adaptação
(1997), não deve ser resultado, mas ponto de partida para a reflexão teórica
e principalmente para a análise crítica de cada objeto cultural em questão.
Para o filme de 2010, o contexto tecnológico é a CGI (em português:
Imagens Geradas pelo Computador), a aplicação da computação gráfica 3D
que gera os efeitos especiais na filmagem digitalizada. Essa tecnologia nova,
padrão atual no entretenimento global audiovisual, costuma a intensificar
no público o processo imersivo durante a recepção de um filme (ver Wolff
et. al., 2013, sobre o conceito de imersão), mas não leva necessariamente a
uma arte ficcional mais rica. Alice in Wonderland e muitos outros casos se-
melhantes de refilmagem de clássicos da Disney em live-action demonstram,
ao contrário, um certo empobrecimento estético.
No nosso caso específico, a história em torno de Alice é parcialmente
privada de suas qualidades estéticas e de sua originalidade em questionar
ficções – sociais e linguísticas – através da ficção. O esquema narrativo con-
vencional da jornada do herói leva à coerência, mas resulta ao mesmo tempo

111
em simplificação, estandardização e redundância. Os elementos críticos da
obra original são trivializados, enquanto o nonsense puro é substituído por
um sentido supostamente superior.
Nada parece mais “natural”, mais autêntico, do que a jornada do herói
com sua aparente estrutura narrativa universal, válida para todas as cultu-
ras em todas as épocas. Na perspectiva que propomos aqui, trata-se de uma
“ficção social” (Schmidt, 2008). Nesse sentido, a jornada do herói implica em
um programa cultural que faz com que coação e violência sociais pareçam
fatos antropológicos primordiais. O sofrimento humano vira parte do enredo
organizado pela dramaturgia e contribui para o sucesso do entretenimento.
A literatura de tipo consultora ou de autoajuda, que relaciona a ideia
da viagem do herói de Campbell e Vogler com a vida comercial, fala por si,
sem medir as palavras: “A conquista de partes do Eu e partes do mercado são
as metas do herói moderno” (Höcker, 2010, p. 15, tradução própria). Consi-
derando que essa ideologia abertamente instrumentalizadora se coloca a
serviço da economia capitalista, fazem surgir dúvidas em relação ao sentido
emancipatório manifesto da ação tão corajosa da jovem protagonista.

Figura 4: Personagem Alice feliz por sua nova carreira como comerciante.

A jornada do herói, com sua inerente ideia do indivíduo capaz de superar


todas as dificuldades , pode se transformar em uma técnica de auto manipu-
lação que nega, em última instância, as diferenças entre mercado e indiví-
duo, entre ações comerciais e emoções humanas. O seu ideal são o business

112
hero ou a business heroine que costumam resolver seis coisas impossíveis já
antes do café da manhã, como se diz no filme de Tim Burton. Evidentemente
trata-se de uma ficção neoliberal, uma ideologia operativa que visa produzir
seu efeito sobre o público consumidor.
O ponto crucial da nossa crítica, porém, não é o sentido ideológico ma-
nifesto. É bem possível que o final colonialista do filme de 2010 reflita o pró-
prio empreendimento da Disney na China contemporânea. Mesmo assim,
poderíamos imaginar um final diferente, com posicionamento anticolonia-
lista, por exemplo, sem precisar mudar o programa semântico inerente da
narrativa da jornada heroica. Técnicas narrativas são mais do que simples
qualidades estruturais de textos; elas contêm regras convencionais sociais
latentes. São modos narrativos com semântica própria que participam ati-
vamente na construção de normas coletivas e identidades subjetivas. A res-
peito disso devemos lembrar um importante conceito de Frederic Jameson
– baseado no pensamento de Adorno e de Althusser – de uma ideologia da
forma, “ideology of the form”. A forma literária da ficção convencional tem
sua semântica própria, “form is immanently and intrinsically an ideology in
its own right” (Jameson, 1983, p. 122). Também Hayden White, representan-
te de um pensamento e de uma tradição teórica bem diferente de Jameson,
afirma “that narrative is not merely a neutral discursive form [...] but rather
entails ontological and epistemic choices with distinct ideological and even
specifically political implications” (1990, p. IX).
A jornada do herói tem se espalhado como novo padrão narrativo do
cinema mainstream desde os anos oitenta e, diga-se de passagem, não por
acaso junto com a ascensão do neoliberalismo nos Estados Unidos e na In-
glaterra. No caso do filme de Tim Burton, um de seus efeitos é a liquidação
da riqueza da narrativa original. Apesar de tanto esforço visual fantasiado,
não aparece na tela mais nada que não seja completamente identificável.

113
Figura 5- Rainha ilustrada por John Tenniel.

Resta um consolo. Com a Alice de Lewis Carroll aprendemos que todos os


caminhos no país atrás do espelho são da rainha, para citar uma observação
famosa em Através do Espelho: “Não sei o que você quer dizer com seu cami-
nho, disse a Rainha; todos os caminhos aqui pertencem a mim...” (Carroll,
2002, p. 154). Todavia, continuando a leitura, logo podemos perceber que esse
poder não passa de um espantalho. Uma vez reconhecido e analisado como
ficção social, o programa semântico-ideológico de uma parte importante da
indústria cultural contemporânea pode perder sua força.

114
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2010 (aprox. 109 min).
ALICE in Wonderland. Direção de Clyde Geronimi, Hamilton Luske, Wilfred
Jackson. EUA: Edição especial Walt Disney Clássicos, 1951 (aprox. 75
min).
ARISTÓTELES. Poética. Tradução, textos complementares e notas Edson
Bini. São Paulo: Edipro, 2011.
CARROLL, Lewis. Alice’s Adventures in Wonderland and Through the Lookin-
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Hugh Haughton. London: Penguin Classics, 2009.
CARROLL, Lewis. Alice: edição comentada. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
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115
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Fontes das figuras:

Figura 1 - ALICE in Wonderland. Direção de Clyde Geronimi, Hamilton Lus-


ke, Wilfred Jackson. EUA: Edição especial Walt Disney Clássicos, 1951
(aprox. 75 min).
Figura 2 - ALICE in Wonderland. Direção de Clyde Geronimi, Hamilton
Luske, Wilfred Jackson. EUA: Edição especial Walt Disney Clássicos,
1951 (aprox. 75 min).
Figura 3 - ALICE in Wonderland. Direção de Tim Burton. EUA: Walt Disney
Pictures, 2010 (aprox. 109 min).

116
Figura 4 - ALICE in Wonderland. Direção de Tim Burton. EUA: Walt Disney
Pictures, 2010 (aprox. 109 min).
Figura 5 - Carroll, Lewis. Alice’s Adventures in Wonderland and Through the
Looking-Glass and What Alice Found There. Edition, introduction, notes
by Hugh Haughton. London: Penguin Classics, 2009.

117
H
A literatura como fio de Ariadne:
A formação do leitor literário na
Educação Infantil no Instituto
Dom Barreto
Juliana Pádua Silva Medeiros

Introdução

Pensar o ensino da literatura e suas modalidades práticas supõe que se


defina a finalidade desse ensino. É a formação de um sujeito leitor livre,
responsável e crítico - capaz de construir o sentido de modo autônomo e
de argumentar sua recepção [...]. É também, obviamente, a formação de
uma personalidade sensível e inteligente, aberta aos outros e ao mundo
que esse ensino de literatura vislumbra.
Annie Rouxel

Sabe-se que a leitura se constitui como uma necessidade quase vital para
o exercício da cidadania, e que a escola continua sendo o lugar propício para
se experimentar a diversidade de culturas, de pensamentos e de linguagens
a partir dos textos.
Para se figurar como um ambiente riquíssimo de multiletramentos e de
experiências plurais, o educador precisa garantir diferentes práticas sociais
de leitura, proporcionando o desenvolvimento de uma postura ativa (e não
passiva) diante do que é veiculado pelos objetos culturais produzidos nos
mais diversos meios de expressão em variadas épocas.
De acordo com Zilberman (1993, p. 17), se “a ação de ler caracteriza toda

118
a relação racional entre o indivíduo e o mundo que o cerca”, então, faz-se
imprescindível o trabalho com a literatura na escola, pois:
[...] a obra de ficção, fundada na noção de represen-
tação da realidade, exerce este papel sintético [adentra-
mento no real] de forma mais acabada, fazendo com que
leitura e literatura constituam uma unidade que mime-
tiza os contatos palpáveis e concretos do ser humano
com seu contorno físico, social e histórico, propondo-se
mesmo a substituí-los. (ZILBERMAN, 1993, p. 19)

Cademartori (1994, p. 22 e 23) corrobora tal ideia ao pontuar que:


A obra literária recorta o real, sintetiza-o e interpre-
ta-o através do ponto de vista do narrador ou do poeta.
Sendo assim, manifesta através do fictício e da fantasia,
um saber sobre o mundo e oferece ao leitor um padrão
para interpretá-lo. Veículo do patrimônio cultural da
humanidade, a literatura se caracteriza, a cada obra,
pela proposição de novos conceitos que provocam uma
observação do já estabelecido.

Sob essa perspectiva, como parte dos aspectos metodológicos para a for-
mação do leitor literário em sala de aula, destaca-se a importância da escolha
cuidadosa da obra a ser trabalhada. Levando em conta as diretrizes da Base
Nacional Comum Curricular (BNCC)1 e os apontamentos teóricos de Coelho
(2000)2, verifica-se que para cada segmento escolar há um acento especial.
Na Educação Infantil, por exemplo, as obras literárias devem favorecer
uma prática leitora prazerosa e lúdica; explorar as construções sonoras (rit-
mos, rimas, brincadeiras linguísticas etc.) e visuais (traços, cores e formas);
valorizar a repetição ou a reiteração de elementos, como forma de manter a
atenção e o interesse do leitor; possibilitar relações de semelhanças e dife-
renças entre os elementos presentes nos textos; centrar na estrutura simples,
mais linear, favorecendo o pensamento lógico; trazer a ilustração também
como narrativa e não mero adorno; propiciar tanto o convívio inteligente,
afetivo e profundo com a realidade circundante, quanto à imersão no mun-
do da fantasia; ofertar - por meio de diferentes linguagens - situações que

119
instigam a diversão, a sensibilidade, a percepção, a descoberta, a imagina-
ção, o pensamento e a opinião; ampliar o conhecimento de si e do outro, e
favorecer o adentramento no universo da literatura por meio da cultura oral
e das formas textuais populares escritas.
Exemplos de livros para infância que vão ao encontro de tais diretrizes:
A casa sonolenta, escrito por Audrey Wood e ilustrado por Don Wood (1999);
Amoras, escrito por Emicida e ilustrado por Aldo Fabrini (2018); Azul, escrito
por Meritxell Martí e ilustrado por Xavier Salomó (2019); Bia e o Elefante,
escrito por Carolina Moreyra e Odilon Moraes (2019); Bruno & João, escrito
e ilustrado por Jean-Claude R. Alphen (2009); Bruxa, bruxa, venha à minha
festa, escrito por Pat Ludlow e ilustrado por Arden Druce (1995); Cadê o pin-
tinho?, escrito por Márcia Leite e ilustrado por Anita Prades (2011); Claro,
Cleusa. Claro, Clóvis., escrito e ilustrado por Raquel Matsushita (2017); Colo
de avó, escrito por Roseana Murray e ilustrado por Elisabeth Teixeira (2016);
Com que roupa irei para a festa do rei?, escrito por Tino Freitas e ilustrado
por Ionit Ziberman (2017); É um ratinho?, criado e ilustrado por Guido van
Genechten (2008); Jacaré, não!, escrito por Antonio Prata e ilustrado por
Talita Hoffmann (2016); Mas papai…, escrito por Mathieu Lavoie e ilustrado
por Marianne Dubuc (2013); Margarida, escrito e ilustrado por André Neves
(2010); O grúfalo, escrito por Julia Donaldson e ilustrado por Axel Scheffler
(1999); O que tem aí?, escrito e ilustrado por Rosinha (2018); Olavo, escrito
e ilustrado por Odilon Moraes (2018); Onde está Tomás?, escrito por Micaela
Chirlf e ilustrado por Leire Salaberria (2019); Ônibus, escrito e ilustrado por
Marianne Dubuc (2019); Pedro vira porco-espinho, escrito e ilustrado por
Janaína Tokitaka (2017); Pinóquio, escrito e ilustrado por Alexandre Ram-
pazo (2019); Se eu abrir esta porta agora…., escrito e ilustrado por Alexandre
Rampazo (2018); Ter um patinho é útil, escrito e ilustrado por ISOL (2018);
Urso e barco, escrito e ilustrado por Cliff Wright (2019), e Verões verdes, es-
crito e ilustrado por Dispacho (2017).
Ao encontro das contribuições teóricas de Rouxel (2013), este artigo
propõe abordar: o papel da literatura no desenvolvimento sensível e crítico
do leitor; a importância de se promover o trabalho com os textos literários
desde muito cedo (maturação psíquica e competência leitora), e os aspectos
metodológicos nas diferentes situações de leitura literária dentro e fora da

120
sala de aula, tendo como exemplo a proposta de formação do leitor, na Edu-
cação Infantil, do Instituto Dom Barreto (Teresina, Piauí).

A leitura literária desde a infância

De acordo com Graça Paulino, no Glossário CEALE, “A leitura se diz li-


terária quando a ação do leitor constitui predominantemente uma prática
cultural de natureza artística, estabelecendo com o texto lido uma interação
prazerosa.”3. Para ela, é nesse pacto entre o leitor e o texto que vai se cons-
tituindo o gosto pela leitura.
Cabe ressaltar que a literatura está para além de um mero prazer, cor-
respondendo “[...] a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob
a pena de mutilar a personalidade.” (CANDIDO, 2004, p. 186). Segundo o
célebre professor Antonio Candido, assim como outras expressões artísticas,
a literatura é um direito humano, pois se figura como bem incompressível:
assegura a sobrevivência física e garante a integridade espiritual.
Nesse sentido, o texto literário é um instrumento poderosíssimo de edu-
cação, não porque edifica ou corrompe, mas por humanizar:
Processo que confirma no homem aqueles traços
que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão,
a aquisição do saber, a boa disposição para com o próxi-
mo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar
nos problemas da vida, o senso de beleza, a percepção da
complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor”
(CANDIDO, 2004, p. 180).

Logo, formar leitores literários é um ato revolucionário, pois, na medida


que interage com textos e vai se apropriando da linguagem, o indivíduo vi-
vencia uma experiência libertadora.
Para Góes (2005, p. 17):
Ler é relacionar cada texto lido aos demais anteriores
(textos-vida + textos lidos) para reconhecê-los, signifi-

121
cá-los e assimilá-los; processo que dota o leitor da capa-
cidade de ad-mira-ação (olhar que apreende e aprende)
e o torna um leitor-sujeito de sua própria história.

De acordo com a pesquisadora, esse rico processo de construção dos


sentidos, que está para além da decodificação do código escrito, deve valo-
rizar “aspectos sensoriais (ver, ouvir os símbolos linguísticos), emocionais
(identificar-se, concordar, discordar, apreciar) e racionais (analisar, criticar,
correlacionar, interpretar” (GÓES, 2005, p. 17). Para tanto, é preciso que o
professor oferte obras com temáticas diversificadas, formatos variados, gêne-
ros diversos, múltiplas linguagens, bem como valorize a linguagem poética,
o projeto gráfico, a intertextualidade, a qualidade da adaptação, etc.
A interação com essa riqueza de formas e conteúdos possibilita o alar-
gamento da experiência estética literária que, conforme Maria Antonieta
Antunes Cunha, em Glossário CEALE, é:
[...] a soma da percepção/apreensão inicial de uma
criação literária e das muitas reações (emocionais, in-
telectuais ou outras) que esta suscita, em função das
características específicas postas em jogo pelo autor na
sua produção. [...] Essa experiência estética tem muitos
níveis, assim como diferentes temporalidades, dependen-
do de tantos elementos que entram em sua constituição
e também do quanto cada um investe nela. 4

Cabe salientar que, na experiência estética literária, o leitor extrapola


os sentidos por meio das descobertas, dos questionamentos, da imaginação
e da fantasia. Por ser algo singular, não há, portanto, receitas/manuais. Em
contrapartida, algumas situações de leitura favorecem o desenvolvimento
sensível e crítico do leitor.
Dando sequência às reflexões sobre a leitura literária durante a infân-
cia, é importante observar que muitas pessoas atrelam a sua prática a um
momento pueril de evasão e entretenimento, esquecendo que a literatura se
constitui também como um poderoso meio de formação e maturação psí-
quica. Segundo Bettelheim (1978), o ato da leitura auxilia na superação de
desafios psicológicos do crescimento, como: enfrentar decepções e dilemas,

122
resolver rivalidades, ser capaz de abandonar dependências infantis e obter
um sentimento de individualidade e de autovalorização. Exemplos: Chapeu-
zinho Vermelho, recontado (textos verbal e visual) por Rosinha (2015), e Eu
não gosto de você, escrito e ilustrado por Raquel Matsushita (2013).
Esse movimento de ofertar textos literários desde os anos iniciais da Edu-
cação Básica não só favorece o desenvolvimento psíquico da criança, como já
pontuado, mas também acaba contribuindo com melhores resultados tanto
nas pesquisas sobre os hábitos leitores dos brasileiros quanto nas avaliações
nacionais acerca da competência leitora.
Regina Zilberman, grande pesquisadora em literatura infantil, sempre
enfatiza a importância do texto literário na escola. Segundo ela:
A justificativa que legitima o uso do livro na escola
nasce de um lado, da relação que estabelece com seu
leitor, convertendo-o num ser crítico perante sua cir-
cunstância; e, de outro, do papel transformador que pode
exercer dentro do ensino, trazendo-o para a realidade do
estudante e não submetendo este último a um ambiente
rarefeito do qual foi suprimida toda a referência concreta.
(ZILBERMAN, 2003, p. 26).

Para a autora:
[...] a sala de aula é um espaço privilegiado para o
desenvolvimento do gosto pela leitura, assim como um
campo importante para o intercâmbio da cultura literá-
ria, não podendo ser ignorada, muito menos desmenti-
da sua utilidade. Por isso, o educador deve adotar uma
postura criativa que estimule o desenvolvimento integral
da criança. A literatura tem sua importância no âmbito
escolar devido ao fornecimento de condições que propicia
à criança em formação. Essa literatura é um fenômeno
de criatividade, aprendizagem e prazer, que representa
o mundo e a vida através das palavras. Sabe-se que a
literatura é um processo de contínuo prazer, que ajuda
na formação de um ser pensante, autônomo, sensível e
crítico que, ao entrar nesse processo prazeroso, se delicia
com histórias e textos diversos, contribuindo assim para
a construção do conhecimento e suscitando o imaginário.

123
Hoje se percebe também que quando bem utilizado no
ambiente escolar, o livro de literatura pode contribuir
ainda para o desenvolvimento pessoal, intelectual, con-
duzindo a criança ao mundo da escrita. Dessa forma, a
literatura infantil tem sua importância na escola e tor-
na-se indispensável por conter todos os aspectos aqui
levantados, sendo de grande valor por proporcionar o
desenvolvimento e a aprendizagem da criança em sua
amplitude. (ZILBERMAN, 2003, p. 16).

Nesse sentido, sob a perspectiva de que o texto literário é um artefato


da arte, de caráter estético, o qual promove a formação leitora sensível (e
crítica), a pesquisadora ressalta que:
[...] a literatura deve se integrar ao projeto desafiador
próprio de todo fenômeno artístico, impulsionar ao seu
leitor uma postura crítica, inquiridora, e dar margem à
efetivação dos propósitos da leitura como habilidade hu-
mana. Caso contrário, o livro infantil transformar-se-á em
objeto didático, que transmite ao seu recebedor, apenas
convenções instituídas, em vez de estimulá-lo a conhecer a
circunstância humana que adotou tais padrões. No entanto,
a literatura infantil somente poderá alcançar sua verdadei-
ra dimensão artística e estética, se superar os fatores que
intervieram em sua geração. (ZILBERMAN, 2003, p. 176).

Assim, se, por um lado, a literatura infantil deve ser apresentada enquanto
manifestação artística/cultural, cuja potência convoca para a construção dos
sentidos plurais5, ao mesmo tempo que favorece a formação de seres humanos
pensantes e sensíveis, por outro, não deve ser utilizada para ensinar algo, pois
isso iria contra a sua própria natureza: “[...] fenômeno de criatividade, que
representa o mundo, o homem, a vida, através da palavra. Funde os sonhos
e a vida prática, o imaginário e o real, os ideais e sua possível/impossível
realização…” (COELHO, 2000, p. 27).
Segundo Abramovich (2004, p. 142):
Muitas e muitas vezes o professor adota um livro para
toda a classe, e esse texto selecionado se torna apenas

124
um pretexto para se estudar gramática, sublinhar subs-
tantivos concretos, indicar tempos de verbos, encontra-
rem advérbios de modo e mil outras relevâncias do tipo.

Contudo, isso não contribui para a formação de um leitor competente.


Para ela, ao se pensar a literatura em sala de aula:
[...] a preocupação básica seria formar leitores poro-
sos, inquietos, críticos, perspicazes, capazes de receber
tudo o que uma boa história traz [...]. Literatura é arte,
literatura é prazer... que a escola encampe esse lado. É
apreciar - e isso inclui criticar... Se ler for mais uma lição
de casa, a gente sabe bem no que é que dá... Cobrança nun-
ca foi passaporte ou aval para vontade, descoberta ou para
o crescimento de ninguém. (ABRAMOVICH, 2004, p. 149).

Consoante Gregorin Filho (2009, p 78 e 79), trabalhar com a literatura


na escola é:
[...] é criar condições para que se formem leitores
de arte, leitores de mundo, leitores plurais. Muito mais
do que uma simples atividade inserida em propostas de
conteúdos curriculares, oferecer e discutir literatura em
sala de aula é poder formar leitores, é ampliar compe-
tências de ver o mundo e dialogar com a sociedade. [...]
é criar condições para que não se percam os objetivos
destas atividades, isto é, partir do texto literário para
viajar pelo mundo. O professor deve ser o guia dessas
deliciosas viagens que possuem um ponto de partida e
outro de chegada: o universo da literatura. (GREGORIN
FILHO, 2009, p. 77 e 78).

Então, como formar leitores literários em sala de aula? Rouxel (2013),


ao discutir os aspectos metodológicos do ensino da literatura, destaca que
a formação resulta da sinergia de três componentes: o aluno como sujeito
leitor, a literatura ensinada (escolha das obras) e o professor como sujeito
leitor. Para ela, o sujeito leitor se constrói e constrói sua humanidade pela
leitura sensível que pode ocorrer de diferentes formas.

125
A Educação Infantil
no Instituto Dom Barreto

Desde 1944, quando as Irmãs Missionárias de Jesus Crucificado fundaram


o Patronato Dom Barreto6, a escola preocupa-se com a formação humana.
Referência em educação de qualidade e destaque, por vários anos, com a
maior nota no ranking do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), o Ins-
tituto Dom Barreto potencializa - em todos as etapas - o desenvolvimento de
sujeitos autônomos a partir de uma proposta curricular que concilia saberes
e experiências.
No segmento infantil7, o foco está na educação pelos sentidos e, por isso,
as crianças - mesmo quando não dominam o código escrito - manipulam e
exploram as obras literárias, despertando a curiosidade para o objeto livro:
materialidade e rede de significados. Tal familiaridade com as imagens, com
os sons, mas também com as palavras8 desse “mundo do faz de conta”, des-
de muito cedo, vai alargando a percepção, a linguagem e a imaginação das
crianças. No Infantário (entre 1 e 2 anos), por exemplo, é comum observar
pequenos brilhantes9 que, nem conseguem falar, já “cantando”, envolvidos
com ritmos e jogos melódicos.
A diversidade de caminhos metodológicos usados pela equipe de professo-
res - como será abordado mais adiante - permite que esses leitores, ao longo
da Educação Infantil, deleitem-se com as obras literárias, conversem sobre
o que gostaram ou não, ampliem seus conhecimentos sobre si e o mundo,
escolham os livros (e por que não gibis?), nomeiem e descrevam personagens
das histórias, brinquem com a musicalidade, ensaiem sentidos, associem au-
tores às suas respectivas obras, reconheçam escritores e ilustradores através
do estilo, reproduzam histórias, imaginem, leiam...

126
Fonte: imagem cedida pela escola

Aspectos metodológicos:
situações de leitura

A leitura na escola não deve ser compreendida somente como uma ati-
vidade silenciosa, individual, realizada em um espaço específico. Ela pode
extrapolar a sala de aula e a biblioteca, dessacralizando o contato com o objeto
livro ao mesmo tempo em que propicia diversos graus de intimidade com ele.

127
A formação do leitor literário pode ocorrer debaixo de uma árvore, sobre
um carpete com almofadas, em uma grande roda com turmas multisseria-
das, entre outros ambientes. O mais importante - na preparação do espaço
para diferentes situações de leitura - é garantir acesso fácil às obras, oferecer
diversidade de gêneros e títulos, fomentar o intercâmbio de experiências e
nutrir uma comunidade leitora.

Ler (ler com) x Ouvir (contar para)

Ler com (e não para) alguém e contar uma história são duas situações
distintas para se trabalhar a linguagem. Ao fazer a leitura com outra pessoa,
emprega-se a competência leitora como meio para compartilhar uma expe-
riência de construção de sentidos, de acordo com Castrillón (2011), espécie
de “testemunho de sua prática”.
Já a contação de histórias é um dos recursos que está à mão dos profes-
sores para aproximar seus alunos da leitura literária. Não há diferença entre
contar histórias para crianças, jovens e adultos, estando as peculiaridades
ligadas à questão temática.
Segundo o escritor, ilustrador, ator, arte-educador, contador de histórias
e crítico literário Celso Sisto:
Contar histórias na verdade é a união de muitas
artes: da literatura, da expressão corporal, da poe-
sia, da música, do teatro... Não há como ignorar esse
quê de performático do contar histórias. Ainda que o
foco maior seja apenas a voz e o texto, projetados no
espaço, para atingir uma plateia. A utilização apenas
desses dois elementos, voz e texto, por si só já basta-
ria para caracterizar o cênico e o dramático. (SISTO,
2007, p. 39)

Portanto, como bem ressalta Sisto (2012), para contar uma história é ne-
cessário colocar a voz e o corpo em movimento, preparando-se com antece-
dência. Logo, o professor deve: pensar no domínio do texto em linhas gerais;

128
utilizar, conscientemente, as expressões corporais, e explorar os recursos
técnicos como a naturalidade, o ritmo, a entonação e as pausas.
Aidan Chambers, no livro de Colomer (2017), aconselha: escolher um
conto e memorizá-lo, ressaltando a sequenciação da narrativa; apropriar-se
das personagens, pensando na voz que terão, na expressão do seu rosto, etc.;
memorizar alguma fórmula de começo e fim, preocupando-se com palavras
mágicas, frases de efeito e expressões pitorescas; dar ritmo e sons ao conto,
ensaiando as onomatopeias, os momentos de sussurro ou de elevação da
voz, e pensar em que momentos a participação dos ouvintes será convocada.
Com os livros em mãos, é possível abrir espaços em sala de aula para dife-
rentes situações de promoção do texto literário, como a de os próprios alunos
tornando-se contadores de história. Tal estratégia: valoriza a linguagem oral,
resgatando a tradição de histórias que são transmitidas de geração a geração;
prepara o estudante para a improvisação; potencializa a memória, pois o
texto não deve sofrer muitas alterações, somente modalizações; estimula o
processo criador e imaginativo dos alunos, e favorece a expressão visual e a
interação com o grupo.

Leitura em voz alta x Leitura silenciosa

Por que ler em voz alta?


Porque: é um ato de amor realizado por meio do empréstimo da compe-
tência leitora (que se manifesta na fluência, na entonação, na acentuação
e no ritmo); auxilia no desenvolvimento da percepção sobre a linguagem,
bem como na construção dos sentidos; contribui para a criação de veícu-
los afetivos (triângulo amoroso da leitura, segundo Yolanda Reyes10); é um
momento mágico em casa (pais-mediadores propiciam encontro por meio
dos textos), e é uma oportunidade de se desenvolver competências leitoras
na escola (professores-mediadores propiciam situações de aprendizagem).
Segundo as autoras Teberosky e Colomer (2003), a escuta da leitura em
voz alta é um exercício de apropriação da linguagem, o qual proporciona o
desenvolvimento da competência linguística. Essa prática tem um grande

129
valor, em especial, para as crianças, visto que - mesmo que elas não decifrem
todas as palavras - o movimento de acompanhar o texto sendo lido favorece
a compreensão leitora.11
Na leitura silenciosa, o leitor tem um momento ímpar para compreender
melhor aquilo que está lendo. Conforme Barrueco (2007), essa modalidade
oportuniza o encontro dos interlocutores - autor e leitor - que traçam estrei-
ta relação a partir do texto. Durante a leitura literária, portanto, é de suma
importância que os alunos possuam tempo livre para formular hipóteses,
imaginar sentidos ainda desconhecidos, explorar a materialidade, etc.
Ana Maria de Oliveira Galvão, em Glossário CEALE, destaca:
A prática da leitura silenciosa no cotidiano escolar
é extremamente relevante para a formação de leitores
competentes, críticos e capazes de participar do mundo
da cultura escrita de modo mais autônomo, na medida
em que é esse tipo de leitura que predomina na maioria
das instâncias sociais, nas sociedades contemporâneas.12

Em razão dos processos de alfabetização, os livros ofertados às crianças


para a leitura silenciosa, na Educação Infantil, no Instituto Dom Barreto:
apresentam, quase sempre, o predomínio da imagem sobre o texto escrito;
possuem palavras de sílabas simples e frases curtas nominais em ordem
direta; exploram, geralmente, uma situação narrativa simples, que tenha
princípio, meio e fim, e trazem, de modo costumeiro, a nomeação das coisas.

Leitura compartilhada x Leitura individual

Em sala de aula, como já dito, é possível trabalhar modos plurais de ler.


A leitura compartilhada, por exemplo, que se tornou uma atividade impres-
cindível na prática escolar em todos os níveis educativos, auxilia na interpre-
tação de textos mais complexos, já que estimula o aluno a refletir, a retornar
ao texto, a comparar, a contestar, a aprofundar o significado da história e a
observar como se conseguiu esses efeitos.

130
O fato de a literatura oportunizar diferentes níveis de significado faz com
que a partilha seja um momento bastante rico e experimentado de formas
diversas. Devido à colaboratividade, os leitores: ampliam e enriquecem seus
recursos de expressão e compreensão da língua; comentam sobre o que leram
ou ouviram, ajudando uns aos outros a atribuir sentido ao texto; aprimoram
os conceitos literários, como, por exemplo, a diferença entre autor e narrador;
estabelecem conexões com outras leituras; observam as diferentes leituras
que um mesmo texto possibilita; desenvolvem novas formas de interpretação
ao observar como os fazem os demais; exercitam o pensamento complexo,
a empatia, o diálogo e a negociação, e se apropriam de conhecimentos e de
experiências diversas para alcançar leituras significativas.
O professor também deve garantir espaço para que se realize a leitura
individual dentro e fora do ambiente escolar - mesmo não possuindo a ca-
pacidade de ler autonomamente13 - como forma de estimular a reflexão, a
fruição e a liberdade (desfrutar os próprios caminhos de interpretação).
A leitura individual, como proposição didática, é de suma relevância,
pois incentiva o aluno a: formular suas próprias inferências, hipóteses e
conclusões; desenvolver um pensamento sustentado em certa esfera de seu
interesse; conectar-se ao texto ao seu modo, seja fruindo ou questionando;
encontrar seu próprio ritmo, adaptando sua velocidade aos seus propósitos,
e reler o que não entendeu ou o que mais lhe agradou;

Leitura como interação


(conversas apreciativas)

Para Silva (2005), quando se compartilha a leitura, abre-se espaço para


um encontro de vontades, no qual se aceita o outro em suas diferenças: ques-
tionar, contrapor, problematizar, apreciar, refletir e recriar são alguns dos
modos de se ampliar o ponto de vista e de gerar o novo a partir da interação.
Chambers (2007), na mesma perspectiva, enfatiza que o ato da leitura
consiste, em grande medida, na conversa sobre os livros que foram lidos. Para

131
ele, esse intercâmbio de experiências é uma oportunidade riquíssima para
se conhecer o que o outro pensa (e como pensa), favorecendo a negociação
e a expansão dos sentidos.
Dar e escutar a palavra é, portanto, um exercício não só de democrati-
zação da leitura, mas também de alargamento das competências leitoras.
Bajour (2012, p. 25) destaca que:
Construir significados com outros sem precisar con-
cluí-los é condição fundamental da escuta, e isso supõe a
consciência de que a construção de sentidos nunca é um
ato meramente individual. Essa concepção dialógica da
escuta faz parte de todo ato de leitura em que se busque
abrir significados e expandi-los de modo cooperativo.

Ela ainda acrescenta que:


Os modos específicos de entrar nos textos podem
partir de algumas chaves que cada livro sugira, ou de
algum aspecto que se queira destacar ou no qual se quei-
ra intervir para a construção de saber literários. Se um
livro mostra como chave central ou princípio constru-
tivo o uso da ironia ou o contraponto entre a imagem e
o texto, as previsões sobre a conversa a respeito desse
livro, e por conseguinte, a conversa propriamente dita,
pode procurar “seguir o jogo” desse “truque” do texto.
(BAJOUR, 2012, p. 64).

Para a autora, “falar dos textos é voltar a lê-los”, é trazer - como tema
central às aulas - o amor aos livros, além de falar informalmente sobre ele-
mentos do mundo da literatura. Mas como deve ser essa conversa apreciativa?
Inicialmente, costuma ser marcada pela opinião dos alunos (apresentação
pessoal do que achou e percebeu). O professor, frente a essas apreciações, vai
fazendo intervenções, de modo a orientar o bate-papo diante de um deter-
minado objetivo14, mas não de uma resposta única, afinal os textos literários
possuem um caráter plurissignificativo, aberto a diversas interpretações de
acordo com o conhecimento de mundo de cada um.
Silva (2005) sublinha que o papel do professor é instigar o conflito das

132
interpretações junto ao grupo de alunos, à medida em que é nesse embate
que reside a maior riqueza da leitura.

Leitura de imagens

Graça Ramos salienta que, não somente o formato da obra, mas também
suas ilustrações são de grande relevância para a composição dos sentidos.
De acordo com ela:
Não é a quantidade de imagens que define o valor
de um livro, mas sim a função que elas exercem na nar-
rativa. Por isso, todo detalhe de uma ilustração é im-
portante. [...] As imagens podem concordar, tensionar,
negar, expandir ou propor uma visualidade nova para o
que está dito com as palavras. A imagem torna-se mais
rica quando explora as potencialidades expressivas de
linha, cor, forma, criando ritmos visuais. Esses elemen-
tos plásticos contribuem para estruturar a narrativa.
(RAMOS, 2013, p. 146).

Diante da complexidade dos exemplares literários que articulam palavra e


imagem, é de suma importância que o professor desperte no aluno um olhar
de espanto/descoberta/encanto para esse tipo de feitura visual, explorando
a capacidade associativa por analogia, bem como a percepção astuta e a
memória avivada, pois:
A posição dos personagens nas páginas contribui
para a leitura da história. Imagens em página par tendem
a ter menos importância que aquelas situadas em páginas
ímpar. Imagens acima do meio da página costumam ser
mais relevantes que aquelas inseridas abaixo. Imagens
próximas às bordas das páginas dão ideia de que o mo-
vimento continua nas páginas seguintes.[...] Os traços
podem ser figurativos, ao formarem imagens reconhe-
cíveis do mundo. Ou abstratos, quando se afastam da
ideia de realidade objetiva. As cores sugerem estados de

133
ânimos. As quentes tendem ao dinamismo, ao agitado e
também ao nervoso. Já as frias expressam sentimentos
mais calmos, algo mais plácido. (RAMOS, 2013, p. 147)

Aspectos metodológicos: núcleo de


formação docente e de produção editorial

O Instituto Dom Barreto, no intuito de oferecer uma educação de quali-


dade desde o Infantário, possui, no segmento infantil, um núcleo de forma-
ção docente e de produção editorial, coordenado por Bernadete Rangel. O
conjunto de formações continuadas (oficinas, cursos, palestras, seminários
etc.) é oferecido tanto pelos integrantes da comunidade escolar (intercâmbio
de experiências), quanto por convidados externos à instituição, a exemplo
da autora deste texto que presta assessoria pedagógica. No que se refere ao
centro editorial, a escola conta com professores-autores que produzem o
próprio material pedagógico.

Fonte: arquivo pessoal da autora

134
Dentre os inúmeros produtos editoriais, destacam-se os projetos literários,
cujas orientações e atividades norteiam o trabalho com a literatura dentro
e fora de sala de aula. É preciso destacar que a materialidade desses objetos
pedagógicos é também um convite para interação, reflexão, experimentação
e aprendizagens lúdicas. Exemplos:

Fonte: imagens cedidas pela escola

O projeto de leitura sobre o livro Casas (1994), de Roseana Murray, ilus-


tra um pouco de que forma a literatura abre portas para um olhar complexo
sobre si e o mundo. Além da maneira como a proposta pedagógica vai se
desdobrando, abrigando leituras e fazendo surgir uma vila de casinhas (e
de interpretações), a mediação também é um recurso-chave para o desen-
volvimento do pensamento autônomo.

135
Fonte: imagens cedidas pela escola

Em dado momento, na sala de aula, quando a professora retoma o verso


“o corpo é a casa dos pensamentos”, do poema Sem casa, ela pergunta: “Onde
fica o pensamento? Por que a gente não o vê? O que mais mora dentro da
gente?”. Entre essas e tantas outras questões que vão figurando a literatura
como um fio de Ariadne, uma criança, ao retomar o verso “Tem gente que
não tem casa / Mora ao léu, debaixo da ponta”, diz: “Eu acho que nem precisa
de casa mesmo, né? A gente mora é dentro da gente.”.
É possível observar com esse comentário que uma discussão tão deli-
cada quanto a existência de pessoas em condição de rua é “resolvida” de
maneira poética e, por que não, filosófica. Com a possibilidade de entrar no
universo das palavras, dos jogos sonoros e das ilustrações desde a infância,
como apresentado, os leitores - ainda em formação - ensaiam suas primeiras
construções estéticas, mas isso é assunto para um outro texto.

136
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na Educação Infantil, o professor, enquanto promotor/mediador de leitura


literária, deve elaborar propostas pedagógicas que oportunizem a experimen-
tação das linguagens e a participação ativa da criança na produção de signi-
ficados, pois, consoante Zilberman (1993), o mundo desvela-se no complexo
processo de ação interacional que se estabelece entre o texto e aquele que lê.
À luz das considerações teóricas de Rouxel (2013), observa-se, portanto,
que quaisquer escolhas didáticas devem estar revestidas de uma importância
maior: instituir o aluno como sujeito leitor. Nesse sentido, é preciso que o
professor: figure-se também como um sujeito leitor e compreenda o papel da
literatura na formação humana; atente-se para a escolha das obras literárias,
observando as contribuições das mesmas para o desenvolvimento sensível e
crítico da criança, e medeie os saberes sobre os textos, os saberes sobre o ato
léxico (e o metaléxicos) e os saberes sobre si (subjetividade no ato da leitura).

137
Notas

1  A BNCC define seis direitos de aprendizagem na Educação Infantil (brincar, co-


nhecer-se, conviver, explorar, expressar e participar) a partir de cinco campos de
experiências: corpo gestos e movimento; escuta, fala, pensamento e imaginação;
espaços, tempos, quantidades, relações e transformações; o eu, o outro e o nós, e
traços, sons, cores e formas.
2  Nelly Novaes Coelho delineia os princípios orientadores para a escolha de livros
adequados ao perfil de cada leitor com base nos estágios psicológicos da criança
e do adolescente.
3 Disponível em: http://ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/verbetes/
leitura-literaria. Acesso em 18 mai. 2019.
4  Disponível em: http://www.ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/ver-
betes/experiencia-estetica-literaria. Acesso em: 10 mar. 2019.
5  A leitura literária contempla tanto um veio estético, no qual afloram as expe-
riências de vida, quanto um mais analítico, voltado para o trabalho com as lingua-
gens. No primeiro, o leitor pode identificar-se com algum personagem, relacionar
o texto com algum acontecimento de sua vida, divagar. Já, no segundo, o leitor
pode voltar-se para a materialidade e, por exemplo, reconhecer o modo de ser de
uma personagem, identificar diferentes sentidos que uma expressão possa assumir,
relacionar palavra e imagem, etc.
6  O antigo internato, onde as moças aprendiam artes domésticas, recebeu o nome de
Instituto Dom Barreto, na década de 1970, com a chegada da professora Maria Stela
Rangel para consolidar o Ensino Fundamental. A Educação Infantil, recorte deste
texto, iniciou em 1953 ao serem implantadas as primeiras turmas de ensino regular.
7  O Referencial Curricular para a Educação Infantil sustenta-se em dois âmbitos
de experiência: formação pessoal e social (construção da identidade e autonomia)
e conhecimento de mundo (movimento, música, artes visuais, linguagem oral e
escrita, natureza e sociedade).
8  De acordo com a psicolinguista Emilia Ferreiro, mesmo não alfabetizadas, as
crianças devem ter contato com a linguagem escrita.
9  Forma carinhosa, utilizada por toda comunidade escolar, para se referir aos es-
tudantes da Educação Infantil.
10  Disponível em: http://revistaemilia.com.br/yolanda-reyes/. Acesso em: 09 mai. 2019.

138
11  Há critérios para seleção dos exemplares literários a serem lidos em voz alta,
tais como: livros considerados complexos e mais extensos que os alunos sozinhos
não conseguiriam ler ou compreender; livros que expressem a produção cultural de
uma determinada língua, nação ou comunidade; livros que possibilitem diferentes
experiências literárias, expressas na diversidade de gêneros textuais e em variados
projetos editoriais; livros que permitam conhecer diferentes autores, ilustradores
e estilos, e livros que “encabeçam” uma série ou coleção a ser apresentada pelo
professor.
12  Disponível em: http://www.ceale.fae.ufmg.br/app/webroot/glossarioceale/ver-
betes/leitura-silenciosa. Acesso em: 14 mar. 2019.
13  Os leitores iniciantes podem buscar indicações, por exemplo, nas imagens, em
palavras conhecidas e , no conhecimento sobre o autor e o gênero.
14  Os objetivos podem ser os mais variados possíveis. De maneira geral, espera-
-se que sejam discutidas questões relacionadas ao repertório prévio dos alunos e à
percepção estética (palavra, imagem e projeto editorial).

139
REFERÊNCIAs

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142
d
A mais linda de todos os Filhos de
Ilúvatar: Lúthien e o feminino nos
contos de fadas
Cristina Casagrande

Conta-se, na “Balada de Leithian”, que Beren chegou


trôpego a Doriath, grisalho e curvado como quem viveu
muitos anos de tristeza, tão grande tinha sido o tormento
da estrada. Mas, vagando no verão pelas matas de Nel-
doreth, ele se deparou com Lúthien, filha de Thingol
e Melian, na hora do anoitecer, sob a Lua que nascia,
enquanto ela dançava sobre a relva sempre verde das
clareiras à beira do Esgalduin. Então toda a memória
de sua dor o deixou, e ele caiu num encantamento; pois
Lúthien era a mais linda de todos os Filhos de Ilúvatar.
Azul era a sua vestimenta, feito o céu sem nuvens, mas
seus olhos eram cinzentos como o anoitecer estrelado;
o seu manto era bordado com flores douradas, mas seu
cabelo era escuro, feito as sombras do crepúsculo. Como
a luz sobre as folhas das árvores, como a voz de águas
claras, como as estrelas acima das brumas do mundo, tal
era a sua glória e a sua delicadeza; e em seu rosto havia
brilhante luz. (TOLKIEN, 2019, p. 227)

A personagem central de nossa análise, Lúthien, também chamada Tinú-


viel, está entre as mais importantes elfas1 do legendário2 de J.R.R. Tolkien.
Com Beren, seu amado mortal, ela está no centro do principal conto inse-

143
rido em O Silmarillion, o qual é, ao mesmo tempo, independente e ligado
à história geral do livro — assim como ocorre com Os Filhos de Húrin e A
Queda de Gondolin.3
O presente estudo se propõe estabelecer uma análise, pelo método da lite-
ratura comparada, entre Lúthien e protagonistas consagradas dos contos de
fadas — “Branca de Neve”, “Rapunzel” e “Chapeuzinho Vermelho”, na versão
dos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm. Encontraremos não só semelhanças e
distinções entre Lúthien e as demais personagens, mas, sobretudo, visaremos
enxergar qual a proposta da figura feminina que a elfa apresenta na literatura
e na sociedade não só à época em que O Silmarillion fora lançado, em 1977,
mas também nos dias de hoje, em que ele é bastante lido.
Escolhemos as três personagens para análise por elas serem ícones do
conto de fadas ocidental — especialmente por disseminação dos Grimm4
— e, principalmente, por cada uma delas trazer aspectos complementares
para a totalidade da compreensão de Lúthien, diante de nossa proposta. Tais
questões seriam: as feições físicas que refletem o seu caráter (“Branca de
Neve”), a ação dos outros que estimulam a sua atitude (“Rapunzel”) e o en-
frentamento do desconhecido e do perigo, que propiciam a sua maturidade
(Chapeuzinho Vermelho). Tanto Branca de Neve, quanto Chapeuzinho Ver-
melho e Rapunzel estabelecem uma forte relação comparativa com Lúthien
Tinúviel, permitindo, com esse exercício, que as qualidades idiossincráticas
da amada de Beren fiquem mais evidentes e reveladoras.
A história de Beren e Lúthien possui várias versões, sendo a primeira, O
Conto de Tinúvel, escrita em 1927, a qual não existe mais, “ou mais precisamen-
te”, como explica Christopher Tolkien na publicação Beren e Lúthien, “existe
apenas na forma fantasmagórica de um manuscrito a lápis que ele apagou
quase por completo na maior parte de sua extensão” (TOLKIEN, 2018, p. 28).
Por cima dessa versão “fantasmagórica”, ele escreveu novamente O Conto de
Tinúviel, conhecido hoje como o mais antigo registro dessa história. Existem
versões em poesia em A Balada de Leithian — jamais finalizada — e até mes-
mo um trecho da história de Tinúviel, cantado por Aragorn em A Sociedade
do Anel. A versão que utilizaremos aqui será a do próprio Silmarillion, no
capítulo chamado “De Beren e Lúthien”, mas ocasionalmente, utilizaremos
o apoio de outras versões para enriquecer a discussão.

144
Bela como a aurora na primavera: o aspecto
físico como símbolo do caráter

Quando Beren se encontrou com Thingol, o rei dos Sindar, pela primeira
vez, sentiu-se apavorado, e as palavras lhe fugiam da boca. Ele amava a filha
do rei, mas a sua condição de um mero homem e não um elfo poderoso o co-
locava como indigno de desposá-la, de acordo com o crivo do pai da donzela
élfica. No entanto, ao contemplar os olhos de Lúthien e o rosto de sua mãe,
Melian, a Maia5 encarnada, Beren tomou coragem, pareceu que “palavras
estavam sendo postas em sua boca” (TOLKIEN, 2019, p. 229) e exclamou:
“Meu fado, ó Rei, trouxe-me aqui, através de perigos
tais que poucos, mesmo entre os Elfos, ousariam enfren-
tar. E aqui achei o que não buscava, com efeito, mas,
achando, quero possuir para sempre. Pois está acima de
todo ouro e de toda prata e além de todas as joias. Nem
rocha, nem aço, nem os fogos de Morgoth, nem todos os
poderes dos reinos-élficos hão de me afastar do tesouro
que desejo. Pois Lúthien, vossa filha, é a mais bela de
todos os Filhos do Mundo.” (Ibidem)

Esse trecho exalta as qualidades de Lúthien, o que levou Beren a se apai-


xonar ardentemente por ela. A princesa de Doriath é considerada a mais bela
de todas as criaturas divinas, nela contém sangue élfico, por parte de seu pai
Thingol,6 e Maia, vindo de sua mãe, Melian. Sua força está justamente na sua
beleza, não só física, mas na graça de seus gestos e no poder de suas habilida-
des: sua dança e seu canto que envolvem todo o seu povo do reino de Doriath.
Tais características ela certamente herdou da mãe, inclusive as físicas. Seu
pai, Thingol, tem os cabelos prata acinzentados, enquanto os de Lúthien são
escuros, provavelmente como os de sua mãe. Assim Lúthien é descrita:
Azul era a sua vestimenta, feito o céu sem nuvens,
mas seus olhos eram cinzentos como o anoitecer estre-
lado; o seu manto era bordado com flores douradas, mas
seu cabelo era escuro, feito as sombras do crepúsculo.
Como a luz sobre as folhas das árvores, como a voz de

145
águas claras, como as estrelas acima das brumas do mun-
do, tal era a sua glória e a sua delicadeza; e em seu rosto
havia brilhante luz. (TOLKIEN, 2019, p. 227)

Essa breve descrição, que retomamos da epígrafe deste texto, apresenta a


dualidade de Lúthien. Sua vestimenta era azul como um céu claro, remetendo
ao dia, enquanto seus olhos eram cinzentos como o céu estrelado, associado
à noite. Novamente a descrição de sua vestimenta traz características de um
tempo ensolarado, primaveril, pois é dito que seu manto é bordado com flores
douradas, mas seu cabelo era escuro como o cair do dia.
Nota-se, nesses detalhes, que as características mais superficiais de Lú-
thien, ou seja, de sua vestimenta, aparentam o dia, que nos remete à vida,
à alegria e à certeza, assim como diz o significado do seu nome, “Filha das
Flores”. Por outro lado, as características físicas dela, impregnadas no seu
próprio ser, remetem à noite, combinando com o nome que Beren a chama,
quando a vê pela primeira vez: “Tinúviel”7, que significa “Rouxinol” ou lite-
ralmente “Filha do Crepúsculo”.
Rouxinol, um pássaro que costuma cantar mais à noite, frequentemen-
te aparece na literatura e traz uma série de simbologias. No dicionário de
símbolos, é descrito:
O rouxinol tem tido a carreira mais espetacular de
todos os pássaros literários. Ele apareceu em milhares
de poemas desde Homero até o século XX, e ainda em
tempos antigos, ele adquiriu um significado quase for-
mulaico como o pássaro da primavera, da noite e do luto.
Mais tarde, por sua ligação com a primavera e a noite,
ele também se tornou um pássaro do amor. (FERBER,
2007, p. 138)8

Vejamos a passagem que mostra o primeiro encontro de Beren e Lúthien:

Mas desapareceu da vista dele; e Beren emudeceu,


como alguém que é atado por um feitiço, e desgarrou-se
por longo tempo nas matas, selvagem e arredio feito um
bicho, a buscá-la. Em seu coração, a chamava de Tinúviel,

146
que significa Rouxinol, Filha do Crepúsculo, na língua
dos Elfos-cinzentos, pois não conhecia outro nome para
ela. (TOLKIEN, 2019, p. 227)

Foi nos bosques de Neldoreth que Beren encontrou Lúthien, dançando


e cantando, e se apaixonou pela glória e beleza dela. Na sequência, Lúthien
desaparece da vista de Beren, provavelmente assustada com a situação. Ainda
não estava preparada para o seu destino. A presença de Beren despertara isso
nela. Tal atitude deixa Beren atordoado, pois, além de ter passado por muito
sofrimento para chegar até lá, ele precisou passar pela provação de não ver
a sua amada, aquela que lhe renovara as esperanças e a alegria.
Em Mulheres que Correm com Lobos, a analista jungiana Clarissa Pinkola
Estés, tenta traçar, por meio de mitos e lendas, aspectos da mulher selvagem,
que é a mulher nos seus estados psíquicos e instintivos mais “crus”, despidos
das máscaras sociais. “Qualquer um que seja íntimo de uma Mulher Selvagem
está de fato na presença de duas mulheres: um ser exterior e uma criatura
interior, um que habita o mundo terreno, e outro que vive num mundo não
tão visível” (2014, p. 140).
Nesse aspecto, Estés ressalta que quanto mais esses dois lados da mulher
forem reconhecidos, mais se conhece ela em sua integridade. Beren assim
demonstra um conhecimento pleno de sua amada, em tão pouco tempo que
passa perto dela: seu lado Lúthien, donzela pura e encantadora; e seu lado
Tinúviel, o rouxinol, que não só é dono de um dos mais belos cantos da na-
tureza, como tem uma forte carga mítica.
Como um prenúncio de seu fim, Beren reconhece, em Lúthien, seu caráter
Tinúviel, o rouxinol que, por meio de seu canto de lamento, irá lhe trazer a
possibilidade de retornar à vida. Segundo Estés, é comum que “a procura pelo
nome tenha como objetivo invocar aquela força ou aquela pessoa, chamá-la
para que se aproxime e entrar em um relacionamento com essa pessoa” e
que conhecer os nomes “representa adquirir consciência acerca da natureza
dual e retê-la” (ESTÉS, 2014, p. 143).
Em Tolkien’s Theology of Beauty, Lisa Coutras cita a autora Mary Zimmer
para reforçar a questão da importância dos nomes na literatura de Tolkien:

147
Como Zimmer observa, Tolkien usa a significância
e o poder da linguagem como realidade descritiva e ex-
pressiva das coisas reais; do mesmo modo, os nomes
revelam a realidade de um ser. Ela escreve “[Um] verda-
deiro nome é a causa exemplar da coisa material ao que
ela refere; o ‘nome de uma coisa não é um mero rótulo
ou símbolo mas a verdadeira realidade.’” O verdadei-
ro nome de alguém é a realidade expressiva de um ser.
Revelar o verdadeiro nome de alguém é revelar o poder
de um ser ou ainda expor a vulnerabilidade de um ser.9
(2016, p. 108)

Beren, portanto, enxerga em Lúthien a mais profunda realidade do seu


ser, vê seu segundo nome antes mesmo de conhecê-la de fato. Quando se
aproxima de Tinúviel, o rouxinol que lhe trará cura espiritual, psicológica
e física, também se aproximará de Lúthien, e reconhecendo essas duas mu-
lheres numa só, ele a terá ao seu lado, em sua integralidade.
Por ora, guardemos essas simbologias a respeito da personalidade pro-
funda e destino dual de Lúthien e nos voltemos, mais uma vez, às suas carac-
terísticas físicas que nos conduzirão a um conhecimento mais complexo da
personagem. Diante dessas breves descrições físicas da elfa, cabelos escuros
e a pele provavelmente alva10, além de uma beleza indescritível, estabelece-
mos um paralelo com a personagem clássica dos contos de fadas ocidentais,
que conserva as mesmas características físicas: Branca de Neve. É dito na
versão dos Grimm:
Num certo dia de inverno, flocos de neve caíam como
penas do céu e uma bela rainha costurava à janela, cujo
batente era de ébano preto. Enquanto estava costurando
e levantou o rosto para ver a neve, ela espetou o dedo
com a agulha e três gotas de sangue caíram na neve.
Como o vermelho combinava tão bem com o branco,
pensou: “Quem me dera ter uma filha branca como a
neve, vermelha como o sangue e negra como esse batente
de janela”. Pouco tempo depois ela deu à luz uma meni-
na, branca como a neve, vermelha como sangue e preta
como o ébano, e por isso foi chamada de Branca de Neve.

148
[...]
Branca de Neve foi crescendo, e aos sete anos de
idade, sua beleza era tamanha que superava até mesmo
a da rainha, e quando esta perguntou ao espelho:

“Espelho, espelho meu,


existe no mundo alguém mais bela do que eu?
O Espelho respondeu:
“Vós, minha rainha, sois a mais bela por aqui,
mas Branca de Neve é mil vezes mais bonita!”
(GRIMM, GRIMM, 2012, p. 247–248).

Assim como no conto de Lúthien, a beleza de Branca de Neve é um mo-


tivo para chamar atenção dos que a rodeiam, de desconforto na família e de
confusões para ela mesma, ao mesmo tempo que é a chave para o encontro
com seu amado e fonte de seu próprio amadurecimento. Diante disso, sele-
cionamos aqui três pontos centrais da nossa análise nesta seção: a relação
com a mãe, a questão da beleza e a presença do Espelho.
Nessa versão dos irmãos Grimm (a primeira) que utilizamos para esta
análise, é a própria mãe de Branca de Neve, não a madrasta, que sente in-
veja pela beleza da filha e, por isso, manda matá-la. Veronica L. Schanoes
(2014) atenta para o fato de que, nos contos de fadas, a relação mãe e filha
raramente é tranquila. “A impressão geral das figuras maternas dadas pelas
versões mais reconhecíveis dos mitos e dos contos de fadas mais populares
é de mães maldosas, ausentes ou desagradáveis.”11 (SCHANOES, 2014, p. 15).
O conto de fadas dos Grimm traz traços muito pesados, embora conserve
um final feliz para Branca de Neve. Quanto à mãe, eles fazem um retrato
assustador: a rainha má não só manda matar a filha, como come o pulmão
e o fígado de um porco selvagem pensando que eram de Branca de Neve.
Mas como o Espelho lhe revela que a princesa ainda está viva, ao responder
que ela era ainda mil vezes mais bela que a rainha, a malvada mãe resolve
acabar com a vida da doce princesa com as próprias mãos.
A rainha então se disfarça três vezes até conseguir eliminar a bela de
sua vida — temporariamente, para seu desespero. Da primeira vez, ela se
passa por uma vendedora ambulante de cordões e vai até a casa dos anões

149
para vendê-los à Branca de Neve, apertando um deles tão forte na cintura da
princesa, que ela cai morta no chão. Mas os anões voltam para casa, cortam
o cordão, e a bela volta a viver.
Na segunda tentativa, a malvada mãe se transforma numa outra velha,
que quer lhe vender um pente envenenado. Atraída pelo brilho do pente,
mesmo tendo sido advertida pelos anões para não abrir a porta aos estranhos,
acabou comprando-o e passando-o nos cabelos. Caída morta no chão, foi
salva novamente pelos anões, quando eles tiraram o pente dos cabelos dela.
Por fim, a rainha má se vestiu de camponesa e persuadiu Branca de Neve a
morder a maçã envenenada, e a frágil princesa ficou morta por muito tempo,
velada num caixão de vidro até ser resgatada pelo príncipe.12
Nos três casos, podemos observar que Branca de Neve tem um apreço
por objetos de valor, que potencializem sua beleza, e não consegue resistir à
tentação de tomá-los para si. A prova fatal é quando ela não resiste à maçã,
que não é um mero objeto, mas um alimento, que com toda a sua aparência
irresistível, não só irá embelezar a princesa, mas irá incorporá-la.
Em um ensaio, Ana Sofia Pereira Caldeira (2010) alerta para o fato de
Branca ter um apego por enfeitar-se que acaba culminando em perigos
mortais. O cordão e o pente eram objetos de adorno para Branca, que já
nascera bonita. Mas a vaidade fazia com que ela quisesse mais, sem medir
as consequências.
Branca seria o resultado de uma idealização de sua mãe, que um belo dia
viu seu próprio sangue vermelho cair sobre a neve branquíssima, enquanto
costurava próximo à janela cujo batente era de preto ébano e, a partir de
então, desejou ter uma filha com tais cores em suas feições. Caldeira ressal-
ta o fato de a beleza ser uma imagem que moldamos, como quem pinta um
quadro e que esses adornos são resultados da nossa manipulação diante de
um padrão estético que estabelecemos.
A rainha é obsessiva com sua própria beleza assim como é com sua filha.
Assim, quando Branca de Neve passou a ser outra e não uma extensão da
mãe, sua reação foi querer tirar-lhe a vida, como ela própria a criou. Não é
o mesmo, nem de longe, que acontece com Melian e Lúthien. A Maia, que
também tinha uma beleza e encantos notáveis, tem um amor puro e incon-
dicional pela filha, mas sem sentimentalismos. Vemos seu amor no seu olhar

150
discreto e na força da própria Lúthien. Esta, por sua vez, não é resultado da
idealização de Melian, mas fruto de um profundo amor de seus pais.
Dessa maneira, a esposa de Thingol não sufoca a existência da filha, ao
contrário, é como se Melian fosse a fonte de todo o poder da donzela élfi-
ca — inclusive a beleza, a arte do canto e do encanto. A rainha de Doriath
não só ajudava Lúthien, como o próprio Beren: vimos que, com o simples
contemplar do rosto de Melian, além do olhar de Lúthien, o homem tomou
coragem para declarar seu amor pela princesa élfica frente a seu austero
pai, Thingol. Além disso, a rainha Maia conteve a ira de Thingol, rogando-o
que não executasse Beren.
O rosto de Melian trazia a luz de Aman, a Terra Abençoada, para a Ter-
ra-média e assim ela transmitiu essa luz a seus descendentes. A beleza de
Melian é descrita como o sol do meio-dia, enquanto de Lúthien era como a
de uma manhã de primavera.
Diz-se sobre a Maia:
Habitava os jardins de Lórien e, entre todo o povo
dele, não havia ninguém mais bela do que Melian, nem
mais sábia, nem mais hábil em canções de encantamen-
to. Conta-se que os Valar deixavam seus trabalhos, e as
aves de Valinor, seus festejos, que os sinos de Valmar
silenciavam e que as fontes deixavam de fluir quando,
no misturar das luzes, Melian cantava em Lórien. Rouxi-
nóis estavam sempre com ela, e Melian os ensinou suas
canções; e ela amava as sombras profundas das grandes
árvores. (TOLKIEN, 2019, p. 89).

Lúthien causava uma sensação parecida, na Terra-média, à de sua mãe


em Aman, pois seu canto e dança alegravam e encantavam todo o reino de
Doriath. Isso se evidencia quando Beren partiu para buscar a Silmaril como
prova de seu amor, a pedido de Thingol, a elfa não mais cantou em Doriath,
trazendo silêncio e sombras àquele reino, pois aquilo era como uma sentença
de morte ao seu amado.
Tinúviel contou também com a ajuda de sua mãe, que tinha o poder de
ver além das fronteiras de Doriath. Por meio de Melian, a elfa descobriu que
Beren estava preso nas masmorras de Sauron, e, com isso, resolveu ela mes-

151
ma fugir e salvar seu amado. E o poder de Lúthien ameaçou Sauron, “pois
sabia que era a filha de Melian” (TOLKIEN, 2019, p. 239).
Vemos, portanto, nesses e em mais exemplos que não foram aqui citados,
que Melian estava em comunhão com Lúthien, ainda que a ajuda da mãe para
com a sua filha resultasse na separação final de ambas — pois Lúthien teria
um destino diferente de sua mãe, ao escolher, perante os Valar, ficar ao lado
de Beren e se tornar uma mortal. Melian traz, portanto, um amor de doação,
enquanto no coração da rainha má há perversão perante Branca de Neve.
Vemos assim que o nascimento de Lúthien é superabundância do amor
de Melian e Thingol, enquanto Branca de Neve é um resultado da obsessão
da rainha por si mesma. A beleza de Lúthien, assim, reflete o Reino Aben-
çoado, não se esgotando em uma questão física, pois o corpo é algo passível
de sofrer uma manipulação excessiva por adereços. Ao contrário, a beleza de
Lúthien é uma exaltação de seu caráter virtuoso, que reflete sua sabedoria,
coragem e bondade.
Por fim, vemos, na presença do espelho, algo tão presente nas obras de
Tolkien: o duplo.13 Diz Ferber no dicionário de símbolos literários: “O sim-
bolismo de espelhos não depende apenas do que as coisas causam o reflexo
— natureza, Deus, um livro, drama — mas também do que se vê neles — a si
mesmo, a verdade, o ideal, ilusão”14 (2007, p. 126). No espelho, a personagem
vê um outro, para enxergar melhor a si mesmo.
A rainha má vê, no espelho, uma imagem de si mesma, mas nunca será
capaz de se ver como ela realmente é e como os outros a veem, mas somente
seu reflexo e a ilusão que cria de si mesma. Obcecada pela própria aparên-
cia, como o mito de Narciso, acaba arruinando a sua vida, o que resulta na
vontade de aniquilar a própria filha, quando esta já atinge a idade da razão
(sete anos). Desta forma, procurando destruir a filha, acaba destruindo a
si mesma. Branca de Neve, por sua vez, encontra no “verdadeiro amor”, de
acordo com o que a história propõe, a libertação dessa corrente vaidosa,
rompendo com o duplo criado por sua mãe.
Melian, por sua vez, não tem um objeto concreto de espelho, mas tem
uma relação de duplo com Lúthien também: ambas têm naturezas diferen-
tes e de maior poder à de seus cônjuges, possuem uma beleza indescritível
e um forte poder de encantamento. Mas ao contrário da rainha má, Melian

152
não busca sufocar Lúthien numa obsessão pessoal, mas procura amar a filha
de modo virtuoso e produtivo. O resultado não é sua autodestruição, mas a
realização de suas vidas independentes.
Eras mais tarde, Arwen Undómiel, trineta de Lúthien também terá uma
relação de duplo com ela. Assim como Tinúviel, Arwen vai abdicar de sua
condição élfica, como imortal, para tornar-se uma mortal por amor a um
homem, Aragorn, o rei de Gondor e Arnor. Em suas cartas, Tolkien afirma
que Arwen não é uma encarnação de Lúthien, mas alguém muito semelhan-
te a ela em “aparência, personalidade e destino” (TOLKIEN, 2010, p. 187).
Mas enquanto a relação de duplo entre a rainha e Branca de Neve pres-
supõe a não existência uma da outra, pelo excesso de vaidade por parte da
rainha e de certa frivolidade por parte de Branca de Neve, a relação de Me-
lian e Lúthien é de doação. Melian esquece de si mesma e de sua satisfação
pela felicidade da filha, mas sem se anular, pois quanto mais generosa, mais
ela brilha em seu esplendor, o que, de certa forma, nutre o poder da filha.

Fuga do cativeiro:
atitude versus passividade

Lúthien podia não ter problemas com a mãe, mas teve com o pai. Ao
menos, a partir da chegada de Beren à vida deles.
Daeron, o Menestrel, também amava Lúthien. Ele
descobriu seus encontros com Beren e os denunciou a
Thingol. Enfureceu-se então o Rei, pois ele amava Lú-
thien acima de tudo, considerando-a superior a todos
os príncipes dos elfos; ao passo que homens mortais ele
nem admitia a seu serviço. Por isso, falou com Lúthien,
magoado e espantado. (TOLKIEN, 2019, p. 228)

Depois desse episódio, Lúthien fez o rei Thingol prometer que não mata-
ria Beren e, na sequência, o rei o inquiriu. Tomando coragem, Beren declara

153
seu amor por Lúthien a Thingol. Furioso, mas preso à promessa de não o
matar, Thingol propõe um desafio a Beren: que o homem lhe trouxesse uma
das três preciosas Silmarils das garras de Morgoth15 e assim poderia tomar
a mão de Lúthien.
A princesa élfica caiu numa tristeza imensa com a partida de Beren.
Pouco depois, quando sentiu em seu coração que seu amado estava em pe-
rigo, procurou os conselhos da mãe e descobriu onde ele estava: preso nas
masmorras de Tol-in-Gaurhoth, a mando de Sauron. Sem demora, Lúthien
decidiu ela mesma ajudar Beren, pois sabia que mais ninguém iria socorrê-lo.
No entanto, ao pedir a ajuda de Daeron, este mais uma vez traiu sua con-
fiança, contando o plano dela a Thingol. Assustado, o rei mandou construir
uma casa numa grande faia chamada Hírilorn, onde Lúthien ficou trancada,
sem poder sair. Não é difícil fazer uma associação desse episódio com o conto
de Rapunzel, dos irmãos Grimm.
Diz-se que os pais de Rapunzel tinham muitas dificuldades de ter filhos,
por mais que tentassem, nunca conseguiam. Quando finalmente a esposa
conseguiu engravidar, ela sentiu uma vontade imensa de comer uns rapôn-
cios16 que viu em um jardim por onde andava, e seu marido foi pegar alguns
para ela. Como seu desejo persistia mais e mais, um dia, a fada que era dona
do jardim pegou o homem furtando seus rapôncios. Ele explicou a situação
à mulher, pois a criança poderia correr o risco de não nascer se os desejos
de sua esposa não fossem realizados. A fada permitiu-lhe que pegasse os ve-
getais com a condição de que ele lhe entregasse a criança quando nascesse.
Rapunzel então foi levada pela fada quando era ainda bebê e passou
a sua vida presa numa alta torre, no meio da floresta. Seus cabelos foram
crescendo, e o único acesso que sua madrasta tinha à torre era justamente
por suas longas madeixas douradas, que lhe serviam de cordas para chegar
ao topo. Um dia, um jovem príncipe viu Rapunzel na alta torre e, escon-
dido, observou como a fada madrasta chegava até ela. Ele fez o mesmo, e,
ao se conhecerem, Rapunzel e o príncipe se apaixonaram perdidamente,
repetindo os encontros.
Até que Rapunzel engravidou, despertando a fúria da fada, que conside-
rou isso como uma traição de sua prisioneira. Depois disso, ela foi expulsa,
teve seus cabelos cortados e precisou dar à luz e cuidar do casal de gêmeos

154
sozinha e na miséria. O príncipe atirou-se da janela quando viu a madrasta
no lugar de Rapunzel, e na queda, perdeu os olhos.
Mas os Grimm não deixaram de manter o final feliz, apesar das desgra-
ças ocorridas. Um dia, Rapunzel, reencontrou o príncipe que vagava inces-
santemente à sua procura. Chorando de emoção, recuperou os olhos, e ele,
Rapunzel e seus filhos foram felizes para sempre.
Vemos nessa história algumas semelhanças com alguns acontecimentos
e personagens de O Silmarillion. A fada madrasta certamente traz uma corre-
lação com o rei Thingol, que tem um amor excessivo pela sua filha a ponto de
sufocá-la com seus ciúmes. No entanto, o rei élfico não prendeu a filha como
posse ou vingança, como fez a fada com Rapunzel, mas por um protecionismo
excessivo. Conta O Silmarillion: “Então Thingol se encheu de temor e assombro;
e, porque não queria deixar Lúthien desprovida das luzes dos céus para que não
fraquejasse e fenecesse, e mesmo assim querendo impedi-la, mandou que se
construísse uma casa da qual ela não pudesse escapar”. (TOLKIEN, 2019, p. 236)
Lúthien, por sua vez, encontra ela mesma um jeito de sair dali. “Conta-se
na ‘Balada de Leithian’, como ela escapou da casa em Hírilorn; pois lançou
suas artes de encantamento, e fez com que seu cabelo crescesse em grande
comprimento” (TOLKIEN, 2019, p. 236). Os cabelos de Lúthien, que servi-
riam de corda e manto para ela escapar dali, cresceram pela força do seu
encantamento, enquanto os de Rapunzel demonstram a passagem do tempo
em que ela ficou ali, no cárcere, esperando o príncipe salvá-la da solidão. A
sequência da fuga de Lúthien é descrita assim em O Silmarillion:
e com ele [o cabelo] teceu um manto escuro que
envolvia a sua beleza como uma sombra, e esse estava
carregado de um feitiço de sono. Das tramas que sobra-
ram, ela trançou uma corda e a deixou cair de sua janela;
e, conforme a ponta balouçava acima dos guardas que se
sentavam sob a árvore, eles caíram em um sono profun-
do. Então Lúthien desceu de sua prisão e, envolta em seu
manto sombrio, escapou de todos os olhos e desapareceu
de Doriath. (Ibidem)

Christopher Tolkien nos apresenta, em Beren e Lúthien (2018), uma ver-


são do Conto de Tinúviel (1917), escrita por seu pai, J.R.R. Tolkien, que teria

155
pormenorizado a história de Lúthien tentando escapar de Hírilorn.17 Tinú-
viel18 estaria ali, segundo Thingol, que recebia o nome de Tinwelint, para
que aprendesse a ser sábia. Ou seja, nessa primeira versão, o rei prendera a
filha não para protegê-la apenas, mas para educá-la, segundo seu conceito
de sabedoria.
Para que não faltasse nada a Tinúviel, os súditos do rei pegavam as esca-
das para lhe levar alimentos, roupas e o que a princesa precisasse. Para que
ela não fugisse, uma guarda era colocada ao pé da árvore durante a noite.
Ao sonhar com Beren, Lúthien planejou sua fuga:
Ora, Tinúviel, filha de Gwendeling,19 não ignorava
magias nem encantos, como se pode bem imaginar, e
após muito pensar concebeu um plano. No dia seguinte
pediu aos que vieram até ela que trouxessem, como fa-
vor, um tanto da água mais clara do rio lá embaixo, “mas
essa”, disse, “tem de ser tirada à meia-noite numa bacia
de prata, e trazida à minha mão sem que seja dita uma
palavra sequer”. E depois pediu que trouxessem vinho,
“mas esse”, disse, “tem de ser trazido num frasco de ouro
ao meio-dia, e quem o trouxer deve cantar durante o ca-
minho” e fizeram o que lhes fora pedido, mas ninguém
contou a Tinwelint (TOLKIEN, 2018, p. 51).

Vê-se melhor, nessa versão, como Lúthien prepara a sua magia: não pres-
cinde de meios, nem do auxílio de seus súditos elfos. Os meios são elementos
da natureza como a água do rio ou produtos como o vinho e a bacia de prata.
Elementos esses que encontramos no nosso Mundo Primário e que de alguma
maneira têm potencialidades diferentes no Mundo Secundário.
Então Tinúviel disse: “Ide agora até minha mãe, e di-
zei-lhe que sua filha deseja uma roda de fiar para passar
as horas enfadonhas”, mas secretamente pediu a Dairon
que lhe fizesse um minúsculo tear, e ele o fez na própria
casinha de Tinúviel na árvore. “Mas com que fiarás e
com que tecerás?”, perguntou ele, e Tinúviel respondeu:
“Com encantos e mágicas”, mas Dairon não sabia seu
desígnio, nem disse nada mais ao rei ou a Gwendeling
(TOLKIEN, 2018, p. 51).

156
No excerto destacado, vemos que Lúthien contou com o auxílio da mãe
e de Dairon,20 que se sentia mal por ter delatado a irmã. Nessa parte, vemos
o auxílio de Gwendeling (Melian) bem concreto a Tinúviel, pois a roca lhe
foi concedida. E mesmo o enciumado irmão dá uma contribuição a ela: to-
dos menos Tinwelint (Thingol) que foi quem a colocou no cárcere da casa
na árvore.
Lúthien — aqui chamada apenas de Tinúviel — assim, embora certamente
amasse o pai, escolhe seguir a sua consciência movida por seu amor. Já não é
mais menina, mas adulta. Sabe o que quer e não se acomoda até conquistar
aquilo que considera correto, ainda que tenha de enfrentar quem ama. Está
ciente de suas potencialidades e também daquilo que lhe falta, mas, com
destreza élfica e feminina, consegue meios de suprir tais ausências.
Nota-se que Tinúviel não poderia esconder nada de sua mãe — pois esta é
mais sábia e mais poderosa que ela —, mas a elfa pede auxílio à Maia mesmo
assim, pois sabe que pode contar com a mãe. A bênção de Melian garante
à Lúthien um final eucatastrófico21, feliz, apesar dos pesares, e não trágico,
como infelizmente vai ocorrer com Túrin Túrambar,22 em cuja história os
conselhos de Melian não são ouvidos por seus protagonistas e coadjuvantes.
Para Dairon, Tinúviel precisa dissimular um pouco. Ainda que não falte
à verdade e responda evasivamente que vai tecer e fiar com magia, não lhe
conta o plano de construir uma corda com seus próprios cabelos alongados.
Já para Tinwelint (Thingol) tudo fica ocultado, pois, com ele, não haveria
como se buscar apoio. Na sequência:
Ora, Tinúviel tomou o vinho e a água quando estava
a sós e, enquanto cantava uma canção de grande magia,
misturou-os, e quando estavam na bacia de ouro cantou
uma canção de crescimento, e quando estavam na bacia
de prata cantou outra canção, e os nomes de todas as
coisas mais altas e mais longas da Terra estavam postos
nessa canção: (...) por mais longo tempo, falou dos cabe-
los de Uinen, senhora do mar, que se espalha por todas
as águas. Então banhou a cabeça com a água e o vinho
misturados, e assim fazendo cantou uma terceira canção,
uma canção de profundo sono, e os cabelos de Tinúviel,
que eram escuros e mais finos que os mais delicados

157
filamentos do crepúsculo, repentinamente começaram
de fato a crescer muito rápido, (...) e quando despertou
o recinto estava como que repleto de uma névoa negra,
e ela estava oculta bem fundo abaixo dela, e eis que seus
cabelos pendiam para fora da janela e esvoaçavam em
torno dos troncos da árvore na manhã. (TOLKIEN, 2018,
p. 51–52, grifo nosso).

Vemos que o encantamento de Tinúviel passa por etapas: aciona a magia,


faz o seu cabelo crescer e então ativa nele as propriedades soníferas. Com o
crescimento de seus cabelos, pela magia, teceu uma corda e uma capa negra
“embebida de uma sonolência ainda muito mais mágica que aquela que sua
mãe envergara, e dançara nela, muito tempo atrás” (Ibidem, p. 52). Ao con-
trário de Rapunzel, que mantém uma atitude passiva e obediente, Lúthien é
ativa, criativa e contestadora. Sua magia irá ajudá-la a escapar do cativeiro
e a ludibriar a guarda que a vigiava ao pé da árvore.
A luz do sol já se apagava nas árvores, e à medida que
o crepúsculo preenchia a floresta, ela começou a cantar,
muito de leve e em voz baixa, e enquanto cantava lan-
çou os longos cabelos pela janela de forma que a névoa
sonolenta tocasse as cabeças e os rostos dos guardas lá
embaixo, e eles, escutando sua voz, caíram de repente
em sono incomensurável. Então Tinúviel, envergando
suas vestes de treva, deslizou pela corda de cabelos leve
como um esquilo e afastou-se dançando rumo à ponte,
e antes que os vigias da ponte pudessem gritar ela esta-
va entre eles, a dançar, e quando a bainha de sua capa
negra os tocava eles adormeciam, e Tinúviel fugiu para
muito longe tão depressa quanto voavam seus pés dan-
çantes. (Ibidem)

Qual Sherazade, de As Mil e Uma Noites, Lúthien tece a sua história. Com
seus cabelos feito manto, põe seus inimigos para dormirem, ao se sentirem
seduzidos por seus dotes: o canto, a dança e a magia. Utilizando artifícios
intrinsecamente femininos, Lúthien vai enfrentar os piores vilões da litera-
tura tolkieniana: Sauron e Morgoth.

158
Vemos aqui pontos simbólicos presentes tanto no conto de Lúthien quanto
no de Rapunzel. O mais significativo são os cabelos, que trazem a simbologia
da beleza e da sensualidade da mulher, por outro lado também representa a
tristeza e o luto de quem espera sair do cativeiro. Eles demonstram a passa-
gem do tempo, da menina que se tornou mulher e, junto com isso, aumentou
seu poder: a chave de que precisa para libertar-se do cativeiro. Lúthien, ao
contrário de Rapunzel tem consciência disso, e ela mesma se salva.

Desbravando a floresta:
o enfrentamento dos lobos

Até agora, já vimos o fator simbólico da aparência de Lúthien que reflete


seu caráter e destino, e sua maneira de lidar com os fatores externos impostos
sobre ela, ao relatarmos a sua fuga ativa do cativeiro. A seguir, falaremos de
sua atitude perante o desconhecido, o perigo e os vilões que surgem em sua
jornada, atravessando a floresta.
Encontramos em uma conhecida personagem de contos de fadas essa
relação da menina, que vivencia a fase de deixar a infância, com o lobo
escondido na floresta que tenta atacá-la de forma manipuladora. “Chapeu-
zinho Vermelho” é um dos contos de fadas mais analisados no seu campo
mítico-simbólico, em que a protagonista passa da condição de menina
para a mulher. A cor de seu chapeuzinho de veludo, vermelha, que ela ga-
nhou da avó, é interpretada por muitos como característica determinante
na representação simbólica da menarca da moça. Enquanto a avó estaria
passando pela fase da menopausa, deu a vez à menina que atingia a ple-
nitude de mulher.
Para cruzar esse limiar da infância para a puberdade, Chapeuzinho pre-
cisa atravessar a floresta, até chegar na casa da sua avó. Aliás, a floresta é
um elemento presente nos quatro contos aqui analisados: “Branca de Neve”,
“Rapunzel” e “Chapeuzinho Vermelho”. Em todos eles, a selva traz a simbologia
do perigo, do mistério, da solidão das protagonistas — sempre vulneráveis.

159
Todas elas precisam passar pela floresta para se firmarem como indivíduas,
para amadurecerem e se provarem heroínas.
Contudo, Lúthien não encontra apenas perigo na floresta, mas também
um grande amor: Beren. Nesse sentido, o próprio filho de Barahir pode ser
interpretado, por Lúthien, como uma espécie de “lobo”, a priori. Isso porque
ele é não apenas um desconhecido, mas alguém que lhe desperta seu lado
selvagem, seu lado Tinúviel, o rouxinol que lhe dará a vida por amor.
Entretanto, na floresta Lúthien encontra também seus lobos propria-
mente ditos. A começar pelos filhos de Fëanor, Curufin e Celegorm. Este se
apaixonou por Lúthien e desejou tomá-la para si e, simulando ajudá-la na
busca por Beren, acabou colocando-a em um cativeiro em Nargothrond. Com
a ajuda de Huan, o Cão de Valinor que tinha sido dado ao Elfo Celegorm por
Oromë, o Vala Caçador, Lúthien consegue escapar.
Ao chegar à Ilha dos Lobisomens, a fortaleza de Sauron, Lúthien en-
frentou o perigo de ser atacada por vários lobos a mando de Sauron, mas
todos eram abatidos por Huan, até mesmo o terrível senhor dos lobisomens
Draugluin fora derrotado por Huan, escapando ferido até morrer aos pés de
seu senhor Sauron.
A própria Lúthien irá enfrentar e derrotar o Lobo-Sauron,23 com a ajuda
de Huan, o Cão de Valinor. Ela rende o inimigo, ameaçando-o enviá-lo para
junto de Morgoth e ser escarnecido por ele, a menos que ele cedesse a ela o
comando de sua torre. E assim, o tenente de Morgoth cede à princesa élfica
sua torre e foge na forma de vampiro, partindo para a Taur-nu-Fuin.
Então Lúthien se postou sobre a ponte, e declarou seu
poder: e soltou-se o feitiço que juntava pedra a pedra, e
os portões foram derrubados, e as muralhas, abertas, e
as covas, desnudadas; e muitos servos e cativos vieram
para fora em assombro e temor, protegendo os olhos da
pálida luz da lua, pois tinham jazido longamente na es-
curidão de Sauron. (TOLKIEN, 2019, p. 240).

Vê-se, já nessa passagem, que a missão de Lúthien vai muito além de


concretizar uma bela história de amor, pois suas qualidades precipitarão
muitas forças malignas e transmitirão as bênçãos da Terra Abençoada que

160
corre no seu sangue a todos os seus descentes, elfos e homens.24 Mas Lúthien
demonstrará ainda mais seu poder, mantendo suas qualidades mágicas e
femininas: enfrentando Morgoth, o mais poderoso, astuto e temível inimigo
da Terra-média e além de toda Arda.
Os olhos dele não a intimidaram; e ela lhe disse seu
nome verdadeiro e ofereceu seus serviços para cantar
diante dele, à maneira de um menestrel. Então Morgoth,
contemplando sua beleza, concebeu em seu pensamento
uma luxúria maligna e um desígnio mais sombrio do que
qualquer outro que lhe tivesse vindo ao coração desde
que fugira de Valinor. Assim, foi iludido por sua própria
malícia, pois ele a observava, deixando-a livre por algum
tempo, e tendo prazer secreto em seu pensamento. Então,
subitamente, ela escapou de sua vista e, das sombras,
começou uma canção de doçura tão suprema e de poder
tão cegante que lhe era forçoso escutar; e sobreveio a ele
uma cegueira, enquanto seus olhos iam de cá para lá à
procura dela. (Ibidem, p. 247).

Vemos, nesses excertos, alguns pontos que evidenciam as qualidades de


Lúthien. Primeiro, ela não se intimida com os olhos do demônio de Angband.
Como ela tem o sangue Maia, herdado da mãe, Melian, ela traz consigo o
poder dos Ainur, ainda que de menor força que Morgoth, que era equivalente
a um Vala, ou seja, um Ainu de maior poder que veio a Arda.
Outro ponto a ser destacado é que ela não só não se intimida como se
apresenta, dando o seu próprio nome, tal como é e toda a ascendência que
há por trás dela. Em Tolkien’s Theology of Beauty, Lisa Coutras atenta para
essa questão do nome em Tolkien:
Para Tolkien, o “verdadeiro nome” de alguém tem
uma relação inteligível com o seu próprio ser. A decla-
ração de Lúthien sobre identidade é uma declaração do
seu ser. Ao “nomear seu próprio nome” ela então usa a
música como o mais completo poder expressivo de seu
ser, cantando “uma canção de poder” para lançar um
encantamento.25 (2016, p. 108).

161
Com aquele canto, Morgoth contempla sua beleza, que transcende a sua
aparência física, pois é demonstrada em sua arte, pela música que sai de sua
voz. Mas a contemplação de Morgoth o leva a “planos sinistros”, que pode
significar tomá-la para si, independente do consentimento dela, para realizar
seus desejos, movidos pela luxúria, e aumentar seu poder. Dessa forma, ele
é traído por sua própria perversão, e os artifícios de Lúthien o levaram a um
estado de sono e perda de consciência.
Lúthien utiliza-se de forças mais tipicamente femininas para combater o
Mal: a sensualidade, o encanto, a beleza. Com isso, ela conseguiu feitos jamais
vistos na história de sua raça, entre elfos e elfas. Alguns podem argumentar
que os trunfos de Lúthien se valem da magia e isso diminuiria a sua valida-
de. Quanto a isso, Coutras contra-argumenta: “descrever Lúthien como uma
mulher indefesa e sua força como mera magia é mal interpretar o contexto
narrativo e a estrutura metafísica em que ele foi escrito”26 (2016, p. 198).
Não podemos esquecer que Lúthien está em um contexto de contos de
fadas e que, naquele universo, a magia é natural e possível, embora não seja
algo banalizado. Vale lembrar que ela enfrenta inimigos que demonstram
sua força também pela magia, como Sauron e Morgoth. Além disso, tais
características podem ser aplicadas ao contexto do nosso Mundo Primário,
pelo artifício da metáfora, denotando e valorizando assim a força da mulher
em suas características intrinsicamente femininas.
Em Angband, a terra de Morgoth, Lúthien, Beren e Huan tiveram de en-
frentar uma fera ainda mais terrível: Carcharoth, o Goela Vermelha, o Lobo
de Angband. Descendente de Draugluin, fora criado e alimentado pelo pró-
prio Morgoth. Por causa dele, Beren perdeu sua própria mão, que segurava
a Silmaril conquistada, e por isso passou a ser chamado o Maneta.
Antes de chegar ao trono de Morgoth e submeter o Senhor do Escuro a
um sono que fez com que Beren pudesse tirar a Silmaril de sua coroa, Lúthien
com seu encantamento, colocou Carcharoth para dormir. Diferente de Cha-
peuzinho, a própria Lúthien conseguiu enfrentar seus “lobos” — mas, muitas
vezes, contou com ajuda de Huan, que, mais tarde duela, com Carcharoth,
derrotando a fera terrível e fazendo com que Beren recupere a Silmaril, mas
essa luta custa também a vida do nobre e corajoso Cão de Valinor.
Estés afirma que “os cães são mágicos do universo. Com sua simples

162
presença, eles transformam o mau humor em sorrisos, as pessoas tristes
em pessoas menos tristes. Eles geram relacionamentos” (2016, p. 146). Mais
adiante, ela reforça a semelhança dos cães com os lobos, mas aqueles “são
mais civilizados” (Ibidem). Assim é Huan, que, como qualquer cão doméstico,
traz alegria e ternura à vida de Lúthien, mas como um Cão da Terra Aben-
çoada, é forte, valente, protetor e altruísta até a morte, mesmo se comparado
à poderosa donzela élfica.
Beren e Huan fazem as vezes dos caçadores da história, pois salvam Lú-
thien de vários perigos — lembrando que o próprio Beren se lançou-se na
frente de Lúthien para evitar uma flechada de Curufin que se direcionava a
ela. Mas ela também faz o papel de caçadora com Beren, salvando o seu amado
dos perigos contra Sauron e Morgoth. Na realidade, juntos, Beren e Lúthien
demonstram sua valentia, nobreza e desprendimento de si mesmos em prol
do amor um do outro. Juntos, vão amadurecer, tornar-se o que deveriam ser
diante de seus desafios, cada um preservando suas características próprias
de suas naturezas masculina e feminina, sem se curvarem diante dos perigos.
Uma característica comum dos contos de fadas é a sua moralidade. A lição
moral de Chapeuzinho Vermelho está na obediência. Ao enfrentar a barriga
do Lobo Mau e, felizmente, ser salva pelo caçador faz com que ela repense
seus conceitos, ganhe experiência e reconheça que a obediência à mãe é o
caminho virtuoso que ela deve percorrer. O caso de Lúthien é diferente. Ela
já percorreu tantos perigos por Beren e ao lado dele, que até considera não
voltar mais para Doriath e receber a bênção de seus pais para a união dos dois.
Lúthien, de fato, estava disposta a vagar pelos ermos
sem retornar, esquecendo sua casa, e seu povo, e toda a
glória dos reinos-élficos; e por algum tempo Beren es-
teve contente; mas não podia por muito tempo esquecer
seu juramento de retornar a Menegroth, nem impediria
que Lúthien visse Thingol para sempre. Pois seguia a lei
dos Homens, julgando perigoso não respeitar em nada a
vontade do pai, salvo em última necessidade; e lhe pare-
cia também indigno que alguém tão régia e bela quanto
Lúthien tivesse de viver sempre nas matas, como os rudes
caçadores entre os Homens, sem lar, nem honra, nem
as belas coisas que são o deleite das rainhas dos Eldalië.

163
Portanto, depois de algum tempo, persuadiu-a, e seus
passos abandonaram as terras sem morada; e ele entrou
em Doriath, levando Lúthien a seu lar. Assim queria a
sina deles. (TOLKIEN, 2019, p. 250)

Esse trecho mostra que a vontade dos elfos quanto à união costuma ser
mais forte e definitiva do que a dos homens. Para Lúthien, basta a sua palavra
para que fiquem juntos. É claro que a palavra de Beren tem peso equivalente
em relação ao amor que sente por Lúthien, mas a lei dos homens conta com
o rito social e o consentimento da primeira família para a formação de uma
nova. A elfa segue sua consciência e seu coração, mas junto com Beren passa
a cultivar mais a ponderação e a racionalidade, controlando seus ímpetos,
valorizando e honrando o amor de seus pais.

A força da feminilidade

Nas considerações finais deste capítulo, ressaltamos a importância da


figura de Lúthien no legendário tolkieniano e também de que maneira ela
se coloca como modelo de mulher. Sabemos que Tolkien se inspirou em sua
própria mulher para compor a personagem Lúthien. Assim escreveu para
seu filho Michael:
conheci a Lúthien Tinúviel de meu próprio “roman-
ce” pessoal, com seu longo cabelo escuro, seu belo rosto
e seus olhos estrelados e sua linda voz. E em 1934 ela e
seus filhos lindos ainda estavam comigo. Contudo, ago-
ra ela partiu antes de Beren, deixando-o maneta, mas
ele não tem o poder de comover o inexorável Mandos
(2010, p. 393–394).

Em ocasião da morte de Edith, escreveu a Christopher, seu outro filho:


Finalmente me ocupei com o túmulo de Mamãe... A
inscrição que eu gostaria é:

164
EDITH MARY TOLKIEN
1889 — 1971 Lúthien
: breve e seco, exceto por Lúthien, que me diz mais do
que uma quantidade imensa de palavras: pois ela era (e
sabia que era) minha Lúthien. (TOLKIEN, 2010, p. 397).

A concepção de Lúthien nasceu de uma experiência pessoal que Tolkien


teve com Edith, e muito de sua personalidade recebe os sinais dos tempos
em que Tolkien viveu com sua mulher — além de outras mulheres de seu
convívio, como sua mãe Mabel, sua filha Priscilla e amigas e suas alunas.
Muito embora saibamos que dificilmente ele tomasse a bandeira feminista
para si e seus escritos, não podemos dizer que, por outro lado, ele apoiasse a
dominação dos homens sobre as mulheres e criasse personagens fracas para
suas histórias. Ao mesmo tempo, não há em suas histórias uma luta entre os
gêneros, mas uma mútua entrega, em que cada um morre um pouco para si,
para que o outro cresça, e nessa entrega, ambos saem mais fortes.
Dessa forma, podemos dizer que a visão de Tolkien sobre as mulheres,
no que diz respeito às suas personagens nos seus contos de fadas é única. Ele
concilia o que há de conservador, pois não deixa de considerar as particula-
ridades da mulher independente dos tempos, com o inovador, ou seja, com
uma maior compreensão do papel delas, que só a experiência da História
poderia trazer, justamente naquele limiar entre a modernidade e a pós-mo-
dernidade em que o autor estava vivendo.
Lúthien é mais inovadora do que as demais protagonistas dos contos de
Grimm aqui analisadas: ela é mais ativa e é tão heroína quanto seu amado
(ou mais), diferente das demais que esperam muito mais de seus príncipes
e do caçador para que sejam salvas, ao contrário, ela desempenha a função
do caçador perante a Beren. No conto de Beren e Lúthien ela é a princesa
élfica que possui maior poder que Beren.
Rapunzel, Branca de Neve e Chapeuzinho estão mais vulneráveis em re-
lação aos príncipes e ao caçador. Para que Beren esteja à altura de Lúthien
ele deverá ter um grande caráter e realizar feitos inimagináveis para um
homem comum. A elfa abdica de sua superioridade, demonstrando que sua
alma é nobre e que o Amor está acima de bens materiais. Como de costume,

165
as histórias tolkienianas demonstram que a grandeza de seus personagens
não está no poder, mas na capacidade que eles têm de amar, pela via do es-
quecimento próprio.
Em um único conto de fadas moderno, Lúthien carrega consigo a simbo-
logia de importantes personagens femininas do imaginário popular ocidental,
deixando sua marca peculiar: com suas armas tipicamente femininas, ela é
protagonista ativa e executora de sua história. Na união de Beren e Lúthien,
vemos um grande testemunho de entrega: Beren que vai ao encontro da
morte por amor a Lúthien, e a elfa que prescinde da imortalidade para poder
viver e morrer ao lado de seu amado. O resultado não poderia deixar de ser
magnânimo: com essa união, o sangue dos homens, dos elfos e dos Ainur
correriam por seus descendentes até o fim dos tempos.

166
Notas

1 Optamos por grafar termos presentes na língua portuguesa como elfos, magos,
entre outros em letra minúscula (exceto nas citações, que têm a sua própria
normativa). Contudo nos casos de palavras advindas de línguas fictícias, como
Maia, Sindar etc. manteremos a primeira letra maiúscula.
2 Toda a mitologia imaginada por J.R.R. Tolkien, em que as histórias da Terra-
-média (e arredores) estão inseridas.
3 No Silmarillion, De Túrin Turambar e De Tuor e da Queda de Gondolin, respec-
tivamente.
4 Embora usemos aqui a primeira versão dos Grimm, menos branda e menos
conhecida que as versões posteriores.
5 Os Maiar são espíritos puros, como seres angélicos, pertencentes à categoria
dos Ainur, que estavam presentes na canção da criação do mundo, o Ainulindalë,
que vieram à Arda, o que equivale ao planeta Terra. Em relação aos Valar, são
Ainur de menor poder, mas muito mais poderosos que qualquer elfo.
6 Elu Thingol, também chamado Elwë, era o líder dos Teleri, terceiro clã dos
elfos. Ao se apaixonar por Melian, a Maia, na Terra-média, formou com ela o
reino dos Sindar, conhecidos como elfos cinzentos, deixando de acompanhar os
Teleri, que passaram a serem chefiados por Olwë, irmão de Thingol.
7 Nas formas primitivas desse conto, Lúthien se chamava Tinúviel.
8 Tradução nossa. Original: “The nightingale has had the most spectacular career
of all literary birds. It has appeared in many thousands of poems from Homer to
the twentieth century, and even in ancient times it acquired an almost formulaic
meaning as the bird of spring, of night, and of mourning. Later, through its link
to spring and night, it also became a bird of love”.
9 Tradução nossa. No original: “As Zimmer observes, Tolkien uses the significance
and power of language as both the descriptive and expressive actuality of real
things; in the same way, names reveal the actuality of one’s being. She writes,
‘[A] true name is the exemplary cause of the material thing to which it refers; the
«name of a thing is not a mere label or symbol but the true reality. »’ One’s true
name is the expressive actuality of one’s being. To reveal one’s true name is to
reveal the power of one’s being or else to expose the vulnerability of one’s being.

167
10 A dedução se dá por considerarmos a referência da mitologia nórdica na
construção dos elfos tolkienianos.
11 Tradução nossa. No original: “The overwhelming impression of mother-figures
given by the most recognizable versions of the culture’s most popular fairy tales
and myths is of evil, absent, or unpleasant mothers”.
12 Na versão que utilizamos para a análise, a maçã se desprende da garganta da
princesa por causa de uma fatalidade: um dos empregados do príncipe, cansado
de carregar o caixão para onde a Sua Alteza ia, bateu nas costas da bela morta,
o que fez a maçã sair de sua garganta e a vida retornar ao corpo de Branca de
Neve. Nada de beijo encantado.
13 O conceito do duplo vem do alemão, Doppelgänger, é um ser que tem as mes-
mas características físicas e psicológicas de um outro ser.
14 Tradução nossa. Original: “The symbolism of mirrors depends not only on
what things cause the reflection — nature, God, a book, drama — but also on
what one sees in them — oneself, the truth, the ideal, illusion”.
15 O maior e mais poderoso inimigo das histórias tolkienianas.
16 Uma espécie de planta, da família dos rabanetes, cujas folhas e raízes podem
ser utilizadas para fazer salada.
17 Nessa versão, sem o sinal gráfico na primeira sílaba.
18 Nessa versão, a personagem ainda não chamava Lúthien Tinúviel, mas ape-
nas Tinúviel.
19 Como Melian era chamada em sua primeira versão.
20 Nome dado a Daeron, que, na antiga versão, era irmão de Tinúviel. Lem-
brando que, em O Silmarillion, ele é um elfo menestrel que se apaixona por ela
como Beren.
21 No ensaio Sobre Estórias de Fadas, Tolkien explica o conceito de eucatástrofe:
um neologismo que significa “boa catástrofe”, contrapondo-se ao final infeliz
da tragédia.
22 Já citada aqui, a história de Túrin Túrambar é relatada em O Silmarillion, co-
nhecida também como Os Filhos de Húrin, e é, como Beren e Lúthien, um conto,
ao mesmo tempo, independente e essencial para a compreensão de O Silmarillion.
23 Sauron, em forma de lobisomem. Ele é um Maia corrompido pelo mal, o mes-
mo que fabricará o Anel do Poder, objeto de desejo em torno do qual o enredo
de O Senhor dos Anéis desenrolará.

168
24 A linhagem de Lúthien se estenderá a personalidades importantes na história
da Terra-média, como Elwing, a esposa de Eärendil; Elros, e por ele, se esten-
derá a Aragorn por muitas gerações adiante, e Elrond, pai de Arwen Undómiel,
A Estrela Vespertina.
25 Tradução nossa. No original: “For Tolkien, one’s ‘true name’ has an intelligible
relation to one’s being. Lúthien’s declaration of identity is a declaration of her
being. In ‘naming her own name’, she then uses song as the fullest expressive
power of her being, singing a ‘song of power’ to cast an enchantment.
26 Tradução nossa. No original: to describe Lúthien as a helpless female and her
strength as mere magic is to misconstrue the narrative context and metaphysical
framework in which it was written”.

169
Referências

BARTON, D. Rapunzel and the Forbidden Garden. Disponível em: <https://


www.academia.edu/8249833/Rapunzel_and_the_Forbidden_Garden>.
Acesso em: 13 out. 2018.
CALDEIRA, A. S. Snow White, Beauty as Image. 2009/2010. 15 p. Essay, Fa-
culty of Fine Arts Lisbon, 2010.
COUTRAS, L. Tolkien’s Theology of Beauty — majesty, splendor and transce-
dence in Middle-earth. New York: Palgrave Macmillan, 2016.
ESTÉS, C. P. Mulheres que Correm com Lobos — mitos e histórias do arquétipo
da Mulher Selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.
FERBER, M. A Dictionary of Literary Symbols. Cambridge at University Press,
2007.
GRIM, J. GRIM, W. Contos Maravilhosos Infantis e Domésticos. São Paulo:
Cosac Naify, 2012.
MACHADO, M. C. (org.). As Melhores Histórias de Andersen. São Paulo: Ediou-
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SCHANOES, V. L. Fairy Tales, Myth, and Psychoanalytic Theory. Dorchester:
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TOLKIEN, J.R.R., CARPENTER, H. (Org.), TOLKIEN, C. (Assist.). As Cartas
de J. R. R. Tolkien. Curitiba: Arte e Letra. 2010.
TOLKIEN, J. R. R. Árvore e Folha. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2020.
TOLKIEN, J. R. R. Beren e Lúthien. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2018.
TOLKIEN, J. R. R. O Silmarillion. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2019.

170
h
Ana Maria Machado: da criação
ficcional à crítica — o valor da
leitura literária
Gabriela Trevizo Gamboni Patrocinio

Este artigo pretende estabelecer, na obra de Ana Maria Machado, a relação


entre a produção literária e a produção crítica da autora, verificando como
ambas se apoiam em aspectos semelhantes. Para tanto, serão analisados,
simultaneamente, textos críticos e ficcionais, a fim de apreender seu projeto
literário, cuja proposta está alicerçada na importância da leitura. Assim, te-
mos uma autora consciente e segura com relação à produção artística. Para
ela, o papel da crítica é fundamental, porque é parte integrante do universo
da criação: um texto criativo não se esgota em uma leitura de dicionário,
preocupada apenas em decifrar o sentido literal do texto. Pelo contrário, uma
criação artística é densa, funda e inesgotável, consistindo em uma multipli-
cidade de sentidos, na linguagem plurissignificativa e potencial, na medida
em que se submete às novas leituras ou ao universo expandido do leitor.
A autora afirma ainda que a crítica deve ser criadora e digna, usando uma
linguagem de maneira que, ao explorar a obra, compreenda-a como aberta
e cheia de sentidos, ajudando também a compor essa criação, dando-lhe
sombra e volume. Com isso, a criação só tem a ganhar, tratando-se de uma
espécie de provocação, um estímulo sedutor que incita no crítico o desejo
de escrever também. Trata-se de uma crítica que, por participar da criação,
está relacionada muito mais com o prazer de escrever e refletir do que com
o interesse por condenar ou exaltar, caracterizando um juízo final.

171
Em contrapartida, temos uma vasta criação ficcional dessa autora, que
trafega desde traduções e adaptações a obras destinadas a crianças e jovens
e até mesmo a adultos, revelando um projeto literário. São histórias cheias de
significados, nutridas de ambivalência e rupturas, mergulhadas no simbólico
e que se cruzam no próprio ato da leitura, porque nascem de uma dinâmica
de rompimento de barreiras, traçando seu projeto político-ideológico com
base em temáticas que abordam o questionamento ao poder. Esse amplo
questionamento se lança, também, às relações sociais e aos temas que delas
advém como a brincadeira e o jogo, a solidariedade e a amizade, a liberdade
e a escravidão, a repressão e o exílio, a busca pelo crescimento pessoal e a
construção do eu, a magia e o imaginário, o cotidiano e a família, o mistério,
o amor, a condição feminina e a diversidade cultural.
Outra marca forte nas obras de Ana Maria Machado e que parece re-
levante é a sensibilidade com que legitima os silenciados, os excluídos e
marginalizados. Além disso, é frequente, em sua obra, o tema de leitura e
escrita, expandindo-se no emprego de múltiplos recursos linguísticos, na
versatilidade da linguagem literária e na humanização do leitor, pautados
no profundo respeito que demonstra ter em relação à criança e ao jovem.
Machado retoma, assim como seu mestre Monteiro Lobato, personagens
conhecidos do leitor e arte de suas próprias referências culturais. Mediante
o posicionamento da autora, objetivamos estudar paralelamente as linhas
mestras na obra crítica e ficcional de Ana Maria Machado, averiguando como
ambos discursos se cruzam, revelando um projeto literário dessa escritora.
A obra crítica de Ana Maria Machado é vasta e se desenvolve em oito livros:
Contracorrente (1999), Texturas: sobre leituras e escritos (2001), Como e por
que ler os clássicos universais desde cedo (2002), Recado do nome (2003),
Ilhas no tempo: algumas leituras (2004), Romântico, sedutor e anarquista:
como e por que ler Jorge Amado hoje (2006), Balaio: livros e leituras (2007) e
Silenciosa algazarra (2011).
Iremos nos voltar com mais atenção às obras Silenciosa algazarra e Tex-
turas: sobre leituras e escritos, para compor o corpus desse artigo, relativo
à crítica, aos quais condensam os valores críticos da autora, em especial, o
valor que ela atribui à leitura literária. Enquanto corpus ficcional, elegemos
História meio ao contrário (1978), Bisa Bia, Bisa Bel (1982), Era uma vez um

172
tirano (1982), De fora da arca (1996), para que possamos buscar resgatar
os valores críticos que podem ser identificados tanto em sua obra ficcional
como em suas obras ensaísticas.
Temos por objetivo ilustrar alguns valores que saltam aos olhos em sua
criação ficcional, começando pelo valor ao feminino, que aparece na obra para
ser transformado pela leitura, ou seja, como possibilidade de emancipação
da mulher. Na obra Texturas: sobre leituras e escritos (2001), ela descreve a
estreita ligação entre os trabalhos de tecer e escrever. Constatando a forte
presença do feminino nas atividades têxteis, a autora correlaciona com as
barreiras que as mulheres enfrentam para triunfar no universo dos textos,
apontando no âmbito social a exploração a que a mulher vem sendo sub-
metida ao longo dos tempos, produzindo riquezas em condições de trabalho
precárias sem poder se apropriar dos resultados do seu trabalho.
A autora comenta que, durante muito tempo, a mulher foi uma cidadã de
segunda classe, com impedimentos de direitos elementares e ocupou uma po-
sição submetida à vontade masculina; no entanto, muitas ousaram e abriram
clareiras na selva do preconceito, da discriminação e da ignorância. Diante
dessa preocupação, temos em Bisa Bia, Bisa Bel (1982) mulheres ousadas: ao
arrumar gavetas e caixas, Isabel encontra uma antiga fotografia de sua bisavó
Beatriz, a Bisa Bia. Esse objeto abre um grande canal de comunicação entre
a bisneta e a bisavó, cuja situação torna-se extraordinária para a menina,
que encontra em Bisa Bia uma amiga e companheira para todos os momen-
tos. Essa descoberta traz muita alegria para as duas, uma vez que reserva
espaço para o confronto de valores: os conservadores, representados pelas
opiniões de Bisa Bia, e os inovadores, representados por Isabel. Enquanto,
no pensamento de Bisa Bia, a distinção de gêneros é bem precisa, pois para
ela existem coisas de meninas e coisas de meninos; no pensamento da jovem
as coisas não são bem assim. Logo nos primeiros contatos, quando surgem
as diferenças, Isabel percebe e comenta:
Só depois que eu fiquei conhecendo melhor Bisa Bia
é que soube da verdade: ela não gosta de ver menina
usando calça comprida, short, todas essas roupas gos-
tosas de brincar. Acha que isso é roupa de homem, já
pensou? De vez em quando ela vem com umas ideias

173
assim esquisitas. Por ela, menina só usava vestido, saia,
avental, e tudo daqueles bem bordados, e de babado.
(MACHADO, 1982, p. 11)

E mais à frente, é Bisa Bia quem fala:


— Ah, menina, não gosto quando você fica corren-
do desse jeito, pulando assim nessas brincadeiras de
menino. Acho muito melhor quando você fica quieta e
sossegada num canto, como uma mocinha bonita e bem
comportada. (MACHADO, 1982, p. 19)

Isabel, uma garota de doze anos que trava conhecimento por meio do
fantástico com o seu passado e futuro, é capaz de perceber essas questões e
de se posicionar diante delas, afirmando que não seguirá os padrões e não
aceitará uma posição subordinada na sociedade. Beatriz também faz uma
viagem ao passado. Esse processo fortalece e reafirma sua condição de igual-
dade, não permitindo que sua vida seja submetida ao comportamento ma-
chista que insiste em permanecer. Nessa obra, não sobra muito espaço para
os homens, uma vez que a maioria das ações é dominada pelas mulheres. A
menina Isabel, sua mãe, sua bisavó Beatriz, ocupam e determinam as ações,
e é só em papéis secundários que aparecem os homens, com pouco destaque,
apoiando-se sempre na ação principal de Isabel e de suas companheiras.
A menina não se rende às pressões da bisavó; insiste em se vestir como
gosta e brinca com seus amigos, não distinguindo roupas e brincadeiras
específicas para meninos e meninas. Essas contradições não as distanciam,
ao contrário, fortalece o relacionamento das duas, pois ambas respeitam as
diferenças de opinião e não se impõem uma à outra. E a menina se justifica:
[...] os papos explicativos com Bisa Bia podem ser
muito divertidos. Mas tem horas em que ela torra a pa-
ciência de qualquer um, eu fico com vontade de sumir,
mas como é que a gente pode sumir para bem longe de
alguém que mora com a gente dessa maneira, bem den-
tro mesmo? Ainda mais desse jeito dela, transparente e
invisível para todo mundo [...] (MACHADO, 1982, p. 30)

174
Vale ressaltar que não é só com a bisavó que a menina Isabel enfrenta
resistências quanto à sua liberdade de comportamento. Entre seus amigos,
isso também acontece, encontrando o preconceito contra a plena atuação
das mulheres. Apesar disso, a menina não se rende, demonstra ter coragem
e ousadia superiores aos meninos, tanto que, em uma dessas incursões por
goiabeiras, Marcela, uma menina da turma que disputa com Isabel as atenções
de Sergio, diz que não pode participar da aventura para não sujar a roupa
e que aquilo não era coisa para meninas. Então, vão Isabel e Sergio até as
goiabas, saltam o muro e deparam-se com um cachorro: Sergio demonstra
medo, enquanto Isabel mantém a calma e domina o cachorro, pois já era
velha conhecida da casa, mas Sergio não sabia disso.
O desempenho de Isabel nesse episódio faz com que Sergio se encante por
ela, conquistando o respeito e o carinho do menino que, por sua vez, afasta-se
de Marcela. Isso resulta na aproximação entre ambos, gerando mais uma di-
vergência de opinião entre neta e bisneta, pois Bisa Bia afirma que “Menina de
sua idade não devia estar pensando em namoros, isso não fica bem. Menina de
sua idade deve é brincar de roda, fazer comidinha, pular amarelinha, costurar
roupa de boneca...”. (MACHADO, 1982, p.39). Mas Isabel responde mais à frente:
— Olha, Bisa Bia, quer saber de uma coisa? Isso
tudo foi muito antigamente. Hoje em dia, é justamen-
te o contrário. Menina do meu tamanho não casa, não.
Mas namora se quiser, sabe? Namoro de menina, que é
diferente de namoro de mulher maior, mas é namoro
sim. E, na hora de casar, não são os pais que resolvem.
É a gente mesma. (MACHADO, 1982, p. 40)

Logo no início da narrativa, Isabel traça o perfil de sua mãe, diferencian-


do-a das demais: “Minha mãe é gozada. Não tem essas manias de arrumação
que muita mãe dos outros tem, ela vai deixando as coisas espalhadas pela
casa, um bocado fora do lugar” (MACHADO, 1982, p. 6). Para ela, a mãe
representa a força feminina, o modelo de mulher emancipada, porém não
se sabe a profissão, nem o estado civil dessa mãe, fato que deixa lacunas, ou
seja, o leitor precisa preencher esses vazios que, segundo Iser (1996, p. 30),
“constituem uma precondição fundamental da comunicação, porque inten-

175
sificam nossa atividade ideacional”. Assim, a protagonista vai construindo
a imagem da mulher moderna representada por sua mãe. A narrativa só
menciona o sobrenome da mãe de Isabel e o fato de ter sido casada, mas não
se fala do pai na convivência familiar:
— Por que minha avó é Almeida, e eu sou Miranda?
— Porque quando sua avó casou, ficou sendo Ferrei-
ra, e eu nasci sendo Ferreira. Mas quando casei, fiquei
sendo Miranda, que é o sobrenome do seu pai.
— Mas eu quero ter o mesmo sobrenome de você,
da vovó e da Bisa Bia.
— Não pode filha, cada uma de nós ficou com um
sobrenome diferente. Mulher quando casa é assim.
—- Não. Já resolvi. O nome é meu. Desde que nasci.
Meu marido ainda nem me conhece. Não tem nada com
isso. Mamãe olhou para mim com atenção e perguntou:
— E por que, Bel?
— Porque eu sou eu, ora. (MACHADO, 1982, p. 47)

Na perspectiva da autora, a construção estética consiste, dentre outros


elementos, em convidar o leitor, seja ele criança ou não, a apreciar esse
trabalho com as palavras e a imaginação, assim como faz em Bisa Bia, Bisa
Bel. Para tanto, Machado afirma que a literatura infantil necessita de alguns
cuidados especiais, como o ludismo:
Escrevo porque gosto. Com meus textos, quero botar
para fora algo que não consigo deixar dentro. E escrevo
para criança porque tenho uma certa afinidade de lingua-
gem. Mas não tenho intenção didática, não quero trans-
mitir nenhuma mensagem, não sou telegrafista. Acredito
que a função da obra literária é criar um momento de
beleza através da palavra. Escrever para crianças talvez
seja mais aberto, mais lúdico, mais perto da conotação e
da poesia, mais polissêmico. E com certo compromisso
com a esperança, que não existe quando se escreve para
adultos. Mas basicamente não creio muito que as coisas
se dividam entre adultos e crianças. (MACHADO apud.
BASTOS, 1995, p. 49)

176
Essa distinção centrada no lúdico, “mais perto da conotação e da poesia”,
enriquece a obra literária, ampliando a perspectiva do leitor, e, é nesse sentido
que a literatura infantil de Ana Maria Machado amplia ao invés de restrin-
gir. A identificação de um leitor infantil ou juvenil se dá por uma espécie de
projeção da criança na personagem com a qual ela enxerga alguma afinida-
de, proporcionando uma sensação agradável de liberdade e pacificidade. É
dessa forma que ocorre com a menina Isabel, quando convida o leitor para
adentrar na sua história, deixando-o à vontade, ao estabelecer um pacto de
confiança por contar-lhe um segredo que mais ninguém sabe.
Ao se identificar com o protagonista, o leitor está, ao mesmo tempo, par-
ticipando da história e atuando sobre ela, uma vez que a interpreta. Sua par-
ticipação se dá por meio de um “leitor implícito”, que é compreendido como
parte constitutiva da configuração textual, pois participa da composição do
texto no momento em que ele é escrito. O leitor exerce o papel de mediador,
no sentido de fazer com que o autor só adquira plena consciência de sua obra
por meio da reação que recebe dela, por parte dos leitores.
Sendo assim, as obras de Machado permitem ao leitor projetar-se na
história narrada, colocando-se no lugar da personagem, vivendo uma nova
experiência e enriquecendo-se interiormente. Ou ainda, distanciar-se da
mesma história para voltar à sua realidade, podendo estabelecer compara-
ções, enxergar as opções, enfim, um enriquecimento que a literatura pode
conceder, quando revela sua crença no seu valor formador. Em vários mo-
mentos de Bisa Bia, Bisa Bel, Machado proporciona essa interação texto/
leitor, como quando, junto com a protagonista, vai construindo a imagem
da mulher moderna representada pela mãe, relacionando-a à busca pela
emancipação do feminino.
No decorrer da narrativa, o leitor é defrontado com questionamentos sobre
o papel da mulher na sociedade, além de perceber o diálogo entre gerações,
que se dá nas conversas que Bel desenvolve com a Bisa Bia, com a mãe e até
mesmo com a Bisneta Beta:
Já imaginou que tristeza devia ser passar os dias es-
perando o marido e os filhos chegarem? Um monte de
empregadas e só um trabalho pouco criativo dentro de
casa? [...] O que eu acho é que é um trabalho que não

177
transforma o mundo, não melhora as coisas, é só manter
como estava, lavar para ficar limpo [...] Claro que educar
filho é trabalho que transforma o mundo, mas isso é coisa
que pai também faz, e mãe que trabalha fora também...!
(MACHADO, 1982, p. 45–46)

Além do preenchimento mediante a projeção do leitor, existem outros


fatores que configuram o caráter estético da obra, como é o caso do uso dos
nomes próprios, que promove a identificação e a individualidade, já que os
nomes resultam da exploração poética já presente no título “Bisa Bia, Bisa
Bel”. É pelo jogo fonético, denominado com inteligência e sensibilidade, que
Machado conota certa semelhança entre as personagens, reforçando tam-
bém o grau de parentesco entre elas. Pois estamos diante de uma narrativa
que relata a história de quatro mulheres da mesma família: Beatriz (bisavó
de Isabel), a mãe de Isabel, a própria Isabel e sua bisneta Beta. A obra une
as três pontas do tempo (passado, presente e futuro) que coexistem na pro-
tagonista Isabel, por meio das vozes de Bia e de Beta. O elo dessas gerações
é a fotografia e, em versão futurista, a holografia, as quais retratam a época
em que foram feitas.
A narrativa seduz à medida que o leitor adentra na história e consegue se
orientar dentro da insólita situação instaurada desde o princípio – fantasia
e realidade –, a partir do momento que Isabel passa a dialogar constante-
mente com sua bisavó.
Tendo em vista tais informações, podemos afirmar que, nessa obra, como
em várias outras, Machado não se utiliza da ficção de forma utilitária, des-
cartando também o “utilitarismo às avessas”, de Perrotti. Em Bisa Bia, Bisa
Bel, é possível notar um caráter emancipatório do feminino, enfatizando a
superação da assimetria adulto/criança, pois privilegia o trabalho estético e,
por isso, valoriza seu leitor infantil. Essa valorização é percebida pela liber-
dade e autonomia que a personagem Bel adquire, agindo e refletindo sobre
o mundo e sobre si mesma. A capacidade da autora de criar diferentes for-
mas de linguagem faz dessa narrativa um conjunto discursivo privilegiado,
adequado ao leitor infantil, isto é, trata-se de um texto do tamanho do leitor,
que responde à necessidade de um esforço por parte da literatura infantil de
atingir sua maioridade literária.

178
[...] à minha reivindicação de ler literatura (o que,
evidentemente, inclui os clássicos), porque é nosso di-
reito, vem se somar uma determinação de ler porque é
uma forma de resistência. Esse patrimônio está sendo
acumulado há milênios, está à minha disposição, uma
parte é minha e ninguém tasca. (MACHADO, 2002, p. 19)

A construção do literário:
da tradição à política

Desde que o mundo existe e, nele, os seres humanos fazem sua mora-
da, a História é construída a partir da relação entre esses seres e as coisas
existentes. Tudo que sabemos hoje sobre o nosso passado histórico é fruto
de uma herança cultural transmitida por nossos antepassados, por meio
de informações que passaram de geração a geração. Isso nos inclui nessa
História, cujo futuro também será transmitido. A literatura também é uma
forma de perpetuação de toda nossa História. Na obra Texturas: sobre leitu-
ras e escritos (2001), Ana Maria Machado menciona a literatura como uma
herança cultural, da qual todos nós temos direito, configurando assim o valor
que ela atribui à cultura tradicional. Em muitas obras ficcionais da autora,
identificamos tal valor, uma vez que Machado é fortemente ligada às suas
raízes, tanto familiares como culturais.
Na obra De fora da arca (1996), é possível notar duas referências à tradi-
ção: a primeira trata da história bíblica da Arca de Noé; e a outra, da família
como forma de propagação da História por meio de histórias. Nessa narra-
tiva, ela se apropria de um aspecto marginal da narrativa bíblica, ou seja,
dos animais que não entraram na arca de Noé pelos mais variados motivos.
A história de Noé é de conhecimento comum, pelo menos por parte dos
povos que seguem a tradição hebraico-cristã. Trata-se de um homem temente
a Deus, que vivia numa época em que as pessoas não queriam obedecer ao
Senhor e só faziam o mal diante dos olhos do seu Criador. Irado, Deus resol-
veu destruir a terra tão bela que havia feito para os homens. Chamou Noé e

179
mandou-o construir uma arca na qual pudesse ficar toda a sua família e um
casal de cada espécie de animais existentes na terra. Noé assim fez.
Quando a arca estava pronta, os animais começaram a chegar. “Veio bi-
cho de tudo que era lado”, o que deu o maior trabalho à família de Noé, pois
tinham que cuidar de toda bicharada. Mas alguns animais foram deixados ou
esquecidos do lado de fora da arca. Como fazer para que as futuras gerações
se lembrassem deles após o dilúvio que mataria todos os seres vivos fora do
grande do barco? Com exceção dos que podiam nadar — Machado ressalta,
“feito peixe, camarão, caranguejo, lagosta” — e de quem era leve e podia
voar pousando na arca de vez em quando — “feito garça, gaivota, mergulhão,
flamingo” — os demais estariam fadados ao esquecimento.
É aqui, então, que aparecem os outros personagens dessa história, que
vão dividir com a narradora a tarefa de contar as histórias ao leitor. Esses
personagens são: a mulher, os filhos e as noras de Noé, que salvam os ani-
mais que não tiveram a mesma sorte dos que nela entraram. As vinte e uma
espécies que ficaram de fora da arca só se salvaram na memória da família
de Noé, cujos membros foram passando suas histórias para as gerações se-
guintes, retendo na lembrança pelo menos alguns dos nomes apresentados.
E como Noé e sua família eram os únicos humanos em todo o planeta após o
dilúvio, ficou fácil para eles transmitirem aquilo que tinham como herança,
ou aquilo que eles queriam que se propagasse. É claro que, com isso, muita
coisa se perdeu também.
Diante da nova versão do mito bíblico, narrado por Machado, é possível
notar o grande compromisso que ela tem com o passado, pois o antigo tem
muita força na modernidade, principalmente por se tratar da História de um
povo. Em Silenciosa Algazarra (2011), ela faz menção acerca da tradição na
construção da herança cultural de todos:
[...] tenho sempre mantido um nítido compromisso
com a preservação do patrimônio cultural — brasileiro
ou universal. Reconheço que tudo o que escrevo é mesmo
tecido de um diálogo entre imaginação, observação e
memória. E me dou conta de que, com frequência, estou
passando por cima desses limites que às vezes alguns
tentam manter de pé como fronteiras intransponíveis
— entre o real e o imaginário, entre o oral e o escrito,

180
entre o popular e o erudito, entre o regional e o universal
ou entre o infantil e adulto. (MACHADO, 2011, p. 101)

Além da obra De fora da arca (1996), temos muitas outras que configuram a
tradição por meio do contador de histórias. Já vimos que em Bisa Bia, Bisa Bel
(1982), a autora apresenta uma história em que a menina encontra uma foto de
sua bisavó quando criança e aprende a valorizar e respeitar os ensinamentos
que vai recebendo dessa sua antepassada. Mesmo com a ausência da bisavó,
que só é vista por meio da fotografia e da imaginação, Isabel aprende a conhe-
cê-la. Com isso, é possível notar os valores que acabam por passar de geração
a geração, uma vez que a bisavó transmite a Isabel todo o conhecimento que
fez parte de sua vida. Além disso, é importante ressaltar que Machado também
coloca, nesse encontro de gerações, uma troca recíproca de informações espe-
cíficas sobre cada tempo, o que instiga a curiosidade a respeito de cada época.
Ambas as culturas retratadas no livro estão impregnadas de costumes
estrangeiros da potência mundial dominante de cada época. No tempo de
Bisa Bia, vemos a influência da cultura francesa: bibelô, plafonier, bisotê,
bombonier, étagère. Já no tempo de Isabel, que é o da narração, a influência
estrangeira dominante é a americana, e os termos traduzidos ou abrasileira-
dos vindos do inglês são um mistério para Bisa Bia “Porque naquele tempo
não tinha ‘spray’ de matar insetos, quem disse que ela sabia o que era ‘coca-
-cola’?” (MACHADO, 1982, p. 26)
O valor da tradição aparece como indicador de manutenção — seja da
família, da figura do contador de histórias, da cultura e dos saberes funda-
mentais ao humano. No que tange o valor à tradição, temos também em
História meio ao contrário (1978), o resgate desse valor, atentando para a
importância daqueles que nos antecederam: “a história dos filhos começa
mesmo é na história dos pais. Ou na dos avós, bisavós, tataravôs ou requeta-
tatataravós” (MACHADO,1978, p. 4). Para ilustrar isso, Ana Maria Machado
busca na cultura indígena, uma prática rememorativa existente em muitas
tribos, estabelecendo assim um vínculo com seus antepassados e cultuando
a memória daqueles que são origem e, de certa forma, motivo de sua própria
existência. Esse culto dessas origens de maneira simbólica torna-se um elo
de identidade entre o passado e o presente.

181
No entanto, há uma crítica ao focalizar a importância dada pelo índio
aos seus antepassados e à cultura, em contraste com o homem branco “que
não liga para essas coisas” (MACHADO,1978, p. 5) e, por isso, não sabe a
história de seus pais, enfim, a sua origem. Aqui, a ironia se instaura, pois o
narrador observa que a sociedade capitalista contemporânea é marcada por
“sabedorias civilizadas”, tal como “escalação de time de futebol, anúncio de
televisão, capitais de países, marcas de automóveis”.
Além da referência à cultura indígena, existe ainda o destaque a outras
histórias que integram o horizonte de escolhas pessoais dessa voz narrativa
que se confunde com a voz autoral. Ela utiliza de certa intimidade e transpa-
rência com seu leitor ao falar ou contar, como se se tratasse de uma conversa
despretensiosa: “Mas é que eu gosto muito de índios e piratas (por isso adoro
a história de Peter Pan) e toda hora lembro deles”.( MACHADO,1978,p.6)
Ao transformar esse leitor em cúmplice, operacionaliza-se também a
incorporação dele no texto, que, para Iser (1996), acaba por ser uma intera-
ção bem-sucedida, pois a transferência do texto só obterá êxito se conseguir
ativar certas disposições na consciência do leitor, ou seja, sua capacidade
de apreensão e de processamento. Intencionalmente, portanto, Machado
garante o vínculo com seu leitor por meio do passado, da cultura e da his-
tória narrada.
Se a boa leitura garante a possibilidade de ascensão
social e a tomada de uma parcela de poder, desenvol-
vendo a capacidade de ler nas entrelinhas e pensar pela
própria cabeça, pode ser muito perigoso para os privile-
giados assegurar a imersão da população num ambiente
de livros. (MACHADO, 2001, p. 11)

Durante a ditadura militar no Brasil, muitos autores brasileiros encon-


traram, na literatura infantil, o espaço para expor seus questionamentos e
protestos contra a política de repressão imposta pelo governo. Dentre eles,
temos Ana Maria Machado, que tem denunciado, com os seus textos dirigidos
ao público infantil e/ou adulto, os abusos do poder e a realidade político-
-social de um país que vive alienado graças à falta de contato com livros. É
essa visão que aparece já no primeiro capítulo de Silenciosa Algazarra (2011):

182
Só a possibilidade de leitura de literatura, distribuída
pelo maior número possível de cidadãos, poderá reforçar
a coletividade diante da manipulação do mercado, dos
interesses políticos, dos fundamentalismos religiosos,
das ambições pessoais de ditadores.
Sociedades que já são letradas há muito tempo têm
anticorpos intelectuais mais desenvolvidos para enfren-
tar esses novos males. Sociedades menos acostumadas à
leitura ficam muito mais vulneráveis e expostas. Apro-
ximar as crianças de bons textos é também uma forma
de fortalecer defesas e cuidar do futuro. (MACHADO,
2011, p. 44 e 45)

Movida pelos acontecimentos e pelas condições de produção da ditadura


militar, a escritora mobilizou-se como cidadã contra as ideias do aparelho
repressor da época, escrevendo seus livros e ajudando a formar o enten-
dimento e a consciência política de uma geração. Era uma vez um Tirano
(1982) foi escrito após a anistia, embora ainda vigorassem as leis da ditadura,
e traz a história de um país muito divertido que, por descuido ou preguiça,
deixou-se dominar por um tirano. As armas que três crianças dispunham
para combater sua tirania eram um arco-íris no bolso, uma canção no corpo
e uma chuvarada de estrelas. A obra enfoca a relação com o poder político,
mas o narrador demonstra preocupação em marcar a atemporalidade e o não
lugar, reforçando a ideia de que os fatos que serão contados podem ocorrer
em qualquer lugar ou época.
Em Contracorrente (1999), Machado questiona o papel dos textos para
crianças no que diz respeito à ideologia transmitida. Segundo a autora, na
literatura infantil, muitas histórias reafirmam a dominação do mais fra-
co pelo mais forte, ensinando aos pequenos que os adultos sempre devem
decidir. No entanto, a autora acredita que a literatura infantil, assim como
qualquer outra literatura, enquanto forma de arte, tende a ser subversiva e
questionadora mediante a autoridade, tanto que, nessa obra, as três crian-
ças são os elementos fundamentais de contestação em relação aos abusos
de poder por parte do Tirano.
Assim, quando o narrador menciona as crianças, há uma espécie de reco-

183
meço com o uso da estrutura “Era uma vez”, e as três crianças descobrem-se
diferentes entre si devido às cores da pele: “preta”, “rosada” e “cor de cobre”,
fazendo referência à etnia brasileira. O despertar por parte da população,
portanto, é provocado por essas três crianças, e cada uma delas é responsá-
vel por uma frente. É importante lembrar que uma das proibições do Tirano
correspondia à arte, ou seja, “estava proibido cantar, dançar, tocar, batucar,
representar, desenhar, pintar, inventar, escrever, ler, guardar papel escrito”
(MACHADO, 1982, p. 14). Foi por isso que as crianças instauraram a revolu-
ção, tomando algumas atitudes.

Considerações finais

O presente artigo tentou demonstrar como Machado alicerça seu projeto


literário, cujo fim é a leitura livre e, culturalmente, transformadora e forma-
dora, por meio de um discurso fortemente embasado nos princípios por nós
elencados, em obras críticas. Em seu ensaio Texturas: sobre leituras e escritos
(2001), Machado revela uma concepção acerca da leitura que acaba por se
tornar o cerne de sua poética, seja nas publicações de natureza ensaística,
seja nos textos literários.
É muito comum encontrar em suas histórias escritores, artistas diver-
sos, obras literárias, teóricos e instituições ligadas às letras. Além disso, ela
insere com frequência em suas obras, ambientes propícios à leitura como:
bibliotecas, salas de aula, quarto de estudo e seus temas giram em torno da
infância, leitura, literatura, criação literária e construção de personagens
questionadoras, por meio das quais a autora cria condições para que seus
leitores reflitam sobre a língua.
Temos também personagens que buscam a autoafirmação e, sempre, pas-
sam por processo de transformação, em geral pela descoberta e pelo conhe-
cimento adquirido por meio da leitura. No artigo “A importância da leitura”
do livro Silenciosa Algazarra (2011), como sugere o próprio título, Machado
enfatiza os aspectos negativos gerados pela falta de leitura. A autora defende
a tese de que quem não lê não desenvolve a própria inteligência e vive na

184
ignorância. Além disso, afirma que, no Brasil, se lê muito pouco, uma vez
que a leitura não é considerada importante. Sem o exemplo de leitura, fica a
sensação de que livro é coisa difícil, trabalhosa, que não compensa o esforço.
Para ela, é impossível que uma criança alfabetizada, que tenha acesso a livros
bons e interessantes, não se delicie, uma vez que a curiosidade é instintiva
e a constatação do encantamento, advinda do alimento da imaginação e do
prazer da leitura, promove a inteligência em atividade.
No entanto, é necessário deixar essa criança à vontade, conforme suas
preferências, não impondo leituras como dever e obrigação, para que elas
não fiquem na defensiva. Estamos diante de uma escritora que revela seu
projeto literário pelo valor dado à leitura literária, que é manifestado de várias
formas dentro de sua criação ficcional e crítica, não se limitando somente
nas obras mencionadas nesse artigo.
Dentro de todo trabalho de Machado, encontramos desde temas que
retratam de forma criativa fatos cotidianos ligados ao universo da crian-
ça, e que são tratados com seriedade, até emprego de múltiplos recursos
linguístico-expressivos, tal como a versatilidade da linguagem literária e a
humanização do leitor. Além disso, muitos são os recursos que se revelam
em sua obra, a exemplo do diálogo, que confere dinamismo às narrativas, do
emprego de termos e expressões inusitadas, dos poemas e cantigas de roda,
trovas populares e trava-línguas, brincadeiras e lúdicos jogos poéticos com
frequentes alusões à cantigas e poemas que resgatam costumes e festejos
da tradição popular, proporcionando ritmo e musicalidade aos seus textos.
Esta pesquisa procurou estabelecer a relação entre a produção literária e a
produção crítica de Ana Maria Machado, verificando como ambas se apoiam
em aspectos semelhantes, cujos valores podem ser definidos em: feminino,
tradição e política. Com isso, temos, portanto, que o primado desses valores
colabora com o surgimento de um projeto literário cujo foco é a crença no
valor formador da literatura.

185
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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neiro: Salamandra,1995.
ISER, Wolfgang. O ato da leitura, uma teoria do efeito. Trad. Johannes Krets-
chme. Vol. 1 e 2. São Paulo: Editora 34, 1996.
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_____. Romântico, sedutor e anarquista – Como e por que ler Jorge Amado
hoje. São Paulo: Editora Objetiva,2006.
_____. Ilhas no tempo: algumas leituras. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,2004.
_____. Recado do nome: leitura de Guimarães Rosa à luz do nome de seus
personagens. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.
_____. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo. São Paulo: Edi-
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_____. De fora da arca. Rio de Janeiro: Salamandra, 1996.
_____. A Expansão da Literatura Infantil. In: BASTOS, Dau (org.). Ana &
Ruth. Rio de Janeiro: Salamandra, 1995.
_____. Do outro lado tem segredos. 2 ed. Rio de Janeiro: Salamandra, 1984.
_____. Era uma vez um tirano. Rio de Janeiro: Salamandra, 1982.
_____. Bisa Bia, Bisa Bel. São Paulo: Salamandra, 1982.
_____. História meio ao contrário. Ilustrações: Humberto Guimarães. 22 ed.
São Paulo: Ed. Ática, 1978.
PERROTTI, E. O texto sedutor na literatura infantil. São Paulo: Ícone, 1986.

186
D
Angela Lago
Figuração autoral – pinceladas
poéticas de uma alma lúdica
Maria Zilda da Cunha (USP)
Maria Auxiliadora Fontana Baseio (UNISA/FRS)

Cada criação resiste a algo: por exemplo – diz Deleuze – a música de Bach
é um ato de resistência à separação entre o sagrado e o profano.
Agamben

Este capítulo, de certa forma, traz ressonâncias de uma trajetória de pes-


quisa em constante desenvolvimento e que se alinha a um depoimento de
Giorgio Agamben (2018), em um texto denominado “O que é o ato de cria-
ção? ”. Nele, o filósofo comenta um modo especial que pode caracterizar a
pesquisa e o esforço que será possível realizar para apreender a “capacidade
de desenvolvimento” contida na obra dos autores que amamos.
Esse princípio metodológico traz a cada encontro e, dada a pretensão
de originalidade, algo que nos enche de alegria e coloca, sob nossa respon-
sabilidade, perseguir as ideias desse nosso produtor. Portanto, interrogar
pinceladas poéticas da alma lúdica de Angela Lago tem sido um trabalho
que jamais encontrará um interpretante final, posto serem gestos poéticos
que têm intrínseca relação constitutiva com a liberação de uma potência. A
potência, na concepção de Agamben (2018, p.66), “é um ser ambíguo que não
só pode tanto uma coisa quanto o seu contrário, mas também contém em si
uma resistência íntima e irredutível”. Nesses termos, encontramo-nos à mer-
cê de nossa própria impotência em abarcar a totalidade e a grandeza desses

187
gestos a que nos propomos tangenciar, bem como em face da impotência que
rege um ato criativo de um artista em alcançar o todo do fenômeno estético.
O trabalho, aqui proposto, apoia-se em princípios dos Estudos Compa-
rados para os quais são caros os diálogos interculturais e intersemióticos,
intercâmbios teóricos entre diferentes artes e territórios do saber, bem como
se baseia em pressupostos da teoria peirceana, que nos permitem perscrutar
uma dinâmica viva no engendrar de processos criativos e intelectivos. Esse
instrumental alinhavará vozes que emanam da teoria, das obras estéticas
(que se dão a ver) e da voz autoral da artista mineira. Selecionamos para
análise: Cântico dos Cânticos (1992), Psiquê (2009) e Ave, Palavra (2010).
Convirá sinalizar que a obra realizada por Angela Lago (1945 – 2017) é mar-
cada por um fazer de incomum flexibilidade no que tange à temática, estilo,
escolha dos suportes, das linguagens, entre outros elementos que poderiam
caracterizar a unicidade da sua produção autoral. Angela labora no âmago
da experiência literária, isto é, tangencia a circularidade do tempo – fenô-
meno em que a literatura é gestada – e o faz engendrando metamorfoses que
providenciam uma simultaneidade imaginária – o tempo se torna imagem –
ausência/presença capaz de gerar uma forma espacial para a arte realizar-se
em um por vir (BLANCHOT, 2018). Cada obra, para ela, torna-se um ato de
experimentação, em que as linguagens se renovam, bem como se renova a
própria imaginação ao transformar a realidade em ideia e, esta, em ficção.
O projeto estético da escritora toca em questões sérias postas no âmbito
das relações sociais (portanto vinculadas à ética), assim como está engen-
drado no âmbito do ontológico (posto tratar-se de um nicho da poesia);
nesses termos, para a artista, o ideológico enovela-se na estética e na ética,
mantendo uma recusa em se deter nas afirmações fechadas e definitivas,
mas mobilizando uma abertura dinâmica de reflexões. Convirá lembrar, para
os nossos propósitos, neste ensaio, como são notáveis as reverberações de
sua voz autoral e os procedimentos que permitem divisar, em sua produção,
figurações muito sensíveis de uma alma lúdica.
Distante geograficamente e também no tempo, mas unida a eles pelo zelo
com o efeito, a atenção para com o leitor e o rigor com a tessitura da obra,
Angela parece querer partilhar das vozes de Valéry e Kafka: “toda a minha
obra é apenas um exercício“ (BLANCHOT, 2018, p.291). É nessa linhagem de

188
autores que executam, no exercício com o objeto estético, a possibilidade de
liberar a vida em potência – continuamente represada pelo homem e que a
arte preserva (AGAMBEN, 2018) – que passamos a entender as figurações
autorais a que aludimos no título deste ensaio que podem ser pinçadas em
sua obra, de formas diversas e compreendidas como atos de resistência, na
perspectiva deleuzeana de que “resistir significa sempre liberar uma potência
de vida que estava aprisionada ou ultrajada”(AGAMBEN,2018, p.59-60). E,
assim, definiríamos o ato de criação dessa autora como “ato de resistência”.
Acrescenta-se a isso a convicção de que sua poesia constitui operação
na linguagem que desfuncionaliza propósitos referenciais e informativos,
realizando novas formas de uso que , no dizer de Espinosa, refere-se ao fato
de que “a língua, tendo desativado suas funções utilitárias, repousa em si
mesma, contempla sua potência de dizer” (AGAMBEN, 2018, p.80)
A análise da figuração autoral, neste artigo, apresenta-se no diálogo de
obras de Angela Lago com matizes de seu percurso criativo,cujos vestígios
são deixados em anotações, conversas, capas, entrevistas, manuscritos, ele-
mentos que revelam articulações da vida e da obra da autora. Notadamente,
perscrutam-se faturas, que, na exploração da interface e do hibridismo das
linguagens visual, verbal e sonora (virtual), concretizam suas ideias estéticas.
Em alguns de seus livros, notadamente, encontram-se vestígios do modo
lúdico com que Angela dialoga com seu interlocutor ao colocar-se a si mesma
como autora e, simultaneamente, como persona, em figuração, estabelecen-
do um jogo de esconde e acha com o leitor, como se nota em Raça Perfeita,
livro que faz em parceria com Gisele Lotufo, publicado pela Editora Projeto.

189
Figura 1 - Raça perfeita, Editora Projeto, 2004.

Nota-se, nesse frame, a presença de uma cientista - com uma face em-
baçada e o olhar voltado para seu experimento laboratorial. Nessa figura,
reconhece-se Angela Lago; há, portanto, uma estratégia de duplicação (2
autores). Se o objetivo não é transmitir a ideia do texto como verdadeiro,
mas atentar para um dispositivo da invenção, percebe-se que a autora joga
com a vontade de os leitores acreditarem para, ao fim e ao cabo, fazê-los
aceitar a ficção e a potencialidade lúdica do universo ficcional. Sob um des-
velamento em metalinguagem, o brincar – de esconde e acha – aponta para
um autor produtor de ficções que propõe uma atividade lúdica, mas também
reflexiva ao seu leitor.
Importa comentar a postura crítica que esse livro reserva para a questão
do preconceito de raças, atitude tão arraigada e que divide os seres humanos
em raças perfeitas, menos perfeitas e não humanos, algo que, ao longo da
história, das formações da sociedade e das culturas, alinhavou um imaginário
perverso e irresponsável, assim como uma atitude reprovável.
A alegoria nesse texto traz um vetor bastante importante do ponto de
vista político - social, não só sobre as questões identitárias, mas impõe ín-
dices sugestivos muito potentes acerca de experimentos científicos que são
subsidiados por políticas governamentais que corroboram experiências la-
boratoriais pouco confiáveis para a espécie humana.

190
Além disso, a artista traz, pela via da distorção, por meio de explícitas
anamorfoses – recurso caro às artes plásticas –, um alerta para o nosso olhar
tão obscuro para a realidade, essa mesma que nos cerca e nos engendra, que
está tão diante de nossos olhos e ao alcance de nossas mãos, como o livro
que, como leitores, folheamos. Na mesma linhagem crítica, vale lembrar de
Cena de rua, livro que impacta qualquer olhar e inteligência sensível.
Essa dimensão do jogo de duplicação e ou figurações autorais está tam-
bém em outras obras. Aqui à guisa de exemplo, citamos Caixão rastejante e
outras assombrações de família, publicado pela Companhia das Letrinhas.

Figura 2 - LAGO, 2015(Detalhe da capa)

Na capa desse livro, há uma figura humana sob o impacto de uma assom-
bração. No ombro da senhora, está uma mão que, pela transparência, evoca,
metonimicamente, a presença de um ser de outro mundo. Reconhece-se um
retrato que remete à Angela Lago, agora de feição menos embaçada, mas
curvada à presença do sobrenatural. Figura-se, mais uma vez, o recurso da
duplicação autoral: a autora é autora? É ilustração? É personagem? Nar-
radora? Testemunha? De qualquer forma, trata-se de alguém inserido no
universo narrativo e desprovido de uma suprema autoridade ou de sua total
capacidade de invenção. O brincar com o leitor, agora, passa por comparti-
lhar, ludicamente, o sentido da descoberta que subjaz ao ato de construção
autoral da ficção.
Semelhante procedimento, mas em outra chave, encontra-se em Festa no
céu, obra publicada em 1989 pela editora Melhoramentos. Esse livro traz uma
voz autoral que anuncia a fonte folclórica da história a ser contada – aqui, já

191
é compartilhada a autoria com um saber popular e um imaginário ancestral.1
O livro constrói-se com imagens que cedem o ponto de vista da narrativa
ao leitor, pela via aérea proporcionada pelo recurso cinematográfico. O uso
pronominal “nós” insere o leitor na composição da narrativa, na condução
da história e na resolução do conflito – são atos inventivos compartilhados.
A atmosfera da narrativa oral, o compartilhamento do espaço e o encora-
jamento da apropriação dos enlaces narrativos e cortes temporais são dados
em Sua Alteza A Divinha, obra publicada pela RHJ, em 1992. Nesse livro, o jogo
tipográfico oferece à escrita uma dimensão plástica que vai requerer do leitor
uma interação – afinal, ler este livro é “entrar na regra do jogo” da escritora;
as páginas, em que as letras e as figuras intercambiam funções, tornam-se
um espaço coreográfico para o cenário em que épocas diversas concorrem,
com seus personagens, para entoar, em coro, o seu testemunho: são vozes,
gestos e olhares que corroboram a história que está sendo narrada, mas, se
as pausas de cada página pontuam o momento do conflito, são as viradas
de páginas que demandam ao leitor imprimir a temporalidade aos eventos.
Esse livro resulta do trabalho que Angela realizou com crianças em atividade
de contação de histórias. As intervenções e interações dessas interlocutoras
deram a ela o roteiro para essa obra tão inventiva e tão compartilhada que,
aliás, contou, ainda, “com a amável colaboração de ilustradores anônimos
e antigos”.(LAGO, 1990).
Assim é que Angela testa sua poética “que não diz apenas aquilo que diz,
mas também o fato que está dizendo, a potência e a impotência de dizê-lo”.
(AGAMBEN, 2018, p.73). Assim, também, a autora mineira resiste a respon-
der “quem é o autor”, ao interpor, em sua obra, esse eu poroso e agonizante
em perpétua metamorfose. (BLANCHOT, 2018).
Agamben sente-se fascinado por esse lugar em que não é possível distin-
guir o que é nosso e o que pertence ao autor que estamos lendo. Diz o filósofo
italiano: “Alcançar essa zona impessoal de indiferença, na qual desaparecem
cada nome próprio, cada direito autoral e cada pretensão de originalidade é
algo que me enche de alegria”. (AGAMBEN,2018, p. 60).
Nessa linha de raciocínio, uma das mais instigantes formas de figuração
autoral pode ser vista em um jogo pelo qual o autor, ao enviar ao leitor uma
mensagem, sinaliza um perfazer de leituras, levando-o, também, a tangenciar

192
meandros de um processo criador. Referimo-nos aqui ao encarte que acom-
panha seu livro O Cântico dos Cânticos, publicado pela Editora Paulinas, em
1997, no qual, pela voz de Edmir Perrotti, Angela Lago desvela o fascinante
encontro que tivera aos 12/13 anos de idade com o poema bíblico, revelando
o fascínio que a acompanhou até a idade adulta e que a motivou a se lançar
em uma busca incansável por traduzir seu deslumbramento em imagens –
algo que reverbera e se concretiza no poema visual.

Figura 3 - Cântico dos Cânticos, de Angela Lago, 1997.

Beija-me com beijos de tua boca!


Teus amores são melhores do que o vinho,
O odor dos teus perfumes é suave,
Teu nome é como um óleo escorrendo
E as donzelas se enamoram de ti...
Arrasta-se contigo, corramos!
Leva-me, ó rei aos teus aposentos
e exultemos! Alegremo-nos em ti!
Mais que ao vinho, celebremos teus amores!
Com razão se enamoram de ti...2

193
O excerto acima é parte de Cântico dos Cânticos que aparece, na Bíblia
hebraica, entre os escritos que formam a terceira e a mais recente parte
do cânon judaico. Encontrado na Bíblia grega, depois do Eclesiastes – mais
especificamente na Vulgata, entre o Eclesiastes e a Sabedoria –, esse canto
carrega consigo as discussões intermináveis sobre a época em que fora es-
crito, sobre a autoria e sobre o que sua história nos diz. O cântico tem mais
o aspecto de coletânea de cantos próprios para esponsais, aparentemente
unificados numa peça única. Produtos de mais de um autor anônimo teriam
sido burilados e reunidos em livro por um poeta, no pós-exílio, por volta do
ano 400 a.C. A tese de que o cântico foi escrito nesse período helênico pode
fundamentar-se no ato de as tragédias dessa cultura apresentarem o “coro”,
presente no texto.
No original hebraico, traduzido literalmente, o título carrega a autoria:
Cântico dos Cânticos, do rei Salomão. Essa forma superlativa, entendida
como “o mais belo canto” ou “o cântico por excelência”, atesta que o autor
tinha consciência de sua importância e, embora o texto remeta ao rei Sa-
lomão como autor, indícios mostram que, no ano de 400 a.C., Salomão já
havia morrido há cinco séculos. Outro argumento que refuta essa autoria é
a presença abundante de neo-hebraísmos, persismos, aramaísmos e termos
gregos desconhecidos na era salomônica. (CUNHA, 2014).
No âmbito de nossa reflexão, vale considerar o modo como Angela Lago
torna figurável sua autoria nessa obra. Em primeiro lugar, a denominação
poema visual, que vimos utilizando, já alude a uma transcodificação das
palavras que tecem o poema em imagens, a bem da verdade, grandiosas ima-
gens engendradas em formas múltiplas e em miríades de cores. As páginas
recebem uma profusão de elementos que remetem a textos, artistas e épocas
diversas, à semelhança das galerias hexagonais e espelhos de Borges, em que
é possível espreitar complexas tramas de ideias, imaginários e de paradoxos
intelectuais – vertigem do Aleph – (BORGES, 1974). As referências ao expres-
sionismo, notadamente representado por Van Gogh, engendram labirintos de
luz nos quais a busca pelo infinito é dimensionada pelas colunas de Escher,
o sagrado e o profano enovelam-se na citação ao Barroco, nas iluminuras
medievais, na presença de arabescos da arte mulçumana.
Como observa Cunha (2009, p.154), “em sintaxes inusitadas, recriam-se

194
o contexto histórico, o sagrado e o profano, sensações, atos, celebrações por
meio de imagens.”. Com a visão do alto, vemos colunas que se transformam
em focos de luz. Os centros são nós de energia. Temos perspectivas e pontos
de fuga divergentes. Sem lógica, cada ponto tem sua vertigem. Não à toa, a
obra se oferece a nós à semelhança de um concerto musical. O erotismo do
poema bíblico é acentuado nos movimentos, nos ritmos, nas massas, no fluxo
e reflexo das luzes, nas formas e nas cores que se espraiam em matizes de
azul, rosa, amarelo. É pura qualidade de sentimento encarnada. Concreção
de ações e tempo em fluxo narrativo. Não no reino da sucessão, mas é tempo
fazendo-se a cada momento – e à medida mesma em que os leitores percorrem
as páginas. Em vez de relações de contiguidade entre as sequências, vão se
estabelecendo articulações mais complexas, simetrias, gradações, antíteses
são responsáveis por uma visão simultânea de diferentes prismas do mesmo
evento. (SANTAELLA,1980).
Angela labora no âmago da experiência literária, engendrando metamor-
foses que providenciam uma simultaneidade imaginária em que o tempo se
torna imagem – ausência/presença capaz de gerar uma forma espacial para
a arte realizar-se em um por vir (BLANCHOT, 2018). Tem-se o próprio tem-
po abrindo-se a um acabar que é um contínuo começar. (PAZ,1990). Desse
modo, a narrativa prima por representar qualidade dos acontecimentos,
impressões fugidias do fluxo temporal. Imbrica-se narração e descrição (o
tempo espacializa-se). Descrição qualitativa, pois a imagem chega a roçar
nervuras e vincos secretos. Não descreve, mostra. Não representa, apresenta.
É pura qualidade imagética. Sentido e imagem são a mesma coisa. Nascido
da palavra, o poema desemboca em algo que o ultrapassa (CUNHA, 2009).
No exame da duplicação da capa, nota-se que o livro apresenta a singu-
laridade de duas visões narrativas. Os narradores revezam-se para contar
a história, que pode ser lida de trás para frente e vice-versa; cada uma das
entradas na história, sinalizada pela proeminência da cor, conduz o leitor por
um ponto de vista que pode ser da jovem ou do amante. Mas, seja qual for a
escolha, a visão aérea e a sugestão de profundidade e terceira dimensão que
a obra atinge pela concreção escultural do livro concedem o testemunho à
conjunção amorosa que se dá na dobra do objeto estético.

195
Figura 4 - Cântico dos Cânticos, de Angela Lago, 1997.

A formação visual de uma lemniscata, curva composta por coordenadas


polares, em forma similar ao numeral 8, sugere a extensão do sentimento ao
infinito, ainda que evocando um encontro fugaz, posto que a movimentação
mesma do folhear afasta os corpos dos amantes. O virar de páginas – ação
sob nosso controle – afasta-os. Nosso olhar testemunha o distanciamento por
caminhos pincelados por matizes de cores que se distribuem em tonalidades
de azul e rosa e de formas que regem a dimensão onírica e erótica do am-
biente. O folhear também promove o reencontro. A estratégia de recomeços
alude a mitos de renovação. As duas capas, assim, são potências poéticas,
emolduram dois cantares, vozes que se distanciam e se unem, sugerindo
uma intensa sinfonia.
No espaço de cada uma das capas, figura-se a experiência pessoal da au-
tora, por meio da iluminura que a emblematiza. Título e autor estão inseridos
num círculo central – metáfora do lago e Lago, interior e autor emoldurados
pelo arabesco vegetal e encerrados por traços matizados de azul e rosa. A
transcontextualização dos elementos históricos do passado para uma visão
pessoal aparece concretizada na iluminura central.

196
Figura 5 - Capa, Cântico dos Cânticos, de Angela Lago, 1997.

O texto bíblico, na versão dos antropólogos, resumidamente encontrada


na Enciclopédia Britânica, é a de um relato do casamento de camponeses
sírios. Esses casamentos são costumeiramente realizados na primavera,
quando as flores brotam. Os noivos são tradicionalmente coroados, como
rei e rainha. Na cerimônia, era comum também um dos padrinhos fazer o
papel de poeta e recitar versos de amor. Na visão junguiana, o texto retrata
a imagem do verdadeiro casamento arquetípico, da união dos aspectos fe-
mininos e masculinos (anima e animus) – ou da razão e do sentimento na
alma do indivíduo. Na visão religiosa, o Cântico é a grande parábola sobre
o amor que liga Javé ao seu povo, no qual a amada seria Israel e o amado
seria o próprio Javé.
Pode-se dizer que Angela Lago reúne essas três visões por meio das ima-
gens alegóricas e do afastamento dos dois personagens. Esses, sempre em
planos opostos, realizam a busca mútua entre labirínticas colunas de um

197
templo cercado por jardins em forma de molduras que estampam o arabesco
vegetal. Os enamorados encontram-se e se perdem – e novamente se buscam
em aproximações e afastamentos que se sucedem. O dizer do poeta encar-
na-se na comunhão poética. A imagem transmuta o homem e converte-o,
por sua vez, em imagem, isto é, em espaço onde os contrários se fundem.
E o próprio homem, desgarrado desde o nascer, reconciliando-se consigo
quando se faz imagem, quando se faz outro. A poesia é essa metamorfose,
mudança, operação alquímica e, por isso, limítrofe da magia, da religião e
de outras tentativas para transformar o homem e fazer “deste” ou “daquele”
esse “outro” que é ele mesmo. (PAZ,1990).
Santaella (2001), citando Pound, afirma que a verdadeira poesia está
em relação muito mais próxima com o que melhor se fez em música, em
pintura e escultura do que com qualquer parte da literatura que não seja
verdadeira poesia.
O poema-imagem Cântico dos Cânticos carrega intertextualidade paró-
dica. Nesse sentido, é jogo intertextual aclimatado no território do profano;
entretanto, ao afastar-se do jocoso, chega a reverenciar a obra que lhe deu
origem, irradiando, portanto, a aura do sagrado. O contexto meta-discursivo,
a abordagem criativa da tradição, o tráfico interartístico, a transcontextuali-
zação, o jogo subversivo dos gêneros, a auto-reflexividade também adensam
a obra e fazem figurar uma consciência estética capaz de engendrar a potên-
cia do processo de criação artística e fazer figurar, em pinceladas poéticas,
a densidade da alma lúdica que habita o corpo das obras de Angela Lago.
A artista mineira constrói jogos cujas regras desafiam o leitor a caminhos
labirínticos, à exploração de uma textualidade não pensada para a leitura
linear do começo ao fim, concede-lhe um modo polifônico de fruir, provoca
sensibilidade perceptiva e invoca uma astúcia cognitiva para pautar esco-
lhas. Voltando ao encarte que acompanha esse livro, sabemos que pode ser
entendido como um paratexto. Entretanto, convirá lembrar que, ao mesmo
tempo, ele comporta vigorosa possibilidade de ser concebido como um dos
nexos de densa rede hipertextual, pela qual o leitor pode transitar lúdica e
lucidamente por meio de explorações e caminhos em expansão.
Uma das vias concede acesso ao site da autora no qual Cântico dos Cânti-
cos: uma leitura através de imagens3 ecoa a apreensão apaixonada de Angela

198
Lago pelo poema. Comenta a artista sua tentativa em criar uma atmosfera
de sonho e lembra as muitas empresas tresloucadas realizadas para que o
encantamento que sentira reverberasse no leitor. O poema de textura híbri-
da e complexa (pelas vozes que dele ecoam, das imagens engendradas em
metáforas, o ritmo sinuoso e erótico que o conduz) está no registro verbal.
O empenho da autora se fez em aliar o verbo que trama o poema com as
imagens. Mas como ela confessa,
Por algum motivo, Cântico dos Cânticos, o poema
escritura, se quis silencioso, “o texto do meu encanta-
mento...sem palavras... intocado... num lugar sagrado,
pleno de seus segredos... por paixão, zelo ou pudor... ficou
atrás dos desenhos.4

Não à toa, leitor e autor figuram-se em conjunção poética diante do ato


de ler essa obra que se revela em múltiplas faces. O próprio livro se oferece
à contemplação. Provoca vertigem. Invoca muitas investidas leitoras. E, no
figurar da desmesura da paixão que Angela concede ao leitor, este encontra-
rá ecos de sua voz autoral: “tenho que lhe pedir...que se permita o devaneio
poético.”5
Diante da leitura de algumas obras de Angela Lago, ocorrem-nos os en-
sinamentos de Walter Benjamin sobre a imagem dialética – ideia que evoca
interessante reflexão sobre a dimensão de uma obra que não tem a pretensão
de ser novidade absoluta, tampouco busca ser total retorno às fontes, mas
traz o reconhecimento do elemento mítico e memorativo do qual precede e
chega a ultrapassá-lo. Uma imagem autêntica, no sentido benjaminiano – uma
imagem dialética que faz fulgurar “o chamado na memória do sonho e dissol-
ve o sonho num projeto de razão plástica”(DIDI –HUBERMAN, 2018, p. 192)
Se em toda prática criadora, há fios que tecem um caráter individual
gestado em tempo e espaços específicos e que afetam o artista e seu projeto
estético, importa buscar índices desse processo criador. Essas pistas deixa-
das ao longo do percurso apontam para gestos formadores – aqueles que
revelam, em sua intimidade, movimentos que transformam sons em cores,
poemas em imagens plásticas, fatos do cotidiano em narrativas ficcionais –
gestos construtores que, paradoxalmente, estão aliados a gestos destruidores

199
e transformadores, como ensina Cecília Salles (1998). Em suma, são atos
reflexivos imantados pela força criadora da arte que alinhavam vida e obra,
projeto estético e propósitos éticos.
Nos comentários de Angela Lago (tecidos em entrevistas, prefácios, con-
versas informais), nota-se o agenciamento de um fluxo contínuo da meta-
cognição autoral que expõe fragmentos recolhidos em seu percurso criador.
Em entrevista publicada pela editora Cosac Naify6, afirma que: “Não
cabe aos autores explicarem as suas obras. Acredito que deveríamos imitar
as árvores que oferecem frutos sem prefácios.” (LAGO,2010). Nesse sentido,
conta visceralmente com a participação do leitor na co-criação do texto. Nas
palavras da autora: “O apelo ao imaginário desse interlocutor – o leitor – é
fundamental, é preciso que o livro ouça a sua voz leitora, a obra se construiria
assim numa polifonia especial de vozes.” (LAGO,2010).
Sua obra engendra-se numa miríade de vozes – de criadores, escritores,
pintores, cineastas, tradutores, pessoas da vida comum, contadores de causos
que, ao fim e ao cabo, vão perfazendo sua genealogia artístico-literária: Willian
Morris, Lewis Carroll, Eduard Lear, Escher, Fernando Pessoa, Guimarães Rosa,
Borges, Murilo Rubião, Kafka, Maurice Sendak, Pasolini, entre outros, além
de mitos gregos, contos de fadas, Antigo Testamento, iluminuras medievais.
Embora ela valorize a simplicidade, que favorece a aproximação com o
leitor, suas criações geram narrativas complexas, caleidoscópicas, tecidas
de modo análogo ao universo onírico e feérico, em face da conjugação de
sentidos que potencializam. A construção de livro labiríntico faculta tempos,
espaços, vidas humanas que, ao encontrarem-se, oferecem ao leitor uma
participação importante e criativa.
Nesse sentido, a obra Psiquê (2009) retoma o conhecido mito que transitou
por diferentes sociedades e tempos, sendo recriado no teatro, na ópera, no
cinema, na pintura, na poesia, na publicidade ou ainda se inscrevendo em
histórias, como A Bela e a Fera, Branca de Neve, O príncipe sapo, passando
pelas mãos criativas de Boccaccio, Caldeirón, Laprade, Moliére, Lamartini,
La Fontaine, Perrault, entre outros que se encantaram com essa célula ma-
tricial representativa da condição humana. A obra guarda a memória dessa
constelação de narrativas e de exegeses que se refazem em diferentes extra-
tos, revelando não só a capacidade do homem em fabular, gestando sempre

200
novas histórias e encarnando diferentes imaginários culturais, mas também
a vigorosa plasticidade do mito.
Ângela recria a narrativa como um jogo imaginário, realizando singular
conexão com o conto de fadas, fazendo reverberar o memorável em outro
sistema sígnico. O livro oferece ao leitor um reencontro com imagens gran-
diosas em uma expressão de rara simplicidade, ainda que sob outro aspecto,
com a matéria narrativa de illo tempore. O sopro fabulador engendra-se no
tempo narrativo e em uma nova forma de materialização artística. O conto
de fadas – matriz ficcional eleita pela escritora para traduzir semioticamente
a matéria narrável – faz orquestrar as notas da aura mítica, reverberando o
pulsar original da criação.
A capa do livro, em consonância com as páginas iniciais, anuncia uma
atmosfera noturna, evocando a imensidão do universo com a cor preta e pe-
quenos orifícios por onde entra a luz de supostas estrelas – reflexo da página
prateada que serve de suporte.
A apresentação do título, em contraponto, descansa sobre uma página
branca em que a imagem de uma árvore – árvore da vida sugere folhas se
movimentando com o vento.
Nas páginas seguintes, entrecortando o silêncio primordial, surge a pa-
lavra “Era uma vez Psiquê, uma princesa tão linda, que é impossível pintar
ou descrever”(LAGO,2009). O texto verbal encarna a alma inquieta da es-
critora diante do desafio de reinventar a narrativa mítica. Afirma a autora:
E “eu estava proibida de desenhar Psiquê”[...]; Eros, um deus, “não pode ser
visto por uma mortal. Desenhar os dois personagens através de sombras era
meu único recurso. Enquanto fiz os desenhos, vi a mim mesma espelhada na
tela do computador e compreendi o tanto que me confundia com a história”.
(LAGO, 2010).
A narrativa prossegue em jogo de palavra e imagem, imprimindo um efeito
parafrásico na tradução criativa do mito, incluindo sua estrutura narrativa,
marcada por uma situação inicial rompida pelo conflito; o movimento de
descida que caracteriza os processos iniciatórios; por fim, o movimento de
ascensão com a superação dos obstáculos e a transformação e entrada no
portal dos deuses como desfecho. A memória do mito associada à rara beleza
e grandeza das imagens confere à obra uma atmosfera de magia, convocando

201
a percepção da vida como um mistério, impossível de ser desvelado.
O jogo de luz e sombra que move o fio da narrativa verbal e visual compon-
do sua textura poética convida à celebração desse mistério. Reinventada em
seu frescor de nascedouro, como um organismo vivo, distante da impiedosa
materialização que leva à abstração, a obra de Angela Lago revela-se como
potência a manifestar seu valor no silêncio.

Diante de toda grande obra de arte plástica, a evi-


dência de um silêncio particular nos atinge, como uma
surpresa que nem sempre é um repouso: um silêncio
sensível, às vezes autoritário, às vezes soberanamente
indiferente às vezes agitado, animado e alegre. E o livro
verdadeiro tem sempre algo de estátua. Ele se eleva e se
organiza como uma potência silenciosa que dá forma e
firmeza ao silêncio e pelo silêncio. (BLANCHOT, 2018,
p.321-322)

Silêncio e voz compõem também o jogo lúdico – aceno de Eros.

Figura 6 - Psiquê, de Angela Lago, 2009.

A procura pela simplicidade revela um propósito criativo que se sustenta


no corpo vivo da linguagem, na condição primordial em que ela se revela
como experiência. Nessa forma fenomênica de manifestação em que pala-
vras e evento tocam-se, em que os sentidos, embebidos em imagens e sons,
sobressaem como modo de expressão de qualidades de sentimento é o que
se reconhece na obra da escritora como virtuosa plasticidade.
Se os movimentos de luz atuam na intenção de contrapor as sombras e

202
torná-las visíveis, esse mesmo gesto lúdico guarda o mistério do invisível. Ao
olhar com cautela – sob o impulso da contemplação – o leitor vai descobrir
que a cama dos amantes é ora um campo de flores, ora um mar, ou o céu
estrelado; que a passagem pelo rio da morte – percurso das profundezas e
tarefa a ser vivenciada em solidão – concentra índices históricos na imagem
os sapatos – foto dos objetos deixados ao lado dos fornos nos campos de
concentração; que as colunas dos castelos são troncos e raízes. Como Ange-
la comenta: “Usei asas de borboleta para desenhar todo o castelo, mas não
é visível” (LAGO, 2010). Aliás, a reiteração desse elemento imaginário por
quase todas as páginas importa para restabelecer um dos sentidos da palavra
Psiquê – em grego borboleta. No plano interpretativo mais profundo da obra,
sugere possibilidades de transformação do humano na sua condição terrena
ao enfrentar as várias iniciações. E como ela lembra na mesma entrevista: “O
último alento: antes de morrermos, uma borboleta nos escapa.”(LAGO,2010)
Por fim, habita o cerne da ficção de Angela Lago motivos, imagens gran-
diosas, temas da história, elementos da natureza – formas de fora e de dentro
– cujo desígnio ali é se enredar por força do encantamento que se manifesta no
ato inaugural. O livro – compósito de palavra e imagem – corporifica e traduz
a narrativa mítica na sua força e sacralidade. Reitera a autora (LAGO,2010):
“a gente se alimenta na bateia do tempo. Recolho das histórias que ficaram
as que me ensinam a enfrentar minha própria aventura”.
Ao fim e ao cabo, em muitos de seus comentários metaficcionais, há re-
verberações desses atos autorais que renovam relações existentes e apontam
para a abertura de virtualidades qualitativas da linguagem em jogos novos e
usos outros por vir. Seu exercício ficcional busca um espaço que se abre no
sistema de linguagem por meio de uma fratura entre o sistema semiótico e
o discurso, na esteira de Agamben, o espaço da morada infantil. “A infância,
como o lugar da experiência muda, o que já implica colocar a questão sobre a
relação experiência e linguagem. O elemento que poderia fazer a conexão en-
tre esses dois termos seria a infância”, diz Agamben (2014, p. 107). Não se trata
aqui de uma concepção de idade cronológica, trata-se de um lugar topológico
no qual a investigação estética da narrativa se dá, onde um olhar originário
conta e deixa o vazio da sugestão. Experenciar essa linguagem sempre nascente
é um desafio do qual Angela nunca se safou. A artista mineira está sempre à

203
espreita de um olhar infantil, “nunca termino de entender esse universo, que
é fascinante e tem uma lógica diferente da minha [...]. ”(LAGO, 2012 p.235)
Em Deus e o Diabo no Fausto de Goethe, Haroldo de Campos (2012, p.76)
cita algumas palavras de E. Pound: “Grandes poetas raramente fazem tijo-
los sem palha. Eles amontoam todas as coisas excelentes que podem pedir,
tomar de empréstimo ou roubar de seus predecessores e contemporâneos
e acendem sua própria luz no topo da montanha”. Assim fazem os artistas
que conseguem perceber o ícone, o vazio da sugestão presente em todas as
linguagens. É o processo de criação à procura de seiva fértil e progredindo
no tempo em novo texto, matizando novas leituras.
Esse permanente exercício de revisitar textos da tradição, como o mito
grego de Psiquê, ou a narrativa bíblica do Cântico dos Cânticos, para neles
imprimir movimento criativo de tradução é um propósito que move o projeto
estético de Angela Lago. Com esse mesmo intuito, reinventando o universo
mitopoético construído pela escrita por Guimarães, a autora apresenta-nos
seus poemas digitais. Hoje, abrigados no YouTube – mas produzidos para
circular em canal televisivo de Minas Gerais em celebração aos 50 anos de
Grande Sertão Veredas – , os poemas atualizam artisticamente, em novos
códigos, linguagens e suportes, o livro póstumo Ave, palavra (2001), do reco-
nhecido escritor mineiro. Com cinco pequenas vinhetas com mais ou menos
20 segundos de duração, em que uma pequena frase de Guimarães Rosa é
animada com cor, imagem, som e movimento, o leitor imersivo é capaz de
fazer fruir um micropoema que reinventa ludicamente o texto original por
meio de convergência e integração tecnológicas.
Ave, palavra, de Guimarães Rosa (2001) é obra póstuma desse autor.
Trata-se de uma antologia de textos de diferentes gêneros, uma compilação
de notas e pequenos poemas criados a partir de suas observações singulares
acerca dos animais de zoológicos visitados por ele em diversos lugares do
mundo. Angela retoma algumas dessas anotações e as retece na articulação
de novos sentidos propiciados por outros recursos de linguagem.
Na página 135 da referida obra roseana, lê-se: “O urubu é que faz castelos
no ar” – frase a partir da qual Angela lança mão para o jogo que prepara aos
leitores /internautas no contexto da cultura digital.

204
Figura 7 – Ave Palavra de Angela Lago, 2010 a7

Figura 8- Ave, Palavra, de Angela Lago, 2010a.

Sua versão incorpora um novo elemento – o espaço – que introduz o leitor


em um lugar significante. A própria linguagem é o espaço em que as relações
se projetam, perspectivam-se. Diante da pintura, diz J. Kristeva (1969), os
fantasmas desaparecem, a fala cala-se. Feito de luz, o espaço linguagem cons-
trói-se como qualidade. A imagem visual do azul apresenta equivalência do
atemporal, quase sem as contingências do mundo, projetando uma centelha
do sagrado e carregando o espírito poético de Guimarães: é nesse espaço que
a palavra medita. Esse lugar imaginário evocador do mundo celeste projeta
na luz a percepção do infinito, dentro da qual, simultaneamente, emerge o
traço, indiciando, por similaridade, a concreção da Ave e, isomorficamente,
o “voo”, pelo movimento leve e intermitente de uma sombra escura.

205
Figura 9 - Ave, Palavra, de Angela Lago, 2010a.

A simulação do movimento do animal convida a uma leitura atenta vol-


tada para a decifração da imagem adensada à poesia. A engenhosidade esté-
tica de Angela Lago em Ave Palavra faz nome e coisa tocarem-se em sagrada
tradução icônica. A relação entre ave, voo e espaço prepara a apreensão
do caráter sintético, próprio do poema digital, que recupera a estrutura de
um haicai. Tem-se a transposição topológica cujo sentido é propiciado pelo
movimento da computação gráfica, um diagrama mental que engendra a
ludicidade e a ironia roseana – “o urubu constrói castelos no ar” – uma
montagem visual dada pela consciência artística que realiza poeticamente
uma tradução intersemiótica da ação: o deslocamento, em queda, do agente
que “constrói castelos no ar”, culminando no desmoronar analógico sugerido
pela visão das letras que, plasticamente, se movem, quebrando a linearidade
própria da escrita para, em seguida, assumirem a posição que o sentido da
frase lhes reserva.

206
Figura 10 - Ave, Palavra, de Angela Lago, 2010a.

Ave, Palavra é título ambíguo que convida o leitor para o universo das pala-
vras. “Avere” é expressão latina utilizada para saudar ou para designar surpresa.
Pode remeter, também, à Ave, de origem latina “Avis,” que significava pássaro.
O título não só convoca à admiração da palavra artística, como também acena
para algo em permanente devir, a poesia como um organismo vivo.
Imagem, movimento, cor, luz interpõem-se criando interfaces e apre-
sentando matizes de novas leituras de uma frase que a autora emprestou do
livro, carregou para outro suporte, sem perder o espírito brincante e a alma
afetuosa de Guimarães Rosa. No final da vinheta, Angela devolve a frase ao
autor: Guimarães Rosa, à obra: Ave, Palavra. Com sua assinatura, deixa um
índice vigoroso de como se comporta a sua alma lúdica. Como ato de vonta-
de, vontade de significação, retoma-se aqui Delacroix que diz: “a palavra é
criada cada vez que é proferida” (apud GUSDORF, 2010, p.40). Nesse sentido,
a tradução, compreendida como “trânsito criativo de linguagens” (PLAZA,
2003, p.1), situa-se na urdidura entre a liberdade e a submissão.
Ao relacionar a liberdade com a Arte, assinalando a analogia entre Arte e
jogo infantil, Schiller (apud STEINER, 1998, p.24-25) afirma que “o homem só é
integralmente homem quando brinca...e só brinca quando é verdadeiramente
homem”. Nas palavras de Rudolf Steiner, em Arte e estética segundo Goethe :
Quem brinca relaciona as coisas de forma que elas
lhe proporcionam prazer, não se submetendo a qualquer
coação[...] quem brinca cunha a realidade conforme sua
subjetividade e proporciona à sua subjetividade uma
significação objetiva. (STEINER, 1998, p.24-25).

207
Nesse sentido, Angela Lago, leitora contumaz, artista atenta às formas
pelas quais as linguagens se hibridizam, transformam-se e se reinventam,
perscruta a potencialidade e os limites de cada suporte ou meio de produção
de linguagem com o qual, livremente, elabora sua produção – o papel, o livro
– esse herdeiro do códex – que a autora/ ilustradora dessacraliza, explorando
cada página, as dobras, a potência de sua tridimensionalidade para o engen-
drar dos atos narrativos. Lança mão artisticamente do pincel eletrônico, faz
a arte entramar-se na estética da mídia digital. A presença da imagem e do
som em diálogo com a palavra, movimentados pelas tecnologias digitais,
faz reconhecer novas textualidades e novas materialidades para a literatura
que implicam fluidez, imprevisibilidade, alinearidade, interatividade. A lin-
guagem verbal, considerada hegemônica na cultura na modernidade, cria
divisas com outras linguagens na produção de sentidos.
Os movimentos da alma, do olho e da mão (BENJAMIN,1994) na tessitura
da experiência traduzida em performance nesse novo contexto da cultura
digital engendra novos efeitos semióticos, potencializando sentidos no texto
literário. Convirá lembrar que as novas tecnologias permitiram uma singular
disponibilidade para a materialização das tendências da poesia concreta e as
suas representações verbo-sonora-visuais. A animação possibilita à plastici-
dade da palavra evocar a liberação de sua servidão linear, no encadeamento
do texto, recursos que se aliam à sincronização dos sons (que evocam a leveza
do voo e a crueza da queda) e à luminosidade do ambiente produzido pela
computação gráfica.
O impulso lúdico que move Angela Lago, assim como o ser de cada poeta,
reside no horizonte velado de sua linguagem. Nas palavras de Gusdorf: “A lin-
guagem é o ser do homem levado à consciência de si próprio – abertura para
a transcendência.” (GUSDORF, 2010, p.15). Soma-se a isso a ideia do estilo
que singulariza cada ser humano e “exprime a linha da vida, o movimento
de um destino segundo a sua significação criadora.” (GUSDORF, 2010, p.72).
Se “vir ao mundo é tomar a palavra” (GUSDORF, 2010, p.14), transfigurá-la
em discurso, Angela Lago, sob a forma de um jogo, sabe fissurar esse discur-
so, abrindo-lhe uma fratura - espaço que se define, segundo a concepção de
Agamben (2014), como a morada infantil em que se formam os signos primei-
ros da língua materna entre experiência e linguagem. Esse lugar topológico,

208
como já comentamos, permite à nossa autora realizar uma investigação que
tangencia o espaço no qual está cifrado um olhar originário; ao acessá-lo,
sob um suporte conceitual que relaciona literatura, música, pintura, cine-
ma, hipermídia e outras artes, retece-o, lúdica e rigorosamente, entre pen-
samentos e imagens. Dá-lhe corpo, pela via da arte, conferindo-lhe graça,
novas possibilidades de experimentação e novos usos da linguagem por vir.

209
Notas

1  Tal história deriva de uma narrativa inserida no Pantcha-tantra –coletânea


que reunia textos usados pelos pregadores budistas (sécs. V e VI a.C.) da qual
só restam fragmentos; trata-se da fábula XIII – A tartaruga Kambugriva.
2  PERROTI, Edmir. “O texto sagrado”. Encarte de LAGO, Angela. O Cântico dos
Cânticos. São Paulo: Paulinas, 1997.
3  http./www.angela-lago.net.br. Acesso em 10/08/2002, para realização de tese
de doutorado de Maria Zilda da Cunha, USP, 2002.
4 http./www.angela-lago.net.br. Acesso em 10/08/2002, para realização de tese
de doutorado de Maria Zilda da Cunha, USP, 2002
5  http./www.angela-lago.net.br. Acesso em 10/08/2002, para realização de tese
de doutorado de Maria Zilda da Cunha, USP, 2002.
6  LAGO, Angela. Entrevista sobre o livro Psiquê concedida à Editora Cosac Naify.
2010. Disponível em: http://editora.cosacnaify.com.br/ObraEntrevista/11347/40/
Psqu%C3%AA.aspx>. Acesso em: abril de 2012.
7  Observa-se a remetência ao autor Guimarães Rosa e a obra Ave, Palavra

210
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STEINER,R. Arte e estética segundo Goethe.2.ed. São Paulo: Antroposófica,
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212
W
As leituras da literatura
oriental clássica no mundo atual:
Relatos de fatos antigos
e a cultura pop japonesa
Lica Hashimoto

INTRODUÇÃO

Histórias milenares chegaram até nós por meio de vários textos de fontes
variadas e de tradições orais, passadas de geração em geração, adaptadas à
realidade de quem a conta. Dentre elas, o mito é um conjunto de narrativas
que versa sobre as grandes questões da vida e da morte e que se notabiliza por
revelar aspectos da cultura do povo que inicialmente o criou. São narrativas
que confidenciam uma visão singular sobre a lei e a ordem, a hierarquia e o
pertencimento, os valores e as ideias de convivência entre os seres vivos e a
natureza. Mas, também, nos alertam de que as narrativas sobre o conheci-
mento do cosmo, e sobre nós mesmos, são pautadas em verdades relativas,
dignas de múltiplos e misteriosos significados que não se esgotam numa só
linha de interpretação. Razão pela qual, os mitos conseguem transcender
seu tempo na história e estarem presentes na sociedade contemporânea
utilizando-se inclusive de novas linguagens simbólicas, mais adaptadas aos
contextos atuais.
Em termos gerais, entendemos a cultura pop como sendo:
[...] o conjunto de práticas, experiências e produtos
norteados pela lógica midiática, que tem como gênese
o entretenimento; se ancora, em grande parte, a partir

213
de modos de produção ligados às indústrias da cultura
(música, cinema, televisão, editorial, entre outras) e es-
tabelece formas de fruição e consumo que permeiam um
certo senso de comunidade, pertencimento ou compar-
tilhamento de afinidades que situam indivíduos dentro
de um sentido transnacional e globalizante. (SOARES,
2014, p.140).

Para o estudo a que nos propomos, selecionamos um dos episódios das


aventuras do Deus-das-Grandes-Terras (Ōkuninushi), registrado na obra
Relatos de Fatos Antigos (Kojiki, 712).Essa escolha tenciona apresentar a ori-
gem prototípica de alguns dos atuais heróis e guerreiros que as crianças e os
jovens conhecem por meio de um conjunto de produtos midiáticos oriundos
do Japão e que constitui a cultura pop japonesa: mangá (história em quadri-
nhos), anime (desenho animado), vídeo game, j-music (música japonesa),
tokusatsu (filmes e séries com efeitos especiais) entre outros.
Há de se considerar que, em 2011, após as tragédias que assolaram o Japão
– terremoto, tsunami e crise nuclear – o Ministério da Economia, Comércio e
Indústria lançou o Cool Japan Strategy e o Cool Tokyo com o objetivo diplomá-
tico de melhorar a imagem regional e global da cultura pop japonesa e projetar
uma imagem positiva do país ao nível internacional. (YOSHIMOTO, 2003. Apud
ISSHIKI; MIYAZAKI, 2016, p.41). Assunto que será retomado posteriormente.

CULTURA POP JAPONESA no Brasil

A partir da década de 1960, a TV aberta exibiu várias séries japonesas de


tokusatsu, isto é, live-action de efeitos especiais que marcaram a infância e a
adolescência de várias gerações de brasileiros. Aqueles que eram crianças e
jovens na década de 1960, devem se lembrar do National Kid (1964), o primeiro
super herói japonês a ser apresentado em terras brasileiras. Também devem
se lembrar do Godzilla, um monstro gigante que lembra um dinossauro e que
dispara raios atômicos pela boca. Ele é uma mutação causada pela radiação
atômica e personifica os malefícios que as bombas podem causar no mundo.

214
Nos anos de 1970, o número de séries japonesas aumentou para 24, das
quais 17 eram anime1. Entre os títulos estavam: Ultraman, Speed Racer e A
Princesa e o Cavalheiro. Entre tantos super-heróis, Ultraman conquistou
uma posição de destaque no Japão e a nível internacional.

Ilustração 1 - Ultraman. Primeira edição

Ilustração 2 - A Princesa e o Cavaleiro.

Na década seguinte, principalmente a partir de meados dos anos 80, a


quantidade subiu para 38, sendo 22 anime. (GUSMAN, 2001, p.12. In CAR-
LOS, 2010, p.2). Em 1986, Jaspion e Changeman causaram uma verdadeira
revolução na TV brasileira. (VILIEGAS, 2001, p.18. In CARLOS, 2010, p.3).
O começo da década de 1990 assinalou a chegada de Cavaleiros do Zodía-

215
co, na extinta TV Manchete e, mais para o final, de Dragon Ball. Essas ani-
mações representam um marco para o Brasil como o começo de um grande
consumo de produções nipônicas, que se consolidou entre 2000 e 2020: Na-
ruto, Sakura Card Captor, Pokémon, Digimon, Sailor Moon, Yu Yu Hakusho,
Super Campeões e Guerreiras Mágicas de Rayearth, Samurai X, Death Note,
One Piece e vários outros desenhos em um total de 38 produções. As séries
japonesas - repletas de super-heróis, monstros gigantes e robôs - estavam
sendo exibidas em praticamente todas as emissoras de televisão, totalizando
33 animes na primeira década do século XXI. Tais séries conquistaram fãs
brasileiros que ficaram conhecidos como otakus que, no ocidente, é como
convencionou-se chamar as pessoas que são fanáticas pela cultura pop ja-
ponesa. Entre os otakus também existem os cosplayers, fãs de determinado
anime ou mangá que gostam de se caracterizar como alguns personagens
das suas séries japonesas favoritas.

Ilustração 3 - Evolução do Gohan e os níveis de poderes.


https://www.youtube.com/channel/UCjSKsB1e_4p6Ck0tCopdQZw

Há de se observar que, paralelamente, o mangá também estava ocupando


o seu espaço no território brasileiro e, em 1988, publica-se o Lobo Solitário
e, em 1990, Akira. Mas, a partir de 2000, a publicação de mangá aumenta
exponencialmente e, atualmente, há cerca de 200 títulos de mangás publi-

216
cados pelas editoras JBC, Conrad, Panini e NewPop que são as principais do
ramo. (CARLOS, 2010, p. 4).
Em outro segmento, temos os jogos de videogames inspirados em guer-
reiros-samurais e campos de batalha, com direito a usar espadas katana e
símbolos típicos do Japão Antigo – amuletos, espadas, flores de cerejeira,
monte Fuji – e viajar no tempo de volta para a era dos xoguns. É o caso de
Neo Contra: Samurai Strike e Samurai Secrets, lançado para Playstation 2
em 2004. Atualmente, o Ghost of Tsushima, exclusivo para PlayStation 4, tem
inspiração clara nos antigos filmes de samurai, com o jogador controlando
Jin Sakai em sua tentativa de proteger a ilha de Tsushima de uma invasão
estrangeira durante o século XIII.
O clássico League of Legends2 agora contam com dois heróis samurais,
Yasuo, e seu irmão Yone, além de uma das espadas mais famosas dos antigos
samurais – a Uchigatana – ser uma das armas favoritas de jogadores da série
Dark Souls. (KAWAKAMI, 2020, p.1).

Ilustração 4 - Espada de Yasuo em League of Legends


https://images.app.goo.gl/rA2qaumgzJDYbXi26

A partir deste panorama de difusão da cultura pop japonesa no Brasil,


observamos que ela está intrinsecamente relacionada a um fenômeno de
mercantilização da cultura e que possui uma dinâmica própria de resistir

217
às injunções e contradições de uma sociedade altamente capitalista. Ao
deixar de distinguir a alta cultura (ou cultura da elite; cultura oficial) da
baixa cultura (ou cultura popular; cultura não oficial; cultura de massas),
“[...] pela primeira vez, há uma cultura produzida não mais para uma elite
social e intelectual, mas para todo mundo, sem fronteiras de países nem
classes” e que, a intensidade das rotinas de consumo, estabelece o efeito de
uma mercantilização da cultura – e, simultaneamente, uma culturalização
da mercadoria. (MANO, 2018, p.82).

Leituras da literatura
oriental clássica no mundo atual

Uma das fontes de divulgação da literatura japonesa clássica no ociden-


te, a partir de 1995, foram as Antologias da Literatura Mundial (The Norton
Anthology of World Literature, Anthology of World Masterpieces e Longman
World Literature Anthology) utilizadas como material didático de ensino de
literatura inglesa e de literatura comparada no ensino médio e nas univer-
sidades americanas. Em geral, a seleção de obras destas antologias segue
dois critérios básicos: literatura tradicional, exótica e tipicamente japonesa
ou literatura de temática que seleciona várias obras, de um determinado
tema, desde o clássico ao contemporâneo. Em relação à cultura japonesa no
contexto da globalização, temos que esta privilegia tanto as obras clássicas
quanto as contemporâneas, para promover o diálogo do Japão com o mundo.
(TAKAI, 2017, p.54).
O Cool Japan veicula a cultura pop ressignificando o termo “popular”
como sinônimo de “vanguarda” e, desde os anos 90, promove uma diploma-
cia voltada ao intercâmbio cultural pacifista, principalmente com os países
vizinhos do sudeste asiático que têm sido muito críticos do passado militarista
e da rápida ascensão econômica do Japão e sua crescente influência na Ásia
e no resto do mundo desde os anos 1970.
O temor generalizado de que o Japão estaria ambicionando um novo

218
expansionismo nos antigos moldes coloniais desencadearam uma reação à
rápida expansão econômica do Japão por meio de protestos e manifestações
anti-japonesas ao redor do sudeste asiático como, por exemplo, o Incidente de
Malari (Malari Incident), ocorrido em Jacarta (Indonésia), em 14 de janeiro de
1974, durante a visita do então primeiro-ministro japonês Kakuei Tanaka aos
países da região3. Esse episódio evidenciou a necessidade do Japão de renovar
sua política externa regional com mais empenho. (OGURA, 2009, p.89-95)
Desde os anos 90 houve uma tomada de consciência dos poderes públi-
cos sobre o impacto (da cultura japonesa) no exterior como um fenômeno
comercial que cruzou os oceanos desde os anos setenta e que respondem
às expectativas nos países de recepção. (JANTI, 2012, p.2-3). Nesse sentido,
concordamos com a proposta de Mano de “tomamos a referência à cultura
popular e à cultura de massa para propor a cultura pop como uma terceira
margem, não necessariamente localizada nas produções de alto prestígio e
reconhecimento estético indubitável, nem exatamente situada ao nível do
corriqueiro ou vulgar.” (2018, p.82).
Muitos fãs e apreciadores da cultura pop desconhecem que a fonte das
histórias e a caracterização dos personagens geralmente são inspiradas em
narrativas da literatura clássica. Neste artigo, apresentamos o Deus-das-
-Grandes-Terras (Ōkuninushi) que é considerado um dos principais heróis
mitológicos do Japão. A história deste deus nos revela as principais carac-
terísticas de um herói que podemos reconhecer em várias das produções da
cultura pop japonesa.

Relatos de fatos antigos (KOJIKI, 712).

O corpus mítico e lendário do Japão possui duas fontes primárias: o Ko-


jiki (Relatos de fatos antigos, 712) e o Nihonshoki (Crônicas do Japão, 720),
ambas compiladas na era Nara (710-784), período em que ocorre a unifica-
ção política e a consolidação da hegemonia da família imperial japonesa.
Elas são estruturadas em ordem cronológica, subdivididas em duas partes:
as narrativas mitológicas e o registro histórico dos feitos dos imperadores.

219
As narrativas mitológicas possuem versões distintas, mas a divisão dos
mitos de criação do Japão e dos kami de ambas as obras são as mesmas,
descritas em três ciclos: 1º ciclo: corresponde a Takamagahara (o alto plano
do céu), local em que posteriormente Izanami e Izanagi criaram a Terra; 2º
ciclo: é o ciclo de Izumo (a terra onde Suzanoo desce do alto plano do céu);
e 3º ciclo: refere-se ao ciclo de Kyushu, que é a terra onde Ninigui, neto da
deusa do sol, desce para estabelecer suas regras sobre o Japão. (PHILIPPI,
1985, p.14). Em relação ao registro histórico dos imperadores, o Kojiki nar-
ra desde a era dos deuses até o reinado da imperatriz Suiko (593-628); e o
Nihonshoki se estende até o reinado do imperador Jitô (687-697).
O Kojiki foi compilado por Ô-no-Yasumaro, sob as ordens da imperatriz
Genmei e é dividido em três tomos: o primeiro aborda a criação do Japão e
a era dos deuses, bem como o nascimento do futuro imperador Jin’mu, con-
siderado o primeiro soberano do Japão; o segundo tomo enfoca o reinado
dos imperadores até o século III, destacando as lendas que envolvem a for-
mação do país, e o terceiro inclui narrativas histórico-lendárias, referentes
aos imperadores dos séculos IV ao VII.

Foto 1: Kojiki (Relatos de fatos antigos, 712), da direita para esquerda, Tomos I, II e III.
Disponível: https://www.zhihu.com/question/385419873 Acesso 10.02.2020

220
Foto 2: Tomo I, 1ª p.
Disponível em: http://kojiki.kokugakuin.ac.jp/digital/0001-0003/?i=0 Acesso 10.02.2020

ANCESTRAL DOS HERÓIS JAPONESES

Neste artigo, transcrevemos apenas um único trecho da narrativa para


fins didáticos4.

A primeira das muitas provações daquele que viria a ser o deus-das-gran-


des-terras
Ookuni-Nushi-no-Kami, o Deus-das-Grandes-Terras, era filho do Deus-das-
-Vestimentas-Celestiais-de-Inverno e da Princesa-Daquele-que-Governa-o-País.
No entanto, antes de se tornar o Deus-das-Grandes-Terras, ele teve de passar por
inúmeras provações. Ao superar cada uma delas, recebeu um nome diferente,
totalizando cinco: Oonamudi-no-Kami, o Digno-Deus-das-Terras; Ashihara-
-Shikoo-no-Kami, o Destemido-Deus-do-País-dos-Juncos; Yatihoko-no-Kami,
o Deus-das-Armas; Utsushi-Kunitama-no-Kami, o Deus-Espírito-das-Terras-
-Existentes; e, por fim, Ookuni-Nushi-no-Kami, o Deus-das-Grandes-Terras.

221
O coelho sem pelos de Inaba

Legenda: início, parte superior; esquerda à direita; inferior, esquerda à direita.


Ilustração 5 – Coelho branco de inaba.
https://ameblo.jp/hajikamijinja/entry-10477988719.html

O Deus-das-Grandes-Terras tinha muitos irmãos por parte de pai e todos


eles resolveram ceder o comando de suas respectivas terras para ele. Essa
atitude tinha uma motivação muito forte...
Na verdade, os irmãos pretendiam se casar com Yagami, a Princesa-das-
-Regiões-Prósperas, que morava em Inaba, um local muito distante. Quando
se dirigiram em comitiva para lá, obrigaram o Deus-das-Grandes-Terras a
carregar sozinho todas as provisões e bagagens.
Assim que os irmãos chegaram ao cabo de Keta, já na região de Inaba,
encontraram um coelho completamente sem pelos estirado no chão. Os
deuses deram o seguinte conselho a ele:
– Tome um banho de mar e, em seguida, suba até o cume da montanha
mais alta. Ao chegar lá, deite-se no chão e deixe que o vento toque seu corpo.
O coelho seguiu todas as recomendações, com a esperança de recuperar
seu pelo. Só que, conforme a água do mar evaporava e o corpo dele era tocado

222
pelo vento, a pele rachava. As rachaduras provocavam uma dor tão intensa
que o coelho, desesperado, se pôs a chorar.
O Deus-das-Grandes-Terras que, exausto pelo peso que carregava, caminha-
va distante dos outros e não vira o que se passara, ao avistar o coelho perguntou:
– Coelhinho, por que choras?
O coelho respondeu entre lágrimas:
– Eu estava na ilha de Oki e queria muito chegar até aqui, mas não con-
seguia. Então, resolvi enganar o tubarão e lhe propus uma disputa: “Vamos
fazer uma aposta? Qual espécie você acha que é a mais numerosa, a minha
ou a sua? Traga todos os da sua espécie e os enfileire desta ilha até o cabo de
Keta. Eu saltarei por cima de vocês para contá-los e, assim, ao final, saberemos
se há mais tubarões ou coelhos”. Consegui enganar o tubarão! Enquanto os
contava, ia atravessando o oceano. Quando estava prestes a chegar deste lado,
gritei: “Ei, seus tubarões bobões! Peguei vocês!”. Mal consegui pronunciar a
frase e o último tubarão da fila me agarrou e arrancou a minha pele! Estava
eu chorando, lamentando o ocorrido, quando os deuses que acabaram de
passar me aconselharam a tomar um banho de mar e ficar deitado aqui em
cima até que o vento me secasse. Segui todas as recomendações, mas agora
meu corpo está cheio de feridas! – lamentou o coelho.
Após ouvir o relato, o Deus-das-Grandes-Terras, mostrando sabedoria
para ajudar os enfermos e conhecimento em plantas medicinais, aconselhou:
– Vá rapidamente a um estuário e tome um banho de água fresca. Em
seguida, retire o pólen das flores de taboa, que nascem em abundância por
aqui, espalhe-o no chão e role sobre ele. Assim você voltará a ter pelos.
Ao seguir os conselhos do Deus-das-Grandes-Terras, o corpo do coelho
voltou a ser como antes e, assim, ele se popularizou como o Coelho Branco
de Inaba. Ainda hoje, é conhecido como Deus-Coelho. Em agradecimento,
o coelho profetizou:
– Nenhum dos irmãos do Deus-das-Grandes-Terras desposará a Prince-
sa-das-Regiões-Prósperas. Embora hoje ele carregue a bagagem deles, num
gesto humilde e subalterno, certamente é esse Deus que a desposará.
Foi então que o Deus-das-Grandes-Terras ficou conhecido como Oonamu-
di-no-Kami, o Digno-Deus-das-Terras.
(YOSHIDA; HASHIMOTO, 2018, p. 49-53)

223
O Deus-das-Grandes-Terras e seus atos de
coragem – rituais de passagem.

A história de Ookuni-Nushi-no-Kami, o Deus-das-Grandes-Terras, é um dos


exemplos de narrativa que descreve as principais características de um herói.
Ela é dividida em cinco partes com direito a muitas provações (inveja, conspi-
ração e traição dos irmãos; dormir em ninhos de serpentes, ninho de lacraias
e abelhas; ser queimado vivo; ter de comer lacraias etc.). A cada provação,
cada dilema, proezas e superações, o seu nome passa a incorporar esta nova
característica ou força adquirida. Quando ele toma posse da Espada, do Arco
e das Flechas do Deus-do-Mar-e-das-Tormentas - que reina no mundo das pro-
fundezas -, derrota seus inimigos externos e subjuga os seus inimigos internos,
ele se torna o Deus-das-Armas. Outra característica importante de um herói é
ter aliados e reconhecer e valorizar a união. Quando ele aprende esta lição, o
Deus-das-Terras passou a ser conhecido Deus-Espírito-das-Terras-Existentes.
A narrativa do coelho branco de Inaba conta como o futuro Deus-das-
-Grandes-Terras era humilde e sensível para com os animais. Ele escuta com
atenção a história do coelho e ensina como curar a ferida com as plantas e os
elementos da natureza existentes no local. O conhecimento das proprieda-
des medicinais das plantas, o respeito para com a natureza e os seres vivos,
, assim como o respeito para com a hierarquia – ele era o irmão caçula
– e o fato de carregar as bagagens dos irmãos, sem reclamar, demonstra que
existe uma lealdade e responsabilidade a ser cumprida.
O herói da antiguidade também preza os aliados. E essa característica
também é reforçada quando a Deusa-do-Sol-Amaterassu elege oito deuses
para acompanhar e auxiliar o seu neto-divino-Ninigui5 que governará o
país-dos-juncos: a que-Auxilia-a-Passagem-para-a-Maturidade, que-Pro-
duz-Joias-de-Magatama, das-Magníficas-e-Sagradas-Joias-de-Magatama,
do-Poder-e-da-Delicadeza; Divindade-Anciã-que-Molda-Espelhos, Deus-da-
-Prudência, da-Mão-Poderosa, das-Entradas-das-Grutas-do-Mundo-Celestial.
No momento da partida, a Deusa-do-Sol presenteou Ninigui com os três
tesouros divinos: Jóias de magatama (amuleto da sorte), Espelho (símbolo
do espírito da Deusa-do-Sol) e Espada (sucessão).

224
As narrativas mitológicas de uma época permitem traçar as necessidades
ainda ocultas e as potencialidades latentes de uma sociedade para sugerir
transformações do grupo que o sucede. Compreender a estrutura e a função
dos mitos nas sociedades não significa apenas elucidar uma etapa na história
do pensamento humano, mas também compreender melhor os valores que
lhes são caros. Nesse sentido, as principais características para se tornar o
Grande-Deus-das-Terras é estar sempre em busca do conhecimento, ter a co-
ragem para enfrentar as vicissitudes que a vida nos impõe, responsabilizar-se
pelos atos praticados, ter dedicação e trabalho para realizar o que precisa ser
feito, ter a confiança e o respeito para com as divindades protetoras, apren-
der a valorizar a vida e reconhecer a beleza como o símbolo da efemeridade.
O Deus-do-Mar-e-das-Tormentas (Sussanoo) é uma das representações
do anti-herói. Ele é mimado, faz travessuras e maldades com a irmã, a Deu-
sa-do-Sol-Amaterassu, é invejoso, rancoroso e vingativo. Ao colocar em risco
toda a criação do Universo, por sentir inveja da irmã, ele recebe o castigo das
divindades e é expulso do mundo celestial. Vive inúmeras aventuras no mun-
do terrestre, ajuda a construir o país-dos-juncos-e-das-colheitas-abundantes
(o antigo nome mítico do Japão), ajuda e ensina os homens a manejar as
armas e a vencer os inimigos e, por fim, assume o mundo das profundezas.

os Heróis e as provações do contemporâneo

Compreender a estrutura e a função dos mitos na antiguidade não significa


apenas elucidar uma etapa na história do pensamento humano, mas também
compreender melhor uma visão que envolve o homem nas suas mais varia-
das dimensões, presentes no mito pessoal, no mito da sociedade, nos mitos
religiosos, todos relacionados à história do homem contada sempre de algu-
ma forma, e se repetindo desde os tempos mais remotos até os dias de hoje.
O mito é essencialmente uma narrativa com multiplicidade de significa-
ções: é nas relações entre os significantes presentes no mito, tanto em sua
intratextualidade quanto em sua intertextualidade, que ele revela o tecido
que o constitui. Segundo Lévi-Strauss (2008, p.225), “a substância do mito

225
não se encontra nem no estilo, nem no modo de narração, nem na sintaxe,
mas na história que nele é contada”. (MANO,2018, p.4)
A produção desses mitos está condicionada por uma série de elementos
psicológicos, sociais, econômicos etc., e é apenas compreensível se se con-
frontam em profundidade os novos mitos com os mitos antigos: se, por trás
do mito aparentemente novo, se consegue descobrir o mito antigo, mesmo
alterado ou invertido. (JANTI, 2012, p.3)
A cultura japonesa pop narra a história de divindades, heróis, vilões, se-
mideuses e homens e representa os valores considerados necessários para se
viver em sociedade. Pokémon, Digimon, Dragon Ball e muitos outros animes
são exemplos de como ser a melhor versão de nós mesmos. Os anti-heróis
recebem o castigo merecido para que aprendam a lição. A solidariedade, o
compromisso, o conhecimento, a responsabilidade, a lealdade e a dignidade
são algumas das características dos heróis do contemporâneo, mas o castigo
e o arrependimento fazem parte do aprendizado. As produções da cultura
japonesa pop são autênticos repositórios do pensamento japonês clássico
que sobreviveu os matizes do tempo e do espaço e que, por isso, dialoga com
o ser humano.

Para finalizar

As expressões da cultura pop permitem dar asas à imaginação e transfor-


mar situações do nosso cotidiano em algo que nos faça sentido. Os animes e
mangas exploram temas que aproximam o leitor de vivências e experiências
transformadoras, pela proximidade e familiaridade das situações em foco.
Animais, insetos, objetos se tornam protagonistas, interagem com o leitor e,
muitas vezes, possuem a sabedoria de um herói ou de um deus.
Foi pensando nessas possibilidades de criação, que finalizo este artigo.
Todo herói enfrenta seus dilemas e desenvolve suas próprias estratégias
para superá-las. Esta é a história da Hanah. Uma lhasa que está comigo há
doze anos e, diariamente, me ensina uma lição de como enfrentar um dile-
ma com classe e sabedoria. Ela me ensina que dilemas existem para serem

226
enfrentados. E que todo dilema é único ainda que, aparentemente, pareça
sempre igual. A Hanah ganha todas as manhãs uma bolacha maisena e um
palito integral 100% vegetal sabor coco, duas guloseimas que ela adora desde
criança. Por gostar muito das guloseimas, ela não devora de qualquer jeito,
pois ela tem um ritual próprio para enfrentar o seu dilema de escolher qual
petisco comer primeiro. Isso pode levar de um a três minutos e a escolha
pode variar entre a bolacha ou o palito. Com certeza, durante o período em
que ela entra em profunda concentração, ‘n’ fatores caninos são considerados
para que ela consiga tomar a decisão.
Uma vez que a Hanah decide, ela se concentra no petisco escolhido e, com
muito gosto, morde cada pedaço com muita atenção, mastiga bem, engole e
finaliza com uma lambida no beiço e no nariz para sentir o gosto e o aroma
do alimento. Depois, ela vai brincar e fazer coisas caninas. Mais tarde, ela
come o outro petisco. A lição que ela me ensina é que dilemas sempre exis-
tirão, por isso, o importante é encontrar o seu jeito de enfrentá-los e resol-
vê-los da melhor maneira possível. Depois, cuide de viver o dia com leveza.
E é por isso que a Hanah é o meu Pokémon. A minha heroína, digna de ser
protagonista de mangá ou anime.

227
Foto 3 e 4 - Acervo pessoal.

228
Notas

1 Anime ou animê (como é dito no Brasil) é o nome dado para o tipo de desenho
animado produzido no Japão que pode ser infantil, terror, romance, comédia,
aventura, erótico, ficção científica etc. No entanto, de acordo com o conceito
japonês dos animes, este termo é utilizado para classificar todos os tipos de
animações, ou seja, independente da sua origem (nacional ou estrangeira). In:
https://www.significados.com.br/anime/
2 League of Legends (Lol) é um Multiplayer Online Battle Arena (MOBA), dis-
putado por dois times de cinco jogadores cada. Eles selecionam um entre os 145
personagens (chamados de campeões), com características únicas, e se distri-
buem entre quatro caminhos diferentes do mapa, chamado de Summoner›s Rift:
topo, selva, meio e bot (parte de baixo do mapa). O Lol é jogado por mais de 8
milhões de pessoas diariamente em todo o mundo. Disponível em: https://www.
terra.com.br/esportes/o-que-e-league-of-legends.html. Acesso 23Maio2020.
3 O Incidente de Malari ocorreu em 14 de janeiro de 1974 em Jacarta (Indoné-
sia), quando da visita de Estado do primeiro-ministro japonês Kakuei Tanaka.
Os estudantes protestaram contra a corrupção, a generalizada alta de preços
que assolava o povo, as pressões competitivas do Japão sobre as empresas locais
geradas pela desigualdade nos investimentos estrangeiros. Os protestos foram
violentos, deixando 11 mortos e cerca de 200 feridos.
4 YOSHIDA, Nana; HASHIMOTO, Lica. A origem do Japão – Mitologia da era dos
deuses. Ilustrações: Carlo Giovani. São Paulo: SESI-SP Editora, 2018. 96pp, 29 ils.
5 O nome completo de Ninigui é Ame-Niguishikuni-Niguishi-Amatsuhiko-Hiko-
-Hikohono-Ninigui-no-Mikoto, o Divino-Filho-do-Mundo-Celestial-Íntimo-do-
-Céu-e-da-Terra-e-do-Sol-e-dos-Arrozais-Férteis.

229
REFERÊNCIAS

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leyenda y arquétipos culturales. 2005.
ISSHIKI, Jaqueline Naomy; MIYAZAKI, Silvio Yoshiro Mizuguchi. Soft Power
como estratégia de marketing: a manifestação da cultura pop japonesa
no Brasil. Revista Estudos Japoneses n. 36, p.59-70, 2016.
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CARLOS, Giovana Santana. Identidade(s) no consumo da cultura pop japone-
sa. In Lumina, vol.4, nº 2, dezembro 2010. Disponível em http://www.
ppgcomufjf.bem-vindo.net/lumina. A questão da(s) identidade(s).
Revista do Programa de Pós-graduação em Comunicação Universi-
dade Federal de Juiz de Fora / UFJF. 12 páginas.
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1963.
GUSMAN, Sidney. Tudo começou com national kid. Henshin, São Paulo, n.
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JANTI, Ilma Sawindra. Nihon no poppu karuchâ seishin no genryû wo tazu-
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6, Tokyo, Japan, 2012. Disponível em http://www.apocs.jp ou http://
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KAWANAMI, Silvia. Era dos samurais no Japão serve de inspiração para jogos
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OGURA, Kazuo. Japan’s cultural diplomacy, past and present. Tóquio: Japan
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TAKAI, Shiho. Kaigaini okeru nihon koten bungaku, geijutsu (Literatura ja-
ponesa clássica e o teatro nas Antologias da Literatura Mundial). In
Gurōbaruka suru nihon bunka (A globalização da cultura japonesa),
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Disponível em: https://ci.nii.ac.jp/naid/120006467808 Acesso em 01/06/2020.
VILIEGAS, Renato. Se não fosse por eles... Henshin, São Paulo, n. 21: 18-22, 2001.

230
YOSHIDA, Nana; HASHIMOTO, Lica. A origem do Japão – Mitologia da era
dos deuses. Ilustrações: Carlo Giovani. São Paulo: SESI-SP Editora,
2018. 96pp, 29 ils.

ILUSTRAÇÃO

Ilustração 1 - Ultraman. Primeira edição. (https://coisasdojapao.com/2017/01/


ultraman)
Ilustração 2 - A Princesa e o Cavaleiro.(https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Prin-
cesa_e_O_Cavaleiro)
Ilustração 3 - Evolução do Gohan e os níveis de poderes.(https://www.you-
tube.com/channel/UCjSKsB1e_4p6Ck0tCopdQZw)
Ilustração 4- Espada de Yasuo em League of Legends. (https://images.app.
goo.gl/rA2qaumgzJDYbXi26)

FOTOGRAFIA

Foto 1 - Kojiki (Relatos de fatos antigos, 712). Disponível: https://www.zhihu.


com/question/385419873 Acesso 10.02.2020
Foto 2 - Kojiki Tomo I, 1ª p. Disponível em: http://kojiki.kokugakuin.ac.jp/
digital/0001-0003/?i=0 Acesso 10.02.2020
Foto 3 - Acervo pessoal.
Foto 4 - Acervo pessoal.

231
H
Branca de Neve: a mulher
no conto dos Irmãos Grimm e
na série de TV Once Upon a Time
Sandra Trabucco Valenzuela

“Branca de Neve” e as
versões dos Irmãos Grimm

A partir da segunda metade do século XVIII, surge, na Alemanha, o “Sturm


und Drag” (“Tempestade e Ímpeto”), movimento pré-romântico que, no sé-
culo seguinte, marcaria o nascimento do Romantismo alemão, definindo-se,
grosso modo, pela reação contrária aos preceitos Iluministas que determinam
a racionalidade como único modo de compreensão e percepção do mundo.
Voltando-se mais para as ideias de Schopenhauer e Kierkegaard, o movi-
mento romântico alemão valorizava a subjetividade e a arte como caminho
de experimentação e consolo para uma felicidade possível dentro do caos
que se impõe no mundo real e transitório.
Assim, o filósofo e poeta Johann Gottfried von Herder começa a incenti-
var a pesquisa e reconstrução da história nacional para o estabelecimento na
Alemanha de um projeto voltado à consolidação da nacionalidade, retomando
suas raízes e a cultura popular. Nessa perspectiva, no início do século XIX, a
Europa experimenta um novo interesse pelas narrativas maravilhosas, fábulas,
contos tradicionais, provérbios, cantigas e lendas, alavancado pelos estudos
das línguas europeias e suas relações com o sânscrito, sob o viés da Filologia.

232
É nesse contexto que se destacam os trabalhos realizados pelos irmãos
Jacob e Wilhelm Grimm no Círculo Intelectual de Heidelberg, na Alemanha.
Com vistas à construção de uma unidade cultural do povo alemão, através do
resgate das tradições e da língua comum, os Irmãos Grimm dedicaram-se ao
estudo da Filologia, da antiguidade e do medievalismo, levantando narrati-
vas que continham práticas, hábitos, episódios e fatos dos quais, de alguma
forma, emergiria o passado e a cultura alemã. Resgatando elementos da mi-
tologia germânica e da história do direito, os Irmãos Grimm dedicaram-se
a recolher da memória popular relatos maravilhosos e folclóricos das mais
diversas fontes (VALENZUELA, 2016, p. 177).
A partir de 1806, os Grimm começaram a recolher histórias contadas por
amigos e vizinhos nas proximidades de Kassel, sua cidade natal, destacan-
do-se a família Wild, formada por sete irmãos, entre eles Lisette (1782-1858)
(fluente em francês e conhecedora dos contos de Perrault), Gretchen (1787-
1819) e Dortchen Wild (1795-1867) (mais tarde, esposa de Wilhelm Grimm);
as jovens da família Hassenpflug, em especial Jeannette e suas irmãs Ama-
lie e Marie (TEVERSON, 2013, p. 63). Outra fonte importante foi Katharina
Dorothea Viehmann (1755-1815), filha de um huguenote francês proprietário
de taverna e viúva de um alfaiate, a qual guardava na memória, palavra por
palavra, um grande número de narrativas, ouvidas na infância e juventude
dos frequentadores da taverna. No total, a viúva contribuiu com 35 histórias
que foram publicadas no segundo volume de Kinder- und Hausmärchen.
Segundo Teverson (2013, p. 65), os Grimm viam em Viehmann o modelo de
contador de histórias que eles almejavam para ser associado ao livro. A figura
de Viehmann foi imortalizada em um desenho de 1819 elaborado pelo pintor
Ludwig Emil Grimm (1790-1863), o irmão caçula dos Grimm.

233
Fig.1 — Dorothea Viehmann, 1819, gravura de Ludwig Grimm1.

Entre as publicações resultantes dos estudos de Jacob e Wilhelm Grimm,


está o livro Contos da infância e do lar publicado pela primeira vez em Berlim,
em dezembro de 1812, com 86 contos, e o segundo volume da mesma edição
lançado em 1815, com mais 70 histórias. Entre os contos que compõem o livro
estão “João e Maria”, “Gata Borralheira”, “Rapunzel”, “Chapeuzinho Vermelho”,
“A Bela Adormecida”, “Branca de Neve”, entre outros. A cada nova edição, os
volumes recebiam tanto acréscimos como alterações na própria narrativa,
considerando o gosto do leitor e a adequação ao contexto sócio-cultural de
sua época.
A primeira edição de Contos da infância e do lar foi alvo de críticas de-
vido ao conteúdo de algumas de suas histórias, consideradas inadequadas,
devido a citações a relações incestuosas, maus tratos a crianças, desavenças
familiares, entre outras:
El público criticaba la crueldad y las insinuaciones
eróticas de algunos cuentos que no se podrán dar a leer
a los niños. Aquí radica quizás la mayor motivación del
cambio de los relatos, de convertir los cuentos populares
cada vez más en cuentos infantiles (GAÑAN-MEDINA,
1998, p. 204).

Dessa forma, na segunda edição — cujo prefácio enfatiza o valor dos con-
tos para crianças, bem como seu valor como diversão e aprendizagem para

234
adultos (TATAR, 2017) — os contos “Branca de Neve” e “João e Maria”, por
exemplo, sofreram alterações substanciais: tanto a mãe perversa de Branca
de Neve, como a mãe que abandona os filhos João e Maria (ou, em alemão,
Gretel e Hansel), transfigura-se em madrasta, o que permite uma interpre-
tação mais amena e aceita pelos padrões da época, afinal, o que se preten-
dia era apresentar narrativas populares para a formação de um repertório
literário folclórico, que fosse também adequado ao gosto da família alemã.
Para tanto, fazia-se necessário oferecer obras condizentes com o contexto
burguês e religioso predominante, abstraindo-se, desse modo, referências de
cunho sexual e/ou à vilania materna, bem como situações violentas ou inde-
sejáveis. Por outro lado, o castigo aos vilões foi ampliado e as virtudes, mais
valorizadas, o que intensificou o estudo e o espaço oferecido à exemplaridade.
Nelly Novaes Coelho (1984) aponta valores ideológicos como elementos
de composição dos contos:
predomínio dos valores humanistas: preocupação com
a sobrevivência ou as necessidades básicas do indivíduo
[...]; qualidades exigidas à Mulher [...]: Beleza, Modéstia,
Pureza, Obediência, Recato... e total submissão ao Ho-
mem; a ambição desmedida ou a insaciabilidade humana
causam desequilíbrios sem conta; é enfatizada a ambi-
guidade da natureza feminina (COELHO, 1984, p. 128).

Muitas versões diferentes do conto “Branca de Neve” circularam pela


Europa, muito antes da publicação dos Grimm, como é o caso do conto “A
Escrava”, recolhido por Giambattista Basile, provavelmente durante suas
viagens entre Veneza e a ilha de Creta, escrito em dialeto napolitado e publi-
cado postumamente na obra intitulada O conto dos contos (Pentameron), em
dois volumes, em 1634 e 1636 (BASILE, 2018). A obra de Basile foi traduzida
na Alemanha somente em 1846, por Liebrecht e, em 1893, na Inglaterra por
Richard Burton, o que manteve essas histórias desconhecidas até aquele
momento. O original napolitano de Pentameron só passou a ser conhecido
na Itália através da tradução para o italiano e da crítica à obra, ambas efe-
tuadas por Benedetto Croce, em 1925 (BASILE, 1925).
A primeira versão cinematográfica do conto “Branca de Neve”, dirigido

235
e produzido por Siegmund Lubin, em 1902, não chegou a nossos dias e nem
sequer os registros do filme e de suas versões, produzidas nos anos de 1910,
1913 e 1914, como afirma a National Film Preservation Foundation2. A mais
antiga versão cinematográfica disponível de “Branca de Neve” data de 1916,
cujo roteiro é uma adaptação teatral levada aos palcos da Broadway, tendo
em ambas a atriz Marguerite Clark no papel título. Quando Walt Disney tinha
quinze anos de idade, assistiu ao filme Branca de Neve de 1916, no Conven-
tion Hall, em Kansas City, e a impressão deixada foi tão marcante que, ao
planejar a realização de um longa de animação, sua primeira lembrança foi
a desta narrativa fílmica.3

Fig.2 — Cena do filme Snow White, 1916.4 Branca


desperta no palácio, após ter engasgado com a maçã da bruxa.

236
O feminino em Branca de Neve,
dos Irmãos Grimm

As figuras femininas das duas versões de Branca de Neve, dos Ir-


mãos Grimm, apresentam características semelhantes:
Enquanto estava costurando e levantou o rosto para
ver a neve, ela espetou o dedo com a agulha e três gotas
de sangue caíram na neve. Como o vermelho combinava
tão bem com o branco, ela pensou: “Quem me dera ter
uma filha Branca como a neve, vermelha como o san-
gue e negra como esse batente da janela”. Pouco tempo
depois, ela deu à luz uma menina, branca como a neve,
vermelha como o sangue e preta como o ébano, e que por
isso foi chamada de Branca de Neve. (GRIMM; GRIMM,
2012, p. 247)

Nesta primeira versão, enquanto a menina Branca de Neve reúne atribu-


tos como bondade, beleza, submissão e ingenuidade, a mãe revela-se cruel,
prepotente e sem qualquer sinal de empatia pela filha:
Assim, ela tinha certeza de que não havia no mundo
alguém mais bonita do que ela. Mas Branca de Neve foi
crescendo, e aos sete anos de idade sua beleza era tama-
nha que superava até mesmo a da rainha, e quando esta
perguntou ao espelho [...], o espelho respondeu: “Vós,
minha rainha, sois a mais bela por aqui, mas Branca de
Neve é mil vezes mais bonita!”. Ao ouvir tais palavras do
espelho, a rainha ficou pálida de inveja e, a partir desse
momento, passou a odiar Branca de Neve [...]. (GRIMM;
GRIMM, 2012, p. 248)

Na primeira edição dos Irmãos Grimm, Branca de Neve é uma criança


de apenas sete anos de idade que está indefesa e à mercê da maldade de-
sencadeada pela inveja que a mãe revela pela beleza da filha. Em nenhum
momento surge a figura paterna para interceder em favor da criança ou con-
viver com a própria rainha, o que aponta para a solidão feminina, visto que

237
a mãe conta com um espelho como único elemento de interação e diálogo.
A magia insere-se no espelho, configurando o desdobramento da persona-
gem, criando uma voz que funciona como superego da Rainha, dizendo-lhe a
verdade: “Vós, minha rainha, sois a mais bela por aqui, mas Branca de neve
é mil vezes mais bonita!” (GRIMM; GRIMM, 2020, p. 248). Não há qualquer
empatia ou sentimentos de afeto da mãe pela filha. O espelho mágico tor-
na-se responsável por exacerbar sua inveja e egocentrismo, motivando-a a
cometer ações voltadas para o mal da menina, como encomendar seu assas-
sinato a um caçador, que, ao contrário da mãe, compadeceu-se, poupando
a vida da criança.
Uma vez livre do caçador, Branca refugia-se numa casa na floresta, per-
tencente a sete anões. Os anões permitem que Branca permaneça ali, a salvo,
desde que ela reproduza funções tradicionalmente ligadas ao trabalho femi-
nino: limpar a casa e preparar alimentos. Não há pagamento ou gratidão, há
uma negociação à base de troca: trabalho doméstico em troca de cama e co-
mida. Vale recordar que, nessa versão, Branca tem apenas sete anos de idade.
No entanto, como criança que é, Branca de Neve, mesmo acreditando
estar em segurança na casa dos anões, ela se deixa facilmente enganar pelos
ardis empreendidos pela mãe, que vai até a casa dos anões e tanta matá-la
três vezes: com um laço, com um pente e com uma maçã. Ao morder a maçã
envenenada, Branca cai desfalecida. Por ser tão bela, os anões colocam-na
num caixão de vidro no meio da sala e o esquife lá permanece por muito
tempo sem se decompor, embora os anões tivessem certeza de sua morte.
Um dia, um príncipe entrou na casa e viu Branca que jazia no caixão e
pediu que os anões lhe vendessem o caixão com Branca de Neve. Frente à
negativa dos anões, o príncipe esclareceu que não conseguiria mais estar
vivo sem ver tamanha beleza, e aí sim, os anões lhe entregaram o caixão com
o corpo de Branca. Já no castelo, o príncipe passava o dia a olhar o ataúde,
obrigando aos criados a transportar o caixão aonde quer que ele fosse, até que:
um deles abriu a tampa, ergueu Branca de Neve e
disse: “Passamos o dia sofrendo, por uma menina morta!”,
e com isso deu um tapa nas costas dela. Nesse instante,
o pedaço de maçã podre que ela havia mordido saltou
de sua garganta e Branca de Neve estava viva outra vez.

238
Então, ela foi até o príncipe, que, de tanta felicidade ao
vê-la, nem sabia o que fazer, e alegres os dois sentaram-
-se à mesa para comer. (GRIMM; GRIMM, 2012, p. 254).

A felicidade concretiza-se aqui pela ressurreição de Branca e, a seguir,


pelo ato de sentar-se à mesa e fazer uma refeição. Não há menção a amor,
casamento ou ao famoso “foram felizes para sempre”. Esta primeira versão
do conto, que hoje nos choca, também incomodou os leitores de sua época,
exigindo dos autores reformulações.
Na segunda edição dos contos, a narrativa de Branca de Neve sofre mu-
danças significativas em seu conteúdo. Se antes havia uma mãe malvada,
agora a mãe isenta-se a culpa, ganhando um caráter sagrado ao morrer no
momento de dar à luz a filha. Acrescenta-se, portanto, dor e sofrimento à mãe
e eleva-se o grau de solidão da filha. Assim, o mal passa a ser incorporado pela
madrasta, a segunda esposa do rei. Ao transformar a mãe numa madrasta,
o lastro da maldade também se amplia, pois não há laços consanguíneos,
ao contrário, estabelece-se uma disputa pelo poder relacionado à beleza. A
Rainha, embora bela, é uma feiticeira má, cruel, ardilosa e mentirosa. Se na
primeira versão, Branca é ainda uma criança, na segunda, há uma passagem
de tempo evidenciada pela instância narrativa, deixando a menina com uma
idade indefinida, mas, certamente adulta. Ao desfalecer em consequência
da mordida na maçã,
Branca de Neve ficou no caixão por muitos e muitos
anos. Ela não se decompunha e parecia dormir, conti-
nuando sempre branca como a neve, vermelha como o
sangue e negra como o ébano. Até que um dia um prín-
cipe veio por aquela floresta e parou para passar a noite
junto à casa dos sete anões. (GRIMMSTORIES, 2019)

Como na primeira versão, a submissão da personagem Branca de Neve


evidencia-se no momento em que, coagida a permanecer escondida na casa
dos sete anões, vê-se obrigada a oferecer como moeda de troca o serviço
doméstico. Não há outra escolha para Branca, resta-lhe aceitar a situação e
refugiar-se na casa dos anões para esconder-se das maldades da madrasta.

239
Sua ingenuidade — seja pela juventude, seja pelo coração bondoso e livre
de pensamentos negativos — a tornam passiva e submissa, sem capacidade
de reflexão sobre sua própria situação.
Nessa versão, Branca deixa-se também enganar três vezes, desfalecendo
sempre e retornando à vida. Se na primeira versão, o Príncipe transporta
Branca da casa dos anões para seu palácio no caixão de vidro, na segunda,
o Príncipe tenta levá-la da colina para seu palácio mesmo morta em seu es-
quife. Porém, quando um dos assistentes do Príncipe tropeça, Branca cospe
o pedaço de maçã envenenada presa há anos na garganta da jovem, e esta
retorna à vida:
— Onde é que eu estou? – perguntou (Branca).
— Está comigo! — respondeu o príncipe, todo alegre.
Então ele contou o que tinha acontecido e disse:
— Eu amo você mais do que qualquer outra coisa
no mundo. Venha comigo até o castelo de meu pai e
vamos nos casar.
Branca de Neve também se apaixonou pelo prínci-
pe e foi com ele. Começaram logo os preparativos para
uma festa maravilhosa de casamento. (GRIMMSTORIES,
2019).

A segunda versão do conto inclui o amor e o casamento, contudo, em


nenhuma das versões há menção ao beijo apaixonado do Príncipe; o que
se observa aqui pode ser associado à ideia de “amor à primeira vista” e, na
sequência, a declaração de amor. O prêmio conquistado é o casamento com
o Príncipe, que configura uma promessa de bonança, bem-estar e ascensão
social com relação à sua condição anterior. Ou seja, se, no passado, Branca
era Princesa, com os anões passou a exercer humildemente a condição de
serviçal, mas com o casamento, há uma retomada da situação inicial, sem a
desconfortável presença da madrasta.
Por sua vez, a madrasta — a antagonista de Branca de Neve — apresen-
ta-se como uma mulher mesquinha, egocêntrica, egoísta e incapaz de esta-
belecer uma relação de afeto ou respeito com Branca. Em nenhum momento,
seja na primeira ou na segunda versão, a vilã revela qualquer relação com
o pai de Branca de Neve —, e este tampouco aparece para dar apoio à filha.

240
Como pai e marido, o rei é omisso. Desse modo, a madrasta é aparentemente
independente, porém, o espelho é seu ponto de apoio, pois é ele o responsá-
vel por contar-lhe a verdade, mas também constitui o elemento mágico que
revela ao leitor/ouvinte o caráter da antagonista.
Curiosa, a madrasta cede à tentação de ir até a festa de casamento jus-
tamente para poder observar de perto o que acontecerá. Ao final, a vilã do
conto recebe um castigo terrível: é obrigada a dançar com pantufas de ferro
quente até a morte.
Observe-se que nos contos dos Irmãos Grimm não há menção a beijos de
amor e que Branca de Neve na primeira versão é uma criança e, na segunda,
Branca de Neve é muito jovem, porém sem idade definida. Em nenhuma das
duas narrativas o Príncipe conhece Branca de Neve antes de levá-la consigo
para o palácio, inclusive, quando ele decide transportá-la, a jovem está morta
no esquife de vidro. Seu retorno à vida, nos dois casos, é acidental, com a in-
terferência do humano e do mágico. Em nenhum dos contos há informações
precisas sobre o lugar, sabe-se apenas da existência de uma floresta e de mon-
tanhas, além dos dois castelos, o da Rainha malvada e o castelo do Príncipe.

Once upon a time: o enredo

Once Upon a Time (OUAT) é uma série de TV, criada por Adam Horowitz
e Edward Kitsis, produzida entre 2011 e 2018 pela ABC Studios, pertencen-
te à Disney. O enredo da primeira temporada da série desenvolve-se em
duas diegeses diferentes, isto é, a dos contos, a Floresta Encantada, e a de
Storybrooke, cidade fictícia que estaria localizada no Maine, na costa leste
dos Estados Unidos, e que corresponde ao espaço criado pela maldição lan-
çada por Regina, a Rainha Má, durante o casamento de Branca de Neve e o
Príncipe Encantado, na Floresta Encantada. As diegeses sustentam o espaço
ficcional para a criação de um novo universo dos contos clássicos, com base
em personagens de domínio público, transmitidos pela tradição oral e, mais
tarde, recolhidos por escritores na forma de contos tradicionais e populares,
contos de fada, narrativas fantásticas, fábulas e fantasia, propiciando ao re-

241
ceptor de Once Upon a Time elementos novos, que complementam, antecedem
ou justificam fatos ocorridos nas narrativas tradicionais.
No início do episódio piloto, firma-se um pacto com o receptor através dos
letreiros: “era uma vez, uma floresta encantada com todos os personagens
clássicos que nós conhecemos. Ou pensamos conhecer. Um dia, eles se acha-
ram presos num lugar onde todos os seus finais felizes lhes foram roubados.
O nosso mundo” (OUAT, 2011, ep. 1, no primeiro minuto).
A trama de OUAT começa com o Príncipe Encantado galopando veloz-
mente rumo à densa e fria floresta onde Branca de Neve, cercada pelos
anões, repousa em seu esquife de cristal. A sequência é semelhante à segunda
versão dos Irmãos Grimm e também à apresentada pelo filme de animação
produzido pela Disney, Branca de Neve (1937), quando os anões estão ao lado
do caixão de cristal onde jaz, aparentemente sem vida, o corpo de Branca
de Neve. Contudo, essa é a única cena de OUAT resgatada com fidelidade
da animação, visto que, na sequência, após o beijo de Encantado, Branca
desperta e, numa elipse temporal, Branca e Encantado já se encontram em
plena celebração nupcial. Porém, a cerimônia de casamento é interrompida
pela Rainha Má que chega de repente, sem ser convidada, e lança a maldi-
ção que atingirá toda a Floresta Encantada: os personagens serão lançados
num mundo horrível — “o nosso mundo” —, sem magia, sem finais felizes,
e nele, todos perderão a memória, esquecendo-se de quem são. A maldição
somente atingirá a Floresta Encantada quando Emma, a filha de Branca de
Neve e Encantado, nascer.
Prestes a dar à luz, Branca de Neve pede ajuda a Rumplestiltskin, que
revela a maldição e aponta a resolução do problema: a filha de Branca de
Neve será a Salvadora e, ao completar 28 anos, retornará para empreender
a guerra final contra a Rainha Má. Assim, Branca e Encantado planejaram
como salvar a criança da maldição, colocando-a dentro de um armário feito
com madeira mágica, que funciona como um portal. Emma, a Salvadora,
aparece sozinha, como um bebê abandonado, numa estrada no “nosso mun-
do”, que fica fora dos limites de Storybrooke; ela cresce sofrendo o trauma
do abandono. No dia de seu aniversário de 28 anos, Emma Swan é procurada
por Henry, seu filho legítimo que fora adotado por Regina, poderosa prefeita
de Storybrooke, e que, na verdade, é a Rainha Má. Henry possui um livro

242
intitulado Once upon a time, que conta os fatos ocorridos no passado e sabe
que a única pessoa capaz de resgatar os personagens e trazer de volta os fi-
nais felizes é Emma, sua mãe biológica: ou “A Salvadora”.

Once upon a time e o feminino: Branca de Neve


e a Rainha Má

Ao entender a série OUAT como uma narrativa de caráter feminista, faz-se


necessário explicitar o conceito de “feminismo” aqui trabalhado:
feminismo pode ser definido como a tomada de cons-
ciência das mulheres como coletivo humano, da opressão,
dominação e exploração de que foram e são objeto por
parte do coletivo de homens no seio do patriarcado sob
suas diferentes fases históricas, que as move em busca
da liberdade de seu sexo e de todas as transformações
da sociedade que sejam necessárias para este fim (GAR-
CIA, 2015, p. 13).

OUAT é uma produção da ABC, pertencente ao grupo Disney e, por esse


motivo, a série cita com frequência as versões dos contos já produzidos pela
Disney. Assim, em OUAT, todos os personagens remetem ao imaginário
construído pela Disney, em especial, se considerarmos o primeiro longa de
animação Branca de Neve (1937), baseado na versão do conto publicada na
2ª. edição do livro dos Irmãos Grimm (2012). Contudo, essa semelhança se
restringe a alguns elementos: características físicas das personagens, recur-
sos mágicos, espaço diegético.

243
Fig. 3. Once Upon a Time, 2011, 1ª. temporada. Branca de Neve, Encantado, Rumplestilskin,
Rainha Má e Caçador na versão da Floresta Encantada; Henry e Emma na versão de
Storybrooke. Foto: divulgação.

OUAT é uma série que investe no paradigma de empoderamento femini-


no. A Salvadora Emma une-se a Mary Margareth (a persona de Branca de
Neve em Storybrooke) contra o poder maligno de Regina (a Rainha Má).
Na Floresta Encantada, Branca de Neve apaixona-se por Encantado, que
também a ama. O Príncipe rende-se a Branca, desempenhando a função
de coadjuvante para qualquer atitude, decisão ou necessidade de Branca,
pois ele sempre a amará acima de tudo e, como ele mesmo enfatiza: “— Eu
sempre vou te encontrar”. Por outro lado, Rumplestilskin atua como segundo
antagonista, que, ora auxilia Regina, ora une-se a Emma, estabelecendo-se
como um personagem que busca apenas o sucesso de seus próprios desígnios.
A personagem Branca de Neve do filme de animação da Disney (1937) é
uma jovem e bela princesa que se caracteriza pela doçura, meiguice, capaci-
dade de relacionar-se com os seres da floresta e, fisicamente, é marcada por
sua pele “branca como a neve” e cabelos escuros, mais próxima à caracte-
rização dos presente nos contos dos Grimm. Trata-se de uma “personagem
de costumes” ou personagem plana, nos termos de Antonio Candido (2011),
cujos “traços são fixados de uma vez para sempre, e cada vez que a perso-

244
nagem surge na ação, basta invocar um deles [...]. Personagens, em suma,
dominados com exclusividade por uma característica invariável e desde logo
revelada” (CANDIDO, 2011, p. 61). Em última instância, a Branca de Neve do
conto tradicional é uma personagem plana, de características físicas eviden-
ciadas no próprio nome e fundamentada em ações que redundam sempre
na ingenuidade e bondade.
Por sua vez, em OUAT, na diegese da Floresta Encantada, Branca de
Neve distancia-se da figura representada nos contos: a princesa enfrenta o
Príncipe; não se submete e nem teme os desmandos da madrasta, a quem
considera como inimiga, desde a descoberta do envolvimento dela na morte
do Rei, pai de Branca. Ela embrenha-se na floresta não somente para fugir
e se proteger da Rainha, mas para planejar a derrota de seus inimigos, en-
frentando-os através de suas habilidades com o arco e flecha, bem como de
sua capacidade de elaborar estratégias.
Branca enfrenta caçadores, a guarda real, trolls e, inclusive o Príncipe En-
cantado, a quem rejeita — ao menos no começo da trama —, por considerar
que o amor não tinha espaço em seus planos de vingança e que Encantado
era movido por interesses financeiros. Em OUAT, na diegese da Floresta
Encantada, Branca de Neve ganha contornos de “personagem de natureza”
ou esférica, pois apresenta complexidade, imprevisibilidade e se comporta
dentro de um tecido de relações sociais (CANDIDO, 2011, p. 62-63). A Branca
de Neve da Floresta Encantada
é uma mulher madura que rejeita o epíteto de “ga-
rota” (“girl”), ao ser apanhada pelo Príncipe roubando
as joias. Branca está decidida a conquistar sua liberdade
valendo-se inclusive de meios ilícitos, como o assalto a
carruagens. Pouco romântica, Branca sabe que um casa-
mento real é feito em acordos nupciais onde o interesse
político e financeiro constituem o principal ponto de
interesse. A ideia do “amor verdadeiro” é descartada por
Branca, que não acredita senão no interesse movendo
todas as ações dos seres humanos, revelando-se cínica
e irônica especialmente ao falar com o Príncipe, que se
casará com Abigail, filha do rei Midas, por acordo nupcial
(VALENZUELA, 2016, p. 113).

245
Branca de Neve conhece seu papel: confiante, entende e investe em suas
qualidades e habilidades, afastando-se do estereótipo de princesa bela e ingê-
nua. Inteligente, astuta e impetuosa, ao fugir da Rainha, Branca deixa de lado
o castelo e o guarda-roupas de princesa, optando por um figurino que remete
ao de caçador: roupa de couro, calças compridas e botas de cano alto, além de
um conjunto de arco e flecha e espada, as quais maneja com grande habilidade.
É possível associar a personagem Branca à heroína Katniss Everdeen da
trilogia Jogos Vorazes (The Hunger Games, 2008), de Susan Collins (VALEN-
ZUELA, 2016, p. 114), pois ambas lutam pela sobrevivência de igual para igual
com os homens, estabelecendo-se como protagonistas de uma luta do bem
contra o mal, contra a tirania exercida pelo poder. Branca assume o prota-
gonismo de sua história, lutando para traçar seu próprio destino.
O percurso do herói, conforme Vogler (1997), empreendido por Branca
de Neve inicia-se na Floresta Encantada, com a ascensão ao trono da Rainha
Má, devido à morte do pai de Branca. Diante da tirania e crueldade da ma-
drasta, Branca deixa o castelo, o “mundo comum”, para iniciar a luta, depois
da certeza do envolvimento da Rainha na morte do Rei (Ato I). Branca pas-
sa a viver na floresta, protegida pelos aldeões, e é lá onde encontra aquele
que a acompanhará em sua luta: o Príncipe Encantado. Branca passa por
muitas provações, sendo diversas vezes atacada a mando da Rainha (Ato II-
A). A provação suprema ocorre no momento em que Branca prova a maçã
envenenada e, a seguir, é salva pelo beijo de Encantado, dando uma nova
vida à Floresta Encantada (Ato II-B). Branca retoma o Castelo e se casa com
o Príncipe, restabelecendo a harmonia no Reino e o retorno ao chamado
“mundo comum” (Ato III). Porém, a maldição lançada pela Rainha durante o
casamento de Branca aponta para uma nova aventura: Branca deve proteger
seu bebê, pois sabe que ela será a salvadora.
A principal diferença entre a Rainha Má dos contos dos Grimm e Regi-
na de OUAT é que a personagem da série tem um passado e que sua vilania
se desenvolve no decorrer da narrativa, como fruto do ressentimento das
ações empreendidas por sua mãe, a malvada Cora, cujo principal objetivo é
propiciar a Regina um casamento real, a qualquer custo.
Bondosa e ingênua no início, Regina (cujo nome significa “Rainha”, em
Latim) apaixona-se por Daniel, um jovem humilde, no entanto, Cora, através

246
da magia, mata o rapaz, extirpando seu coração. Esse é o fato que desenca-
deia a maldade de Regina e sua vontade de vingar-se da mãe e da delatora de
seu romance secreto: a pequena Branca de Neve, mostrada nesse momento
da série como uma menina de aproximadamente sete anos, a exemplo da
versão do conto dos Irmãos Grimm.
A vingança transforma Regina em vilã, quem, a partir daí, recorre a
recursos mágicos para atingir seus objetivos. Seu ódio por Branca de Neve
aumenta na medida em que Cora a obriga a casar-se com o pai de Branca.
Em OUAT, não há de fato uma preocupação por parte da Rainha com a beleza
de Branca de Neve, o que se impõe é uma tentativa de vingança. O espelho
é o elemento mágico que funciona como um artefato que está em poder da
Rainha: o espelho configura-se como um homem que vive num entreluga-
res (o homem dentro do espelho) e, por sua paixão e fidelidade a Regina,
submete-se a todos os seus desmandos, como numa autopenitência por ter
causado a morte do rei. O artefato mágico permite observar a todos, como
se fosse uma câmera de vigilância, oferecendo a possibilidade de descobrir
segredos, dar conselhos e localizar pessoas. Enquanto no conto dos Grimm
o espelho é a voz que informa e confirma à Rainha a respeito de sua beleza,
em OUAT o espelho é um personagem que se assemelha ao gênio da lâmpada,
mas que se torna prisioneiro por sua própria iniciativa. Já em Storybrooke, o
espelho ganha forma humana, porém, continua preso pela paixão que sente
pela Prefeita Regina. O espelho assume a figura de Sidney Glass, o jornalista,
e desse modo continua proporcionando informações e também distorcendo
fatos de acordo com os interesses de Regina.
Insegura e carente nas duas diegeses, Regina busca a felicidade, porém,
graças aos seus poderes, assume uma atitude prepotente, ao tentar manipular
os sentimentos de todos aqueles que a cercam. Regina é solitária e impul-
siva, porém deseja viver um novo amor. Na busca por partilhar o amor que
tem guardado dentro de si, a Rainha manipula a vida dos súditos, como no
caso dos irmãos João e Maria, aos quais oferece o conforto de viver no pa-
lácio em troca de que abandonem definitivamente o pai. Regina é mostrada
como uma personagem emocionalmente imatura, mesquinha e irracional,
pois acredita que pode conquistar o amor de qualquer modo, seja pelo medo,
seja pela magia.

247
Após a morte de Daniel, seu grande amor, o medo da solidão faz com que
Regina assuma a máscara da crueldade, o que a afasta da narrativa tradi-
cional da Rainha Má da Branca de Neve dos Irmãos Grimm. Assim, Regina
opta por vivenciar uma pseudo realidade, na qual ostenta o poder, cercan-
do-se de bajuladores ou de pessoas que a temem (Valenzuela, 2016): surge
então a ideia de lançar a maldição de Storybrooke, tornando-se o centro das
atenções e do poder.
Como vingança, Regina quer destruir a felicidade não só de Branca, mas
de todos os que a cercam. Por isso, no casamento entre Branca e Encantado
lança sua maldição sobre os personagens dos contos, despojando o mundo
dos finais felizes na medida em que os condena à vida cotidiana sem magia
na cidade de Storybrooke, como forma de fazer com que todos sintam sua
mesma dor.

Considerações finais

De acordo com Joseph Campbell, em Mito e Transformação (2008),


A história básica da jornada do herói implica abrir
mão do lugar onde você vive, entrar na esfera da aven-
tura, chegar a certo tipo de percepção simbolicamente
apresentada e depois retornar à esfera da vida normal.
[...] (A travessia do limiar) É a travessia do mundo cons-
ciente para o inconsciente, mas o mundo inconsciente
é representado por muitas, muitas imagens diferentes,
conforme o contexto cultural do mythos. Pode ser mer-
gulhar no oceano, entrar no deserto, perder-se numa
floresta escura, encontrar-se numa cidade estranha.
(CAMPBELL, 2008, p. 137-138).

A jornada do herói de Campbell compõe a estrutura narrativa de OUAT,


na qual as mulheres são protagonistas. Desse modo, a série é uma ficção
seriada alicerçada pelo feminino, isto é, evidencia-se na produção o desta-
que para personagens femininas, que atuam de modo a transgredir o que

248
os contos de fadas tradicionais sustentam como sendo comportamentos
femininos estereotipados: a Branca de Neve de OUAT é guerreira, hábil no
manuseio do arco e flecha e não se revela romântica; Regina busca a feli-
cidade e inicialmente era gentil e bondosa, mas a intervenção de uma mãe
cruel causou-lhe o trauma da perda e da solidão. Regina mostra-se aos olhos
dos súditos como uma mulher cruel, mas o medo e a insegurança são fortes
componentes de sua personalidade.
Tanto Branca de Neve como Regina são mulheres que agem de forma
independente, tomam a iniciativa, escolhem seus destinos, lutam pelo que
desejam. A narrativa de OUAT revela-se condizente com a discussão do papel
feminino na sociedade contemporânea, na qual a mulher apresenta-se como
um ser integral, que pensa e age livremente, em detrimento do androcentris-
mo, do patriarcado e do sexismo (GARCIA, 2015) construído e sustentado
por gerações. OUAT destaca o protagonismo feminino justamente pelo poder
empreendido tanto pelas personagens “do bem”, como as pelas personagens
“do mal”, capazes de transformar seus destinos.

249
Notas

1 Disponível em https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/thumb/8/8e/
Dorothea_Viehmann.JPG/1024px-Dorothea_Viehmann.JPG Acesso em 22 mar.
2020.
2 Organização sem fins lucrativos, mantida pela Library of the Congress, USA.
Disponível em: https://www.filmpreservation.org/about/about-the-nfpf Acesso
em 30/01/2020.
3 Depoimento de Walt Disney no site do Museu Walt Disney. Disponível em: ht-
tps://www.waltdisney.org/blog/snow-white-1916
4 Snow White, disponível em: https://www.filmpreservation.org/preserved-films/
screening-room/t1-snow-white-1916# Acesso em 31/01/2020.

250
REFERÊNCIAS

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e notas Benedetto Croce. Bari: Laterza, 1925. Versão disponível em:
https://archive.org/details/locuntodelicunti01basi/page/n13/mode/1up
Acesso em 21 mar. 2020.
BASILE, Giambattista. O conto dos contos. Pentameron. Trad. e notas Fran-
cisco Degani. São Paulo: Nova Alexandria, 2018.
CAMPBELL, Joseph. Mito e transformação. Trad. Frederico N. Ramos. São
Paulo: Ágora, 2008.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Trad. Adail Ubirajara Sobral. São
Paulo: Cultrix/Pensamento, 2004.
CANDIDO, Antonio. A personagem de ficção. 12ed. São Paulo: Perspectiva, 2011.
COELHO, Nelly Novaes. A literatura infantil. 3ed. São Paulo: Quíron, 1984.
GAÑAN-MEDINA, Nathalie Zimmermann. La literatura infantil en el Ro-
manticismo alemán. In: PACHECO, Juan Antonio; SAURA, Carmelo
Vera. Romanticismo europeo. Historia, poética e influencias. Sevilla:
Universidad de Sevilla, 1998. p. 195.
GARCIA, Carla Cristina. Breve história do feminino. 3ed. São Paulo: Clari-
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GRIMM, Irmãos. Contos de fadas. (Tradução de Celso M. Paciornik). 5ed. São
Paulo: Iluminuras, 2012.
GRIMM, Jacob; GRIMM, Wilhelm. Contos maravilhosos infantis e domésti-
cos (1812-1815). Trad. Christine Rohrig. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
Tomo 1.
GRIMMSTORIES, 2019. Branca de Neve. Disponível em: https://www.grimms-
tories.com/pt/grimm_contos/branca_de_neve Acesso em 01/11/2019.
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TATAR, Maria. From Sex and violence: the hard core of fairy tales. In: TA-
TAR, Maria. The classic Fairy Tales. 2ed. New York: Norton Critical
Edition, 2017.
TEVERSON, Andrew. Fairy Tale. New York: Routledge, 2013.
VALENZUELA, Sandra Trabucco. Once Upon a Time: da Literatura para a

251
série de TV. São Paulo/Lisboa: Chiado, 2016.
VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: Estruturas míticas para con-
tadores de histórias e roteiristas. Trad. Ana Maria Machado. Rio de
Janeiro: Ampersand, 1997.

252
V
Caio Fernando Abreu
e o diálogo com o jovem leitor
Graziele Maria Valim

Considerações iniciais

O que caracteriza um texto como “mais adequado” a uma certa ida-


de? Existe um limiar que separa a “grande” literatura, dotada de fruição
e experiência estética, daquela destinada aos jovens? Quais parâmetros
definem obras consideradas adultas ou juvenis? Segundo Virginia Woolf
(2007), o único conselho que uma pessoa pode, de fato, dar a outra a
respeito do ato de ler é não dar conselho algum, permitindo que o outro
siga seus instintos e chegue às suas próprias conclusões. Além disso,
ninguém deve permitir que lhe seja designado o que ler, como ler e que
valor atribuir ao que se está lendo, pois isso significa destruir o espírito de
liberdade que os livros carregam. A partir desse ponto de vista, podemos
pensar que as respostas para tais questionamentos parecem, dessa forma,
óbvias. Entretanto, quando refletimos a respeito da literatura para adoles-
centes e jovens, devemos pensar que esse público encontra-se no limiar,
isto é, já não é mais criança para se identificar com textos de linguagem
e vocabulário infantilizados, e nem adulto, com maturidade o suficiente
para ler e interpretar obras que exigem um maior nível de abstração e
compreensão de sua complexidade linguística. A esse respeito, Marina
Colasanti assegura-nos:

253
El público joven es para él [se refiere al escritor] un
blanco altamente improbable. No está, como el [público]
de los niños, reunido en un bloque socialmente delimi-
tado y cronológicamente similar. Sus conocimientos no
pueden medirse por la edad. El adolescente es una cria-
tura de dos cabezas, oficialmente autorizado a ser adulto
y niño al mismo tiempo. (COLASANTI apud CERRILLO,
2015, p. 214)

A partir dessa perspectiva, torna-se sinuoso e tênue o caminho que separa


as literaturas juvenil e adulta. E nesse ínterim, em que os jovens parecem
não possuir um espaço somente seu, ficando a mercê do mercado editorial,
o qual passa a ditar estilos e/ou moda por meio das sagas de aventura de
super-heróis, vampiros, jovens bruxos, com romances e quadrinhos consti-
tuídos de uma prosa fácil e rápida, há o que Sandra Beckett (2009) denomi-
na de fenômeno crossover. Trata-se daqueles livros que cruzam, ou mesmo
rompem, as fronteiras entre públicos de diferentes faixas etárias pela riqueza
de sua arquitetura estética e temática. Exemplos de tal fenômeno não fal-
tam, principalmente em se tratando de obras clássicas como Alice no País
das Maravilhas, de Lewis Carroll, As viagens de Gulliver, de Swift, e algumas
obras de Júlio Verne.
Para Phillip Ardagh (2003)1, os livros considerados crossover são aqueles
que, inicialmente destinados a jovens leitores, surpreendem-nos durante a
leitura, tornando-se dignos da atenção dos adultos. De acordo com Beckett
(2009, p. 5), há uma crença partilhada de que os livros de características fan-
tásticas, sobrenaturais – Harry Potter, por exemplo – são os mais “qualifica-
dos” ao conceito de crossover, pois tendem a prender a atenção de ambos os
públicos. Contudo, não são os gêneros que conferem aos livros a característica
de um texto crossover, mas a temática e o conteúdo desenvolvidos pelo autor.
Desse modo, é preciso termos em mente que a literatura escrita diretamente
ao público juvenil e a não escrita para jovens leitores, podem se entrelaçar e
romper com antigas categorizações; o que exige do leitor, portanto, um novo
olhar face às temáticas e estilos que as narrativas crossover revelam.
Diante disso, a partir da perspectiva do fenômeno crossover, a presente
pesquisa busca analisar o romance Limite Branco, publicado pela primeira

254
vez em 1970, do escritor gaúcho Caio Fernando Abreu e o seu papel na for-
mação de jovens leitores.

Caio Fernando Abreu –


Uma vida gritando nos cantos

Nascido em 1948 e morto em 1996, em decorrência do vírus da aids,


Caio Fernando Abreu, gaúcho natural de Santiago do Boqueirão, foi um
dos escritores mais versáteis e diversificados da literatura brasileira con-
temporânea. Seus textos, que vão da materialização do lirismo na poesia
ao experimentalismo pluriestilístico do romance, passando pela escrita de
crônicas, contos, roteiros de cinema e peças teatrais, já foram traduzidos na
Alemanha, França, Itália, Holanda e vários outros países europeus. Somam-se
às traduções as várias premiações que o escritor recebeu, como os prêmios
Fernando Chinaglia da UBE (União Brasileira de Escritores), em 1968 pelo
livro de contos Inventário do ir-remediável (1970); o do Instituto Estadual do
Livro em 1972, pelo conto A visita; a menção honrosa do prêmio Nacional de
Ficção em 1973; três prêmios Jabutis – em 1984 pela obra Triângulo das águas
(1983), Os dragões não conhecem o paraíso (1988), Ovelhas negras (1995); e
o de melhor romance do ano com Onde Andará Dulce Veiga? (1990), pela
Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) dentre outros.
Seu sucesso, acreditamos, está centrado em sua prosa urbana e marginal,
curta e fragmentada, repleta de melancolia cotidiana, mas não desalentada,
posto que exala potência e resistência. Aliada a uma linguagem que beira ao
coloquialismo, mas sem esquecer do lirismo da poesia, as narrativas de Caio
Fernando Abreu transcendem o tempo e os espaços pelos quais percorre ao
fartarem-se de intertextos diversificados, e problematizarem questões con-
temporâneas como a questão migratória e a pobreza, a repressão imposta
pela família e pelo regime político, a homofobia, a descoberta da sexualidade
e da homossexualidade, a busca de si mesmo no outro, a carência afetiva e
o desejo desenfreado de um amor que nunca chega. Ao mesclar o formal e o

255
informal, contrapondo o vulgar e o erudito em suas construções de imagens
metafóricas, as obras do escritor traduzem as inquietações, sentimentos e
emoções da alma humana, capazes de tocar e provocar não somente os adul-
tos, mas também jovens leitores. Isso porque, por estarem numa faixa etária
em que estão buscando se firmar e/ou se encontrar como adultos, os jovens
leitores podem facilmente se identificar e fruir com os personagens indefi-
nidos, solitários e conflituosos, estranhos estrangeiros presentes nos textos.
Os personagens de Caio Fernando Abreu, assim como sua escrita, estão em
constante movimento, são transeuntes do espaço interior e exterior, fazendo
insurgir reflexões e pondo em xeque padrões e certezas que o leitor outrora,
poderia julgar como certas. Porém o autor não deixa seus leitores diante de
um abismo sem qualquer apoio ou compaixão – mesmo seus protagonistas
flertando com a morte, e em alguns momentos quase beirando ao suicídio,
suas narrativas também propõem e apontam caminhos.
É o que vemos por meio do personagem Maurício na obra Limite Bran-
co, primeiro romance de Caio Fernando Abreu, publicado quando o escritor
contava ainda com seus dezenove anos. A infância e juventude do protago-
nista retratadas na obra, apontam para a concomitante formação e apren-
dizagem do jovem escritor Caio Fernando, que ainda tateava seus estilos de
linguagem e forma narrativa. Compreendemos essa obra como pertencente
ao fenômeno crossover, pois, embora escrita no século XX e não destinada
diretamente ao público juvenil, as questões que evoca e os intertextos que
emana, além do trabalho estético com a linguagem, a quebra de linearidade
e a fragmentação, são relevantes e dialogam com o universo da juventude
contemporânea. Como “ler nos conduz à alteridade, seja a nossa própria ou
a de nossos amigos, presentes ou futuros” (BLOOM, 2001, p.15), intenta-se,
neste estudo, que esse romance de Caio Fernando Abreu impulsione o jovem
a tornar-se um leitor crítico, capaz de superar o senso comum, ampliar seu
olhar estético e perscrutar as sutilezas presentes nas demais obras do autor.

256
Limite Branco e a formação do leitor

Embora Caio Fernando Abreu seja bastante investigado no âmbito da li-


teratura adulta, o estudo de seus textos como contribuição para a construção
da subjetividade e alteridade em jovens leitores carece de maior atenção. Por
tratar-se de um escritor, como já afirmado anteriormente, que elenca temá-
ticas como o homoerotismo, sexualidade, identidades em trânsito, exclusão
social, algumas de suas narrativas tornam-se significativas para se desper-
tar o pensamento crítico, reflexivo e humanizador dos jovens leitores. Seu
primeiro romance, Limite Branco (2007), escrito em 1967 – “Foram dois ou
três meses de trabalho diário, à tarde e à noite, numa pensão da rua General
Vitorino, centro de Porto Alegre” (ABREU, 2007, p. 15) –, e publicado somente
em 1970, é uma dessas narrativas que, embora não receba indicação edito-
rial como “literatura infanto-juvenil”, conflui linguagem poética e coloquial,
problematizando questões cotidianas do ser humano e, principalmente, da
juventude contemporânea. A respeito de seu protagonista, Caio Fernando
Abreu assegura-nos:
Maurício não tem outra alternativa a não ser enca-
rar aquela ameaçadora senhora da qual andou fugindo
tanto – a Vida. De uma forma ou de outra, suponho,
todo mundo um dia passa por isso. Mesmo os que, como
eu, tentam prolongar a adolescência indefinidamente...
(ABREU, 2007, p. 16).

Organizado em vinte e um capítulos, entremeado de uma bela teia nar-


rativa – em primeira pessoa, quando o adolescente está relatando no diário
seus pensamentos, emoções, conflitos diante da solidão que o mundo adulto
lhe aponta; e em terceira, tecendo as reminiscências de uma infância bucólica
e os momentos solitários de um adolescente migrante, que sai do Passo da
Guanxuma, cidade fictícia inventada pelo escritor, para enfrentar o mundo
isolado das capitais urbanas –, a obra narra a história de Maurício, um ado-
lescente desajustado que se encontra num processo de aprendizagem de si,
da escrita, de descobertas de sua própria sexualidade. Entretanto, como “todo
texto é uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte de seu

257
trabalho” (ECO, 1994, p. 9), a formação de aprendizagem do narrador-pro-
tagonista não é entregue ao leitor, que precisa preencher, ao longo do texto,
as lacunas existentes na obra.
Por meio de uma arquitetura fragmentada e não linear, o preenchimento
das lacunas do texto inicia-se já no primeiro capítulo, denominado “Tempo
de Silêncio”. Na penumbra monótona e inexpressiva de um quarto, o nar-
rador heterodiegético descreve a relação de Maurício com o próprio corpo,
a cama, os sentimentos e sensações que iam lhe dominando à medida que
apurava os sentidos e tomava consciência do momento presente. Seu des-
pertar é marcado por uma relação intensa e conflituosa com o ambiente
fechado onde se encontra:
Não havia nada, estava tudo escuro. Maurício re-
mexia o corpo sobre a vasta e desconhecida extensão
da cama, sentindo os membros descolarem-se uns dos
outros. Erguia os braços e, na ponta deles, as mãos que
voltavam úmidas do vazio. Passava-as devagarinho pelo
rosto, sem conseguir distinguir qual seria o mais escal-
dante daqueles dois contatos. Ou seria frio? Seria frio
aquele roçar de pele contra pele?
Queria perguntar em voz alta, mas a voz não saía,
por mais esforços que fizesse, por mais que seus braços
furassem o vazio e seu corpo amarrotasse as cobertas
sem encontrar posição. (ABREU, 2007, p. 23)

O jovem, que neste capítulo parece estar aprisionado por seus medos, sua
solidão inexorável, sua indefinição, tem a clausura rompida com a entrada
do pai, que abre as cortinas e permite que o sol adentre o ambiente. A partir
desse momento, é aberto um parênteses que será fechado apenas no último
capítulo, também denominado “Tempo de Silêncio”, quando o leitor tem a
notícia da morte da mãe de Maurício. É no vão dos espaços, tateando suas
experiências, entre o primeiro e o último capítulo, que o leitor é convidado
a (se) buscar, a (se) compreender e, assim como o narrador-protagonista,
se (re)fazer:
É tempo de me fazer, eu sei. E sei que é bom ser ainda
indefinido. Pelo menos as deformações não calaram fundo,

258
não se afirmaram em feições. É bom, sim, mas ao mesmo
tempo é terrível. Porque me vem o medo de estar agindo
errado, de estar gerando feições horríveis, que mais tar-
de não sairão com facilidade. Não, não é fácil ser a gente
mesmo da cabeça aos pés, da unha do dedo mindinho
até o último fio de cabelo. Por isso, não posso condenar
Edu, não posso condenar meu pai nem minha mãe, nem
qualquer outra pessoa. São apenas seres que ficaram no
meio do caminho, que não tiveram força suficiente para
ir até o fim. Não tiveram, quem sabe, consciência de que
estava em suas mãos fazer a si próprios. E se deixaram
esmagar pelo tempo, pelos outros, pela sociedade, como
meu pai e minha mãe. Como Edu. Mas eu terei força, essa
força e essa lucidez que faltaram a eles. Terei vontade.
Consciência já tenho, e esse é o primeiro passo. Não sei
quais serão os outros, mas saberei dá-los” (ABREU, 2007,
p. 151 – itálicos do autor).

Como uma forma de acertar as contas com o passado, a perspectiva ado-


tada por Caio Fernando Abreu é feita com maestria, pois o autor cria um
contraste entre as vozes narrativas que narram a infância e a juventude do
presente. Esta última, narrada de forma autobiográfica nos diários, capitu-
lados e registrados com as datas do dia 15 de maio a 23 do mesmo mês. Fato
interessante é que a presença de pertencimento no seio familiar, de imagina-
ção na infância, a descoberta do sexo, do suicídio, da (homo)sexualidade, são
marcadas não só pela alteração da voz narrativa, mas pela fonte impressa no
texto: quando em fonte normal, a narrativa vem em terceira pessoa, quando
em tipografia que se assemelha à forma escrita, em diário. Desse modo, como
ler é um trabalho de linguagem e encontrar sentidos, e encontrar sentidos é
nomeá-los (BARTHES, 1992, p. 44), ao leitor são apresentados significados
e lirismos que permitem atribuições de sentidos, associações e interações
que vão além da mera decodificação de informações.

259
Diário I

15 de maio

Há pouco fiquei me olhando durante muito tempo no


espelho. Tenho a impressão de que meus traços mudam
todo dia. Ou não são bem os traços que mudam, porque os
olhos, o nariz, a boca continuam os mesmos. É uma coisa
que está em todos os traços ao mesmo tempo, e ao mesmo
tempo em nenhum. Ontem eu estava com raiva, olhei meu
rosto e achei que ele tinha uma expressão meio diabólica.
Me senti mal só de olhar. Outro dia, estava com uma bruta
vontade de abraçar todo mundo, até as pessoas que eu
não conhecia. Minha cara estava mansa, quase bonita.
Hoje estou com uma moleza por dentro, uma coisa que
não sei bem explicar como é, parece um imenso tapete de
algodão embranquecendo tudo. Papai me provocou à hora
do almoço, como sempre, mas não reagi. Baixei a cabeça,
continuei comendo sem dizer nada. Aí ele parou com a
agressão, começou a ser muito gentil e tudo. Então me deu
muita raiva. Por que não pode me tratar bem sempre? Será
preciso que eu baixe constantemente os olhos para que ele
não me magoe? (ABREU, 2007, p. 39 – itálicos do autor)

Ao intercalar os narradores, heterodiegético e autobiográfico, registrando


as datas acima de suas anotações, escrevendo sobre as discussões familiares,
os sentimentos em relação às mudanças que seu interior e exterior estão
vivenciando, pressupondo a “intenção de balizar o tempo através de uma
sequência de referências” (LEJEUNE, 2008, p. 260) e interseccionando tempo
e espaço, já que estes também se movimentam – o narrador migra do espa-
ço rural para o urbano –, Maurício realiza uma reflexão interna no mesmo
instante em que, também, torna-se espectador de si mesmo, um apanhador
de vestígios, reminiscências e sensações cotidianas.
Desse modo, como o “diarista não tem a vaidade de se acreditar escritor,
mas encontra em seus escritos a doçura de existir nas palavras e a esperança
de deixar um vestígio” (LEJEUNE, 2008, p. 265) é no contar, no inscrever-se,
que Maurício vive e permite que o conheçamos. Esse jovem escritor, que des-

260
liza por entre o mostrar e o narrar, passado e presente, faz uso da literatura
e de seu conhecimento cultural para se autoconhecer, refletir, questionar,
compreender o motivo da solidão, quase imperceptível na infância, ser agora
tão angustiante:
O taquareiro no fundo do quintal era a ilha de Ro-
binson Crusoe. Robinson era ele, enrolado no pelego do
quarto de vovó, pés descalços, caminhar asselvajado.
O papagaio, uma galinha descuidada que escapara aos
olhos da empregada e agora cacarejava sem o menor
talento teatral, as pernas amarradas em Sexta-Feira. E
Sexta-Feira? Sexta-Feira era uma acha de lenha enegre-
cida pelo fogo, com uma rutilante dentadura de casca
de laranja. [...]
O papagaio infelizmente não sabia nenhuma palavra,
embora não fosse tão mudo quanto Sexta-Feira. E o po-
bre Robinson-Maurício era obrigado a dialogar consigo
mesmo, para não esquecer como se falava. [...]
Na maioria das vezes era obrigado a ficar calado,
pensando nas coisas que formavam a vida de Robinson-
-Maurício. E eram tão poucas essas coisas, naquela ilha
pequenina e deserta. Quando se entediava muito, tinha
que comer moranguinhos surrupiados dos canteiros da
tia, ou então, último recurso, pensar nas coisas da vida de
Maurício-Maurício. E que, uns dias, pareciam muitas, e
difíceis de serem pensadas, mas noutros eram tão insigni-
ficantes quanto as de Robinson. (ABREU, 2007, p. 59-60)

Por meio do recurso do intertexto, o narrador convida o leitor não só


a participar da infância de Maurício, mas a aumentar seu repertório de
leitura, apresentando-lhe a história de Robinson Crusoe. À vista disso,
como sugestão de prática pedagógica, o mediador de leitura pode condu-
zir o leitor a deslocar-se para os espaços criados por ambas as narrativas,
Limite Branco e Robinson Crusoe, apontando e contextualizando caminhos
que vão além das aventuras vividas pelo jovem náufrago. É possível, por
exemplo, pensar e relacionar as tendências capitalistas e empreendedoras
que a obra elenca, as questões sociais e históricas que impingiram no indi-

261
víduo a necessidade da autossuficiência, do individualismo, bem como os
conflitos dicotômicos (bem versus mal) que Robinson vivenciava. Conflitos
estes que também são inerentes à história de Maurício, que sente culpa e
se envergonha ao falar sobre sexo, masturbação – “Sexo. Preciso escrever
sobre isso. É verdade que hesito, a própria palavra sugere coisas escondidas,
vergonhosas, parece que o diário vai-se tornar ainda mais secreto. Sei que
isso é uma grande bobagem, e me envergonho, e luto” (ABREU, 2007, p. 103)
–, sua primeira experiência sexual com uma prostituta, a confusão diante
dos sentimentos e sensações que experimentava quando se econtrava com
Bruno, seu colega de escola:
Do fundo da cama, Bruno olhou-o. E sorriu, como
sempre. No primeiro instante, foi só o que Maurício pôde
ver: o brilho dos olhos e dos dentes. Sem saber o que
dizer, sentou-se perto dele, estendeu o livro.
— Trouxe teu livro, já li. Gostei muito. [...]
Bruno apanhou o livro. Folheou-o devagar, um sor-
riso estranho no canto dos lábios. Leu:
— Viagem ao centro da Terra… seria bom se a gente
pudesse fazer uma viagem dessas, hein, Maurício? Para
o centro da Terra, onde ninguém pudesse ver a gente. [...]
— Por que é tudo tão sujo? — A voz de Bruno vi-
nha de longe. — Por que é tudo tão imundo e tão difícil,
Maurício?
Num gesto não planejado, ele estendeu a mão e co-
meçou a passá-la nos cabelos do outro. [...]
Havia os silêncios longos, quando se olhavam, um
no outro, no fundo dos olhos, havia a enorme diferença
entre eles e os demais. Havia uma vontade estranha e
carinhosa de tocar entre os dois, sem nome. Por isso ca-
lava e, devagar, passava a mão pelos cabelos do amigo.
(ABREU, 2007, p. 127-128)

Já que o intertexto é a “impossibilidade de viver fora do texto infinito –


quer esse texto seja Proust, ou o jornal diário, ou a tela de televisão: o livro
faz o sentido, o sentido faz a vida” (BARTHES, 1987, p. 49), o processo nar-
rativo elaborado por Caio Fernando Abreu, como podemos ver no excerto

262
acima, introduz um modo de leitura “como algo que nos constitui ou nos põe
em questão naquilo que somos” (LARROSA, 2002, p. 133). Por não entender
seus sentimentos e nem mesmo conseguir expressá-los, Maurício encerra
seus relatos como um ser indefinido, ainda em formação e incerto em rela-
ção à sua sexualidade, seu futuro, e solidão constante. Já quase adulto, esse
jovem olha para si com os olhos desfocados, racionais e destoantes daque-
les que sua infância ingênua enxergava. A porta aberta pelo pai, no último
capítulo, emanando luz ao ambiente obscuro e repleto de lágrimas, aponta
um novo caminho, embora sem certezas, a ser iniciado em outra metrópole,
Rio de Janeiro. Maurício aponta ao jovem leitor que, em alguns momentos,
é preciso seguir em frente, mesmo que sozinho. Estar aberto aos equívocos
magnificentes dos caminhos é necessário para tornar-se alguém já que ele
e toda a humanidade caminha sozinha por uma ilha deserta.
Destarte, Limite Branco promove, por meio de sua estrutura enunciativa,
caracterizada pelo lirismo que o texto emana, apreensão do mundo e ques-
tionamento dos valores sociais, inserindo-se, portanto, no âmbito das nar-
rativas crossover: “Crossover works often transgress or transcend traditional
boundaries as well as conventional age boundaries. They hybridization of the
traditional genres characterizes much contemporary crossover fiction2” (BEC-
KETT, 2010, p. 67). Ao trabalhar a linguagem estética do texto, empregando
técnicas complexas – recurso da intertextualidade, quebra de linearidade e
fragmentação, confluência de gêneros – aliadas a temas fraturantes, a obra
permite que o leitor seja desestabilizado e, consequentemente, dialogue com
o texto atribuindo-lhe novos sentidos e significados.

Considerações finais

A narrativa escrita por Caio Fernando Abreu, como podemos ver, é cons-
tituída de um texto expressivo, que foge do estereótipo de um discurso sim-
plista, repetitivo e previsível. O mundo arquitetado pelo autor ultrapassa
os limites das faixas etárias, podendo tocar tanto jovens, que encontram-se
saindo da adolescência para mergulhar no invólucro mundo dos adultos,

263
quanto o adulto, que, ao adentrar a obra, pode encontrar em sua memória
particular, fatos e experiências que lhe foram pertinentes.
Embora Limite Branco não seja um livro legitimado pela escola, trata-se
de uma daquelas leituras que podem abrir, no fundo de nós mesmos, a porta
das moradas onde não saberíamos penetrar (PROUST, 1991, p. 10). O texto
de Caio Fernando Abreu, ao se aproximar do cotidiano juvenil, entrelaçando
leitura e vida, pode propor sentidos, apontar caminhos e afinar emoções ao
permitir a percepção e a reflexão em relação a complexidade do mundo – com
suas minorias sexuais, perdas, conflitos – e, consequentemente, promover a
modificação e/ou a formação do sujeito leitor.

264
Notas

1 No original: “Crossover books seem to cross in one direction only, upwards,
being novels intended for young readers that adults consider worthy of attention”.
2 As narrativas crossover muitas vezes transgridem ou transcendem as fronteiras
tradicionais, bem como limites etários convencionais. A hibridização dos gêneros
tradicionais caracteriza muito a ficção crossover contemporânea. (tradução nossa)

265
Referências

ARDAGH, Philip. Wrap It Up. [20 de dezembro, 2003]. Reino Unido: The
Guardian. Disponível em:
https://www.theguardian.com/books/2003/dec/20/featuresreviews.guar-
dianreview33. Acesso em 08 ago. 2019.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Pers-
pectiva, 1987.
____. S/Z. Trad. Léa Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
BECKETT, Sandra. Crossover Fiction: global and historical perspectives. New
York/London: Routledge, 2009.
_____. “Crossover fiction: creating readers with stories that address the big
questions”. In.: Formar Leitores para Ler o Mundo. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2010.
BLOOM, H. Como e por que ler. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
ECO, Umberto. Seis passos pelos bosques da ficção. Trad. Hildegard Feist. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994.
FERNANDES, Ronaldo Costa. O narrador do romance: e outras considerações
sobre o romance. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.
LARROSA, J. Literatura, experiência e formação. In: COSTA, M. V. Cami-
nhos investigativos – novos olhares na pesquisa em educação. Rio de
Janeiro: DP&A, 2002.
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rosseau à Internet.Trad.
Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo
Horizonte: UFMG, 2008.
PROUST, M. Sobre a leitura. Trad. Carlos Vogt. Campinas: Pontes, 1991.
TORREMOCHA, Pedro C. Cerrillo. Sobre la literatura juvenil. Verba Hispa-
nica, [s.l.], v. 23, n. 1, p.211-228, 1 dez. 2015. University of Ljubljana.
http://dx.doi.org/10.4312/vh.23.1.211-228. Disponível em: <file:///C:/
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Acesso em: 10 set. 2019.
WOOLF, Virginia (2007). O leitor comum. Trad. Luciana Viégas. Rio de Ja-
neiro: Graphia.

266
Nota: O presente texto foi adaptado do estudo realizado em VALIM, Graziele
Maria; NAVAS, Diana. A Literatura Juvenil e o Fenômeno Crossover: Uma Lei-
tura de Limite Branco, de Caio Fernando Abreu. Línguas&Letras, v. 20, n. 47,
2019, p.181-194.

267
c
Cibercepção:
poéticas de criação digital
Maria José Palo

Introdução

Antes, pois, de perguntar como uma obra literária


se situa no tocante às relações de produção da época,
gostaria de perguntar: como ela se situa dentro dessas
relações? (BENJAMIN, 1985, p. 122)

No texto “A doutrina das semelhanças” (1933), o filósofo Walter Benjamin


situa a capacidade de produzir semelhanças na atitude mimética do homem,
afirmando: “Deve-se refletir ainda que nem as forças miméticas nem as coisas
miméticas, seu objeto, permaneceram as mesmas no curso do tempo: que com
a passagem dos séculos a energia mimética, e com ela o dom da apreensão
mimética, abandonou certos espaços, talvez ocupando outros.” (BENJAMIN,
1985, p. 109). Na sua história filogenética, o comportamento mimético evo-
luiu para uma concepção temporal, que alterou o conceito de movimento e
da passagem do tempo, e também alterou a ontogênese, o que vem a mudar
o fluxo perceptivo. Tempo, espaço estão dominantes na arte, nas formas de
tradução desse movimento, que organizou as formas expressivas dadas pelo
espaço da era clássica à Modernidade.
O primeiro acesso que temos das coisas advém de nossa percepção, que

268
surge do salto do subjetivismo num campo que propicia a forma e o tecido
intencional a serem decompostos pelo esforço da atenção do conhecimento.
A percepção dessas semelhanças está vinculada a um fluxo do tempo capaz
de mostrar o presente como um fenômeno instável, processual e transitório,
e que a história da arte tem desvelado em seus movimentos artísticos hete-
rogêneos e estratégicos desde sempre.
Também na língua, esse comportamento mimético se identifica na palavra
escrita e na palavra falada. Ambas são ligadas pelo princípio da semelhança,
no sentido mais sensível, a da linguagem, porém, fora do sistema arbitrário
da língua. Passa, então, a vigir, no tocante às relações de produção de uma
época, uma necessidade de se situar no movimento da linguagem que vê a
faculdade mimética funcionar como um medium, sabendo que nele as coisas
se relacionam não mais diretamente, mas, nas e através das substâncias sensí-
veis e delicadas, dando ao espírito uma ação participativa do tempo e do fluxo
das coisas na transitoriedade da obra, sob sua tendência literária e artística.
O que se ressignifica nas artes é o movimento, por meio do desenho de
signos de tempo e espaço, fazendo destes signos um tempo experimentado,
que não surge mais da relação do sujeito com as coisas. O modo novo de arti-
cular as coisas no mundo objetivo supõe, sobretudo uma visão sobre o tempo
em seu fazer-se, na visão de Merleau-Ponty: “É essencial ao tempo fazer-se e
não ser, nunca estar completamente constituído. (1999, p. 556). Entende-se
nesse “não ser”, que o tempo escapa da cronologia e, desse modo, as suas
qualidades temporais passam a existir, em função de fatos técnicos, mesmo
sem existência física, pois existem como um movimento na consciência ou
como uma ação criadora.
No movimento dessa passagem mundo real-consciência, o tempo faz-se
ininterruptamente, sobretudo construído pela percepção de semelhanças
sensíveis. Este estado nascente permite a sua presença na experiência do
tempo ou no movimento da vida, que é chamada a “sua narrativa.” Narrativa
de vida que oferece ao sujeito a chance de experimentar esse tempo seme-
lhante à temporalidade pura, tempo real então configurado pela e na nar-
rativa. É a forma de rede que é investigada e não mais seus nós separados.
Paul Ricoeur (1994, p. 70) vê a narrativa como maneira de perceber o tempo,
mesmo que seja um tempo ficcional, para então existir e significar a vida:

269
“Seria um traço de mímese visar no muthos não seu caráter fábula, mas seu
caráter de coerência” (FALCI, in SANTAELLA, 2011, p. 187).
Vê-se que, no tempo concebido dessa maneira, o conceito de mímese da
Poética põe em confronto a forma da narrativa à ação para descrever essa
experimentação ligada à lógica e não mais como sucessão de causa e conse-
quência. Por conseguinte, as qualidades temporais passam a existir pelo me-
dium da narrativa no presente, entendido como semelhanças extrassensíveis,
aguardando a experiência em que o tempo deve ser medido no movimento da
consciência, em coerência e em direção ao futuro e às coisas do passado. Nesse
mover atuado na passagem à memória, é que a consciência percebe o tempo
e gera a experiência do tempo, fazendo as concordâncias de suas diferenças.
A partir da argumentação referenciada por Paul Ricoeur, a imagem desco-
bre-se, e a origem da linguagem desdobrada por meio de contatos sucessivos
permite a esse acontecimento tornar-se memória. Então, faz-se mônada, e a
coisa passa a ser figurada. Das semelhanças extrassensíveis trabalhadas em
si, a imagem modifica-se por semelhança em semelhança em seu próprio
movimento. A semelhança cria essa relação para impor o desvio e dividir
o ser como lugar de errância: “tornada imagem instantaneamente, ei-la [a
coisa} tornada inapreensível, a inatual, a impassível, não a mesma coisa dis-
tanciada, mas essa coisa como distanciamento” (BLANCHOT, 1987, p. 344).
Distância e estranhamento já constituem a caracterização da imagem, nem
ser nem pessoa, nem um outro, nem uma coisa, nem nada.
A experiência do tempo da narrativa é uma ação que encaminha a his-
tória para o passado na passagem da temporalidade, visto que é o leitor que
construirá a tessitura da intriga ou a configuração do tempo prefigurado. A
sua imersão na mímese para formar um todo dá-lhe um ponto de partida
tendencioso para constituir um texto e apreender a obra. Essa experiência
do tempo narrado une o texto ao leitor, para entender o mundo que a obra
projeta, o seu horizonte: “Um texto é aquilo que o leitor acolhe a partir da
leitura, mas, esse leitor acolhe também uma situação ao mesmo tempo li-
mitada e aberta a um horizonte de mundo. As obras literárias trazem algo
para a linguagem. Elas não viriam ao mundo por causa da linguagem, mas
com uma linguagem, compartilhando a experiência com a linguagem”. (RI-
COEUR, 1994, p. 70 apud FALCI, in SANTAELLA, 2011, p. 187)

270
Perceber não é recordar-se e experimentar impressões. Perceber não
é embrenhar-se no passado para traduzi-lo. Perceber é buscar um sentido
imanente no adentrar de uma constelação de perceptos e desenvolver pers-
pectivas encarnadas no mundo das semelhanças, que passam a ser vividas
em seu lugar, no qual ganham a temporalidade, acesso em que se fundamenta
todo o conhecimento. A imbricação de histórias vividas umas nas outras faz,
por si, um pano de fundo para as pré-narrativas, que podem ser negociadas
entre aqueles que experimentam a obra artística em sua qualidade, e podem
modificar suas condições de existência e produção como as nomeadas nar-
rativas ergódicas. É o que Alckamar Luiz dos Santos (2003) vê, ao pensar as
artes contemporâneas, em que o cibertexto estaria aí incluído como processo
de produção e circulação de significantes, assim concebido: “O cibertexto
seria uma máquina de produzir variedades de expressões” (AARSETH, 1997).
Desse modo pensando, cada cibertexto gera um novo conjunto de signi-
ficações, e a cada escolha gera uma mudança física da obra atribuindo-lhe a
qualidade que irá gerar o texto. Para o autor Aarseth, cibertexto é uma pers-
pectiva que ele usa para descrever e explorar as estratégias comunicacionais de
textos dinâmicos. É uma forma de expandir os estudos literários para incluir,
nesse campo, fenômenos marginalizados à sua produção. Investiga-se, nesse
explorar, o comportamento literário dos fenômenos textuais, tendo em vista
um modelo de comunicação textual que pode acomodar qualquer tipo de arte.
A obra então realizada é entendida enquanto experiência indireta com o
Ser, é obra como mediação, estabelecendo uma relação dinâmica entre espa-
ço e tempo. Ainda com Aarseth (1997, p. 1-2), falando sobre a performance
do usuário desse texto, cito-o: “A performance de seus leitores se instala em
sua cabeça, enquanto o usuário do cibertexto também performa num senti-
do extranoemático”. Ou seja, a obra transforma-se em texto, sujeita às ações
físicas do seu usuário-leitor ou artista.
Temos então configurada a obra cibertextual pelo leitor imersivo enquanto
narrativa, para só depois experimentar a sua refiguração: faria ele uma con-
figuração do tempo prefigurado, definição de uma experiência, que Aarseth
nos oferece: “Cibertexto é uma perspectiva em todas as formas de textuali-
dade, uma forma de expandir os estudos literários para incluir, no campo da
literatura, fenômenos que são percebidos como não pertencentes ao campo

271
ou marginalizados” .(AARSETH, 1997, p. 18) Considerada um componente
relacional, literatura e técnica, esta perspectiva ergódica possibilita trabalhar
textualidades como estratégias de comunicação, percebidas também como
um modo de mediação para uma experiência: “Este fenômeno que chamo
ergódico, usando um termo apropriado da física que deriva das palavras gre-
gas ergon e hodos, significando “trabalho e passagem” (AARSETH, 1997, p. 1).
Trazendo à luz o pensamento de Merleau-Ponty (1999), entendemos que
a obra em produção não é somente uma experiência em si com o Ser, mas
é também uma relação, a trazer espaço e tempo numa relação dinâmica.
Isto significa que a obra cibertextual exige do leitor, principalmente, que
ele reconfigure o tempo configurado pela narrativa ergódica, num processo
chamado escrileitura.

Escrileitura

Para Aarseth, a função ergódica da ação na escrileitura define-se sobre a


obra como uma situação em que a cadeia de eventos foi produzida por esfor-
ços ou mecanismos de um ou mais indivíduos, visto que as ações ergódicas
teriam um objetivo diferente das ações narrativas, ou seja, seu objetivo não
seria mais produzir uma história. Uma possível ciberliteratura, segundo San-
tos, em “Leitura de nós” (2003, p. 22), assim se descreve: “O que ocorre com
a mudança da base material, da página impressa para o meio eletrônico, é
que, em certo sentido, o livro se aproxima do texto, ele se deixa contaminar
pela fluidez, por determinada imprevisibilidade e pela não-linearidade que
foram, sempre, as do texto. Aquilo que no texto é intertextualidade, no livro
eletrônico encontra correspondência na pluralidade de percursos e na he-
terogeneidade de materiais (associações de matéria verbal, imagens, sons,
etc.)”. Um trabalho interativo é um signo-objeto indicando o mesmo tema
que os outros signos, não um meta-signo que indica os signos do discurso
(ANDERSEN, 1990, p. 89) Interação é, pois, participação, jogo ou uso, não é
uma descrição de um trabalho onde o usuário pode contribuir com elementos
discursivos, sob um sentir cíbrido, lembremo-nos disso.

272
No cibertexto, os gestos de escrita e leitura são realizados diante de ima-
gens, ícones, movimentos e processos a comportarem os deslocamentos
realizados pelo autor e leitor durante a construção de um texto. Ou melhor,
esta ação só se realizará, se eles souberem experimentar o surgimento da dia-
cronia na sincronia, e, mais, não espacializar o tempo. Esta experimentação
significa deixar o tempo ser atravessado por significações sedimentadas em
forma de cultura, condições necessárias para fazer surgir diferenças entre o
que é e o que poderá ser. (Ver FALCI, 2011, p. 193)
Vê-se que a forma de atuar do cibertexto aproxima-se de qualquer nar-
rativa, já conferido por Paul Ricoeur. Com uma diferença, a de que ao autor
caberia a disposição das estruturas prefiguradas para o leitor, e as histórias
ainda não narradas então aparecem como histórias em estado latente, pas-
sando ao leitor a experiência de um tempo prefigurado, para, depois, ser
refigurado por ele mesmo. Realizaria o leitor, certamente, a mímese não
mais na decomposição da percepção em sensações, mas, num processo
mais amplo, que no ambiente imersivo estaria atuando no denominado
processo de escrileitura.
Nesse ambiente imersivo da escrileitura, a ser construído pelo leitor/
decodificador, manifesta-se a construção de uma poética digital como fluxo
incessante de modificações e recombinações. Ao leitor, na cibercepção, cabe
criar a obra que ele próprio irá experimentar. É sobretudo nela que sua imer-
são se faz entre as muitas camadas temporais, elas se cruzam na criação de
uma obra poética digital — a Poiésis, do que falaremos a seguir.

Poéticas digitais

Nas poéticas digitais, o tempo de ciberleitura é aquele em que o leitor


constrói uma refiguração a partir de suas referências culturais, sociais, po-
líticas, poéticas, etc. Essa é a diferença. Nas poéticas digitais, o tempo da
leitura se confunde com o tempo anterior ao da configuração, visto que am-
bas se confluem. Tempo que pode ser visível numa programação resolvida no
monitor ou no dispositivo de visiblidade em que a obra aparece. Sua confi-

273
guração define a possível reconfiguração que ele mesmo produziu. Todavia,
é relevante dizer que outro leitor sempre produzirá uma nova tessitura, uma
nova narrativa em uma nova configuração disponibilizado pelo autor.
O ambiente de imersão é criado pelo leitor, também chamado leitor imersi-
vo (SANTAELLA, 2013, p. 271), enquanto experimenta a obra criada por suas
próprias combinações miméticas: “Cognitivamente em estado de prontidão,
esse leitor conecta-se entre nós e nexos, seguindo roteiros multilineares,
multissequenciais e labirínticos que ele próprio ajuda a construir ao intera-
gir com os nós que transitam entre textos, imagens, documentação, músicas,
vídeos.” Assim concebido o leitor, pode-se concluir que cada narrativa de
navegação é sempre uma experiência de contato com a experiência poética,
cujo ambiente poético ocorre na experimentação da obra construída de suas
próprias combinações no desempenho de suas mímeses.
O artista da visualidade Julio Plaza (1998) define essa experimentação
poética como uma espécie de sistema preparado para abrigar obras de arte
de acordo com o uso das linguagens e suportes inclusos numa composição
artística. Essa poética criativa mostra a configuração de um programa de
arte. E também se torna evidente no momento em que a obra é fruida na ex-
periência vivida através de relações experimentais estéticas, entre o sujeito
fruidor e a obra de arte. Trata-se de uma relação experimental em que os
códigos artísticos do programa da arte são, em última instância, apresenta-
dos à Cognição, tendo como medium a faculdade mimética.

Cibercepção

Na cibercepção, corpo e tecnologia, entre arte e ciência, apresentam


pressupostos comuns: a arte pensa a dimensão filosófica das tecnologias;
a estética centra-se na sensorialidade de processos que resultam de seus
efeitos, rejeitando a noção sujeito-objeto da arte da contemplação, arte da
representação, até mesmo no vídeo, games, filme: “Geram-se momentos ou
átimos em que construímos algo que nos faz ultrapassar a condição huma-
na anterior às tecnologias interativas.” (DOMINGUES, 2011, p. 57) Momento

274
este que é pensar a interatividade: teclar, mexer, girar, tocar, soprar, ativando
links de menus de computador, ipads ou laptops: deve gerar vida no sistema
para gerar a experiência estética, em limites de percepção expandidos pelo
leitor imersivo. ROCHA (2011, p. 129) acrescenta: “A cibercepção norteia os
processos fruitivos, hibridizando as noções de cognição e sensação na com-
posição perceptiva, primeira camada semântica, espontânea e norteada pelas
experiências tidas anteriormente e já automatizadas.”
Baseado na expressão cíbrido dos processos cognitivos por meio de co-
nexões, ocorre a coexistência espaço físico e espaço digital movidos pelo
interesse de agir conectado a aparelhos. Estamos situados numa realidade
virtual que transforma estéticas precedentes em interações, convergências,
hibridismos em novas associações experienciais. Sentir conjuga-se ao sen-
tir-se nessa conjunção poética entregue ao sujeito interfaceado. Edmond
Couchot (1988) denomina o sujeito interfaceado mais como “fluxo” do que
sujeito, pois constitue-se no trajeto de um sujeito que se hibridiza, ou melhor,
“cibridiza-se” no fluxo sujeito/ambiente/sujeito.
No cibertexto, há uma exigência de construir a configuração da narrativa,
tarefa essa entregue ao leitor imersivo que é dotado de apurada cibercepção ca-
paz de alcançar os signos regidos por leis ou regras (legisignos). Nesse ambiente,
a construção poética manifesta-se como fluxo de modificações e recombina-
ções, pois está num processo de escrileitura, no qual cria a obra que ele próprio
irá experimentar. Porém, nessa interatividade, um outro leitor poderá realizar
uma outra narrativa material, numa nova tessitura, além de torná- la dispo-
nível como mais uma configuração daqueles fragmentos expostos pelo autor.
Nesse processo de criação, a cada nova navegação, ocorre sempre uma
experiência de contato com a experiência poética prefigurada. Isso porque
o receptor-participante cria seu próprio ambiente imersivo ao experimen-
tar a obra por combinações próprias, e elabora uma poética que exercita
um potencial comunicativo esteticamente traduzido pela obra, ao deixar o
tempo ser atravessado por significações já sedimentadas em forma de cul-
tura, que resulta em dar espaço para as diferenças surgirem entre “o que é
e o que poderá ser”.
Igualmente, a Cibercepção (ciberpercepção), na correlação com o tempo
da página impressa para o meio eletrônico, faz esse livro se aproximar do

275
texto aberto à experimentações combinatórias, e transforma aquilo que no
texto é intertextual no livro eletrônico; este passa a ter correspondências
na pluralidade dos atalhos e na heterogeneidade de materiais, ou seja, de
associações verbais, imagens e sons heterogêneos. Todavia, é o imanente
poético que permanece nas formas, sons, cores e temporalidade inacabados,
oferecendo-se ao interator para reconhecê-los no seu antes da imanência.
Ilustro esta temática do imanente com uma citação de ASCOTT (1988,
p. 168): “A cibercepção é uma antítese da visão-túnel do pensamento linear.
É uma percepção súbita de uma multiplicidade de pontos de vista, uma
extensão em todas as dimensões de um pensamento associativo, um reco-
nhecimento da transitoriedade de todas as hipóteses, o relativismo de todo
o conhecimento, a falta de permanência de toda a percepção”. Nesse estado
duplo do interator (co-produtor e fruidor), entende-se que a cibercepção
colabora com as poéticas do jogo, do movimento, da ação, do estranhamento
ao reestabelecer a poiesis, o ato da criação.
A Cibercepção, uma vez articulada a esse contexto paradoxal de um tem-
po tecnológico ucrônico, assim denominado por COUCHOT (2003, p. 169):
(aquele que não substitui ‘nem o que foi’ se referindo ao passado, ‘nem o
que é’ se referindo a um presente perpétuo, mas a um “isso pode ser” repleto
de eventualidades e de relações rizomáticas entre ausente e presente), faz
surgir a situação de um espaço virtual utópico desdobrado sobre o real em
que surgem as paisagens temporais, dando forma a novos circuitos de per-
cepção e a criações artísticas dos quais o corpo faz parte. ROCHA (2011, p.
131), em particular, nos lembra que o ato de criação não é somente criação,
pois, há momentos em que a relação sujeito e objeto desaparece para deixar
falar a criatura e fazer ouvir o criador. Nesse modo instalado, no imanente
do sujeito interfaceado, agora, trajeto e trabalho passam a partilhar a cons-
trução da fruição estética a configurar estados do corpo dotado de interfaces
(DOMINGUES, 2011, p. 57).
Trabalho e sujeito, portanto, são um só na construção da fruição ou das
sensações estéticas num enxergar projetado do sujeito interfaceado no ciber-
texto, a apreender o visível, o legível e o invisível, num modo de ver projetado
liberto. Isso ocorre porque a pragmática deixa de ser um estado de investidas,
escolhas e contemplação para ser um estágio de criação, uma pragmática

276
sígnica experimental marcada por rastros materiais instantâneos das mentes
fruidoras-criativas. De um lado, está o leitor interator representado em sua
época na atuação polissensorial; de outro, está o leitor interator perfilado por
sua cibercepção apurada, em que é dirigido à navegação, em ato de co-criação
artística, atos estéticos que integram obra e corpo: experiências estéticas.
Na confluência ciência, tecnologia, mídias, arte, o contemporâneo se
define, aproximando sincronias tecnológicas das reconfigurações da escri-
leitura, uma vez conjugadas às poéticas criativas de sistemas emergentes
de linguagens, formas, técnicas, patterns, em ambientes muitidimensionais.
Reorganizam-se, nesses espaços, a percepção e a cognição corporal pela
cibridização dos sentidos, em função da experiência e da experimentação
de uma estética que ocorre em fluxos. (ARANTES, 2011,p. 30) Igualmente,
evidencia-se uma experiência artistica tecnológica em duração descontínua,
entre a imanência e o inacabado, entre o sensível e a práxis compreensiva e
coerente de narrativas ergódicas, num diálogo estético tornado virtual, fluido
e líquido. Efetiva-se, nessa práxis, uma busca do encanto artístico, que põe
em ato performático as práticas interativas poéticas. São as conexões com
efeitos resultantes das tecnologias, porém, vividos na coexistência entre o
espaço físico e o digital, em tempo real. Neste espaço cíbrido, a Ciberarte
pensa a Filosofia da mímese das tecnologias.

277
Referências
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Johns Hopkins University Press, 1997.
ARANTES, Priscila. Tudo que é sólido derrete: da estética da forma à estética
do fluxo. In: SANTAELLA, Lucia; ARANTES, Priscila (Orgs.). Estéticas
Tecnológicas: novos modos de sentir. São Paulo: Educ, 2011. pp. 21-33
ASCOTT, R. “A arquitetura da cibercepção”. In: LEÃO, L. (Org.) Interlab -
Labirintos do pensamento contemporâneo. São Paulo, Fapesp/Ilumi-
nuras, 2002.
BENJAMIN, Walter. “Autor como produtor”. In: Obras Escolhidas. Magia e
técnica, Arte e política. v. 1. Tradução Sergio Paulo Rouanet. Prefá-
cio Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1985. pp. 120-136.
BLANCHOT, Maurice. O Espaço literário. Rio de janeiro: Rocco, 1987.
COUCHOT, Edmond. Images - De L’Optique au Numérique. Paris: Editions
Hermès, 1988.
DOMINGUES, Diana. “Ciberestética e a engenharia dos sentidos na Software
Art”. In: SANTAELLA, L; ARANTES, P. (Orgs.). Estéticas Tecnológicas:
novos modos de sentir. 1. reimpressão. São Paulo: Educ, 2011. pp. 55-80.
FALCI, Carlos. “Camadas temporais nas cibernarrativas: cruzamentos múl-
tiplos”. In: SANTAELLA, L.; ARANTES, P. (Orgs.). Estéticas Tecnoló-
gicas: novos modos de sentir. 1. reimpressão. São Paulo: Educ, 2011.
pp. 183-198.
SANTAELLA, L. Comunicação ubíqua. Repercussões na cultura e na educa-
ção. São Paulo: Paulus, 2013.
PLAZA, Julio; TAVARES, Monica. Processos criativos com os meios eletrônicos:
poéticas digitais. São Paulo: Hucitec, 1998. pp.183-198
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. 2.ed. S. Paulo:
Martins Fontes, 1999.
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas/SP: Papirus, 1994.
ROCHA, Cleomar. “O imanente e o inacabado: entre as dimensões sensível e
pragmática da experiência estética tecnológica. “In: SANTAELLA, L.;
ARANTES, P. (Orgs.). Estéticas Tecnológicas: novos modos de sentir.
São Paulo: Educ, 2011. pp. 127-132.
SANTAELLA, L. e ARANTES, P. (Orgs.). Estéticas Tecnológicas: novos modos

278
de sentir. 1. reimpressão. São Paulo: Educ, 2011.
SANTAELLA, L. Comunicação ubíqua. Repercussões na cultura e na educa-
ção. São Paulo: Paulus, 2013.
SANTOS, Alckamar Luiz dos. Leituras de nós: ciberespaço e literatura. São
Paulo: Itaú Cultural, 2003.

279
j
Deusas, sábias, guerreiras:
do imaginário pagão germânico
aos contos de fadas e outras
narrativas populares
Karin Volobuef

Em contos de fadas e outras narrativas oriundas de registros medievais


da tradição oral de matriz germânica,1 encontram-se diversas figuras femi-
ninas que se destacam pelo impacto de sua ação no conjunto do enredo ou
por deixarem entrever suas raízes míticas, em lendárias e folclóricas uma
construção literária ao mesmo tempo poética e carregada de simbologia.
Enquanto o imaginário cristão é bastante marcado pela polarização entre
Eva (transgressora) e Virgem Maria (santa) – sendo ambas sofredoras e, em
boa medida, passivas –, o imaginário pagão germânico ou nórdico constrói
um cenário em que a mulher pode ter a força e destreza da guerreira, ter
senso de justiça e os profundos conhecimentos de sábia, assumir posições
de governante ou ser vingativa a ponto de tornar-se a megera destruidora de
todo um povo. Muitas personagens femininas desse mundo arcaico foram-se
desbotando na memória com o passar do tempo e a chegada da era cristã;
não obstante o oblívio, muitas histórias conseguiram atravessar os séculos
e chegar até nós, com transformações e adaptações. Ainda assim, todo esse
processo de transfiguração não nos impede de reconhecer a matriz mítica,
que continua perceptível o suficiente para podermos resgatar alguns dos
aspectos culturais inicialmente ligados às figuras femininas.
O foco aqui neste trabalho serão algumas dessas figuras femininas, que
podem ser consideradas mais significativas bem como mais representativas

280
em função de sua recorrência e predominância no âmbito da cultura veicu-
lada na oralidade e/ou escrita, ainda que não sejam as mais divulgadas ou
sequer conhecidas no cinema, na animação ou na literatura produzida ou
veiculada em nossos dias.

Do folclore às artes e mídias:


imagens da mulher

O imaginário germânico deixou numerosas figuras femininas fortes, de-


terminadas e poderosas, cujo rastro encontramos impresso em narrativas de
variados formatos. Às vezes temos notícia dessas narrativas em manuscritos
antigos dos quais nos restaram apenas fragmentos; outras vezes, trata-se
de um conjunto de textos colhidos do folclore ou de superstições de várias
localidades. As Eddas e diversas sagas, bem como contos de fadas (ou ma-
ravilhosos) e lendas relatam, referem ou reciclam os mitos e seus ecos nar-
rativos, em que a mulher é registrada em variadas tonalidades de atividade,
participação sócio-familiar e características pessoais.
Uma dessas características comumente associadas ao universo pagão
germânico é o caráter bélico e truculento – proveniente dos enfrentamentos
entre bárbaros e romanos. E, quando se pensa nesse aspecto em associação à
figura feminina, é quase inevitável lembrar da imagem da valquíria, popula-
rizada em variadas mídias. Cavalgando seus corcéis pelos ares e fortemente
armadas, as valquírias nos aparecem hoje como algo equivalente às amazonas
da mitologia grega: mulheres fortes e selvagens, destemidas e autossuficientes,
que se arrojam ao campo de batalha e têm presença marcante no cenário de
guerra. Enviadas por Odin (ou Wotan)2 para recolherem os mortos por ele
escolhidos, as valquírias fazem cumprir o destino dos guerreiros e personi-
ficam os valores culturais da coragem, destreza bélica e honra. O fascínio
que exercem é atestado, por exemplo, pela ópera A Valquíria (encenação de
estreia em 1870), a segunda das quatro peças que formam O anel do Nibelungo
(aprox. 1848-1874), do compositor Richard Wagner.

281
As histórias e lendas envolvendo valquírias e amazonas estão na raiz
das personagens femininas com papel de guerreiras, combatentes e lutado-
ras que encontramos atualmente em muitas narrativas, mas especialmente
em games (a exemplo das personagens Zelda, Rynn, Lara Croft3, etc.), qua-
drinhos (como a Mulher Maravilha e a Viúva Negra-Natalia Romanova) e
séries (Xena4) ou filmes (Ellen Ripley, Sarah Connor e Alice5). A imagem
dessa mulher “dura de matar” experimentou diversos figurinos, atravessou
paisagens tanto arcaicas quanto futuristas e colaborou para a revisão dos
papéis masculino/feminino tradicionalmente aceitos.
Em uma época essencialmente visual, a representação pictórica é decisiva,
e a criatividade de numerosos artistas contribuiu para a circulação da imagem
da mulher guerreira. Entre esses artistas, o americano Frank Frazetta (ilus-
trador das obras de Robert E. Howard e Edgar Rice Burroughs) e o peruano
Boris Vallejo notabilizaram-se por figuras femininas musculosas e carregadas
de erotismo. Mas diversos ilustradores são lembrados especialmente pelas
heroínas femininas a que deram vida: Barry Windsor-Smith e sua Red Sonja,
Roy Thomas e Valkyrie, Ernie Colón e Amethyst, Princess of Gemworld.
Os traços e peculiaridades dessas mulheres guerreiras possuem diferentes
nuances, mas todas, em alguma medida, são herdeiras das valquírias ou outras
personagens vinculadas ao imaginário e cultura popular de raiz germânica.

Da deusa à bruxa:
as senhoras da morte

No mundo pagão germânico acreditava-se que as Valquírias cavalgam


até os campos de batalha, encarregadas por Odin de levarem para Walhalla
(em Asgard6), os guerreiros que morreram na glória de suas espadas. Pela
natureza de sua atuação – que implica em proximidade com a morte e o des-
tino - as Valquírias estão ligadas às três Nornas7, que ficam sentadas junto à
fonte Urdaborn e conhecem o passado e o futuro, os mistérios do mundo, e os
meandros da vida e da morte de homens e deuses (VALENTE, 1999, p.163-164).

282
Os mortais que não foram levados pelas Valquírias são recebidos no
amplo saguão da deusa Hel. Filha de Loki, ela exerce sua autoridade em
todos os nove mundos e seu poder não é questionado por ninguém, sequer
pelos deuses. Ali, em Helheim, ela acolhe os que morreram de doença ou
velhice, os criminosos e desonrados, enfim, as pessoas comuns ou que não se
qualificaram para lutar ao lado dos deuses no final dos tempos (Ragnarök),
papel que caberá apenas aos levados a Walhalla. Sem o charme (heróico)
das Valquírias, Hel não tem a mesma presença vibrante em sagas, epopeias,
contos e canções, pois seu nome se liga aos pavorosos redutos da morte e do
esquecimento. Seus domínios não tem o glamour de Asgard, mas são inques-
tionáveis seu poder e vastidão, já que a morte e o fim atingem tudo e todos.
Aos nossos olhos, em pleno século XXI, uma figura como Hel só pode pa-
recer sombria e tenebrosa, uma corporificação de nossos medos arquetípicos
mais profundos e instintivos, uma deidade malévola e infernal. Contudo, é
importante lembrarmos aqui que o imaginário pagão desenhou um panteão
de deuses bastante “humanos”, e que sua visão de mundo acompanhava de
perto o fluxo da Natureza. Assim, se os deuses amam, sofrem e inclusive es-
tão condenados a um dia morrer, como os humanos, então esses deuses não
estão acima das fraquezas e qualidades dos homens. E, como os humanos, os
deuses são tanto bons quanto maus, e podem auxiliar ou trazer infortúnio,
e isso deliberadamente ou não.
Esse imaginário e o senso do sagrado perpassam todo o percurso da vida
– a qual corre do nascimento até a morte, à semelhança de um rio, que flui da
fonte onde brotou até o mar, que vai abraçá-lo. É nessa linha de pensamento
que devemos entender Hel: ela é senhora da morte e parte ineludível da vida.
É bem verdade que Hel nos legou um sentido pesado e negativo: a pa-
lavra “inferno” em inglês (“hell”), holandês (“hel”), norueguês (“helvete”),
alemão (“Hölle”) são derivações de seu nome. Essa conotação, porém, veio
com o cristianismo e sua concepção de pecado/castigo e seu empenho em
demonizar as divindades pagãs. Aliás, nos contos de fadas folclóricos, não
são poucas as bruxas e outras criaturas feias e malévolas que descendem
do panteão germânico. Com o advento do cristianismo, aquilo que para os
pagãos era uma parte da vida e da natureza – misteriosa, mágica, mas não
obstante natural – acabou tornando-se algo diabólico e nefasto.

283
Algo equivalente pode ser dito da Baba Yaga do folclore russo, que hoje
costuma ser entendida como bruxa. Morando no fundo da floresta, ela vem
acompanhada de vários elementos da Natureza, como sua casa com pés de
galinha, ou seus três servos (CAROLINSKI, 2008, p. 148): o cavaleiro branco
(a aurora), o vermelho (o sol do meio-dia) e o negro (a noite em trevas).
Procurada pelos heróis e heroínas dos contos de fadas, ela dá informações
e conselhos – e aí ela é sábia e auxiliadora –, mas em diversas narrativas há
indícios que a apontam como canibal ou ainda como “guardiã da passagem
para o outro mundo” (CAROLINSKI, 2008, p. 81). Ora exercendo nos contos
o papel de doadora do objeto mágico, ora de guerreira, ora de raptora (CA-
ROLINSKI, 2008, p. 11), ela não é essencialmente boa nem má – do mesmo
modo como a Natureza pode nutrir a vida, mas também pode exterminar
vidas. Seu caráter dual (boa e má), seus poderes fabulosos e sua sabedoria
acerca dos mistérios da vida e da morte permitem deduzir que Baba Yaga
devia originalmente ser uma divindade eslava.
Esses mesmos traços podem ser relacionados a Hel, a imparcial senhora
dos mortos, o que fica mais evidente se consultarmos uma narrativa popular
com esse indício. Assim, entre os contos coletados pelos Irmãos Grimm há
um no qual podemos colher pistas sobre o sentimento do povo simples diante
da deusa Hel. Dominante e assustadora à primeira vista, Hel – grafada como
Holle no conto - logo é percebida como figura maternal que acolhe a todos,
não fazendo distinção entre pobres e ricos, dando a todos as mesmas condi-
ções e oportunidades, e ao final aplicando os mesmos critérios: sua balança
tem apenas um único peso, o qual decide entre castigo e recompensa. No
cotidiano mais simples, Hel parece associada à ideia de justiça e imparcia-
lidade. Vejamos o conto!
Trata-se do conto de fadas Frau Holle (KHM 24), que os Irmãos Grimm
ouviram em 13/10/1811 de Dorothea Wild8 e publicaram logo no primeiro
volume de sua coletânea, em 1812 (SCHERF, 1982, p. 128). No Brasil, foi tra-
duzido para o português como “Mãe Hilda” (por David Jardim Jr.) e como
“A senhora Holle (Dona Flocos de Neve)” (no volume 4 de Íside M. Bonini).
Enigmático, o conto traz situações e circunstâncias que soam arquetípi-
cas, oníricas, quase surreais. Em toda a narrativa aparecem apenas quatro
personagens, todas femininas: uma mulher dominante no espaço terreno;

284
outra dominante no espaço mítico; e duas mocinhas, que transitam entre
esses dois espaços. Vejamos um rápido esboço do enredo.
No conto, uma mocinha é forçada pela madrasta a trabalhar tanto até
sangrarem-lhe as mãos. E, ao deixar cair dentro do poço a lançadeira da roca
de fiar, é obrigada pela madrasta a ir buscá-la, chegando assim a um mundo
inusitado onde mora a Dona Holle. Conforme vai percorrendo o lugar, ela
também trabalha, mas por iniciativa própria: quando uma macieira pede que
colha suas maçãs, quando um forno pede que tire os pães assados, e quando
a Senhora Holle a incumbe de afofar os travesseiros e acolchoados recheados
de penas que, ao voarem, fazem nevar sobre a Terra. Se olharmos com aten-
ção, essas tarefas da mocinha parecem ligadas ao cotidiano doméstico e de
agricultura – afins, portanto, ao universo camponês europeu. De um ponto
de vista simbólico, elas remetem às noções de fluidez e transitoriedade, mas
também de retorno cíclico: frutas maduras, pães que já estão assados e a neve
que cai são elementos que apontam para a transformação como princípio
básico da vida. A finalização de uma etapa leva à outra, e a ruptura é condição
fundamental para a continuidade e a sobrevivência: sem morte não há vida.
Curiosamente, percebe-se que o conto vai desenhando uma contrapo-
sição – de tempos, espaços, personagens e elementos com carga simbólica.
As duas mulheres representam concepções de “mãe” e de relações sociais
opostas. Assim, embora a Senhora Holle pareça inicialmente assustadora
(ela tem dentes imensos e cara de bruxa), sua monstruosidade exterior é
contrabalançada pela benevolência e justiça com que trata a mocinha. Já a
madrasta – que vive na superfície e não tem sua aparência descrita – inflige à
protagonista fome, roupas esfarrapadas e trabalho extenuante, chegando ao
ponto de exigir que se jogue dentro do poço. Com a Senhora Holle, por outro
lado, a mocinha tem trabalho na medida das suas forças, boa alimentação,
tratamento cortês e, quando finalmente decide retornar à superfície, recebe
em pagamento uma chuva de ouro.
Sob uma ótica simbólica, a trajetória da mocinha – que é maltratada,
mergulha no poço e depois retorna coberta de ouro – desenha uma história
de superação e transição de etapas, seguida de metamorfose: a protagonista
vive, “morre”, e assume uma nova existência ao retornar renovada a seu lu-
gar de origem. Ao submeter-se à divindade subterrânea e prestar-lhe serviço

285
(fazendo nevar), ela participa da essência mais profunda do mundo, inte-
grando diferentes planos espaço-temporais: se, por um lado, afofar a roupa
de cama nos traz as ideias de revigoramento, aconchego do calor, preparo
para novo uso; por outro lado, provocar neve relaciona-se à paralisação do
frio, dormência, estagnação. São contrários que, não obstante, são essenciais
à plenitude do mundo.
A Senhora Holle, assim, é a morte, mas também representa o ritmo cí-
clico da vida – tal como as estações que se alternam, os períodos de chuva e
seca, ou as folhas novas que sucedem as folhas velhas que caíram da árvore.
Assim, a recompensa da primeira mocinha decorre de ela aceitar seu lugar
na ordem natural do mundo e dar sua contribuição para o funcionamento
dessa engrenagem: quando retorna à superfície, o galo canta e ela recebe
uma chuva de ouro9. Espacialmente, ela seguiu um caminho ascendente
ao retornar do subterrâneo até a superfície; temporalmente, atravessou da
escuridão para a luz de um novo dia. Conforme aponta Lüthi em várias de
suas obras, o ouro nos contos de fadas não deve ser entendido como riqueza
material e, sim, como metáfora para a riqueza interior, a beleza da alma.
Há ainda uma segunda parte, na qual vemos que a irmã postiça, após
ouvir sobre o sucesso da primeira mocinha, resolve também ir até o poço e
aventurar-se pelos domínios da Senhora Holle, refazendo as mesmas etapas
por que passou sua meia-irmã. Ao contrário da primeira mocinha, porém,
seu trajeto não é marcado pela necessidade ou pelo autêntico desespero:
sua motivação é simplesmente a ambição de também ser agraciada com
o banho de ouro. Sem ter captado o verdadeiro significado do prêmio da
irmã, a postiça permanece alheia à realidade mais profunda que subjaz aos
elementos singelos. Com isso, sua atitude é, em todas as situações, oposta à
da primeira mocinha e logo ela se abandona à preguiça e negligência. Não
querendo sujar as mãos, deixa as maçãs apodrecerem e os pães queimarem
e, descuidando da roupa de cama após alguns dias de trabalho, nega à Terra a
fase de repouso do inverno e neve. Em suma, ela se esquiva de desempenhar
seu papel na roda da vida, não compreendendo sua participação no cosmo.
Ao final, recebe uma chuva de pez. Sua chegada à superfície não representa
a dissipação da escuridão, pois ela não evoluiu: enquanto o ouro da primei-
ra mocinha remete ao Sol (símbolo de vida e generosidade, mas também

286
de soberania, alegria e elevação), o pez representa aqui o caráter pesado e
inerte daquilo que não se renova, uma vez que está preso às coisas terrenas
e mortais (materialidade).
Quanto à Senhora Holle, podemos dizer que ela foi fada e bruxa ao mes-
mo tempo: generosa para com a primeira moça, impiedosa com a segunda.
Contudo, se olharmos por outro prisma, sua atitude equivale a simplesmen-
te fazer volver, como um bumerangue, para cada mocinha o impulso que
saiu delas mesmas: enquanto a primeira ajudava ou obedecia com eficiente
prestatividade, a segunda apenas pensava em si mesma e nos seus próprios
interesses. A Senhora Holle recompensa ou castiga, a depender do fluxo na-
tural das coisas, mas sem rancor ou quaisquer paixões. Ela nos indica uma
deusa Hel que observa com impassível neutralidade a ação dos homens, e
apenas os seleciona conforme a trajetória de cada um. Seu poder é decisivo
e inapelável, mas o conto nos mostra que sua intenção nunca é percebida
como malévola.
Os contos de fadas são textos ficcionais e lúdicos, destituídos de qualquer
caráter sagrado ou religioso. Contudo, o parentesco que sabemos ser próxi-
mo entre as várias modalidades populares, notadamente o mito e o conto
maravilhoso, permite à narrativa coletada pelos Grimm resguardar muito da
visão de mundo antiga - pautada em valores como verdade, dedicação e com-
promisso com a comunidade, os quais funcionam como “moral” da história.
Embora haja quem critique esse tipo de moral - perceptível em diversos
contos de fadas -, é preciso considerar que os camponeses europeus (em boa
parte guardiões da tradição oral de origem pagã) viviam em um ritmo simples
e ajustado aos ciclos da Natureza, e que, em terras com inverno rigoroso, as
dificuldades naturais são muitas e frequentes10. Nesse contexto de luta por
um padrão de vida acima da linha da miséria, não é difícil imaginar que, sob
a ótica de contadores de histórias e seus ouvintes, um indivíduo trabalhador
e cooperativo é precioso para a sobrevivência (ele “vale ouro”!), enquanto
o indivíduo egoísta e indolente representa um obstáculo adicional para a
comunidade. A divisão entre “bons” e “maus” – para a qual a Senhora Holle
funciona como juiz imparcial – ampara-se em critérios simples, ligados a
necessidades práticas do dia-a-dia do ambiente camponês.
Deusa ou bruxa, não importa. Tanto a deusa Hel quanto a Senhora Hol-

287
le estão associadas à ideia da morte como passagem de um mundo a outro,
integrando os estágios naturais da vida e dos mundos (lembremos que, na
concepção pagã germânica, os deuses também estão fadados a perecer quan-
do chegar o momento final (Ragnarök).

Guerreiras e sábias:
as senhoras da força

Para tratar das mulheres guerreiras, vejamos inicialmente um trecho


extraído da Saga dos Volsungos (na tradução do islandês antigo por Théo de
Borba Moosburger), que se estima ter sido anotada no séc. XIII, assim como
as Eddas. O trecho envolve Sigurd (que em algumas tradições aparece como
“Siegfried”) e seu encontro com uma valquíria. Não se sabe ao certo se ele é
figura puramente mitológica ou se a lenda do “matador de dragão” cresceu a
partir de algum indivíduo histórico (talvez da dinastia franca dos Merovíngios,
que antecederam os Carolíngios na antiga Gália). Referências a Sigurd, aliás,
foram encontradas entalhadas com o alfabeto de runas em rochas e cruzes
de pedra em diversos lugares, como a Suécia ou ilhas britânicas.
No trecho citado a seguir, Sigurd já matou o dragão Fafnir e agora en-
contra Brynhild, antiga valquíria:
Sigurd cavalgou então por longos caminhos até che-
gar ao alto de Hindarfiall, e daí mudou seu curso para o
sul, na direção de Frakkland [= Terra dos Francos]. Da
montanha viu à sua frente uma forte luz, como fogo a ar-
der, que brilhava até os céus. Mas, quando se aproximou,
havia diante de si um baluarte de escudos, e acima dele
elevava-se um estandarte. Sigurd caminhou para dentro
do baluarte e viu que lá dormia um homem, deitado em
armadura completa. Primeiramente retirou-lhe o elmo
da cabeça e viu que era uma mulher. Ela trajava uma
cota de malha tão justa que parecia grudada à carne,
como pele. (SAGAS, 2009, p. 80-81)

288
E quando Sigurd corta a cota de malha e Brynhild acorda, ele louva sua
beleza e sabedoria, e pede a ela que lhe ensine “sobre coisas grandiosas” (SA-
GAS, 2009, p.81). Brynhild compartilha então conhecimentos sobre runas e
palavras mágicas, destinadas aos mais variados fins: de fazer cerveja a acu-
dir mulheres no parto, de navegar a ter o controle das palavras, de adquirir
sabedoria a ser indomável com a espada.
Neste episódio encontram-se importantes marcas poéticas e culturais
do mundo nórdico. Uma dessas marcas são as runas. Lembremos aqui que
as runas não eram correntemente usadas, por exemplo, para redigir textos
comuns ou anotar histórias longas. Encontradas em túmulos e lugares ri-
tualísticos, as letras rúnicas, ao contrário, tinham significado místico, sendo
compreendidas como símbolos e catalizadoras das forças cósmicas que con-
densam os mistérios da vida e do universo. Odin, em sua busca insaciável por
sabedoria e conhecimento, sofreu nove dias e nove noites para ter acesso à
revelação das runas. Elas trazem, assim, em seu bojo, a magia para cura (das
feridas do corpo, mas também as da mente), a magia para tornar inofensivas
as armas dos inimigos, para proteger guerreiros nas batalhas, para desarmar
magias malevolentes, para trazer mortos de volta à vida, etc.
Em consonância a isso, as runas que Brynhild ensina a Sigurd conferem
vitória e têm poder de curar, mas destinam-se a diversas atividades e situa-
ções do convívio humano. Além de ensinar quais runas usar para qual fim,
a antiga valquíria ainda indica como proceder para que tenham efeito: se
devem ser tatuadas nas costas da mão ou talhadas no chifre em que é servida
a bebida; se devem ser gravadas nas folhas ou no tronco de certa árvore e,
nesse caso, voltadas para qual direção (ponto cardeal), e assim por diante.
Ao final,
Sigurd falou: ‘Nunca se achará no mundo mulher
mais sábia que tu, e ensina-me mais conselhos sábios’.
(ANÔNIMO, 2009, p. 86)

Seguem-se mais ensinamentos, estes agora especificamente voltados


para que Sigurd evite problemas que ela prevê em seu futuro (ou seja, que
previnam o ódio da família de sua futura esposa). E então:

289
Sigurd falou: ‘Não se achará nenhuma pessoa mais
sábia que tu, e por isso eu faço o voto de que hei de ca-
sar-me contigo, que tu és do meu feitio’. (ANÔNIMO,
2009, p. 87)

Quando Sigurd sai a cavalo, chega à casa de Heimir, descrito como “chefe
poderoso” e casado com a irmã de Brynhild. Nesse momento do texto é ex-
plicado que essa irmã se chama Bekkhild devido a suas funções domésticas.
Segundo Harry Eilenstein (2011, p. 522), embora não se tenha essa infor-
mação na saga, é possível supor que Bekkhild, enquanto irmã de Brynhild,
fosse também uma valquíria, mas tivesse optado pela vida caseira e huma-
na, implicada pelo prefixo “Bekk-” (banco). Já o nome da própria Brynhild
significaria: “bryn” (= cota de malha ou armadura de bronze) e “Hild” (=
batalha), subordinando a personagem inquestionavelmente ao universo dos
enfrentamentos bélicos (EILENSTEIN, 2011, p. 61).
Essa contraposição entre as irmãs permite uma associação com um conto
dos irmãos Grimm, Schneeweißchen und Rosenrot (KHM 161), traduzido como
“Branca de Neve e Rosa Vermelha” por Monteiro Lobato, David Jardim Jr.
e Nair Lacerda, e como “Rosa Branca e Rosa Vermelha” pela dupla Marina
Appenzeller e Monica Stahel. No conto, Rosa Branca é mais delicada e gosta
de ficar em casa, costurando ao lado da mãe, enquanto Rosa Vermelha, ainda
que não seja exatamente uma valquíria ou guerreira, tem índole forte e in-
dependente, preferindo correr pelos campos e colher flores. Certa noite, um
grande urso negro bate à porta da casa, e não é se estranhar que seja Rosa
Vermelha quem levanta e abre a porta para ele entrar. E certo dia, quando a
mãe manda as duas meninas à floresta para colherem ervas, elas encontram
um anão preso pela barba e nenhum esforço é suficiente para soltá-lo; mais
uma vez é Rosa Vermelha quem tem a ideia de ir buscar ajuda.
Curiosamente, ao final, quando o príncipe é desencantado e o vilão é
castigado, é agora Rosa Branca a escolhida para ser sua noiva. O conto faz,
assim, uma clara distinção entre a menina pacata e caseira e a menina cora-
josa e arrojada – distinção marcada já pelos seus nomes. Embora o conto não
tenha ligação, ao menos direta, com a história de Brynhild, esta, a guerreira,
é o primeiro amor de Sigurd, mas será com outra que ele acaba se casando.

290
Retornando à Saga dos Volsungos, algumas páginas adiante da cena ci-
tada há pouco, Gudrun (filha do rei Giuki e interessada por Sigurd) tem um
sonho, e Brynhild o interpreta, prevendo, assim, o futuro (p.95): Gudrun dará
uma bebida adulterada a Sigurd, conseguindo desse modo que ele esqueça
seus votos a Brynhild e se case com ela (Gudrun), mas pouco irá durar essa
união e ela mais tarde se unirá ao rei Atli; ao final, porém, todos próximos
a ela morrerão: esposo, familiares, toda a linhagem.
Essas passagens da Saga dos Volsungos – do primeiro encontro entre
Sigurd e Brynhild, e do sonho de Gudrun sendo interpretado por Brynhild
- ilustram algumas marcas da figura feminina em mitos e sagas, em contos
populares e lendas do mundo bárbaro ou “germânico”. No multifacetado
mundo germânico – que agrupa diversas tonalidades pautadas em pecu-
liaridades históricas, culturais e artísticas -, a mulher pode ser vista como
guerreira e forte, como inspirando respeito pela sua sabedoria e inteligência,
e como aquela que enxerga as profundezas dos conhecimentos ancestrais,
que alcançam a magia, o inconsciente, o destino e o ciclo da vida e da morte.
Desse rol não ficam fora, inclusive, os conhecimentos técnicos e práti-
cos. Na coleta de contos maravilhosos celtas, realizada por Joseph Jacobs,
encontramos um exemplo bastante elucidativo. No conto “Árvore de ouro e
Árvore de Prata”, a rainha tem pressa de retornar para casa e, assim, resolve
ela própria pilotar o navio em que está viajando. Sua habilidade de navega-
ção ainda é ressaltada quando se diz que: “conduzia o navio tão bem que não
levou muito tempo para chegarem” (JACOBS, 2003, p. 106). Essa destreza
demonstrada permite depreender o conhecimento de rios e mares, prática na
técnica de conduzir embarcações, e aguçado senso e coordenação espaciais.
Em outro conto celta, também coletado por Jacobs, “O pretendente de
Owen”, o protagonista Kilhuch viaja com Kay, cavaleiro com diversos poderes
extraordinários: ele conseguia segurar a respiração por nove dias, ficar nove
noites sem dormir, tornar-se tão esguio a ponto de ultrapassar em tamanho
a mais alta árvore na floresta, e sua temperatura corporal era tão quente que
não se molhava na chuva (JACOBS, 2003, p. 117). Os dois viajantes chegam
próximo do castelo do rei Yspathaden Penkawr, pai da donzela que Kilhuch
procura. Ao seu encontro vem a esposa do pastor de ovelhas, e ela abre os
braços para lhes dar um abraço de boas-vindas. Kay antecipa-se e agarra

291
uma tora de madeira que havia ali em uma pilha, e coloca-a entre os braços
da mulher. Sua força é tão grande que a tora é esmagada (2003, p.118).
Tamanha força física permite lembrar de um caso bastante inusitado,
registrado nas lendas celtas de Quatro Ramos do Mabinogion, as quais são
citadas aqui a partir da dissertação de Mestrado de Camila Goos Damm, de-
fendida em 2019. Nos Quatro Ramos é contado sobre a personagem Rhiannon,
vítima de um complô para que seu marido se divorcie dela. Tendo dado à luz,
seu filho desaparece e mulheres esfregam sangue em Rhiannon para dar a
impressão de que ela matou seu bebê.
Esse tipo de elemento temático pode ser encontrado também em vários
contos de fadas, coletados em épocas e lugares diversos. Dentre os contos
reunidos pelos Irmãos Grimm, podemos citar dois exemplos: A donzela sem
mãos e A afilhada de Maria, nos quais uma jovem mãe escapa por um triz de
ser condenada à morte por seu suposto crime.
No conto norueguês “O urso branco” (coletado pela dupla Peter Asbjør-
nsen e Jørgen Moe), o personagem-título é um rei condenado por um feitiço
a viver no corpo de animal. O urso branco casa com uma moça e vai levando
embora cada criança que nasce dessa união, o que não redunda em acusação
da jovem mãe, mas a mergulha em depressão e tristeza. Chega um dia em que
ela precisa partir numa peregrinação especialmente árdua para encontrar
e libertar o urso de sua maldição: embora não seja guerreira, nem empunhe
espada ou escudo, a façanha equivale aos feitos de grande lutadora. E ao
longo do caminho – nos pontos com obstáculos intransponíveis para ela – a
jovem mulher encontra uma criança que lhe será de ajuda decisiva e que,
por fim, será revelada como uma de suas filhas. Cada criança, assim, tem
papel primordial para que sua mãe cumpra seu destino e possa salvar o pai.
Para a reunião de todos no final, as gerações precisam cooperar, os tempos
(antes e depois) precisam convergir, e cada um precisa abrir mão de algo
em prol de outro para que todos cheguem à plenitude.
Curiosamente, também no Brasil encontramos um conto de fadas com
motivo semelhante. Câmara Cascudo coletou em Natal o conto “A rainha e
as irmãs”, que se inicia com três irmãs – órfãs, belas e muito trabalhadeiras
–, que estão costurando e, enquanto isso, conversam sobre o que estariam
dispostas a fazer para convencer o rei a casar com elas. As duas mais velhas

292
prometem camisas com poderes mágicos: a primeira faria uma camisa que,
dobrada, cabia na palma da mão, e, estendida, vestiria o rei inteiramente;
a segunda faria uma camisa que, dobrada, caberia no ovo de uma pomba,
e, estendida, poderia cobrir uma cama por completo (CASCUDO, 2000, p.
100). Ou seja, ambas dariam ao rei objetos fabulosos, mas ligados ao uni-
verso profissional das duas costureiras. A caçula, ao contrário, promete algo
que está ligado à forja da vida e ao anseio humano de elevação (em todos os
sentidos): ela lhe daria dois filhos e uma filha, cada um com uma estrela de
ouro na testa11. O rei, que estava justamente passando na rua, ouviu as três
previsões, e casou-se com a caçula. Daí em diante, indo e vindo para a guerra,
o rei sempre deixava a esposa grávida aos cuidados das irmãs. A cada ano ela
sempre dava à luz um bebê lindo e saudável e com uma estrela de ouro na
testa. E a cada vez as irmãs trocavam a criança por um sapo ou outro bicho
nojento. No terceiro ano, o rei não conseguiu perdoar a esposa e expulsou-a
para longe, mas se tornou tão infeliz que ficou cego de tanto chorar.
Aconteceu que um “caçador criou os três enjeitados com todo mimo”
(CASCUDO, 2000, p. 101), e os dois meninos, corajosos e ousados, um, e
depois o outro, partiram em busca da água-da-vida apenas porque ouviram
falar que ninguém conseguia retornar de tal viagem. Cada um em seu turno
acabou transformado em estátua de pedra porque estava com fome e, ao
avistar um pomar com frutas esplêndidas e misteriosas, não resistiu à tenta-
ção de se servir do fruto não autorizado. A menina, por sua vez – não menos
corajosa, mas mais prevenida – comeu o pão seco que havia trazido consigo
e, assim, chegou à fonte da água da vida. Com ela fez ressuscitar os irmãos
e, um pouco mais tarde, devolveu a visão ao pai, o que acabou inclusive por
possibilitar a reunião da família inteira.
Como vemos, na literatura popular, espalhada por diferentes rincões da Ter-
ra, pode haver a múltipla repetição de um mesmo motivo, a exemplo desse, da
mãe traiçoeiramente e à força separada do filho. A partir daí, porém, é inegável
o fluxo vívido e dinâmico da criatividade em cada narrativa, que dialoga com
seu contexto próprio, cria efeitos poéticos peculiares e desenvolve uma dimen-
são mística ou metafísica que responde a anseios humanos mais profundos.
Além disso, a análise dos diversos exemplos permite abstrair ou suben-
tender aspectos culturais por vezes inusitados. É o caso da história de Rhian-

293
non, da lenda celta, que passou por episódio semelhante. Ao ser acusada de
ter matado seu bebê, seu marido, o rei, não cede à pressão para divorciar-se
dela, mas impõe um castigo realmente incomum:
Quando a corte ouve o testemunho das mulheres,
novamente os nobres pedem a Pwyll que se divorcie de
sua esposa por ter cometido um crime tão horrendo.
[...] Ele diz que ela deve, portanto, ser punida pelos seus
erros; seu castigo consistia em ficar à disposição ao lado
da pedra de desmonte nos portões do palácio, oferecen-
do-se para servir de montaria àqueles que desejassem
ser levados à corte, e contar a todos os visitantes - que
ainda não saibam - sobre o crime que cometeu. Rhiannon
se aconselha com pessoas sábias e, após refletir, decide
aceitar a punição, apesar de que poucas pessoas admitam
que ela as carregue. (DAMM, 2019, p. 71)

O castigo pode soar degradante aos nossos ouvidos, e certamente é hor-


rível a humilhação de ser condenada a desempenhar o papel de animal de
montaria. Contudo, chama a atenção o detalhe adicional, verdadeiramente
extraordinário: para poder ser castigada dessa forma, é imprescindível que
Rhiannon disponha de uma força física acima do comum, já que precisa ter a
capacidade corporal para carregar qualquer um, não importa quão pesado seja.
Em outras palavras, ela precisa ter as condições para poder carregar homens
bem mais altos e corpulentos do que ela própria. E, se o marido estipulou tal
castigo, então sabe que Rhiannon é dotada de músculos notavelmente fortes.
Tamanha força feminina também se encontra em outros textos do mundo
pagão germânico. No longo poema épico Das Nibelungenlied [A canção dos ni-
belungos]12, a rainha islandesa Brünhild13 é forte e guerreira, tendo prometido
casar-se apenas com um homem capaz de conseguir derrotá-la em combate.
O rei da Burgúndia, Gunther, decidiu conquistá-la a qualquer custo e pede
ajuda ao herói Siegfried. Este vence a orgulhosa rainha e, recorrendo a um
estratagema mágico, faz com que Brünhild acredite ter sido derrotada por
Gunther. Mais tarde, ao descobrir a trapaça, ela se vinga fazendo assassinar
Siegfried e, assim, desencadeando uma tragédia que termina pela extinção
da estirpe dos burgúndios.

294
É possível que as mulheres tenham exercido tamanho poder na realidade
de fora da literatura, das histórias passadas de boca em boca, e do imaginário
popular? No mundo real, extraliterário, demorou-se muito para confirmar
a existência de mulheres guerreiras entre os nórdicos. Tal como Sigurd na
Saga dos Volsungos , que encontrou adormecido alguém em trajes bélicos,
e imediatamente pensou que estava diante de um homem , também os ar-
queólogos se deparavam com tumbas contendo restos mortais acompanhados
de armas e armadura e deduziam tratar-se de sepultamentos masculinos.
Assim sucedeu com o túmulo encontrado em Birka (Suécia) no ano de 1878.
Foi apenas o exame de DNA que, em pleno século 21, permitiu à arqueologia
certificar a tumba de uma guerreira enterrada com armamento e artigos lu-
xuosos, confirmando tratar-se de figura de alta posição social e status bélico.
A descoberta foi conduzida pela arqueóloga Charlotte Hedenstierna-Jonson14,
da Universidade de Uppsala, que a apresentou em sua tese de PhD em 200615.

Últimas palavras

As mulheres representadas na literatura de raízes pagãs são um impor-


tante elemento para acessarmos as peculiaridades do imaginário popular
no substrato germânico. Algumas são deusas; outras, apenas personagens
de contos de fadas ou sagas. Mas todas nos ajudam a vislumbrar e desfrutar
o profundo sentido poético e existencial das narrativas provenientes das
antigas tradições orais. E nos ensinam que homens e mulheres podem ser
fortes ou passivos, compassivos ou egoístas, deslumbrantes ou maliciosos.
No presente trabalho foi explorado apenas um dos lados dessa moeda, mas
no fim e ao cabo, essa moeda só funciona se todos os lados estiverem presen-
tes e participantes com todas as suas nuances, em toda a sua humanidade.

295
Notas

1 “Germânico” é termo usado aqui para referir, de modo genérico, os povos bár-
baros que ao longo de séculos se espalharam pela Europa, em contrapartida ao
Império Romano. Desse modo, estão incluídos aqui, sem maiores distinções,
celtas, vikings, teutões, saxões, godos, vândalos, francos, alamanos, etc.
2 Distribuição geográfica, mudanças linguísticas e inclusive animosidades entre
tribos levaram ao surgimento de nomes variados para a identificação dos deuses.
Assim, o deus supremo dessa mitologia é chamado de Odin na esfera escandina-
va ou nórdica, enquanto mais ao sul ele recebe a denominação de Wotan. Uma
dualidade semelhante também ocorre na mitologia greco-romana, onde Zeus
(para os gregos) é identificado a Júpiter (conforme os romanos).
3 Respectivamente de The Legend of Zelda, Drakan e Tomb Raider.
4 Xena: the Warrior Princess foi um seriado paradigmático para produções pos-
teriores, tendo contribuição decisiva para divulgação de um padrão feminino
de vigor, habilidade e robustez.
5 De Alien, The Terminator e Resident Evil.
6 A concepção dos antigos germânicos previa um universo dividido em nove
mundos. Não há total concordância entre Snorri Sturluson (cujas anotações são
do séc. XIII) e outras fontes medievais (sagas), mas a maioria dos estudiosos
costuma arrolar: Asgard (mundo em que vivem Odin e demais deuses Aesir,
abrigando ainda as Nornas e outros), Vanaheim (morada dos antigos deuses
Vanir, que regem a Natureza, a fertilidade e abundância), Alfheim (habitado
pelos elfos belos e radiantes), Svartalfheim (lar dos elfos tenebrosos), Midgard
(mundo dos homens, cercado por vasto oceano e ligado a Asgard pelo arco-íris
Bifrost), Nidavellir (em cujas montanhas vivem os anões; e lar de Fafnir, que se
deixou cegar pela ambição, assassinando seus irmãos e se transformando em
dragão), Jotunheim (mundo dos gigantes, berço de Loki), Muspellheim (mundo
de chamas e lava, governado pelo gigante Surt e habitado por criaturas de fogo,
predestinadas a matar os deuses quando chegar Ragnarök, o fim dos tempos),
Niflheim (mundo de sombras e gelo, junto ao qual está Helheim, reino dos mor-
tos governado por Hel).
7 As três Nornas têm muito em comum com as três Parcas, ou Moiras, da mito-
logia greco-romana.

296
8 Henriette Dorothea Wild, que ao fim casou-se com Wilhelm Grimm, pertencia
a uma família huguenote residente há várias gerações em Kassel e narrou bom
número de contos para Jacob e Wilhelm Grimm.
9 Narrativa com várias características em comum é “As fadas” (« Les Fées »), de
Charles Perrault – em que a primeira mocinha vai buscar água na fonte e ali ajuda
uma velha senhora, na verdade uma fada disfarçada. Após ser recompensada
e contar tudo em casa, a segunda moça também vai à fonte mas seu egoísmo e
grosseria lhe trazem castigo em vez de recompensa.
10 Veja-se o detalhado levantamento de dados do historiador Robert Darnton
(1986) acerca da vida, hábitos e dificuldades dos camponeses franceses, e de
como isso se reflete nos contos de fadas folclóricos.
11 Vale lembrar aqui, mais uma vez, que, embora o ouro esteja associado à riqueza
material e ao triunfo social, ele também remete à força vital do Sol, à solidez do
que é eterno, ao brilho e pureza daquilo que é nobre e divino.
12 A tetralogia de Wagner tem enredo centrado em apenas um dos nibelungos
(criaturas semelhantes aos anões), que roubou o anel mágico, por isso seu título
não coincide com o manuscrito medieval, do qual sobreviveram algumas cópias,
sendo a mais completa datada de aproximadamente 1200.
13 A depender da fonte, encontram-se também as grafias Brunhilde, Brynhild,
Brynilla, etc.
14 Cf. https://www.arkeologi.uu.se/staff/Presentations/Hedenstierna-Jonson-en/
. Último acesso em 05/02/2020.
15 Ver https://www.smithsonianmag.com/smart-news/researchers-reaffirm-fa-
med-ancient-viking-warrior-was-biologically-female-180971541/.

297
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299
O
EDUC AÇ ÃO LITERÁRIA:
do texto à experiência
(trans)formadora do leitor
Cristiano Camilo Lopes

“The true sign of intelligence is not knowledge but imagination.”


Albert Einstein

Introdução

O conceito de educação literária diz respeito ao campo de estudo em que


se observa a inter-relação entre as concepções de literatura como arte e os
aspectos inerentes ao leitor, tais como: acesso à obra, prazer e gosto e expe-
riência com a recepção da obra. Nesse sentido, ao se analisar como ocorre
o processo de educação literária, leva-se em consideração a experiência do
leitor para a elaboração da teoria literária. Para entendermos melhor como
aplicar esse conceito, discutiremos alguns aspectos implicados nesse campo
de estudo: a natureza do texto literário, a relação literatura e leitor, e a im-
portância de serem propostas teorias quanto à formação do leitor literário
com base na experiência do leitor com o texto.
Partindo-se do conceito de leitura literária proposto pelo Glossário do Ceale:
A leitura se diz literária quando a ação do leitor
constitui predominantemente uma prática cultural de

300
natureza artística, estabelecendo com o texto lido uma
interação prazerosa. O gosto da leitura acompanha seu
desenvolvimento, sem que outros objetivos sejam viven-
ciados como mais importantes, embora possam tam-
bém existir. O pacto entre leitor e texto inclui, necessa-
riamente, a dimensão imaginária, em que se destaca a
linguagem.

À luz dessa definição, entendemos que o texto literário apresenta ver-


tentes que o caracterizam como tal: natureza artística, interação prazerosa,
linguagem e dimensão imaginária. Nesse sentido, cabe a questão: de que
maneira podemos apresentar o texto literário ao leitor com essas caracte-
rísticas e experiências? Nosso intuito, nesta investigação, é propor um fio
(teórico) condutor que nos guie por aspectos-chave do texto literário a fim
de revisarmos as práticas de formação do leitor literário com o objetivo de
propor uma experiência transformadora por meio da leitura literária.
Para cumprir esse objetivo, nossa rota será discutir o texto literário como
conhecimento e arte, discutir a respeito do perfil de leitor que essa arte evo-
ca e, por fim, investigar de que maneira o ato de ler pode proporcionar uma
experiência transformadora para o leitor. Como eixo teórico dessa investi-
gação, nossas considerações se apoiam nos estudos de Coelho (2000), Hunt
(2010), Lajolo (2012), Lewis (2009, 2018) e Reyes (2012). Tratam-se de ideias
que entram em diálogo quanto à natureza da literatura e dos elementos da
linguagem literária.

Texto literário: conhecimento e arte

Nesta seção, discutimos a natureza do texto literário entendendo que esse


caminho nos permite ter um olhar mais atento aos efeitos que a arte literária
pode proporcionar para o leitor. Para isso, trabalhamos a ideia de literatura
como arte, em que estão implicados tanto o conhecimento como o trabalho
artístico com a linguagem.
De acordo com Lewis (2009, p. 114s), a literatura é e significa algo, e é, por

301
meio de sua natureza, que ela consegue atingir esse alvo. Para Lewis (2009,
p. 114), o significar e o ser podem ser entendidos como “Logos (algo dito) e
Poiema (algo feito)”.

Literatura

+ =
Conhecimento
Logos Poiema
e arte

Figura 1 - Literatura: Logos e Poiema


Fonte: Elaborado pelo autor.

Ao utilizar o termo Logos, Lewis remete à ideia grega de conhecimento


filosófico em que reflexões e questionamentos a respeito da vida permeiam a
mente inquiridora, filosófica. Nesse sentido, a literatura expressa o pensamento
do homem em uma determinada época e em um determinado lugar difundindo
valores, crenças, ideias, gostos do contexto retratado no texto literário.
Enquanto Poiema, a literatura abarca a competência artística do poeta
em trabalhar o Logos por meio de uma linguagem artística. Essa pode ser
uma diferença entre a Literatura e a Filosofia: ambas as ciências trabalham
com o Logos, entretanto a Literatura traz a discussão para o plano artístico,
valendo-se da técnica para refletir sobre o Logos. Assim sendo, no texto li-
terário, o Logos provoca/evoca riso, reflexão, choro, emoção, repúdio, etc; e
o Poiema gera contemplação, admiração:
como Logos [a literatura] conta uma história, ex-
prime uma emoção, exorta, defende, descreve, reprova
ou provoca riso. Como poiema, por sua beleza auditiva
e também pelo equilíbrio, o contraste e a multiplicidade
unificada de suas sucessivas partes, é um objet d’art, uma
coisa moldada de forma a proporcionar grande satisfação
(LEWIS, 2009, p. 115).

302
Assim, o leitor, ao processar o conhecimento por meio do texto literário,
tem a possibilidade de expansão de seu repertório, pois o texto literário lhe
proporciona o acesso a vários tipos de conhecimento. Para Lewis (2009),
o Logos na literatura funciona como uma espécie de porta de entrada que
proporciona a visão da realidade por meio de outros olhos: os olhos das
personagens. E essa é expansão que a literatura proporciona ao leitor: “O
homem que se contenta em ser apenas ele mesmo e, portanto, ser menos,
vive numa prisão. Meus próprios olhos não são suficientes para mim, verei
por meio dos olhos dos outros [...] Lamento que os animais não possam es-
crever livros” (LEWIS, 2009, p. 120). O que se tem aqui é a relação entre eu
e o outro na aventura da leitura literária, pois o Logos trabalhado no texto
ficcional permite ao leitor a ida (acesso) para o universo das personagens
retratadas na história, mas também é certo que o retorno para a realidade
do leitor está garantido, cabendo a ele decidir o ir e o voltar conforme seu
desejo/experiência. Vale destacar que a experiência de ver a vida no ambiente
da história contada é uma experiência de alteridade proporcionada pelo Lo-
gos ficcional, e Lewis acrescenta: “Este [...] é o valor específico da literatura
considerada Logos; permitir que tenhamos acesso a experiências que não
são as nossas [...] Ficaria contente em saber que face têm as coisas para os
olhos de um rato ou de uma abelha” (LEWIS, 2009, p. 120s).
Por meio dessas colocações de Lewis (2009), chamamos a atenção para o
fato de a leitura literária poder ser qualificada como uma aventura que pro-
porciona viagens para mundos e universos pertencentes às personagens da
história. Nessa aventura, os espaços das personagens tornam-se disponíveis
ao leitor para que este manifeste apreço ou desprezo.
Merece destaque o fato de o prazer da leitura do texto literário não estar
na percepção das coisas como elas são, mas em ver como as personagens
veem, pois “lendo a grande literatura, torno-me mil homens e ainda per-
maneço eu mesmo” (LEWIS, 2009, p. 121). Essa experiência proporciona a
oportunidade de compartilhamento de alegrias e tristezas, gostos e desgostos,
valores e crenças, etc., mas cabe ao leitor decidir os momentos de entrada
nesse universo e de saída dele, e, a cada imersão no texto, ele tem sua vivên-
cia enriquecida pela experiência de ver a vida com os olhos dos outros que
o texto literário lhe proporcionou.

303
Também é nosso desejo discutir, neste artigo, de que maneira o artista
pode trabalhar em seu processo criativo de maneira que articule Logos e
Poiema na geração da literatura. Para isso, valemo-nos dos termos que Le-
wis (2018, p. 91) emprega para definir o artista (poeta): autor e homem, ou
melhor um autor-homem.
Iniciemos com o homem. Lewis (2018) entende que o autor e o homem
estão amalgamados no poeta, mas há algo que os distingue: o homem é
aquele que processa as inquietações do viver e reflete a respeito das questões
da vida que ele tem para dizer. Podemos afirmar que é o homem social, que
reflete o tempo e o espaço de sua vivência e que, portanto, capta as questões
da existência no momento da elaboração da história ficcional. Lewis (2018,
p. 90) o define como um cidadão; como aquele que é dotado de razão, de
conhecimento, e que tem algo a dizer.
Já o autor é o artista que encanta e ensina ao mesmo tempo por meio de
sua feitura; é aquele que estuda a melhor maneira de discutir as questões que
ocupam a mente do homem de forma artística em linguagem carregada de
significação. Trata-se do poeta que processa as questões da razão por meio
de um impulso artístico criador; sua lente interpretativa do mundo dá-se
por meio da arte, por isso ele é sempre aquele que oferece as entradas para
a discussão das questões da razão no âmbito da arte. O que se tem aqui, en-
tão, é a junção da razão do homem com o impulso criador do autor, em que
o homem fornece o material para a história, e o autor dá a forma artística
para esse material.

Alimenta Lança questões


artísticamente para o imaginário

Figura 2 – O autor-homem no processo criativo


Fonte: Elaborado pelo autor.

304
Nesse intercâmbio entre autor e homem no poeta, Lewis (2018, p. 93)
entende que o homem “não poderia ter feito nada se o Autor não estivesse
em ebulição primeiro.” É nesse sentido que o poeta se manifesta como um
mestre que agrada e instrui, pois “todo poeta [é] era também homem e ci-
dadão; nessa qualidade ele deveria, e desejaria, tornar sua obra edificante e
agradável” (LEWIS, 2018, p. 90).
Como este artigo visa à reflexão da literatura para a juventude, destaca-
mos que esse segmento tem se mostrado fértil para as discussões filosóficas
do homem ao longo dos tempos. Ao trabalhar fantasia e imaginação em sua
forma artística, a literatura juvenil concebe o leitor como uma pessoa con-
creta. Em outras palavras, autor e leitor são tocados pela arte, de maneira
que ambos podem ser modificados pelo texto literário. Portanto, autor e lei-
tor são iguais perante a beleza do texto, e os dois são igualmente desafiados
pela arte que os toca.
Essa perspectiva da criação literária vai contra a ideia de que o autor
escreve o texto pensando naquilo que ele acha que o leitor quer ou precisa.
Quando isso acontece, Lewis (2018, p. 100) explica que os autores “não ser-
vem o prato de que gostam, mas aquele que essa raça supostamente gosta.
Os motivos educacionais e morais, bem como comerciais, podem entrar em
cena. ” Esse não seria um caminho seguro para a criação literária.
Por isso, torna-se necessário discutir a natureza do texto literário, pois
é nessa reflexão que se percebe o poder que o texto tem de promover expe-
riências ao leitor que não podem ser antecipadas, uma vez que cada leitor
reage de uma maneira à história contada.
Diante disso, seguimos, agora, com algumas considerações a respeito da
forma artística do texto literário voltado para a juventude que, via de regra,
se vale das linguagens do imaginário. O foco dessa investigação é conside-
rar que a forma artística atua sobre o leitor no momento da leitura, promo-
vendo uma experiência com o texto. Por isso, há a necessidade de se ver a
literatura em operação, em atividade com o leitor para que, então, se possa,
de fato, discutir a formação do leitor literário. Entretanto, podemos, a prin-
cípio, elencar alguns pontos fixos da forma artística da literatura destinada
para a juventude, partindo de uma base segura às considerações a respeito
da formação do leitor literário.

305
Nossas considerações se circulam em torno da seguinte questão: de que
maneira o texto literário atua no leitor? Para responder a essa indagação,
levamos em conta tudo o que foi dito a respeito da literatura enquanto co-
nhecimento e arte, e afunilamos para a forma que a literatura destinada à
juventude vem assumindo ao longo dos séculos, mais especificamente na
questão da fantasia e da imaginação.
Com relação à fantasia, Lewis (2009, p. 47) afirma que o termo fantasia
aplicado ao universo literário diz respeito a “qualquer narrativa que trate de
impossibilidades e aspectos sobrenaturais. ” O autor propõe que a narrativa
ficcional alimenta a imaginação do leitor, transformando-a em algo prazeroso,
na medida em que ele pode sonhar acordado, plenamente consciente de que
a história não é verdade. Então, o autor nos sinaliza que a literatura juvenil
tem em sua essência marcas como: curiosidade, imaginação, suspensão da
incredulidade, apetite insaciável por aspectos sobrenaturais, prontidão para
maravilhas, espanto, assombro e admiração.
Nesse sentido, costuma-se inquirir qual seria a validade de uma reflexão
por meio da leitura de um texto carregado de fantasia. Entretanto, o que se
pode inferir é que a formação se dá pela experiência com a fantasia e não
pela imersão na realidade. Nesse sentido, Lewis (2009) propõe que o cresci-
mento se dá pelo que se ganha e não pelo que se perde. Portanto, a fantasia
não precisa ser tida como algo pueril, inferior, menor, etc., pelo contrário, é
algo que pode acompanhar o homem ao longo de sua vida.
Trata-se de uma preservação consciente de algo que torna o homem (em
qualquer idade) mais elaborado no gosto juvenil. Lewis (2018, p. 99) entende
que a literatura juvenil é singular na oferta da experiência com a fantasia,
pois o gosto juvenil revela a necessidade que o ser humano tem de fantasia;
é um gosto perene que não se esvai à medida que a criança cresce e adquire
maturidade: “[...] o gosto juvenil é simplesmente o gosto humano, passando
de geração para geração, tolo com uma tolice universal ou sábio como uma
sabedoria universal, independentemente de modos, movimentos e revolu-
ções literárias. ” Mais uma vez, reforçamos a ideia de que o autor-criador
de literatura juvenil entende o leitor como pessoa concreta, na medida em
que ele se iguala ao leitor na questão do gosto pela fantasia, e isso quebra
a ideia de uma relação vertical entre autor e leitor, pelo contrário, há um

306
nivelamento entre ambos que evidencia a imersão tanto do autor quanto do
leitor no deleite no universo ficcional.
Em uma linha oposta a essa, há aquilo que Lewis (2009, p. 55) denomina
de busca pelo “realismo de conteúdo” em que se entende que o acontecimento
deve ser a mola propulsora na criação literária por parte do autor (principal-
mente se for um texto tido como literatura juvenil). Nesse tipo de criação,
aspectos como o fato provável, a fidelidade à realidade e a ausência de fantasia
formam, de fato, uma base segura para a análise de uma dada realidade. O
que se tem, então, é a operação dos sentidos desprovida de qualquer olhar
das personagens da história, pois, no realismo de conteúdo, “enquanto há
muito para ser analisado, não há nada para ser visto, ouvido, degustado ou
tocado. Não há ‘close-ups’ nem detalhes. Não há personagens secundárias
nem sequer lugares dignos de descrição. ” (2009, p. 55). Portanto, nesse caso,
o que se tem é pouco olhar, ouvido, degustação e toque. E acreditamos que
esse não é um caminho saudável para a formação do leitor literário.
O que se busca, nessa (trans)formação do leitor literário, é a linguagem
imagística, a potência da linguagem em que a imaginação coopera com a
reflexão para a formação da consciência, a apreensão de realidade e não de
conceitos, somente. Por isso cabe o ensino por meio do gosto apurado para a
linguagem literária entendendo que ela é a “mediadora ideal entre as mentes
imaturas com sua [...] capacidade de percepção intelectiva e o amadureci-
mento da inteligência reflexiva” (COELHO, 2000, p. 43).
À luz das discussões feitas até aqui, principalmente sobre as ideias de
Lewis, verificamos a validade de se tecerem considerações a respeito da
formação do leitor partindo de uma abordagem filosófica a respeito da na-
tureza e função da literatura. Nessa investigação sobre a linguagem literária,
confirmamos o que Candido (1999) já propôs sobre o papel da literatura na
humanização do cidadão com sua ação certeira de “imprimir e exprimir o
homem”. Em outras palavras, entendemos que a formação do leitor literário
subjaz à formação da pessoa, do indivíduo. Os estudos literários trabalham
a linguagem junto com a percepção: da alteridade, do global e do local, do
real no ficcional.
Como fechamento desta seção, reforçamos que um caminho válido para
o trabalho com a linguagem literária é considerar a leitura de dentro para

307
fora, isto é, a formação da percepção para que o leitor possa ser tocado pelo
texto. E o fundamento para a leitura de dentro para fora está na necessida-
de da fusão entre sentidos e imaginação. Os sentidos captam a realidade, e
a imaginação coopera com a reflexão na medida em que trabalha com ele-
mentos sobrenaturais. Como vimos, para Lewis (2009; 2018), há a necessi-
dade da amálgama entre esses dois componentes a fim de que se tenha uma
formação completa.

O texto literário e o leitor

Sabendo que a literatura é linguagem carregada de significação (POUND,


2006, p. 36), nosso objetivo, agora, é discutir o perfil de leitor que esse texto
evoca, e, para cumprirmos esse objetivo, vamos apresentar alguns aspectos
reais e ideais no que concerne ao leitor literário. Para a composição dessas
considerações, nossas ideias se apoiam em três eixos: leitor e literatura, lei-
tor e imagem, e leitor e o prazer advindo das histórias. Essas ideias foram
geradas a partir do pensamento de Hunt (2010), Lajolo (2012), Lewis, (2009,
2018), Reyes (2012).

308
Leitor
e literatura

Texto literário
e leitor

Leitor Leitor
e o prazer e imagem

Figura 3 – Eixos da relação texto literário e leitor


Fonte: Elaborado pelo autor.

Com relação ao eixo leitor e literatura, Hunt (2010, p. 94) entende que é
importante fazer uma distinção entre literatura da criança e literatura para
a criança. A literatura da criança remete ao gosto do leitor, e a literatura
para a criança diz respeito àquilo que os adultos acham que a criança gosta.
Portanto, para o autor, a relação leitor (criança) e texto é sempre complexa,
pois pode ocorrer o desencontro entre o livro ofertado pelos adultos e o que
o leitor de fato deseja. Portanto, torna-se necessária a avaliação do “modo
como discutimos, lecionamos e escolhemos materiais” para o leitor. Essas
colocações não são novas, entretanto entendemos que ainda há espaço para
atualizações e novas aplicações.
A relação entre o que o leitor gosta/deseja e o que é disponibilizado para
ele pode nos fazer considerar o que Lewis (2009) denominou de leitor iletrado
e leitor letrado ou aquele que usa e o que recebe a arte literária. O que o autor
deseja com essa distinção é voltar a discussão para a relação texto e leitor e
não tanto para o julgamento de livros, somente: “quero compreender o tipo

309
de cenário a que se pode chegar pela inversão do processo. Tomemos por
base a distinção entre leitores ou modos de leitura e por corolário a distin-
ção entre livros” (LEWIS, 2009, p. 7). Portanto, avaliar as experiências desses
diferentes leitores é fundamental para a crítica, bem como para o educador.
O leitor iletrado é aquele que tem uma perspectiva utilitarista do texto,
e a experiência de leitura obtida não se mostra como algo significativo em
termos de produção do conhecimento. Assim, a expressão “eu já li isso” de-
fine bem o resultado demonstrado pelo leitor quando esse, por exemplo, é
apresentado a uma obra já lida, entendendo que não vale a pena voltar ao
texto pois “ele considera ‘eu já li isso’ um argumento conclusivo contra a
leitura de qualquer obra” (LEWIS, 2009, p. 8).
A perspectiva utilitarista do texto geralmente vê o texto literário apenas
como um recurso para atividades didáticas ou paradidáticas, e, assim, as
expressões “é bom para” ou “serve para” exercerão a liderança no estabele-
cimento dos critérios para a leitura (ou não) de uma obra.
O leitor que usa a literatura acaba não tendo a experiência com o Logos
e o Poiema do texto, e, assim, sua apreensão dos conhecimentos veiculados
acaba sendo “rudimentar” (LEWIS, 2009, p. 80), pois o que se tem é uma má
leitura ou leitura mediana/medíocre. Aqui a leitura se vale apenas de um
aspecto do texto literário, geralmente a emoção ou curiosidade, e o máximo
que se consegue com o texto é diversão e entretenimento: “o usuário nunca
faz um uso pleno e até mesmo prefere palavras que, de fato, nem chegam a
permitir um uso pleno” (LEWIS, 2009, p. 80).
Nesse contato utilitarista com a literatura, é predominante a veiculação
de valores dominantes em determinadas realidades sociais sem um traba-
lho artístico com a linguagem. Entretanto, a experiência da leitura literária
é caracterizada pelo estímulo na percepção do leitor, e os resultados dessa
interação entre texto e leitor não são programados a priori, pois cada leitor
relaciona o “texto lido” com seu “texto vida” (GÓES, 2005, p. 17).
Por isso chamamos a atenção para a discussão a respeito do uso que se
faz do texto literário, uma vez que ele também serve de critério para a de-
finição do leitor “os textos literários [são] peças de linguagem utilizadas de
uma determinada maneira pela comunidade” (ELLIS, John M. apud HUNT,
2010, p. 86).

310
Hunt (2010, p. 87) desafia-nos a considerar os valores que são atribuídos
a determinado texto diferenciando a experiência literária (uma experiência
com resultados a posteriori) da valorização (ou desvalorização) de um texto
levando-se em consideração os aspectos de um determinado contexto: “de-
vemos tomar cuidado com a contradição ao dizer que alguns textos agradam
mais que outros , pois os valores que nele aplicamos também pertencem ao
sistema cultural.”
Diante dessas ideias, é preciso inferir que a formação de um leitor lite-
rário implica considerar a literatura em operação mais do que as demandas
contextuais ou ideológicas, pois é a experiência estética que formará o bom
leitor: “literatura não se faz com boas intenções, não tem compromissos
com modismos, não é para dar lições de vida, e muito menos para reforçar
conteúdos escolares. Literatura é linguagem” (LAJOLO, 2012, p. 9). Por isso,
julgamos pertinente propor uma alternativa para o trato utilitarista com o
texto literário, e então seguimos para o próximo eixo: o leitor e o prazer.
No eixo leitor e prazer, a relação de oposição que se estabelece é entre
a arte recebida e a arte usada e daí decorre a pergunta: “o que a literatura
pode fazer em mim?”. É essa pergunta que servirá de guia investigativo. Essa
questão apresenta-se em sentido oposto às considerações feitas anteriormen-
te (“para que serve o esse texto literário?”), e, com isso, nosso foco volta-se
para a importância da experiência estética com a linguagem literária. A ideia
de receber o texto como uma experiência estética pode ser definida da se-
guinte maneira: “o texto repercute em nós na medida em que revele marcas
profundas de psiquismo, coincidentes com as que em nós se abriguem como
seres sociais” (PROENÇA FILHO, 2007, p. 8).
O processo de recebimento do texto envolve a operação da linguagem
no leitor, e, assim, a percepção pelos sentidos entra em operação, pois a lin-
guagem “é a faculdade que o homem tem de expressar seus estados mentais
através de um conjunto de sons vocais chamado língua, que é ao mesmo
tempo representativo do mundo interior e do mundo exterior” (PROENÇA
FILHO, 2007, p. 19). Por isso, o signo linguístico estimula a mente do leitor
na medida em que a linguagem trabalha simultaneamente com a percep-
ção verbo-voco-visual. Assim, os efeitos da experiência com a estética da
linguagem ficam no leitor e formam a base para a edificação da imaginação.

311
É por essa ótica que discutimos a ideia da experiência literária enquanto
prazer e deleite artístico, e o caminho para isso é pautado pelo jogo com a
linguagem compondo, assim, uma “leitura que segue trilhas, lança hipóteses,
experimenta, duvida, num exercício contínuo de experimentação e descober-
ta. Como a vida” (PALO; OLIVEIRA, 2006, p. 11). Nesse jogo, o leitor interage
com o texto e prova o gosto da experiência com a linguagem.
Lewis (2009, p. 38) entende que o prazer com o texto literário envolve
um certo tipo de medo: admiração e espanto; aversão; medos mortais. Mas
esse medo não afugenta o leitor em relação ao texto, pelo contrário, torna-o
um releitor.
Para o autor, o que marca essa releitura é o prazer que advém de uma
experiência marcada pela imaginação profunda sobre outros mundos reais,
por exemplo. Nesse sentido, para Lewis (2009), o leitor relê uma obra moti-
vado pela busca de um estado de surpresa em que se busca a releitura para
saborear novamente e descobrir detalhes, aspectos e nuances não percebi-
dos na leitura anterior. Aqui, diversão e entretenimento é o mínimo que se
consegue com o texto, entretanto o que se deseja é algo maior; o alvo é esse
estado de surpresa.
Em oposição ao prazer com o texto literário, Lewis (2018, p. 35-38) consi-
dera que há o leitor que busca apenas a empolgação. O que caracteriza esse
leitor é a ausência de uma imaginação profunda e a forte expectativa no fato
abordado na história. Por isso, nesse caso, o leitor não lê novamente, uma
vez que ele já conhece o fato ou o acontecimento da história.
O intuito da nossa discussão é, portanto, resgatar a natureza estética
como elemento que define a literatura infantil e juvenil. Entretanto, o uso
que determinadas instâncias têm feito dessa literatura tem priorizado mais
as questões do nicho de mercado do que a arte literária.
Uma vez que a Literatura Infantil e Juvenil já se configura como uma área,
julgamos importante trazer à baila que as questões que envolvem a linguagem
literária devem ser resgatadas como aspectos definidores desse segmento.
Seguiremos, agora, considerando o eixo leitor e imagem.
“O que a imagem pode fazer em mim?” É com esse questionamento que
Lewis (2009, p. 23) inicia sua argumentação a respeito do papel da imagem
na formação do leitor literário. E seguimos discutindo nessa esteira argu-

312
mentativa, pondo sob consideração o fato de a literatura infantil e juvenil
possuir protagonismo na produção de textos marcados pela confluência de
linguagens verbal e visual.
É imprescindível discutir o papel da imagem na educação literária, pois,
como veremos, ela contribui para a apreensão de ideias pelos sentidos e
instiga a operação da imaginação, entre outras coisas. Lewis (2009, p. 23)
entende que tal caminho investigativo é fundamental pois “[...] muitos usam
a arte e os poucos a recebem [...]”.
Vale lembrar, entretanto, que se podem encontrar casos em que o texto
visual está apenas a serviço do texto verbal ocorrendo, assim, o predomínio
do verbal sobre o visual, e esse não seria um caminho seguro para a educa-
ção literária, pois, no texto literário, a imagem deve se apresentar em uma
perspectiva dialógica. Trata-se de uma sintonia em que as vozes interagem
configurando uma sinfonia em que cada voz exerce um papel na expressão
do Logos e, ao mesmo tempo, dialogam.
Assim, na formação do leitor literário, o que se deve evitar é o discurso
monológico caracterizado pelo predomínio da linguagem verbal sobre a lin-
guagem visual, ou seja, caraterizado pela ausência do diálogo entre vozes e,
consequentemente, sem a sinfonia entoada pelas linguagens verbo-voco-vi-
sual. Diante disso, façamos algumas considerações a respeito da questão: “O
que a imagem pode fazer em mim?”
De acordo com Lewis (2009, p. 23), “devemos usar nossos olhos. Devemos
olhar e continuar olhando até que tenhamos visto com certeza o que ali está.
Sentemo-nos em frente ao quadro no intuito de que ele nos faça algo, e não
para que façamos algo com ele.” O que o autor propõe é uma recepção ativa
da imagem, que se opõe à apatia ou à inércia. Isso é tão importante na for-
mação do leitor, pois o recebimento da imagem provoca efeitos nele que o
transformam em um observador atento, com capacidade de apreensão pelos
sentidos, o que certamente tem desdobramentos na sua atividade leitora: “não
quero dizer com isso que o espectador correto seja passivo. Sua atividade
também é imaginativa; mas uma atividade obediente” (LEWIS, 2009, p. 23).
O que Lewis (2009) observa é que a imagem também proporciona a ex-
periência eu-outro, pois o leitor, ao permitir que o texto visual seja projetado
sobre si, consegue se colocar de lado, permitindo, assim, que a imagem fale:

313
“devemos deixar de lado, tão completamente quanto formos capazes, todos
os nossos preconceitos, interesses e associações” (LEWIS, 2009, p. 22, 23). O
alvo é a busca das associações que o leitor faz a partir dos efeitos da imagem
nele. Receber o texto em seu interior é o alvo da formação pela experiência
no universo da educação literária, e, para isso, é fundamental que o leitor
seja desafiado à entrega: “entregar-se é a primeira demanda que qualquer
trabalho de arte nos faz. Olhar. Escutar. Receber. Tirarmos a nós mesmos do
caminho” (LEWIS, 2009, p. 23).

A educação literária por meio


da experiência com o ato de ler

Feitas essas considerações, apresentamos uma proposta de educação


literária em que esses apontamentos teóricos feitos até aqui entram em
confluência e geram uma proposta de (trans)formação do leitor literário. Na
educação literária, pressupõe-se que a atividade de leitura é a base revelado-
ra da formação, ou seja, não há modelos pré-estabelecidos para o trabalho
com o livro, pelo contrário, chamamos a atenção para a leitura em operação
como um evento que aponta caminhos e propõe direções. Mas para que isso
aconteça levamos em consideração alguns aspectos.
O primeiro aspecto a ser considerado é que a educação literária evoca
um mediador de leitura que tenha inserção na natureza do texto literário
(conhecimento e arte – Logos e Poiema). Nosso foco não é definir o media-
dor ou discutir quais são as habilidades necessárias para ele; o que enfatiza-
mos, aqui, é que um mediador eficaz é aquele que sabe identificar o Logos e
o Poiema de um texto literário e, consequentemente, tem prazer na leitura
literária. Então, esse primeiro aspecto remete à questão do prazer da leitura
por parte do mediador; trata-se do gosto pela leitura; da leitura de dentro
para fora, da percepção do leitor.
Assim, não entra em discussão a questão do que se lê, mas sim de como
se lê. Um leitor que tenha seu gosto bem formado terá condições de julgar

314
por si o Logos e o Poiema de uma determinada obra. Por isso, para a (trans)
formação do leitor é importante trabalhar seu gosto, apurá-lo, aperfeiçoá-lo,
e “a maneira verdadeira de apurar o gosto das pessoas não é denegrir seus
atuais favoritos, mas ensiná-las a apreciar algo melhor” (LEWIS, 2009, p. 99).
O segundo aspecto a ser considerado é que a formação do gosto da leitura
literária envolve a relação leitor - literatura, leitor - prazer, e leitor - imagem.
Relacionar todos esses eixos é fundamental para que a formação do leitor
ocorra de maneira eficaz.
Esse tipo de formação do leitor volta-se para a leitura em atividade, e os
critérios de avaliação são justamente: O leitor gostou? Sim? Não? Por quê?
De que maneira o leitor leu? O leitor teve a imaginação despertada? Note-
mos que essas perguntas remetem à experiência de ler como reveladora de
caminhos para a educação, por isso:
[...] caberia, então, promover uma pedagogia da li-
teratura que desse vazão à imaginação dos alunos e ao
livre exercício de sua sensibilidade para impulsioná-los
a ser recriadores dos textos [...] talvez por isso continue
sendo mais fácil ensinar a repetir, a memorizar e a copiar
da enciclopédia do que promover o surgimento da voz
própria de cada aluno (REYES, 2012, p. 27)

Portanto, é imprescindível que elaboremos propostas para que o estudan-


te tenha condições de pensar e de sentir por si mesmo garantindo, assim,
autoria na percepção da natureza da literatura.
Por fim, destacamos que uma proposta de educação literária necessita
teorizar a partir da experiência de leitura. É certo que o conhecimento teórico
é fundamental para qualquer atividade, e o nosso argumento não descarta
nenhuma contribuição teórica. Nossa atenção é para a experiência do leitor
com o texto de maneira que os resultados possíveis (“gostei”, “não gostei”,
“tanto faz”, etc) não sejam desprezados, pelo contrário passem a ser objeto
de investigação para o desenho das atitudes do leitor diante do texto. Nesse
sentido, Lewis (2009, p. 93) destaca que o livro na estante é só potencial, e é
preciso que ocorra a atividade texto-leitor para que se pense a formação do
leitor pela experiência.

315
Assim sendo, a educação literária nada mais é do que a literatura em ope-
ração provocando experiência no leitor. Por meio dessa educação literária,
podemos verificar conexões entre linguagem e vida, e ver que a experiência
com a literatura pode ser “multiplicada, prolongada e também protegida”
(LEWIS, 2009, p. 94). A experiência é, de fato, um caminho seguro para a
elaboração de caminhos para a formação do leitor: “precisamos de um siste-
ma que nos tire da abstração por estar centrado na literatura em operação”
(LEWIS, 2009, p. 94).

Considerações Finais

Com base nas discussões aqui veiculadas, podemos elencar algumas


considerações com o objetivo de avaliar as práticas de formação do leitor
literário e fornecer apontamentos que servirão de índices que sinalizam
mudanças na educação literária.
Um primeiro aspecto a ser considerado está relacionado à formação do
leitor. Nessa temática, destacamos que, na formação do leitor, deve haver
um trabalho de mediação que leve o leitor infantil ou juvenil a adquirir o
prazer e o gosto pela leitura literária. Para isso, não se pode negligenciar a
experiência do leitor com o texto. A verdadeira formação acontece na ativi-
dade de leitura literária, por isso há a necessidade de se teorizar a partir da
experiência. Nesse sentido, cabe ao mediador da leitura percepção e quietude
para avaliar as reações positivas ou negativas da experiência com o ato de
ler, pois serão esses resultados das atividades que servirão de matéria inves-
tigativa nos laboratórios de leitura.
Em decorrência da formação pela experiência, é imprescindível considerar
também que, pelo fato de trabalhar-se com o gosto pela leitura, a experiên-
cia com a atividade leitora forja no leitor o senso crítico e a capacidade de
esboçar opiniões. Assim, a formação pela experiência proporciona não só a
leitura do texto, mas também a leitura do outro e do mundo, de forma crítica.
O contrário do que se propõe neste artigo seria a formação de leitores que
usam o livro, apenas. Essa perspectiva utilitarista da arte literária empobrece

316
a atividade com o texto tornando o leitor apenas um consumidor de livro,
mas a formação pela experiência gera “devoradores” de textos.
Ainda no foco da experiência, cumpre-nos destacar que ela não envolve
apenas a relação texto-leitor. Por meio da experiência, é possível a troca de
impressões com o ato de ler. Assim, temos, a médio prazo, a constituição de
um núcleo de leitores, ou seja, a formação pela experiência viabiliza a troca
entre leitor-leitor. Acreditamos, então, que o ato de ler também pode ser uma
experiência dialógica e não apenas monológica.
Uma vez que enfatizamos o valor da experiência na formação do leitor,
temos como pressuposto o fato de o leitor possuir acesso ao livro. O acesso
ao livro é fundamental para que a experiência aconteça, afinal livros na es-
tante são só potência, não descoberta.

317
Referências

CANDIDO, Antonio. A Literatura e a Formação do Homem. Revista do Depar-


tamento de Teoria Literária, ISBN 103-183X, Campinas: Unicamp, 1999.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura Infantil: Teoria, Análise, Didática São
Paulo: Moderna, 2000.
COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. São Paulo:
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GLOSSÁRIO DO CEALE Disponível em: http://www.ceale.fae.ufmg.br/app/
webroot/glossarioceale/ Acesso em 22/01/2019
GÓES, Lúcia Pimentel. Olhar de Descoberta. 2.ed., São Paulo: Paulinas, 2005.
LAJOLO, Marisa. A literatura no reino da linguagem. In: REYES, Yolanda.
Ler e brincar, tecer e cantar. Literatura, escrita e educação. São Paulo:
Pulo do Gato, 2012.
REYES, Yolanda. Ler e brincar, tecer e cantar. Literatura, escrita e educação.
São Paulo: Pulo do Gato, 2012.
LEWIS, Clives Staples. Um experimento na crítica literária. São Paulo: Unesp,
2009.
______. Sobre histórias. São Paulo: Thomas Nelson, 2018.
PALO, M. J.; OLIVEIRA, M. R. Literatura Infantil Voz de Criança. 4.ed., São
Paulo: Ática, 2006.
POUND, Ezra. Abc da Literatura 11.ed., São Paulo: Cultrix, 2006.
PROENÇA FILHO, Domício. A linguagem literária São Paulo: Ática, 2007.

318
a
Escrever poesia [durante]
Auschwitz : Concepções do universo
concentracionário nos poemas das
crianças de Terezín
Luciane Bonace Lopes Fernandes

Em um ensaio intitulado Crítica à cultura e à sociedade, de 1949, o filó-


sofo alemão Theodor Adorno publicou uma frase que engendrou diversas
polêmicas e debates no campo da literatura: “[...] escrever um poema após
Auschwitz é um ato bárbaro [...]”. Sua recepção inicial levou muitos a com-
preender a iminente expressão de uma condenação à produção de poesia em
face dos horrores vivenciados nos campos de concentração e de sua absurda
e quase irreal desumanidade. Entretanto, essa primeira impressão pode ser
enganosa, visto que, em seus escritos sobre lírica, a poesia desempenharia
papel fundamental na oposição e crítica à hostilidade, violência e desumani-
zação promovidas pelo capitalismo industrial e pelo autoritarismo fascista.
Para o autor, a constituição da subjetividade é uma questão embasada histo-
ricamente nessas condições – hostis e desumanas –, que marcam o mundo
pós-revolução industrial, com especial atenção à ascensão de governos tota-
litários no decorrer do século XX. “Sua concepção de lírica, fundamentada
sociologicamente como um problema histórico, focalizado como crítica da
reificação e da opressão, permite examinar poemas líricos como obras do-
tadas de importante impacto político” e reflexo da experiência política de
seu tempo (GINZBURG, 2003).
Para Adorno, um exemplo paradigmático da poesia como crítica à barbárie
encontra-se no antagonismo expresso na metáfora “leite negro” construída

319
pelo poeta Paul Celan em seu poema “Fuga da morte”. O leite, que serve de
alimento desde o nascimento, aqui é o elemento que personifica a morte
[“Leite negro da madrugada nós te bebemos à noite/ nós te bebemos de ma-
nhã e ao meio-dia nós te bebemos à tardinha/ nós bebemos e bebemos”1].
Outros antagonismos estão expressos nas personagens do poema – o homem
de olhos azuis que habita a casa, brinca com víboras, assovia para seus cães e
escreve à Alemanha;2 Margarete, de cabelos dourados; e Sulamita, de cabelos
cinzentos – que fazem alusão, respectivamente, à cultura alemã e aos judeus
assassinados: “Sulamita, a vítima, de cabelos de cinzas,3 a musa dos cantos
de Salomão, que foi imolada no crematório” (HEISE, 2008, p. 178). Esses e
outros antagonismos4 e diversas metáforas5 conferem ao poema o potencial
de “expressar aquilo que sempre ficará aquém da realidade”, mas que, em
Celan, encontra um caminho para a representação da catástrofe perpetrada
nos campos nazistas (HEISE, 2008, p. 179).
Para Arendt, os campos de concentração se encarregaram da produção
de homens e mulheres inanimados, quase impossibilitados do retorno à
vida psicológica e emocional anteriores. Os nazistas trabalharam para o
assassinato do sujeito de direito, ou seja, para a destruição dos direitos de
homens, mulheres e crianças, como pré-requisito para sua dominação. O
passo seguinte foi “o assassinato da pessoa moral no homem”, a corrupção
de toda solidariedade humana (ARENDT, 2017, p. 297).
Segundo a autora, o inferno seria encarnado pelos campos nazistas, no
qual “o todo da vida foi completa e sistematicamente organizado tendo em
vista o maior tormento possível” (ARENDT, 2017, p. 290). Gagnebin (2003)
descreve a violação de dois corpos – Leib e Körper –, sendo o primeiro uma
corporeidade reduzida à matéria sofredora e passiva, que foi objeto de inú-
meras experiências nos campos nazistas; e o segundo, respectivamente, a
configuração física singular de cada sujeito individual, ou seja, sua identi-
dade e subjetividade. Dessa forma, o sistema concentracionário se encarre-
gou de destruir matéria e espírito, com o intuito de despersonalização6 ou
desumanização, para que fosse possível executar suas mortes, sem nenhum
processo de identificação dos carrascos em relação aos prisioneiros. Era
necessário que esses, primeiramente, fossem transformados em bestas, em
animais, “para condicionar àqueles que, deviam executar materialmente as

320
operações. Para tornar-lhes possível fazer o que faziam” (LEVI, 2004, p. 108).
Transformando os prisioneiros em seres sem saúde física e vida emocional,
psicológica e moral seria mais fácil não atribuir nenhuma credibilidade aos
testemunhos dos sobreviventes (se houvesse sobreviventes, pois o plano era
de extermínio completo): “quando não houver mais nenhuma testemunha,
não haverá testemunhos” (ROUSSET apud ARENDT, 2017, p. 297).
A partir das questões acima colocadas referentes à extrema crueldade per-
petrada nos campos de concentração nazistas, à relevância da produção de
testemunhos sobre sua existência e veracidade, durante ou após os eventos, e
à importância da lírica na crítica à barbárie e na expressão da catástrofe, este
artigo propõe apresentar e discutir brevemente7 cinco poemas realizados por
crianças8 e jovens durante os eventos da Segunda Guerra Mundial no campo de
concentração nazista de Terezín, localizado na atual República Tcheca.9 Escri-
tos originalmente em língua tcheca e aqui apresentados com tradução para a
língua portuguesa, esses poemas vêm corroborar os estudos e pesquisas sobre
o tema, auxiliando a construção de outros conhecimentos sobre as percepções
de crianças e jovens em relação ao universo concentracionário. Consideramos
o conjunto de poemas produzidos pelas crianças em Terezín um importante
registro histórico na medida em que são a expressão poética das experiências
individuais e compartilhadas de crianças e jovens que passaram pela dura
realidade dos campos nazistas. Nascem da tentativa de conciliar a experiência
humana e a linguagem verbal, refletindo aspectos do universo concentracionário
em toda sua miséria e horror, cumprindo, assim, seu papel social de denúncia
e rememoração dos mortos. Paradoxalmente, esses poemas testemunham, por
meio da livre expressão artística, a falta de liberdade dos sujeitos da experiência.
De acordo com Volavková (1978), foram entregues ao Museu Judaico
Estadual, atual Museu Judeu de Praga, em 03 de novembro de 1952 pela
Sra. Anna Flachová, sobrevivente de Terezín, 42 poemas manuscritos e 24
poemas datilografados que eram propriedade de seu marido, o Sr. Viteslav
Hanuš, que havia sido professor no alojamento L417 (para meninos entre 8 e
16 anos). Posteriormente, em 1955, uma cópia do poema “Strach” foi entregue
ao Museu pelo Dr. R. Feder.
De forma geral, os poemas apresentam imagens, metáforas, rimas, ques-
tionamentos, reflexões e caracterizam-se por abordar o universo concen-

321
tracionário em todo seu sofrimento, irracionalidade e horror. Chama-nos
atenção a ampla consciência do meio e grande sensibilidade expressiva dos
autores, apesar da pouca idade.
Como trata-se de pesquisa de caráter teórico, a metodologia se pautou
na identificação e leitura de material bibliográfico, atuando criticamente
sobre ele. Compreendeu também a análise de fontes de outras naturezas,
como entrevistas, material audiovisual e pesquisa ao site do Museu Judeu de
Praga e à base de dados de vítimas do Holocausto na antiga Tchecoslováquia.

O universo concentracionário como ponto


de partida para a criação poética infantil

Os horrores vivenciados em campos de concentração e guetos durante


a Segunda Guerra Mundial foram ponto de partida para a criação artística
em diversas linguagens, como nos mostram os estudos realizados por dife-
rentes pesquisadores.10 Em Terezín, as iniciativas artísticas e culturais fo-
ram amplamente fomentadas pelos líderes judaicos e apoiadas por artistas,
compositores, músicos, atores, diretores, escritores, cientistas e professores
que ali viveram. As crianças foram incentivadas a expressarem-se por meio
da música, do teatro, da poesia e das artes visuais. Essas, por sua vez, não
buscaram apenas representar o sofrimento, mas antes, sobreviver a ele. Ao
realizarem registros poéticos das coisas observadas e vivenciadas, por meio de
um olhar profundo e sensível, as crianças desenvolveram um modo singular
de falar de si próprias, de suas angústias, medos, inquietações e frustrações.
Ao travarmos diálogo com o corpus, observamos que:
[...] aspectos da experiência concentracionária foram
expressos por analogias, por intermédio de diferentes
imagens, metáforas, aproximações e elaborações que ul-
trapassam os limites do “observar” para invadir a região
do “sentir”, revelando, invariavelmente, um eu lírico que
sofre. É possível perceber nestes poemas um “conheci-

322
mento sensorial”, [lógico e afetivo] e a aguçada sensibi-
lidade das crianças em relação ao contexto imediato e
à cultura (FERNANDES, 2018, p. 25, itálico do autor).

O campo de Terezín foi uma estrutura única no sistema concentracionário.


Se configurou como paradoxo da criação e da destruição, ambas convivendo
juntas entre paredes imundas e arames farpados.
Terezín foi um campo transitório para judeus do Protetorado da Boêmia e
da Morávia. Construída em 1780 pelo Imperador da Áustria José II, a cidade-
-fortaleza tinha o intuito de abrigar seu exército e protegê-lo. Com excelentes
fortificações, muros altos, diversas edificações militares – rapidamente trans-
formadas em alojamentos, separados por sexo e idade, no caso das crianças
–, poucas entradas/saídas e estando localizada próxima à malha ferroviária
e à 60 km de Praga, a cidade de Terezín mostrou-se o local propício para o
rápido estabelecimento de um campo de transição:11 de lá, os prisioneiros,
todos eles, seriam enviados para os campos do Leste, principalmente para
Auschwitz, Chelmno, Majdanek e Treblinka, o que de fato ocorreu com grande
parte deles. Mesmo Terezín não possuindo câmaras de gás,12 a morte era o
destino inevitável de todos os prisioneiros. O momento da deportação era
apenas uma questão logística e burocrática.
Na tentativa de abafar os rumores de que Hitler estaria exterminando
o povo judeu durante a Segunda Guerra, o campo de Terezín foi escolhido
pelos nazistas para receber a visita de uma delegação composta pelo Comi-
tê Internacional da Cruz Vermelha e por representantes da Dinamarca e da
Suécia e fornecer-lhes um álibi. Transformações significativas na aparência
exterior do campo iniciaram-se na primavera de 1943. Notícias sobre a au-
tonomia administrativa judaica no campo foram divulgadas diariamente e
um banco, também administrado pelos judeus, foi inaugurado. Esse banco
emitia notas especiais sem valor algum.
Durante todo o verão daquele ano o campo passou por um processo de
embelezamento, preparando-se para receber a delegação que, em hipótese
alguma, poderia presenciar a real situação dos prisioneiros. A ideia era es-
conder a realidade atrás de uma fachada reluzente. Os edifícios e ruas foram
limpos pelos prisioneiros e a praça central recebeu um belo gramado e can-

323
teiros de flores. Bancos, para o descanso principalmente dos idosos, foram
instalados em diversos lugares, bem como lojas, playgrounds, berçários e
escolas. Placas nas ruas indicavam a localização dos correios, da piscina e do
café. O embelezamento também chegou ao interior de alguns dormitórios e
alojamentos, especialmente aqueles que deveriam ser visitados pelo Comitê
da Cruz Vermelha. As saudações compulsórias aos oficiais nazistas foram
abolidas e a área restrita aos judeus ampliada.
Para solucionar o problema da superlotação, em maio de 1944, 7.500 pri-
sioneiros foram deportados para Auschwitz – doentes, especialmente as 1.200
pessoas contaminadas com tuberculose, portadores de deficiências, órfãos,
prisioneiros acometidos de desnutrição, ou qualquer um que ameaçasse causar
má impressão. Um plano detalhado foi traçado para que nenhum imprevisto
ou erro pudesse desmascarar a farsa criada pelos nazistas. A rota que seria
percorrida pela delegação foi inspecionada diversas vezes. Aos prisioneiros
foram dadas ordens de colocar suas melhores roupas. A programação das
atividades dava ao campo ares de normalidade.
A delegação, composta por três membros – dois dinamarqueses, Frant
Hvass e Juel Hennigsen, e um funcionário do Comitê Internacional de Cruz
Vermelha –, acompanhados por um número considerável de funcionários
nazistas do alto escalão, representantes da Cruz Vermelha alemã e pelo chefe
da liderança judaica em Terezín, o Dr. Paul Eppstein, visitou o campo em 23
de junho de 1944.
Na sede da administração judaica, o Dr. Paul Eppstein forneceu aos visi-
tantes falsos dados referentes aos habitantes do gueto, às taxas de mortalidade,
à distribuição de comida, entre outras coisas. A visita percorreu pontos do
campo como a lavandeira, os refeitórios, os alojamentos dos trabalhadores
dinamarqueses e dos prisioneiros proeminentes, padarias, hospital infan-
til, farmácia, banco, correios, lojas, açougues e outras instituições fictícias
criadas especialmente para a ocasião. “A velha escola, que ficava próxima
do escritório de engenharia e que até então servira de hospital, foi pintada
e recebeu carteiras escolares”. Um aviso foi afixado na porta: “Fechada para
férias”. Em pouco tempo, as vitrines das lojas estavam cheias de carne, frutas,
legumes, linguiça, mas aos prisioneiros não era permitido consumir nada
(BRENNER, 2014, p. 293-294).

324
A visita incluiu um almoço e uma apresentação da ópera Brundibár,13
ensaiada e executada pelas crianças do campo. No total, a visita durou cerca
de 8 horas. O relatório dos três membros da delegação foi positivo em rela-
ção ao tratamento dado aos judeus pelos nazistas: “ali estavam sentadas as
pessoas especialmente escolhidas para a encenação – homens, mulheres e
crianças cujos rostos não estampavam as agruras da vida no gueto” (BREN-
NER, 2014, p. 302).
O processo de embelezamento14 estendeu-se por mais algumas semanas
depois da visita da delegação, quando um macabro filme15 foi produzido no
campo, entre agosto e setembro, outra mentira encenada sob forte ameaça
nazista. O filme nunca chegou a ser exibido em público. Em seus últimos
meses de existência, o campo de Terezín foi visitado por outros estrangeiros.
Em outubro de 1944, 18.000 prisioneiros foram deportados e assassinados
em Auschwitz, entre eles Friedl Dicker-Brandeis, professora que ensinou
centenas de crianças a pintar e desenhar clandestinamente, deportada dia
6 e assassinada nas câmaras de gás dia 9, e o compositor da ópera Brundi-
bár, Hans Krása, deportado dia 17. Em abril de 1945, a delegação do Comitê
Internacional da Cruz Vermelha realizou outra visita à Terezín, novamente
com relatório positivo em relação à situação dos prisioneiros.

Tudo depende do ponto de vista

I.

Terezín agora em plena beleza,


aparece nos teus olhos
e de todas as ruas ressoa
o barulho de passos humanos.

Então, assim eu vejo,


o gueto de Terezín,
este quilômetro quadrado,
Separado do mundo.

325
II.

Porém, a morte está no mundo inteiro,


Ceifa toda gente,
mesmo aqueles que sempre têm
seus narizes empinados para o alto.

A justiça também
o mundo inteiro governa
e dos homens pobres,
transforma o bocado amargo em doce.

Miroslav Košek foi uma das milhares de crianças deportadas para Tere-
zín durante a Segunda Guerra Mundial. De acordo com Fernandes (2018),
Miroslav nasceu em 30 de março de 1932, em Hořelice, na Boêmia, e foi de-
portado de Kladno para Terezín em 26 de fevereiro de 1942, aos 9 anos e 11
meses, onde permaneceu até os 12 anos e 7 meses, quando foi deportado e
morto em Auschwitz, em outubro de 1944. Esses dados, retirados da base de
dados de vítimas do Holocausto na antiga Tchecoslováquia, e seus poemas16
são as únicas informações que encontramos sobre essa criança.
Embelezamento do campo e desumanização dos prisioneiros eram pro-
cessos que ocorriam em paralelo. A farsa apresentada aos integrantes do
Comitê Internacional da Cruz Vermelha de forma alguma convenceu as
crianças pois, por mais que os educadores e cuidadores tenham trabalhado
para minorar seu sofrimento, “a vida em Terezín as penetrava”17 e consumia,
aos poucos, sua saúde e esperanças.
Diferentemente do cenário encontrado pelo Comitê Internacional da
Cruz Vermelha, Terezín, assim como outras centenas de campos e guetos,
era um lugar imundo, de fome e de doenças, tanto que, das aproximadamente
144.000 pessoas que por lá passaram, cerca de 33.000 morreram de fome ou
de doenças. Os alojamentos eram sujos, extremamente frios no inverno e

326
insuportavelmente quentes no verão. Com roupas inapropriadas, as crianças
em Terezín sofreram ao enfrentar o frio europeu durante os longos invernos
em que lá estiveram aprisionadas.

Primavera

I.

Chegou a famosa primavera,


chegou com grande pressa,
e em todo o mundo,
respira-se um fôlego quente.

II.

O campo verdeja,
O pomar acorda,
e já desapareceu o inverno
e fugiu o frio.

III.

Mesmo as flores estão se abrindo,


os passarinhos cantando.
A primavera com poder governa,
na floresta – no campo.

A falta de higiene acarretou a proliferação de inúmeras doenças,18 entre as


mais frequentes a gastroenterite,19 doença crônica do campo e a maior causa
de morte. Havia pouca água para a higiene pessoal e as crianças tinham que
conviver tanto com o mau cheiro dos lares quanto com o de umas das outras.
Os registros de julho de 1943, escritos pelo Dr. Rudolf Klein, médico res-

327
ponsável pelo alojamento L417, nos dão pistas da situação em Terezín:
A partir de julho de 1942 até o final de 1942 [...] os
abrigos passaram por uma forte epidemia de escarlatina,
[...] em agosto e no início do outono houve uma epide-
mia de doenças diarreicas, seguidas por um aumento da
incidência de icterícia infecciosa, enquanto o sarampo,
a caxumba, a rubéola, a catapora e a coqueluche não
eram tão preocupantes para nós e para os pacientes,
exceto em casos complicados de sarampo, que sempre
apresentavam uma evolução mais grave, mas que feliz-
mente foram curados. Houve muitos casos de pneumonia
e cirurgia por otite média.
A febre tifoide foi motivo de grande preocupação
no final de janeiro de 1943. Em dois meses, cerca de 50
crianças adoeceram, algumas gravemente.
Quanto aos casos diários de doença, houve períodos
em que 30 a 35% das crianças estavam doentes. Isso era
um fardo pesado para nós, uma vez que a pequena equi-
pe de enfermagem também adoecia ao mesmo tempo
(BRENNER, 2014, p. 69).

De acordo com Fernandes (2018), em 1944 houve em Terezín uma epide-


mia de tifo, moléstia transmitida por piolhos, pulgas e carrapatos, acarretada
pela chegada ao campo de cerca de 13.000 prisioneiros retornados do Leste
europeu, alguns infectados. A doença rapidamente se espalhou, causando
grande temor.
Elie Wiesel (2001) declarou que mais forte que a fome e o frio era o medo.
Para Fernandes (2015), os habitantes de Terezín também vivenciaram um
profundo medo proveniente da ameaça constante de deportação20 para os
campos do Leste europeu. Mesmo sendo um lugar ruim, Terezín ainda era
melhor que os campos de extermínio.21Eva Picková expressou seu medo e
desespero no poema Strach. Segundo Fernandes (2018), Eva nasceu em 15
de maio de 1929 e foi deportada de Nymburk para Terezín em 16 de abril de
1942. A criança foi novamente deportada em 18 de dezembro de 1943, sendo
enviada para Auschwitz, lugar onde foi assassinada. Por essas datas e pela

328
informação que consta no corpo do poema original – “Eva Picková, 12 anos,
Nymburk” –, pressupomos que este poema tenha sido escrito logo que Eva
chegou em Terezín, antes de seu aniversário de 13 anos.

Medo

Hoje um novo temor abraça o gueto.


uma doença ruim espalha o terror.
A morte empunhando sua foice fria,
Matando suas vítimas – que horror.

Hoje o coração dos pais bate com medo


E mães curvam a cabeça sobre a palma das mãos.
Agora a víbora sufoca as crianças com tifo!
E delas cobra um imposto.

Hoje, mesmo que meu coração ainda pulse.


Minhas companheiras irão para outro mundo
E ninguém sabe, se não seria melhor.
Em vez de ver isso – melhor morrer agora.

Não – queremos, pois, oh Deus, viver.


Nós não queremos diminuir nosso número.
Nós queremos tornar nosso mundo melhor,
Não podemos morrer – nós queremos trabalhar.

Desde a fundação do campo, o Conselho Judaico havia decidido que os


idosos deveriam abdicar de parte de sua ração em favor das crianças e jo-
vens. Dessa forma, muitos idosos morreram de fome em Terezín: “aos velhos
são dadas quantidades menores e eles rondam as latas de lixo em busca de
comida” (BOSI, 2003, p. 88).

329
Sim, sim, isto é assim

I.

No assim chamado pomar de Terezín,


sentado está um avô,
em algum lugar do jardim.
Barba tem no seu queixo,
e na cabeça um solidéu.

II.

Pão duro nos dentes tritura,


dente tem apenas um.
Meu pobre velho tritura,
em vez de pãozinho macio, linzenzupe22
meu pobre grisalho.

Em suas memórias e reflexões sobre o universo concentracionário, Pri-


mo Levi, na obra É isto um homem?, registrou, especificamente no capítulo
“O canto de Ulisses”, sua urgência em explicar a Jean, o Pikolo do cam-
po, o que seria este “come altrui piacque”, esta “vontade superior”, presente
nos versos do Canto XXVI da Divina Comédia, de Dante Alighieri, canto
em que Ulisses narra sua morte. Ao estabelecer relações entre o universo
concentracionário e o canto dantesco,23 Levi o reelabora no interior de sua
própria experiência pessoal, no momento em que a vive, e encontra signifi-
cado para seu sofrimento,24 assim como Ulisses, que compreende e expressa
seu destino a seus companheiros por meio do canto. Levi se identifica com
o herói grego e com a possibilidade de ir além dos limites impostos, não
por Deus, como no caso de Ulisses, mas pelos próprios homens: “enquanto
Auschwitz representa a punição aplicada pela Alemanha nazista ao povo

330
judeu por sua audácia intelectual [...], o naufrágio de Ulisses é a punição de
um Deus que não tolera a audácia do homem” (MAURO, 2012, p. 47). Para
Levi, “ultrapassar os limites é a mensagem que diz respeito a todos os homens”.
Dessa forma, Levi compreende seu “castigo” como a imposição de “uma
vontade superior” que rompe com a racionalidade do mundo e transforma
a condição do homem em tempos de guerra. O poema Člověk míní, Pánbůh
měni escrito pelo trio Koléba expressa, de alguma forma, esse “castigo” e
evoca, já no título, a distância entre aquilo que se espera e a realidade con-
centracionária comandada por “uma vontade superior” (MAURO, 2012, p. 47).

O homem planeja, Deus muda

I.

Quem estava doente em Praga,


quem era rico em Praga,
em Terezín é um pobre homem,
seu corpo está sempre ferido.

II.

Quem outrora era resistente,


Suporta tudo aqui.
Quem era acostumado a ter servos,
Irá descer à sepultura.

Primo Levi afirma que do rígido sistema concentracionário resultam


duas categorias de homens bastante distintas: a dos que se salvam e a dos
que afundam. Os que afundam, os afogados, são aqueles que sucumbem a
toda norma do campo, que estão fadados à seleção ou à morte por exaustão.
Não compreendem sua condição, não lutam por uma porção extra de ração
e nem se agarram a qualquer tipo de esperança ou sentido que possa reno-

331
var suas forças dia após dia. Apenas obedecem a essa força bestial, que os
oprime e destrói.
A sua vida é curta, mas seu número é imenso; são
eles, os “muçulmanos”, os submersos, são eles a força
do Campo: a multidão anônima, continuamente reno-
vada e sempre igual, dos não-homens que marcham e
se esforçam em silêncio; já se apagou neles a centelha
divina, já estão tão vazios, que nem podem realmente
sofrer. Hesita-se em chamá-los vivos; hesita-se em cha-
mar “morte” à sua morte, que eles já nem temem, por-
que estão esgotados demais para poder compreendê-la
(LEVI, 1998, p. 91).

Apesar da fome, das doenças, da ausência de espaço e liberdade de ir e


vir e das constantes deportações, o campo de Terezín ficou conhecido por
sua rica vida cultural: havia palestras, orquestras, grupos de jazz, produções
de teatro para adultos e crianças, performances musicais, leituras de poesia,
jornais e revistas feitos a mão, escolas e aulas de arte. Em Terezín, as crianças
enfrentaram o processo de desumanização utilizando a arte como ferramenta.
Os poemas produzidos por elas se configuram como luta contra a imposição
de uma apatia generalizada, evocada pela figura do muçulmano descrita por
Levi (1988) e (2004), e contra o processo de desumanização. Além de fer-
ramenta de sobrevivência física e resistência cultural e espiritual diante da
barbárie nazista, a arte em Terezín serviu também como um testemunho da
vida cotidiana do gueto e como espaço simbólico de reflexão sobre a condição
do homem, buscando respostas a questões existenciais.

Mar aberto, mar aberto: considerações finais

Para expressar algo nunca visto e sem precedentes na História, em Terezín


as crianças lançaram mão da poesia como forma de aproximar a linguagem
possível,25 adquirida até aquele momento, da experiência quase impossível.
Essa linguagem, por outro lado, só poderia “enfrentar o ‘real’ equipada com

332
a própria imaginação: por assim dizer, só com a arte a intraduzibilidade pode
ser desafiada – mas nunca totalmente submetida” (SELIGMANN-SILVA,
2003, p. 46-47).
Assim como Ulisses e Levi, as crianças em Terezín lançaram-se em “mar
aberto”, “símbolo da liberdade reconquistada por meio da poesia”, sendo guia-
das para além dos limites dos arames farpados, em busca de autoconheci-
mento e de significado para a experiência concentracionária. Além do que,
assim como “as palavras do viajante de Ítaca surgem como uma mensagem
dirigida a todos aqueles que lutam para não serem reduzidos à condição de
bruti, de animais”, a saber (MAURO, 2012, p. 45): “relembrai vossa origem/
vossa essência;/ vós nãos fostes criados para bichos,/ e sim para o valor e a
experiência”, em Terezín a poesia ajudou as crianças a recordarem sua huma-
nidade, sua origem, seus valores e cultura e a, por um momento, se esquecerem
de quem eram e de onde estavam (LEVI, 1988, p. 116, nota de rodapé).26Além
disso, escrever poesia durante Auschwitz gerou um registro autobiográfico
das crianças, fazendo com que nós, hoje, pudéssemos nos aproximar de suas
impressões e percepções sobre o mundo e sobre si mesmas. Sem esse registro,
as crianças estariam fadadas a destino pior que o de Hurbinek,27 cuja pequena
existência foi testemunhada unicamente por Levi: teríamos apenas nomes,
datas de nascimento, deportação e morte. Por meio da poesia, as crianças
foram deslocadas “da diminuição e do anonimato do número inscrito a que
[foram reduzidas], para a forma humana que lhes foi roubada”, do universo
macro de 1 milhão e meio28 de crianças assassinadas durante a Shoá para o
universo intimista de seus olhares e pensamentos (WALDMAN, 2008, p. 283).
Reconhecemos que esses e outros poemas escritos em Terezín não só
fornecem uma visão geral da situação das crianças durante a guerra, mas
delineiam um panorama de experiências individuais que, ao mesmo tempo,
testemunham sobre uma coletividade, complementando e enriquecendo os
fatos históricos. Reconhecemos também o valor artístico, cultural e histórico
desses poemas, e enxergamos nas crianças o grande valor dessa produção,
não apenas em sua capacidade criadora, mas na coragem de se expressarem
em meio às mais adversas condições.

333
Notas

1 . Tradução de Ricardo Domeneck. Disponível em: https://www.escritas.org/


pt/t/47811/fuga-da-morte. Acesso em 28 jun. 2019.
2 . “ele escreve e posta-se diante da casa estrelas chamejam ele assovia/ [quer
seus cães a seu lado/ ele assovia quer seus judeus à sua frente faz cavarem na
terra uma cova / ele ordena desferi os violinos agora chacoalhemos os esquele-
tos”. Tradução de Ricardo Domeneck. Disponível em: https://www.escritas.org/
pt/t/47811/fuga-da-morte. Acesso em 28 jun. 2019.
3 . Diferentemente da tradução de Ricardo Domeneck, Eloá Heise (2008) utiliza
a expressão “cabelos de cinzas”.
4 . Para Heise (2008) “[o] poema ‘Todesfuge’ (Fuga da Morte) torna-se impac-
tante, desde o título, por colocar, lado a lado, o horror e o humano, o execrável e
o belo. O poema tem como tema a morte, a morte em campos de concentração,
mas, paralelamente essa morte é descrita sob forma de música, uma peça de
origem barroca, a fuga”. p. 177.
5 . Alguns versos do poema fazem alusão à morte nas câmaras de gás e posterior
extermínio dos corpos nos fornos crematórios, cuja tarefa de encaminhar as víti-
mas às câmaras, e posteriormente retirar seus corpos sem vida e colocá-los nos
fornos crematórios, era executada pelos próprios prisioneiros, por um comando
especial apartado do restante: “Ele grita pás mais fundo no miolo da terra vós
e vós cantai e tocai/ ele alcança o ferro na cintura agita-o nos ares seus olhos
são azuis/ mais fundo com as pás mais alto com os violinos chacoalhemos/ [os
esqueletos [...]/ ele grita desferi azuis os violinos e escalai como fumaça aos
ares/ assim tereis uma cova nas nuvens onde podeis espreguiçar-vos”. Tradu-
ção de Ricardo Domeneck. Disponível em https://www.escritas.org/pt/t/47811/
fuga-da-morte. Acesso em 28 jun. 2019.
O trecho, ironicamente, também faz alusão à forma incômoda como os prisio-
neiros dormiam, dividindo os leitos dos beliches uns com os outros.
6 . Termo empregado por Bruno Bettelheim e adotado por Todorov em sua obra
Diante do extremo (2017).
7 . Análises destes poemas estão em FERNANDES, Luciane Bonace Lopes. Con-
cepções do universo concentracionário: diálogos entre os poemas e desenhos
das crianças de Terezín. 2018, 127 f. + anexos. Relatório Final (Pós-Doutorado

334
em Metodologia do Ensino e Educação Comparada) Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo, São Paulo.
8 . De acordo com André (2018), os estudos sobre o Holocausto consideram
como crianças todos os indivíduos abaixo de 18 anos de idade, não raro 19 anos.
Os estudos sobre a produção artística em Terezín também segue esse padrão,
sendo que é comum encontrarmos na bibliografia sobre o campo referências à
produção das “crianças de Terezín”. Para este trabalho optamos por utilizar os
termos “crianças” e “jovens”, de acordo com o contexto e a faixa etária.
9  . Este artigo apresenta parte da pesquisa de pós-doutorado realizada entre 2018
e 2019 no Departamento de Letras Orientais - Hebraico da Faculdade de Filoso-
fia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. O relatório final
de pós-doutorado apresenta a tradução de dez poemas e maior detalhamento
da metodologia de pesquisa aplicada.
10 . Como exemplo, temos: FERNANDES, Luciane Bonace Lopes. Pelos olhos da
criança: concepções do universo concentracionário nos desenhos de Terezín. 468 f.
Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Pau-
lo. São Paulo, 2015.; FERNANDES, Luciane Bonace Lopes. Concepções do universo
concentracionário: diálogos entre os poemas e desenhos das crianças de Terezín.
2018, 127 f. + anexos Relatório Final (Pós-Doutorado em Metodologia do Ensino e
Educação Comparada) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São
Paulo; FERNANDES, Luciane B. L. Uma experiência de ensino e aprendizagem
da arte no limite da experiência humana. Encontro Nacional de pesquisadores de
Artes Plásticas, 2016, Porto Alegre; 25° Encontro da Anpap: Arte e seus espaços e/
em nosso tempo. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2016.
v. 25; LERNER, Silvia Rosa Nossek; BORGES, Sônia. A arte produzida durante o
holocausto. WebMosaica - Revista do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall, Rio
Grande do Sul, v. 4, n 1, jan/jun, 2012. Disponível em: http://www.seer.ufrgs.br/
webmosaica/article/view/31824. Acesso em abr. 2015; MARKO, Leslie Evelyn Ruth.
Teatro de Sami Feder: espaço poético de resistência nos tempos do Holocausto
(1933-1950). 2016, 414 f. Tese (Doutorado em Letrais Orientais) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo;
NAUROSKI, Silvia Aparecida. Caminho poético e a experiência do Holocausto na
obra de Rose Aüslander. 137 f. + anexos. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Fi-
losofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2008.

335
11 . Na virada do século XX, o escritor austríaco Ferdinand von Saar fez uma breve
descrição da cidade de Terezín: “[...] Pois além da praça principal, cercada por
duas fileiras de árvores, onde havia praticamente apenas edificações militares,
existiam apenas quatro ruelas. Estas seguiam no sentido dos pontos cardeais,
em direção às portas de entrada e às muralhas, e nelas localizavam-se princi-
palmente casinhas muito pequenas, quase cabanas [...] (SAAR apud KLÜGER,
p. 75). Uma descrição mais detalhada de Terezín encontra-se em FERNANDES,
Luciane Bonace Lopes. Pelos olhos da criança: concepções do universo concen-
tracionário nos desenhos de Terezín. 2015, 468 f. Tese (Doutorado em Educação)
– Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo.
12 . Câmaras de gás começaram a ser construídas no final da guerra, mas foram
implodidas pelos prisioneiros ao perceberem as intenções dos nazistas.
13 . Para mais informações sobre Brundibár, (FERNANDES, 2015).
14 . Trechos do diário de Pajík, sobrevivente de Terezín: “17 de junho de 1944:
Papai e eu andamos através de Terezín e nós nos admiramos com a relativa be-
leza dessa cidade. Quando eu penso sobre minha chegada em Terezín, e Tere-
zín naquele tempo e agora, eu concluo que houve uma tremenda mudança. Há
bancos em todo lugar, as casas estão arrumadas etc. Por outro lado, quando eu
vejo através das janelas da Kavalírka [um prédio para moradia dos anciãos], as
pessoas – os idosos, todos amontoados – a impressão correta de Terezín retorna.
Para os nazistas isto é apenas um mero detalhe”.
“21 de junho de 1944: Na sexta-feira haverá a chegada da Comissão. O que está
acontecendo, ninguém pode acreditar. Apartamentos bonitos, Epstein [o admi-
nistrador judeu] recebeu um carro, as crianças devem cantar, e nos escritórios
há o aviso: ‘Não fume durante o trabalho’, Rahm [o Comandante SS] está com-
pletamente mudado”.
“23 de junho de 1944: Este é o Dia da Comissão.... Hoje o almoço está sendo
servido entre 10:00 e 12:00. Nós temos língua, purê de batatas, cebolas e salada
de pepino. Os números dos transportes não existem, Epstein está dirigindo seu
próprio carro, etc. Há um Apell [chamada] para instruir cada pessoa sobre seu
quarto e mais algumas perguntas etc. A Comissão já está dentro. Epstein está
liderando a Comissão. As crianças devem gritar, ‘Onkel Rahm, schon wieder
Sardinen’, que significa, ‘Tio Rahm, sardinhas de novo?’. A Comissão consiste
em aproximadamente dez homens. Brundibár [a ópera infantil] está sendo

336
apresentada por todo o dia. A banda também está tocando. Haindl e Bergel, os
oficiais da SS, usam roupas de civis. Na basta [área gramada entre os muros], há
partidas [futebol] ocorrendo e todos estão esperando pela Comissão. Os entrega-
dores da padaria usam luvas. Todas as pessoas estão observando a Comissão da
Cruz Vermelha. A Comissão está no correio e é esperada na escola. Nós somos
forçados a ler. Os visitantes irão apenas ver a Sala 1” (GRUENBAUM, 2004, p.
44-45, tradução nossa).
Trecho do diário de Mísa, sobrevivente de Terezín: “Depois que o pessoal da Cruz
Vermelha foi embora, as latas de sardinhas foram tiradas de nós” (GRUENBAUM,
2004, p. 85, tradução nossa).
15 . A produção do filme coube ao diretor, dançarino, ator judeu-alemão e prisio-
neiro Kurt Gueron. A maioria do elenco, juntamente com o diretor, foi enviada
para Auschwitz e assassinada nas câmaras de gás. O nome original do filme é
Theresienstadt: Ein Dokumentarfilm aus dem judischen Siedlungsgebiet, “Te-
rezin: um documentário sobre a zona de povoamento judeu”.
16 . Os poemas de autoria individual ou compartilhada de Miroslav Košek que
encontramos na bibliografia consultada e no site do Museu Judeu de Praga são
Myška, Člověk míní, Pánbůh měni, Jak se vezme, Jaro e Jo, Jo, to je tak.
17 . Das anotações de Jirí Weil, publicadas em: HRIBKOVÁ, Hana. Jirí Weil: a
scientist and initiator of exhibitions of children’s drawings from Terezín. Cen-
tro de Estudo do Holocausto e da Literatura Judaica. Faculdade de Filosofia da
Charles University de Praga, República Checa. [Online]. Disponível em http://
sites.ff.cuni.cz/holokaust/wp-content/uploads/sites/122/2013/11/hana-hrib-
kova-Jirí-weil-a-scientist-and-initiator-of-exhibitions.pdf. Acesso em jul. 2017.
Tradução nossa. p. 7.
18 . Helga Pollak, sobrevivente do quarto 28 do alojamento L410, registrou em
seu diário, em 29 de novembro de 1943, que nesse período praticamente todas as
meninas do Lar sofreram de encefalite, ou “doença do sono”, como era chamada.
Além das crianças, muitos adultos foram infectados por essa doença.
19 . Infecção causada por vírus, bactéria ou fungo cujos sintomas mais comuns
são diarreia, vômito e dor abdominal. Outros possíveis sintomas são febre, falta
de energia e desidratação. As medidas de prevenção dessa doença são ligadas
à higiene constante, principalmente das mãos, ao consumo de água potável e
ao saneamento.

337
20 . O total de prisioneiros deportados de Terezín para os campos do Leste euro-
peu foi 86.934. Para alguns autores esse número gira em torno de 88.000. Desses,
pouco menos de 3.000 sobreviveram. De acordo com Bosi, (2003): “Ao Conselho
judaico incumbia a tarefa de fazer a lista dos que seriam deportados. O horror
da deportação acompanha os prisioneiros noite e dia. Quem não tivesse alguma
proteção (buscada com desespero) poderia estar na próxima lista dos comboios
para o leste. [...] O limite extremo do medo vem da operação de escolha para as
câmaras de gás (Selektion)”. p. 89.
21 . Klüger, (2005), registrou: “[O] campo estava inteiramente à mercê de uma
vontade anônima, segundo a qual corria-se o risco de ser deportado a qualquer
momento para um campo de terror qualquer, apenas obscuramente identificável.
Pois Theresienstadt significava os transportes para o leste e estes ocorriam em
intervalos imprevisíveis, tal qual catástrofes naturais”. p. 80.
22 . Do alemão, “sopa de lentilhas”, mas a grafia correta é “linsensuppe”.
23 . Referências à Divina Comédia estão presentes em todo o livro, inclusive a
metáfora da viagem pelo mar e do naufrágio, presente nos termos “afogados” e
“sobreviventes”, em referência, respectivamente, àqueles que desaparecem no
campo e àqueles que conseguem sobreviver.
24 .“É como se eu também ouvisse isso pela primeira vez: como um toque de al-
vorada, como a voz de Deus. Por um momento, esqueci quem sou e onde estou”
(LEVI, 1988, p. 116).
25 . Apesar da profundidade dos versos construídos, as falhas na grafia, aponta-
das neste trabalho nas notas de rodapé, denunciam que seus autores são apenas
crianças e que não dominam a linguagem por completo.
26 . Referência à afirmação de (LEVI, 1988, p. 116).
27 . A história da pequena vida vivida por Hurbinek é narrada por Levi em A
trégua. LEVI. Primo. A trégua. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
28 . Há divergências em relação a esse número. Em algumas bibliografias tam-
bém encontramos a quantia de 1 milhão de crianças mortas.

338
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Filme/Documentário

Survivors of the Shoah Visual History Foundation: Milestones, 2000. Docu-


mentário produzido pela Fundação Spielberg com o depoimento do
Sr. Thomas Venetianer. Material cedido pelo Sr. Venetianer.

341
G
Hans Christian Andersen:
entre o imaginário cristão
e o maravilhoso pagão
Lígia Regina Máximo Cavalari Menna

Introdução

Quando Hans Christian Andersen nasceu, em 2 de abril de 1805, a Di-


namarca era um país próspero e tranquilo, uma exceção em meio ao clima
conturbado que assombrava toda a Europa, com as constantes e vitoriosas
invasões de Napoleão Bonaparte, que culminaram na guerra contra a Rússia
em 1812, quando esta pretendia invadir a Alemanha, aliada da França. Cul-
turalmente, os escandinavos ligavam-se à Alemanha e por ela se influencia-
ram desde o pré-romantismo, não só na área das artes, mas também em seu
penhor nacionalista, fato este que levou vários dinamarqueses a se alistaram
no exército napoleônico, como foi o caso do pai de Andersen (Hans Ander-
sen), que voltaria da guerra inválido e morreria em 1814, quando o pequeno
tinha apenas nove anos.
Durante sua adolescência e parte da juventude, já no período pós-napo-
leônico (1815-1830), Andersen viveria em uma Dinamarca repleta de con-
trastes e paradoxos, que iriam marcar boa parte de sua vida e de sua obra.
Em primeiro lugar, a pequena burguesia culta, satisfeita com sua ascensão,
pregava uma vida calma e idílica (Biedermeier), contrastando com a imensa
miséria popular, retratada em vários contos andersianos, como A pequena
vendedora de fósforos, por exemplo.

342
Além disso, esse período foi marcado por forte teor nacionalista. Ora, ser
nacionalista implicava em resgatar deuses pagãos da cultura nórdica, contra-
riando a religiosidade cristã vigente no país, na qual Andersen foi educado.
Vale dizer que, para o autor, o cristianismo era algo exogmático, tratava-se
de uma religião do coração, da emoção ligada à natureza e à natureza dos
homens, impulsionados em direção a Deus, e não a religião dos templos e
de seus rituais.
Sabemos que a religiosidade é um aspecto crucial de sua obra, contudo,
por outro lado, os múltiplos diálogos com a cultura nórdica e pagã também
o são, sendo o conto A Rainha da Neve exemplar nesse sentido e por isso es-
colhido como corpus para nossas análises.
É importante considerar que a cultura nórdica e sua mitologia integram
as origens e história da literatura nos países escandinavos de forma bastante
consistente. Segundo Franchini e Seganfredo,

No século XIII (cerca de trezentos anos após a con-


versão da Islândia ao cristianismo), o islandês Snorri
Sturluson (1179 – 1241) codificou grande parte destes
mitos (nórdicos) no livro Edda em Prosa. [...]. Registrou
algumas das principais lendas relativas aos deuses e
heróis dos tempos pagãos que recolheu em suas andan-
ças por todo o país. Acrescentou também um extenso
tratado de arte poética, onde ensinava a métrica e o ela-
borado sistema de metáforas dos escaldos (poetas que
difundiam, oralmente, as antigas lendas) (FRANCHINI;
SEGANFREDO, 2008, p. 7).

Quanto a essa arte poética, vale citar os kenningar, exemplos bem antigos
desse sistema de metáforas, antes esquecidos e resgatados por Sturluson.
Jorge Luís Borges, em seu artigo “As kenningar”, escreve a respeito:
“O herói matou o filho de Mak; houve tempestade de
espadas e alimento de corvos”. Alimento de corvos [...]
é um dos preestabelecidos sinônimos de cadáver, assim
como tempestade de espadas o é de batalha. Essas equiva-
lências eram precisamente as kenningar. Conservá-las e

343
aplicá-las sem repetição era o ideal ansioso desses primi-
tivos homens de letras. Bastante numerosas, permitiam
salvar as dificuldades de uma métrica rígida, que exigia
muita aliteração e rima interna. (BORGES, 1982, p. 35)

Dessa feita, os registros de Sturluson serviram como inspiração e esteio


para as literaturas escandinavas, mas já vieram filtrados pelo cristianismo,
tanto pelo fato do autor alertar os seus leitores sobre a ficcionalidade dos
mitos, “para que não lhes deem fé”, quanto por ridicularizá-los:
Apesar de algumas destas histórias [da mitologia
nórdica] serem trágicas[...] a maioria delas, ao contrário,
tem uma veia cômica bastante pronunciada, especial-
mente, aquelas nas quais os deuses são os protagonistas.
Jamais saberemos, no entanto, até que ponto a versão
original destas histórias tinha mesmo esta conotação ou
até onde houve a intenção (deliberada ou não) do cristão
Sturluson de tentar ridicularizar os antigos deuses do
paganismo. (FRANCHINI; SEGANFREDO, 2008, p. 7).

Vale dizer que as reminiscências da mitologia nórdica se mantiveram


vivas nas narrativas orais, nas contações de histórias que o pequeno Ander-
sen muito ouviu em sua infância por intermédio de sua avó e de algumas
“mulheres sábias” que conheceu no asilo em que ela trabalhava, conforme
nos relata em sua autobiografia The true story of my life:
(Por conversar muito), eu aparentava ser uma crian-
ça extraordinariamente sábia, o que não duraria muito;
e elas( as mulheres sábias) recompensaram minha elo-
quência contando histórias em troca; e assim um mundo
tão rico quanto o das Mil e uma noites me foi revelado.
As histórias contadas por essas idosas, e as figuras in-
sanas que vi ao meu redor no asilo, entretanto me im-
pressionaram tão fortemente que, quando escurecia,
mal me atrevia a sair de casa. (ANDERSEN, 1847, p. 6.
Tradução nossa)

344
Quando cita as Mil e uma noites, refere-se às histórias lidas pelo pai, já
registradas pela escrita:
Meu pai realizava todos os meus desejos. (...) Aos
domingos, ele me fazia óculos de perspectiva, teatros;
ele leu para mim as peças de Holberg1 e os contos árabes;
foi apenas nesses momentos que eu me lembro de tê-lo
visto realmente alegre, pois nunca se sentiu feliz em sua
vida e como artesão. (ANDERSEN, 1847, p.4)

Além disso, o romantismo alemão ainda reverberaria na literatura di-


namarquesa com a qual Andersen tomaria contato em seus estudos em
Copenhagen.
A partir de contrastante e múltiplo contexto, torna-se compreensível o
fato de Hans Christian Andersen considerar sua vida “um conto de fada”,
guiado por Deus:
Minha vida é uma história adorável, feliz e cheia
de incidentes. Quando eu era um menino, vindo de um
mundo pobre e sem amigos, uma boa fada me encontrou
e me disse “Escolha agora o seu próprio caminho ao lon-
go da vida e os seus objetivos, pelos quais irá se esforçar,
e então, de acordo com o seu desempenho, conforme a
razão exigir, eu o guiarei e defenderei”. Meu destino não
poderia ter sido guiado de maneira mais feliz, pruden-
te e melhor. A história da minha vida dirá ao mundo o
que ela me diz: existe um Deus amoroso, que conduz
todas as coisas para o melhor. (ANDERSEN, 1847, p. 2.
Tradução nossa)

Como podemos constatar, nesse pequeno excerto autobiográfico, o en-


trelace entre o imaginário cristão, no qual Deus é amoroso, e o maravilhoso
pagão, em que a boa fada o guiou, é claramente explicitado; algo que marcará
boa parte de sua vasta obra.
Tomemos como base, dentre as várias acepções do termo “imaginário”,
o que Wunenburger propõe:

345
[...] imaginário (é) um conjunto de produções, men-
tais ou materializadas em obras, com base em imagens
visuais (quadro, desenho, fotografia) e linguísticas (me-
táfora, símbolo, relato), formando conjuntos coerentes e
dinâmicos, referentes a uma função simbólica no sentido
de um ajuste de sentidos próprios e figurados. (WUNEN-
BURGER, 2007, p. 11)

Por meio de nossas pesquisas sobre a obra do autor, e principalmente o


conto A Rainha da Neve, foi possível nos depararmos com o maravilhoso revi-
sitado, mitos, símbolos e arquétipos que compõem o imaginário do autor ou da
sociedade em que viveu. Esse imaginário se materializa por meio da linguagem
literária, que se perpetua em diferentes releituras na contemporaneidade, em
outras linguagens e suportes. Conforme enfatizam Cunha e Baseio (2015):
A matéria prima com que se esculpe o imaginário de
um autor são imagens primitivas e inconscientes, abri-
gadas no eu profundo, que vão se amalgamando às ex-
periências vividas e assumindo contornos reconhecíveis
em um contexto social. Traduzidas em signo linguístico,
mostram-se expressivas em forma literária. (CUNHA;
BASEIO, 2015).

Dessa forma, procuramos investigar como essas imagens primitivas e


inconscientes, expressas por símbolos revelados nos mitos pagãos e no ima-
ginário cristão, podem ser observadas no conto A Rainha da Neve
Vale ressaltar que o estilo de Hans Christian Andersen, entre o cristão
e o pagão, amplia-se, conforme aponta Coelho (1991), em um “húmus hu-
manístico que energiza sua criação novelesca”. Assim, a miséria e a violên-
cia latente, apresentadas em muitos de seus contos, amenizam-se por seu
humanismo e ternura.
Para Coelho, Andersen foi o primeiro romântico a criar e divulgar his-
tórias para crianças com os valores do Romantismo, como a generosidade
humanista e o espírito de caridade próprios do período, ressaltando a superio-
ridade humana do explorado e a consciência de que todos devem ter direitos
iguais. Por outro lado, suas personagens, em geral, reagem com resignação às

346
injustiças sociais ou mesmo aos desígnios divinos, pois, seguindo preceitos
cristãos, muitos de seus escritos transmitem a ideia de que é preciso atra-
vessar um “vale de lágrimas” para se chegar aos céus.
A partir do exposto, este artigo objetiva apresentar uma breve análise do
estilo andersiano a partir do conto A Rainha da Neve, narrativa de tessitura
complexa que exemplifica ricamente, como dito, essa fusão entre o imagi-
nário cristão e o pagão.

O conto A Rainha da Neve

O conto A Rainha da Neve” (Snedronningen, The Snow Queen), de 1844, é


um dos mais longos de Andersen, assemelhando-se em sua estrutura a uma
breve novela, dividida em sete partes.
Logo no início, um elemento de forte simbologia, o espelho, assume um
papel de grande relevância para a trama. Eis que havia um duende mau,
o próprio diabo, “da espécie mais malvada”, que inventa um espelho capaz
de transformar tudo de bom e belo em algo mal e desprezível. Tal mágico
objeto se quebra e seus fragmentos, já na segunda história, irão atingir o
jovem Kay — e não sua amiga Gerda, que terá a missão de resgatá-lo — em
seus olhos e coração, transformando seu caráter, turvando sua percepção.
Iludido e “cego”, torna-se presa fácil para a Rainha da Neve, que irá raptá-lo
e enfeitiçá-lo com seus gélidos beijos.
O espelho, segundo o dicionário de símbolos (BECKER, 1999), pode simbolizar
conhecimento, autoconhecimento, consciência, clareza e verdade. Nesse sentido,
é interessante notar que, ao final da narrativa, descobrimos que a Rainha também
possuía seu espelho, mas em forma de um lago congelado, “o espelho da razão”.
No espelho também pode se refletir o puro coração humano, a inteligência
criadora de Deus. Essa concepção pode ser vislumbrada na arte medieval,
na qual o espelho é símbolo da virgindade de Maria, em quem Deus refletiu
a sua imagem na forma do seu filho (BECKER, 1999, p. 102).
Nas artes plásticas, na Idade Média e no Renascimento, o espelho passou
a simbolizar a vaidade e a luxúria, algo reforçado pelo conto Branca de Neve.

347
Em outro sentido, para vários povos, o espelho tem o efeito apotropeico,
pois é aquele que afasta o mal (BECKER, 1999, p. 103). Além disso, quebrar
um espelho, na crença popular, pode levar a muitos anos de azar.
Em Chevalier e Gheerbrant, reforça-se a ideia de que o espelho reflete
a verdade e a sinceridade: “Como o Sol, como a Lua, como a água, como
o ouro — lê-se em um espelho do museu chinês de Hanói — seja claro e
brilhante e reflita aquilo que existe dentro do seu coração.” (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 1982, p. 393). Contudo, há lados opostos, já que o espelho
pode refletir tanto a identidade (divina) quanto a diferença (diabólica) em
um nível metafísico, considerando-se o intelecto divino:
Esses reflexos da Inteligência ou da Palavra celes-
tes fazem surgir o espelho como símbolo da manifesta-
ção que reflete a inteligência criativa. É também o do
Intelecto divino que reflete a manifestação, criando-a
como tal à sua imagem. Essa revelação da Identidade e
da Diferença no espelho é a origem da queda de Lúcifer.
De uma maneira mais geral, ela é o ponto de chegada
da mais elevada experiência espiritual (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 1982, p. 394).

Como podemos observar, o espelho possui uma gama de simbologias


que chegam a se contradizer, passando de um amuleto a um objeto de mal
agouro; da capacidade de refletir uma alma pura a aprisioná-la; de revelar a
verdade ou distorcê-la, perpassando inclusive por interpretações filosóficas,
religiosas e psicanalíticas.
No conto de Andersen, a principal função do espelho era a de eliminar a
beleza e a bondade, corromper a percepção das pessoas, enfatizando o mal:
Um dia, o Diabo estava de muito bom humor porque
tinha acabado de fazer um espelho com um poder muito
peculiar: tudo de bom e belo que se refletia nele parecia
reduzir-se a quase nada, enquanto tudo que não tinha
valor e era feio tornava-se mais proeminente e feio do que
nunca. Neste espelho, as mais belas paisagens pareciam
espinafres cozidos, e as melhores pessoas tornavam-se
hediondas, ou apareciam de cabeça para baixo e sem
estomago. Os rostos ficavam distorcidos sem que fosse

348
possível reconhecê-los, e se uma pessoa tinha uma sarda,
esta espalhava-se até cobrir o nariz e a boca. (ANDER-
SEN, 2017, p. 104)

Como podemos observar, o lúdico e o jocoso, bastante presentes nas


narrativas andersianas, apesar dos dramas envolvidos, destacam-se logo no
início desse conto.
Além do termo “duende”, encontraremos em outras versões os termos
“Djaevel”, uma espécie de diabo, tinhoso, demônio e até mesmo troll. Inte-
ressante notar a confluência de culturas, já que não há duendes na cultura
cristã, nem diabos nas antigas narrativas nórdicas, ou na mitologia grega,
que subjazem a essa narrativa. Como podemos observar, há uma dualidade
já inicial: o duende, como elemento do mundo maravilhoso e da cultura
pagã, contrasta com a figura do diabo, figura fortemente construída pelo
imaginário cristão.
Na sequência do enredo, os discípulos do Duende/Diabo correm o mundo
com o espelho e, mesmo não suportando seu peso, sobem aos céus para zom-
bar dos anjos e do Nosso Senhor. Quanto mais alto voavam, mais o espelho,
personificado, sorria maliciosamente:
Depois o espelho sorridente estremeceu com tal vio-
lência, que escorregou das suas mãos e caiu na Terra,
onde se desfez em milhões e milhões de pedacinhos, tal-
vez até mais (…). Esses pedacinhos de espelho distorciam
tudo o que as pessoas viam, e faziam-nas ver apenas o
lado mau das coisas, porque todos os pedacinhos do es-
pelho mantinham o poder que o espelho inteiro possuía
(ANDERSEN, 2017, p. 104-106)

Para Wolfgang Lederer, professor da Universidade da Califórnia e psica-


nalista, em seu livro The Kiss of the Snow Queen (LEDERER, 1986, p. 6-7), o
espelho não é somente uma invenção do Diabo, ele é o próprio Diabo, como
ocorre na mitologia pagã, na qual os símbolos dos deuses são representações
dos próprios deuses.
O autor ainda acrescenta que o conceito de fragmentação (o estilhaçar do
espelho) tem um antigo e importante papel no pensamento religioso. Para os

349
cristãos, por exemplo, o diabo é aquele que divide, que impede a comunicação
do homem com Deus, reduzindo os mortais à solidão. No caso, aqueles que
são atingidos pelos estilhaços passam a seguir o Diabo e tornam-se pecadores.
Isso posto, podemos considerar que o espelho e seus estilhaços representam
o próprio mal que contamina o coração dos homens, fazendo-os pecar: “Frag-
mentar é pecar, é o oposto de amar, pois o amor é a força que une, que preenche
e supera antagonismos e separações” (LEDERER, 1986, p. 7. Tradução nossa).
Lederer considera ainda que o diabo e seus discípulos, ao subirem aos
céus para zombarem de Deus, demonstraram grande arrogância. Como argu-
mento, utiliza o próprio texto em alemão, em que a expressão “sie uberhebem
sich” possui duplo sentido, significando que “eles carregavam mais do que
eram capazes” ou “eles eram arrogantes, impertinentes”. Tal arrogância os
assemelha a Lúcifer que, ao querer se igualar a Deus, foi expulso dos céus.
Como vimos anteriormente, a queda de Lúcifer está relacionada à revelação
de sua diferença diante de Deus.
Há outros personagens bíblicos que desafiaram Deus com sua arrogância
e desobediência, como, por exemplo, Adão e Eva que, ao comerem a maçã da
árvore do conhecimento, foram expulsos do Paraíso. Dentre os conhecimen-
tos por eles adquiridos, podemos considerar o desejo e as relações sexuais,
já que, a partir da expulsão, passaram a procriar.
Lederer (1986, p. 8) completa que o conhecimento proibido pode ser de
dois tipos, pertencendo ao sagrado ou ao sexual, ou aos dois, e considera que
o que acontecerá com o jovem Kay na segunda história relaciona-se com o
pecado, provavelmente de cunho sexual, pelo qual será punido. Somente o
amor de Gerda pode redimi-lo. Seria seu “pecado” abandonar a pureza de
sua infância, deixar-se levar pela Rainha da Neve e por seus desejos? O au-
tor sugere isso e acreditamos que essa possa ser uma leitura válida, princi-
palmente por esse conto representar o período da adolescência, um rito de
passagem da infância para a idade adulta, como veremos.
Ao ser atingido pelos fragmentos do espelho, Kay torna-se um menino
ríspido e insensível, indispõe-se com Gerda, zomba das pessoas, tem dúvidas
quanto aos seus conhecimentos e quer brincar com os meninos maiores, ou
seja, torna-se um adolescente, que será levado pela rainha para seu gélido
castelo onde permanecerá enfeitiçado.

350
Assim, nesse conto, o espelho ocupa um espaço de destaque, sendo o
elemento gerador de conflitos e de discórdia. Como símbolo do mal ou sua
própria materialização, leva o jovem Kay a pecar e a ser punido, congelado
em sua alienação, para depois ser salvo pelo amor e pela inocência de Gerda,
em um contexto em que se destaca o imaginário cristão, no qual o pecado,
a punição e o arrependimento levam à redenção.
Como dito por Lederer (1986, p. 7), o espelho e seus estilhaços represen-
tam o próprio mal que contamina o coração dos homens, fazendo-os pecar.
Cabe ao amor, dessa forma, unir e superar os antagonismos. A redenção de
Kay torna-se possível pelo amor de Gerda.
Podemos inclusive criar uma analogia entre os estilhaços do espelho e
os cristais de gelo, pois ambos, nesse conto, congelam o coração, turvam a
mente, mudam a personalidade e levam ao pecado.
A partir da terceira história, “ O jardim de flores da mulher hábil na
magia”, inicia-se a jornada de Gerda, também repleta de simbologias e fu-
sões. Kay desaparecera e ninguém sabia o que havia acontecido com ele:
Foram derramadas muitas lágrimas e a pequena Gerda foi quem mais chorou.
(ANDERSEN, 2017, p. 114). Eis as primeiras lágrimas de Gerda, mas não as
últimas, como veremos.
A menina, como o eu-lírico de uma cantiga de amigo, pergunta à natu-
reza, ao raio de sol, às andorinhas, sobre o paradeiro de Kay. Ela acredita
que ele esteja vivo e, certa manhã, decide calçar seus sapatos vermelhos, que
Kay ainda não havia visto, e oferecê-los ao rio em troca do amigo. Mesmo
gostando muito dos sapatos, ela os atira ao rio, como uma oferenda, mas os
sapatos retornam. Entra em um barco para jogar os sapatos mais adiante, e
acaba por navegar à deriva, seguida pelos sapatos flutuantes, para além dos
muros de sua cidade em plena primavera: “ ‘Talvez o rio me leve ao pequeno
Kay’, pensou ela, sentindo-se um pouco mais animada. Depois levantou-se e
observou as belas margens verdes, hora após hora”. (ANDERSEN, 2017, p. 115).
Observamos que o conto A Rainha da Neve apresenta diálogos intertex-
tuais não somente com outras narrativas da cultura nórdica ou mitológicas,
com narrativas cristãs, mas também com os contos do próprio Andersen
autorreferenciados. Assim, os sapatos vermelhos de Gerda nos remetem ao
conto homônimo de Andersen, publicado em 1845. Nele, a pequena Karen não

351
poderia usar seus sapatos vermelhos em sua primeira comunhão, na igreja
ou em um funeral. Ao usá-los, Karen é punida por sua vaidade:
Confessou-lhe todo o seu pecado e o carrasco cor-
tou-lhe os pés com os sapatos vermelhos. Mas os sa-
patos continuaram a dançar com os pezinhos sobre os
campos, lá para dentro do fundo bosque. (ANDERSEN,
2011, p. 259)

A crueldade com que a menina é castigada nos impressiona. Como reden-


ção, recebe a misericórdia após sua morte: “A alma voou na luz do sol para
Deus, e não houve ninguém que lhe perguntasse pelos sapatos vermelhos”
(ANDERSEN, 2011, p. 260).
Pelo que observamos, os sapatos são elementos constantes nos contos
andersianos e simbolizam principalmente a luxúria e a vaidade, como no
conto citado, ou mesmo arrogância e a soberba, como no conto “A menina
que pisou no pão”, em que a protagonista Inger , para não sujar seus sapatos
na lama, pisa no pão que levava para seus pais. Por suas maldades e desprezo
aos outros (“ tinha um coração cheio de ódio e má vontade para com todos”)
sofre terrível punição até encontrar a redenção divina. Não nos estranha que
o filho de um sapateiro tenha uma certa fascinação por calçados. Em seus
relatos, Andersen nos revela um episódio de sua infância ocorrido em sua
cerimônia de confirmação, quando se envaideceu ao estrear botas novas que
rangiam e chamavam a atenção de todos na igreja, temerariamente cons-
ciente de que prestava mais atenção às suas botas do que à palavra de Deus.
Karen era uma adolescente, entrando na puberdade, época em que se
desenvolve a sexualidade. Ela se sente bonita, atraente. A cor vermelha, uma
referência tanto à sensualidade feminina quanto à menstruação, confirma
essa fase. Karen cede à vaidade e é castigada, já Gerda é pura, temente a
Deus, assim, ao se desfazer de seus sapatos, e o que eles simbolizam, é re-
compensada, conforme aponta Lederer:
Sobre seus sapatos vermelhos, ela disse que Kay
nunca os havia visto. Em outras palavras, sua menarca,
metaforicamente seu despertar para sexualidade ocor-
reu desde que ele partiu. Agora nós entendemos por-

352
que ela quis levá-los com ela, colocá-los em sua jornada
em busca de Kay. [...] Mas quando ela chega ao rio, ela
muda de ideia. Ela deve decidir: é correto e apropriado se
aventurar no fluxo da vida usando os sapatos vermelhos
— considerando a atenção que eles despertarão — e é
correto e apropriado usá-los para atrair Kay? Gerda toma
a decisão crucial e cristã de permanecer pura. (LEDE-
RER, 1986, p. 37. Tradução nossa)

Como vimos, era primavera e Gerda também floresce. Nada mais sugestivo
do que encontrar porto seguro em um jardim de flores. Nesse lugar, há uma
mulher sábia, mágica, com um lindo chapéu de flores, que dá abrigo à meni-
na, a consola e lhe oferece cerejas deliciosas (tentadoras maçãs?). Enquanto
Gerda as come, a velha penteia seus cabelos com um pente dourado e, nesse
processo, a menina, gradualmente, esquece tudo sobre Kay e, como ele, tam-
bém é enfeitiçada, passando vários dias em um estágio de plena alienação.
Todas as flores estavam lá, menos as roseiras, que foram escondidas pela mu-
lher sábia nas profundezas da terra, para que Gerda não se lembrasse de Kay.
As rosas, nesse caso, simbolizam, em uma concepção de infância idealizada,
a pureza das crianças e a sua amizade: “A velhinha tinha medo que se Gerda
as visse, lembrasse das suas próprias roseiras e do pequeno Kay, e por isso fu-
gisse dela” (ANDERSEN, 2017, p. 117). Contudo, ela havia esquecido uma bela
rosa em seu chapéu. Quando Gerda a viu, despertou do encanto e, mais uma
vez, se pôs a chorar:
Depois sentou-se e começou a chorar. Mas as lágri-
mas quentes caíram precisamente onde a roseira tinha
afundado e, assim que umedeceram a terra, nasceu no-
vamente, perguntou se achavam que Kay estava morte
e as rosas responderam “Nós estivemos na terra onde
estão as pessoas mortas e o Kay não está lá” (ANDER-
SEN, 2017, p. 118)

Quem seria essa velha do jardim, capaz de controlar a morte e o nas-


cimento das flores? Seus feitiços, as cerejas, ao invés de maçãs, e o uso do
pente mágico nos remetem àqueles da bruxa /madrasta de Branca de Neve.

353
Mas as intenções da velha são outras, ela queria que Gerda fosse mais uma
flor em seu jardim. Quanto à cereja, na arte cristã medieval, equivale à maçã
como símbolo do fruto proibido (BECKER, 1999, p. 62).
Como Ceres, Demeter ou Sif2, a velha do jardim é uma deusa do mundo
vegetal e da fertilidade, a quem compete controlar a vida e a morte das flo-
res. Como a Rainha da Neve, que controla o inverno, essa mulher do jardim
controla as flores. Segundo Lederer,
Sim, não há dúvida: a Velha Hábil em Magia, cujo
reino diurno é tão cheio de flores orgânicas quanto o
reino da Rainha da Neve está cheio de flores cristalinas,
ela é a deusa da morte orgânica, assim como a Rainha
da Neve é a deusa da morte cristalina. (LEDERER, 1986,
p. 41. Tradução nossa)

Destacamos que o núcleo mitológico do conto A Rainha da Neve é de


grande importância para sua compreensão, principalmente quando nos re-
ferimos a deusas da Terra, da beleza, do amor e da morte, vislumbradas por
meio de suas mágicas, dúbias e misteriosas personagens3.
Nesse sentido, referenciamos Freud, que constata que, dentro da mitolo-
gia, há deusas ambíguas, que celebram tanto a vida quanto a morte:
Mesmo a Afrodite grega não abandonara inteira-
mente sua vinculação com o mundo dos mortos, embora
há muito tempo houvesse entregado seu papel ctônico
a outras figuras divinas, a Perséfone ou à triforme Artê-
mis-Hécate. As grandes deusas-Mães dos povos orientais,
contudo, parecem todas ter sido tanto criadoras quan-
to destruidoras - tantas deusas da vida e da fertilidade
quanto deusas da morte. Assim, a substituição por um
oposto desejado em nosso tema retorna a uma identidade
primeva. (FREUD,1996, p. 183)

Assim, a figura da Rainha da Neve e sua beleza congelante nos remete


tanto aos primeiros contatos com a sexualidade, como ao prenúncio da pró-
pria morte, simbolizada pela ambiência invernal.
As relações estabelecidas entre o inverno e a morte tornam-se mais evi-

354
dentes se recorrermos à mitologia nórdica, para a qual os mortos habitam uma
terra congelada, denominada de “Niflheim”, a qual existia antes do universo
conhecido ser criado. Em seu centro, havia uma fonte gelada, “Hvergelmir”,
mãe de vários rios. Tornou-se o reino de Hel, (Hela) deusa dos mortos: “He-
lheim” (BULFINCH, 2013, p. 587).
Vale acrescentar que, os mortos por doença e velhice, ou seja, a maioria,
iriam para Niflheim, guiados por Hel. Já os heróis mortos em batalhas iriam
para Valhala, guiados por uma Valquíria.
Em dinamarquês, inferno seria Helvede, assemelhando-se ao termo em lín-
gua inglesa “Hell”. Assim, a ideia de que o inferno seria um lugar quente advém
de uma concepção cristã posterior. Ou seja, o surgimento da Rainha da Neve e
seu poder invernal como símbolos da chegada da morte tornam-se evidentes.
Retomando a simbologia que emana da terceira história, podemos consi-
derar que Gerda, em sua jornada como heroína, vivencia ritos de passagem
até atingir a maturidade. Ela passa boa parte desse episódio escutando as
mais variadas histórias contadas pelas flores, melodramáticas e românticas,
mas bem ao gosto das adolescentes, pois expressam seus desejos e medos.
Mas Gerda tem uma missão a cumprir, já havia passado muito tempo e
ela precisava prosseguir. Assim, ela foge do jardim, desse mundo de sonhos,
e entra no mundo da realidade, um mundo amargo, quando já é outono.
A quarta história, “O príncipe e a princesa”, é riquíssima em reminiscên-
cias à mitologia, à cultura nórdica e a outros contos de Andersen, possuindo
vários elementos simbólicos, como a figura do corvo, as botas do príncipe,
dentre tantos outros, o que mereceria uma análise à parte.
Em pleno inverno, Gerda conhece um corvo a quem conta “toda a história
da sua vida” e, como sempre fazia, pergunta por Kay. O corvo responde que
talvez o tivesse visto e lhe conta a história de uma princesa e de um príncipe,
a qual soube por sua companheira-corvo, habitante do palácio real. Havia
uma princesa muito inteligente que queria se casar, mas seu futuro esposo
deveria ser alguém que soubesse conversar e principalmente que soubesse
ouvi-la. Pela descrição do pretendente escolhido, Gerda acredita ser Kay.
Vale acrescentar que há outros contos de fadas que aludem a essa temá-
tica, como “O companheiro de viagem” e “João Pateta”, por exemplo, ambos
contados por Andersen, a partir de motes da tradição oral.

355
Os corvos, eventualmente, podem significar mal agouro, mas na mitologia
nórdica são símbolos de conhecimento e sabedoria. Odin, um dos principais
deuses dessa cultura, possuía dois corvos conselheiros que o acompanhavam,
assim como ocorria a Gerda. Segundo Lederer,
O fato de o animal em particular que agora está con-
versando com Gerda ser um corvo (crow ou haven) não
é apenas adequado em termos de cenário invernal, mas
também pode constituir um daqueles animais livres,
frequentes erupções de conhecimento pré-cristão dos
escritos de Andersen. Sua cidade natal, Odense, ele nos
diz, foi chamada em homenagem ao deus pagão Odin,
o deus nórdico, não apenas da guerra, mas também da
sabedoria e da magia xamânica. Os animais de Odin
eram dois corvos chamados Pensamento e Memória e,
como todos os animais de companhia, são imitações do
próprio deus e de toda a sua astúcia. (LEDERER, 1986,
p. 47. Tradução nossa)

Assim, esses mediadores tão simbólicos levam Gerda para conhecer os


mistérios do quarto da princesa e do príncipe, o qual se revela não ser Kay.
Comovidos com a história da menina, os príncipes lhe fornecem comida,
“bolinhos, frutos e pão de gengibre”, roupas luxuosas, “um par de botas e
um regalo”, empregados e uma bela carruagem para prosseguir sua jornada.
No início da quinta história “A pequena ladra”, com tanto luxo, Gerda tor-
nou-se um chamariz para ladrões, os quais a raptam, matando seu séquito. A
ladra mais velha, tal qual uma ogra ou a bruxa do conto João e Maria, quer sa-
borear a tenra carne da menina, mas é impedida por uma ladra jovem, sua filha.
A pequena ladra salva Gerda, mas se apresenta de forma bastante dúbia,
homem-mulher, protetora-ameaçadora. A conotação sexual, e quiçá homos-
sexual, desse episódio é bastante evidente, e parece-nos que também o era,
mesmo na época de Andersen, quando, por exemplo, a pequena ladra diz
querer brincar com Gerda e “Ela tem de me dar o regalo e o vestido, e vai
dormir comigo na cama” (ANDERSEN, 2017, p. 134).
Lembrando que o regalo havia sido dado pelos príncipes. Dentre os significa-
dos para o termo, podemos entender que era um presente para aquecer as mãos,

356
como uma estola. Regalo também significa “deleite”, “uma comida saborosa” ou
“um gozo”. Vê-se a possibilidade de várias interpretações, praticamente explícitas.
Depois que Gerda, novamente se debulhando em lágrimas, lhe conta a
história de Kay, a ladra diz:
“Mesmo que eu me zangue com você, eles (os ou-
tros ladrões), não vão matá-la porque se for esse o caso,
eu mesma a matarei!” Depois enxugou as lágrimas que
corriam dos olhos de Gerda e enfiou as mãos no regalo
quente e macio de Gerda. (ANDERSEN, 2017, p. 135)

Como podemos observar, as atitudes da pequena ladra são sexualmente


simbólicas, além do que, como a mãe, possui uma faca, o mais típico dos
símbolos fálicos, com a qual ameaça Gerda: “Fique quieta... ou espeto-lhe
minha faca na sua barriga.” (ANDERSEN, 2017, p.136).
Essa curiosa personagem, provavelmente uma bruxa como sua mãe, vive
em meio a vários animais, uma rena, de nome Béh, buldogues, corvos, gra-
lhas, pombos, os quais a temem e obedecem. Teríamos, portanto, mais uma
referência à mitologia, no caso a deusas caçadoras, como Diana, Artêmis e
Skadi, esta última da mitologia nórdica.
Lederer confirma nossas percepções, tanto em relação às referências mi-
tológicas, quanto às analogias sexuais, e considera que essa experiência faz
parte da adolescência, uma fase na jornada de autoconhecimento e amadu-
recimento de Gerda, seus ritos de passagem da infância para a idade adulta:
Grandes Deusas — a “Senhora das Coisas Selvagens”,
a deusa virgem como caçadora, mas também como pro-
tetora e íntima de todos os animais selvagens.... E assim,
como a Velha do Jardim era, como Ceres, uma encar-
nação da natureza como vegetação, a Pequena Ladra é
uma encarnação dos espíritos animais e da vida animal.
Como muitas deusas da antiguidade (e como sua mãe, a
velha bruxa), ela pode se dar bem sem um homem. Mas
não sem sexo. Não é à toa que ela vive em um ambiente
de paixões silenciosas, luxúria presidida por cabras e
apetites perversos. Suas intimidades com Gerda são im-
petuosamente sensuais e físicas, e ela constantemente a

357
abraça e a abraça, tirando proveito de seu próprio poder
e força. (LEDERER, 1986, p. 56. Tradução nossa)

Nesse episódio, Gerda fica sabendo, por meio de pombos, simbolicamen-


te importantes como mensageiros do amor, que Kay havia sido levado pela
Rainha da Neve, provavelmente para a Lapônia, terra natal da Béh, onde a
rainha possuía uma tenda de verão, estando seu castelo além, próximo ao
Polo Norte, em uma ilha chamada Spitsbergen.
A pequena ladra, em suas atitudes ambíguas, decide ajudar Gerda, dan-
do-lhe a rena, comida, botas e luvas para seguir sua viagem ao encontro de
seu destino. Como sempre, Gerda chora, mas suas lágrimas são de alegria.
Segundo Becker, a rena “nas regiões nórdicas da Eurásia, era importante
como animal-símbolo lunar, que como condutora de almas estava associada
com a noite e o mundo dos mortos” (BECKER, 1999, p. 234). Tal simbologia
nos leva a inferir que Gerda, assim como Kay, também estaria presa à morte
e a um mundo invernal ao qual deveria sobreviver.
Na sexta história, Gerda conhece duas instigantes mulheres sábias e má-
gicas que lhe ajudarão em sua caminhada: A Lapoa e a Finlandesa.
A Lapoa morava em uma cabana muito simples, mas deu abrigo e comida
à menina e à rena. Disse-lhes que a Rainha estava na Finamarca (condado
da Noruega) passando férias e lançando “fogos de artificio azuis todas as
noites”, eis a aurora boreal. Curiosa e comicamente — eis o ludismo ander-
siano em evidência — escreve uma mensagem em um bacalhau seco para a
Finlandesa a quem Gerda deveria procurar.
A Finlandesa, uma espécie de bruxa boa, por sua vez, morava em um lugar
insólito em meio ao gelo, muito quente e sem portas, sendo que Gerda teve
que entrar pela chaminé. A rena pede a ela que ajudasse a menina:
[...] eu sei que consegue atar todos os ventos do mun-
do com um simples fio de algodão. (...) não poderia dar
a esta menina algo para beber, que dê a força de doze
homens, para que possa dominar a Rainha da Neve?
(ANDERSEN, 2017, p. 141)

358
Como vimos anteriormente, Andersen relata que ouviu muitas dessas
histórias sobre mulheres sábias e mágicas, típicas da cultura nórdica, du-
rante sua infância, principalmente narradas por sua avó ou pelas idosas
do asilo.
A mulher finlandesa, embora assustadora em poder e aparência, foi amis-
tosa e prestativa com Gerda. Eis mais uma personagem ambivalente, como
as figuras com poderes mágicos costumam ser. Em resposta à rena, diz que
a menina não precisa de sua ajuda:
“Nenhum poder que eu lhe possa dar é maior do
que aquele que ela já possui. Não vê como os homens e
animais se sentem impelidos a servi-la, e quão longe ela
conseguiu chegar desde que começou sua viagem com
os pés descalços? Não lhe devemos falar desse poder. A
força está no coração dela porque ela é uma criança doce
e inocente. Se ela não conseguir chegar à Rainha da Neve
e livrar o pequeno Kay dos pedaços de vidro, nada po-
deremos fazer para ajudá-la”. (ANDERSEN, 2017, p. 142)

Na sequência, conduzida pela rena, como vimos, uma condutora de al-


mas, Gerda parte para o castelo da Rainha da Neve, esquecendo suas botas
e luvas. Observemos que seus pés novamente estão descalços e, para piorar
a situação, a rena foi orientada a não entrar no castelo e regressar para a
Finlândia. Assim, sozinha e despida de qualquer vaidade, pura e inocente,
nossa heroína só podia contar com sua fé.
Para Lederer, no mundo real, apenas um milagre poderia salvar alguém
que se aventurasse nesse rigoroso inverno, mas, metafisicamente, assim como
nos contos de fadas, tudo é possível:
Tendo deixado os sapatos para trás e as luvas (a pala-
vra dinamarquesa para luvas, Handske, significa sapatos
para as mãos), ela deixou seu ego para trás. Não apenas
os sapatos vermelhos, mas todos os sapatos agora se fo-
ram. Ela entra no Ártico como os Pais da Igreja entram
no deserto, despojados de todo ego, de todo eu, nus e hu-
mildes diante de Deus, colocando suas vidas e almas nas
mãos de Deus, por meio de em fé cega e inquestionável.
Esse é o grau de devoção exigido da Gerda. Para salvar

359
Kay, ela deve ser nada menos que uma santa ou, na lin-
guagem peculiar de Andersen, ela deve ser uma criança
inocente. (LEDERER, 1986, p. 62-63. Tradução nossa)

O castelo estava cercado de guardas monstruosos em forma de flocos de


neve vivos. Após muito rezar, Gerda vê surgir, dos vapores de sua respiração,
inúmeros anjos ao seu redor, que, munidos de lanças e escudos, destroem os
flocos de neve. Eis o esperado milagre, a mediação divina, a recompensa que
deixou a menina alegre e mais confiante: “Os anjos esfregaram as mãos e os
pés dela para a aquecer enquanto ela, decidida, se aproximava do castelo da
Rainha da Neve” (ANDERSEN, 2017, p. 143).
E, finalmente, na sétima história, “O que aconteceu no palácio da Rainha
Neve e o que veio depois”, Kay e sua misteriosa sequestradora retornam ao
enredo do conto.
O castelo era imenso, bem iluminado e extremamente triste. No meio do
grande salão havia um lago gelado ao qual a Rainha chamava de “Espelho
da Razão”, “Ela dizia que esse espelho era único e a melhor coisa do mundo”
(ANDERSEN, 2017, p. 144).
Segundo Becker, o lago simbolicamente pode ser visto como:
[...] o olho aberto da terra, a morada dos seres subter-
râneos, fadas, ninfas, espíritos da água, etc, que procuram
atrair os homens para levá-los ao seu reino. Na simbo-
logia dos sonhos frequentemente é símbolo do feminino
ou do inconsciente. (BECKER, 1999, p.160)

Sendo o lago congelado, a simbologia se amplia para o fato de ser realmen-


te um espelho, assim denominado pela própria Rainha. Mas o que espelha?
A fragilidade de Kay diante do poder feminino?
Mas Kay recebe a oportunidade de se libertar: “Se você conseguir for-
mar essa palavra (Eternidade), será dono do seu próprio destino, e lhe dou
o mundo inteiro e um novo par de patins” (ANDERSEN, 2017, p. 146).
Curioso e insólito trecho, que compara um simples par de patins a um
mundo inteiro. Apesar de parecer simples, é um desafio imenso, já que Kay
não raciocina, não sabe nem mesmo quem é, imerso em seu sono gelado.

360
Vale dizer que a eternidade, no sentido cristão, relaciona-se à imortali-
dade, à ressurreição, à salvação da alma e do corpo pela comunhão em Jesus
Cristo. Contudo, a pretensa imortalidade só pode ser alcançada, metafo-
ricamente, a partir da perpetuação da raça humana, ou seja, da fertilidade
que gera frutos, obtidos por meio da sexualidade, amplamente representada
no mundo pagão, e vista como pecado a partir de uma certa rigidez cristã.
Ora, se Deus disse “Crescei e multiplicai-vos”, não haveria afinal qualquer
pecado em gerar frutos.
Retomando o enredo, sabemos que a Rainha da Neve precisa partir para
administrar as gélidas paisagens, levar o equilíbrio à natureza e o faz antes
de Gerda chegar, deixando Kay entregue à sua sorte, praticamente morto,
“azul e quase preto de frio”:
Agora vou voar até os países quentes, quero ir ver
os grandes caldeirões negros”. Ela se referia aos vulcões
Etna e Vesúvio. “Tenho de embranquecê-los um pouco.
Eles precisam, e ficarão tão bem com os limões amarelos
e as uvas púrpuras. (ANDERSEN, 2017, p. 146)

Como uma deusa, ela administra a neve e as gélidas paisagens, tão ne-
cessárias para a harmonia terrestre. Viaja para outras terras levando o frio
para os vulcões e garantindo a fertilidade do solo, e assemelha-se, como já
vimos, a essas deusas da natureza, criadoras e destruidoras.
Quando Gerda chega ao castelo, salva Kay com suas mornas lágrimas e
beijos, que quebram o feitiço do espelho e dos gélidos beijos da Rainha. Esse
confronto não se concretiza fisicamente entre as protagonistas, que não se
veem, já que a Rainha havia partido. Mas, como um duplo, em um espelho,
a Rainha e Gerda de contrapõem, entre o invernal e o solar, entre o divino
e o humano, entre o sonhado e o vivido, a sedução e a pureza, o pagão e o
cristão, o feminino em suas ambiguidades.
Interessante observar como as lágrimas de Gerda perpassam simbolicamente
toda sua jornada, um verdadeiro vale de lágrimas. Com suas lágrimas manifes-
tou tristeza, alegria, saudades, mas também fertilizou a terra para que as rosas
renascessem, na terceira história, e com essas mesmas lágrimas libertou Kay.
Na Bíblia, encontramos várias referências às lágrimas, com simbologias

361
diversas, ora purificação, humildade e o caminho para o perdão, para a re-
denção. Há por exemplo um episódio em que uma mulher “impura”, uma
prostituta, lava os pés de Jesus com suas lágrimas:
E eis que uma mulher da cidade, uma pecadora, sa-
bendo que ele estava à mesa em casa do fariseu, levou um
vaso de alabastro com unguento; E, estando por detrás,
aos seus pés, chorando, começou a regar-lhe os pés com
lágrimas, e enxugava-los com os cabelos da sua cabeça;
e beijava-lhe os pés, e ungia-los com o unguento. (...)
E, voltando-se para a mulher, disse a Simão: Vês tu
esta mulher? Entrei em tua casa, e não me desta água
para os pés; mas esta regou-me os pés com lágrimas, e
os enxugou com os cabelos de sua cabeça.
(...) E disse-lhe a ela: Os teus pecados te são perdoa-
dos. (BÍBLIA, LUCAS, 7: 38-48)

Como podemos observar, na concepção cristã, por meio das lágrimas, índi-
ces de arrependimento, é possível purificar seus pecados e alcançar a salvação.
Assim, salvos e felizes, os protagonistas regressam ao ponto inicial, a suas
casas, ao seu jardim, mas, antes, para que se feche o ciclo de sua jornada, é preciso
retornar. Em seu retorno, encontram a pequena ladra e a rena, e ficam sabendo
que o corvo havia morrido (não precisaria mais Gerda da razão para guiá-la?).
Ao final é verão, há alegria, os campos estão abertos, as rosas florescem
e as personagens encontram-se em harmonia, já adultos, em um aparente
final feliz:
Kay e Gerda se olharam e por fim perceberam o sig-
nificado do seu antigo salmo: “Onde as rosas florescem
no vale tão docemente/Lá encontrarás o Menino Jesus
certamente”. E ali permaneceram sentados, crescidos,
mas ainda crianças, crianças de coração. E era verão,
quente e glorioso verão. (ANDERSEN, 2017, p. 149)

Agora, reunidos e já adultos, poderiam concretizar seu amor, casar, ter


filhos e serem felizes para sempre... Mas esse não seria um conto de fadas
de Hans Christian Andersen, não é mesmo?

362
Considerações Finais

Esses foram alguns exemplos de como o estilo de Hans Christian Ander-


sen transita entre o imaginário cristão e o maravilhoso pagão, um verdadeiro
amálgama do folclore nórdico, conduzido por “uma boa fada” e “um Deus
amoroso”, lado a lado, de mãos dadas, em uns “húmus humanístico que ener-
giza sua criação novelesca” e atrai leitores de todas as idades.
Por meio do conto “A Rainha da Neve”, vislumbramos tal mescla nos
constantes diálogos intertextuais com a mitologia nórdica, com contos de
fadas vários, inclusive já escritos por Andersen, advindos da tradição oral,
por meio de tantas mulheres sábias que o cercaram, ou mesmo da cultura
letrada a que Andersen teve acesso, inicialmente, por intermédio de seu pai.
Além disso, a concepção romântica de infância, na qual a criança é idea-
lizada como um ser puro, evidencia os preceitos cristãos de que para se al-
cançar a redenção e o perdão é preciso ser criança novamente, pelo menos
em nossos corações.
Vale lembrarmos que, no início do conto, Kay é atingido pelos fragmentos
do espelho do Diabo, o que o induz a pecar, abandonar a pureza da infância
e se deixar conduzir pela beleza mortal da Rainha da Neve. Somente o amor
de Gerda, sua fé e seu sacrifício, despida de sua vaidade feminina, podem
redimi-lo.
Assim, ao final do conto, percebemos que o imaginário cristão se evidencia
em contraponto à cultura nórdica e pagã. No verão, há alegria, os campos
estão abertos, as rosas florescem e as personagens relembram o antigo hino
“Onde as rosas florescem no vale tão docemente/Lá encontrarás o Menino
Jesus certamente” (ANDERSEN, 2017, p. 149) e compreendem finalmente seu
significado, longe dos pecados, da Rainha da Neve e de todas as mulheres
mágicas e misteriosas, encontram-se em harmonia, já adultos, mas ainda
crianças em seu coração. Nada os impede de se casarem, de frutificarem,
mas parece que a sexualidade está marcada pelo paganismo que deve ser
eliminado e esquecido, como algo pecaminoso. Houve o pecado, uma jornada
por um vale de lágrimas e finalmente o perdão, a redenção, já não há volta.
A redenção pelo amor, tão cultuada pelos escritores românticos, assume
um nível metafísico, constituindo-se na própria ressurreição de Kay e quiçá

363
de Gerda, que, liberta da vaidade, dedicada e cheia de fé, é recompensada
por todo seu sacrifício.
O conto “A Rainha da Neve”, além de exemplificar ricamente essa fusão
entre o imaginário cristão e o pagão, suscita temas como amadurecimento,
protagonismo feminino, sexualidade, vida e morte. Eis alguns pontos que
mantêm essa narrativa atual, simbolicamente enriquecida e em constante
diálogo com as mais variadas produções culturais para crianças e jovens
até nossos dias.

364
Notas

1 Ludvig Holberg (1684-1754), escritor e erudito dinamarquês.


2 Deusa nórdica das plantações e da fertilidade
3 Esse tema foi desenvolvido em dois artigos anteriores: O mito de Perséfone, A
Rainha da Neve, de Hans Christian Andersen e a animação Frozen: uma aventura
congelante: A morte revestida pela beleza. Abralic, 2018. Disponível em http://
www.abralic.org.br/anais/arquivos/2018_1547575464.pdf e Uma beleza congelante:
a morte e sexualidade em A Rainha da Neve, de Hans Christian Andersen e suas
refigurações. Revista Literartes, 2019. Disponível em https://www.revistas.usp.
br/literartes/article/view/163374.

365
Referências Bibliográficas

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Howitt. London, 1847.
___________. “A Rainha da Neve” in Os contos de Hans Christian Andersen.
Edição de Noel Daniel. Direção artística. Andy Disl e Noel Daniel.
Londres: Taschen. 2017.
__________. “Sapatinhos vermelhos” in Contos de Hans Christian Andersen.
Trad. Silva Duarte. Prefácio e comentários de Nelly Novaes Coelho. São
Paulo: Paulinas, 2011.
BECKER, Udo. Dicionário de Símbolos. Tradução Edwino Royer. São Paulo:
Paulus, 1999.
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BULFINCH, Thomas. O livro da mitologia. Tradução Luciano Alves Meira.
São Paulo: Martin Claret, 2013.
COELHO, Nelly Novaes. Panorama Histórico da literatura infantil e juvenil.
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______. Literatura infantil: teoria, análise e didática. São Paulo: Moderna,
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CHEVALIER, E.; GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos (mitos, sonhos,
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— A teoria geral do imaginário 50 anos depois: conceitos, noções e
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FRANCHINI, A. S.; SEGANFREDO, C. As melhores histórias da mitologia
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FREUD, Sigmund. “O tema dos três escrínios” (1913). In: Freud (1911-1913)
— Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado
em autobiografia (“O caso Schreber”), artigos sobre técnica e outros
textos: Obras completas. Vol. 10. Trad. Jayme Salomão. Imago: Rio
de Janeiro, 1996.
LEDERER. W. The kiss of the Snow Queen. Hans Christian Andersen and Man’s

366
redemption by woman. Los Angeles ,USA: University of California
Press, 1986.
WUNENBURGER, Jean-Jacques. O Imaginário. São Paulo: Edições Loyola,
2007.

367
J
Histórias em quadrinhos e
narrativas literárias de horror:
aproximações e distanciamentos
Oscar Nestarez

É relativamente recente a pesquisa acadêmica tanto de histórias em


quadrinhos como da ficção literária de horror. Ambas consolidaram-se a
partir da segunda metade do século XX — mais especificamente, na década
de 1970, quando se observou um significativo crescimento do interesse pela
nona arte e por livros de horror. Até então, tais obras pareciam relegadas a
uma espécie de ostracismo acadêmico, permanecendo à margem do espectro
investigativo de pesquisadores.
Hoje, o cenário é diferente. Décadas após surgirem os primeiros estudos
aprofundados sobre as singularidades dos quadrinhos e da ficção de horror,
é crescente o número de trabalhos dedicados a esses objetos. Entre os fatos
que justificam tal advento, pode-se apontar o cinema como denominador
comum: adaptações cinematográficas tanto de livros de horror como de
HQs atraíram uma atenção inédita para as duas formas de arte. No campo
da literatura, autores como o estadunidense Stephen King e o britânico Clive
Barker estabeleceram-se como referências do gênero graças, principalmente,
à transposição de suas obras para as telonas. Já no território dos quadrinhos,
basta que se mencione a dimensão obtida pelos estúdios Marvel e DC no
mercado de entretenimento.
Este trabalho situa-se na esteira desse contexto. O objetivo, aqui, é engendrar
uma reflexão sobre a manifestação do horror na literatura e nos quadrinhos —

368
considerando-se que é bastante significativa a parcela dessas narrativas dedi-
cadas ao gênero. Tal análise terá, como fio condutor, as seguintes indagações: o
que é, ou como se define, a ficção de horror? Quais são as suas singularidades
no campo literário? Quanto às HQs: quais são suas características constitutivas
como expressão artística? Como se distinguem em relação a outras formas de
artes visuais? Neste sistema, como se obtém o efeito estético do horror? Em
quais procedimentos se aproxima da literatura, e em quais se afasta?

Conceituando o horror na ficção

A consolidação do horror como categoria estética é relativamente recente


— as primeiras teorias datam de meados dos anos 1970. No entanto, os estudos
dessa época (em sua maioria anglófonos) concentram-se sobretudo no cine-
ma de horror, que viveu uma espécie de era de ouro após o tremendo sucesso
comercial do filme O exorcista, em 1973. Produções do gênero passam a atrair
enormes quantias de dinheiro, estabelecendo-se uma verdadeira indústria,
em um processo que chamou a atenção de pesquisadores dessa linguagem.
Já no campo da literatura, os estudos são mais rarefeitos. Ou pelo menos
o foram até a publicação, em 2016, de Horror - A Literary History, coletânea
de artigos organizada pelo pesquisador catalão Xavier Aldana Reyes em que
cada texto ocupa-se de um período fundamental na historiografia do horror,
das origens no gótico até o horror pós-millennial. Aqui, interessa a introdução
de Xavier Aldana Reyes ao conjunto de artigos, uma vez que, nela, encontra-
-se uma definição precisa para as narrativas literárias de horror. Ele lembra
que o próprio termo “horror” advém de um efeito; afinal, sua origem está no
verbo latino “orrere”, que significa “eriçar” ou “arrepiar”.
No estudo seminal A filosofia do horror – Ou os paradoxos do coração, o
filósofo estadunidense Noël Carroll reitera essa etimologia e agrega, a ela, a
palavra do francês antigo “orror”, que pode significar “reagir raivosamente”
ou “tremer” (1990, p.24). Dessa forma, as narrativas de horror constituem-
-se como tal pelo efeito estético causado, ou pela intenção de fazê-lo. Eis a
definição de Xavier Aldana Reyes:

369
Amplamente lida e publicada — e diferente de outros
gêneros que se amparam mais fortemente em coordena-
das históricas e geográficas específicas, como o Western e
a ficção-científica —, a ficção de horror é extensivamente
definida por suas pretensões afetivas. Em outras pala-
vras, o horror obtém este nome dos efeitos que procura
provocar nos leitores1. (2016, p. 07)

Reyes salienta que o horror é eminentemente transmidiático, sendo “mais


imediatamente associado com a indústria do cinema do que com a litera-
tura”2 (2016, p. 09). No entanto, ao contrapor a ficção literária de horror às
narrativas audiovisuais, o pesquisador catalão postula que, “diferentemente
do cinema, que só é capaz de nos mostrar imagens, a ficção literária nos força
a processar informação [...] podendo mais prontamente perturbar a mente
de leitores ao engajar-se com suas imaginações”3 (2016, p. 09-10). A conse-
quência dessa perturbação seriam justamente os efeitos de ordem física que
aqui se propõe vincular à conceituação do horror.
Já Noël Carroll, referindo-se ao que entende por “horror artístico”, assim
define tais reações:
[...] algumas das sensações — ou agitações fisica-
mente sentidas, ou respostas automáticas, ou sentimen-
tos — são contrações musculares, tensão, encolhimen-
to, tremores, recuo, entorpecimento, enregelamento,
paradas momentâneas, calafrios (portanto, “frios na
espinha”), paralisias, estremecimentos, náusea, um re-
flexo de apreensão ou um estado de alerta fisicamente
incrementado (uma resposta ao perigo), talvez gritos
involuntários etc. (1999, p. 41)

Carroll propõe que tais reações tenham como agente a figura do mons-
tro — que, para o filósofo, necessariamente é de natureza sobrenatural.
Essa limitação resultou em críticas de outros estudiosos, sobretudo da
filosofia. Entre eles, Philip J. Nickel, professor de filosofia e ética da Uni-
versidade de Tecnologia de Eindhoven. No ensaio “Horror and the Idea
of Everyday Life: On Skeptical Threats in Psycho and The birds” 4 (2010),

370
Nickel afirma que o horror tem caráter epistemológico e constitui-se por
dois elementos centrais:
(1) Uma aparição do mal sobrenatural ou do mons-
truoso (inclui-se aí o psicopata que mata monstruosa-
mente); e (2) a intenção de causar pavor, aversão visce-
ral, medo ou espanto no espectador ou no leitor.5 (2010,
p. 14).

Ao inserir o elemento humano nesse contexto, Nickel propõe que mons-


tros sejam “realistas”6 (p. 15) e que participem normalmente de nossa vida
cotidiana. Sendo assim, ele se contrapõe diretamente a Carroll, para quem
“monstros são essencialmente ficcionais, e não algo com que nos preocupe-
mos na vida real”7 (2010, p. 14-15).
Note-se que, a partir dessa concepção, a ficção de horror contemporânea
amplia seu território e em certa medida deixa de se vincular exclusivamente
ao fantástico, uma vez que a estratégia para se obter o efeito que a define
possa prescindir do elemento sobrenatural, inexplicável, ou da hesitação. Da
mesma maneira, torna-se independente de sua matriz cultural, as narrativas
góticas, na medida em que a fonte de horríveis eventos já não se encontra
somente no passado que ameaça retornar — a tônica de tais textos —, mas
também na atualidade. Em outras palavras, a partir da segunda metade do
século XX, a ficção literária de horror impõe-se como um território autônomo.
A partir dessas reflexões, cabe destacar a posição assumida pelo leitor nos
estudos literários acerca do horror. Tal procedimento remete à Estética da
Recepção, corrente de pensamento concebida e proposta na década de 1960
pelo teórico alemão Hans Robert Jauss e consolidada, no final dos anos 1970,
com a contribuição de seus conterrâneos Wolfgang Iser e Hans Gumbrecht,
entre outros. Embora as teorizações da chamada Escola de Constança já se
distanciem no tempo e apresentem certo desgaste, é necessário retomá-las,
ainda que resumidamente, para ampliar a análise que aqui se propõe.
À época, a proposição de Jauss confrontava teorias formalistas e marxis-
tas, refutando o que considerava o “circuito fechado” (1988, p. 266) de uma
estética de reprodução, fundamentado na dicotomia “autor-livro”. Desta
forma, afirmava o alemão, a literatura se despojava “de uma condição ine-

371
rente à sua própria natureza de fenômeno estético e à sua função social: a
dimensão do efeito produzido por uma obra” (1988, p. 266-267). Em suma,
Jauss defende a retomada da fruição estética como elemento central da
experiência literária, fundamentada na aisthesis (sensação). Assim, propôs
alterar o centro de gravidade da criação literária, do eixo “autor-livro” para
a configuração “autor-livro-leitor”.
Recorde-se de que o efeito estético, como diz Edgar Allan Poe no ensaio “A
filosofia da composição” (1846), é resultado. É consequência de um laborioso
processo de construção retórica, em que cada elemento deve ser cuidadosa-
mente situado e encaixado, como a peça de uma poderosa maquinaria. No
caso da ficção literária de horror, há a primazia do efeito do medo — ou de
sensações e emoções a ele relacionadas —, de modo que essas narrativas
se singularizam em relação a outras vertentes que trabalham tais reações
em menor medida, como a ficção científica, as distopias, a fantasia (ou sua
ramificação sombria, a dark fantasy), e mesmo o drama. Depreende-se, evi-
dentemente, que todo efeito resulta de trabalho cuidadoso, estratégico, do
escritor com a linguagem.
Por meio dessa construção, a ficção literária de horror também assume
autonomia em relação a outras vertentes. Afinal, a formulação deve corres-
ponder a um objetivo estabelecido geralmente antes mesmo que a primeira
palavra de uma história seja escrita, como defendeu Poe. A palavra — e todo
o texto — deve causar um efeito por meio de técnicas de linguagem, de te-
máticas e de elementos narrativos que se acumulam e se renovam desde o
século XVIII. Assim sendo, um texto de horror não se define somente pelo
efeito causado — um critério necessariamente subjetivo —, mas também pela
intenção de causá-lo, o que implica estrutura(s) específica(s). Noël Carroll,
de forma bastante simplificada, propõe a seguinte estrutura:
a) Irrupção: Momento em que se é apresentado o
monstro ou ser sobrenatural; b) Descobrimento: Mo-
mento que se descobre na narrativa a origem desse ser
fantasmagórico; c) Confirmação: Momento em que são
apresentadas provas e convence-se da existência do mal;
d) Confronto: Momento em que ocorre o desfecho da
narrativa e se finda o mal. (1999, p. 63)

372
Histórias em quadrinhos como sistema

Já em relação às narrativas sequenciais, um dos estudos mais abrangentes


é O sistema dos quadrinhos (2015), publicado pelo pesquisador belga Thierry
Groensteen. O autor defende a primazia da imagem nos quadrinhos e, desta
forma, a necessidade de dar uma precedência teórica ao que ele designa como
códigos visuais. Por isso, propõe que se aborde as HQs “do alto”, para que se
observe em detalhes os níveis de suas articulações maiores.
As histórias em quadrinhos, afirma Groensteen, são fragmentárias e en-
contram-se em sistema de proliferação (2015, p. 16). Jamais constituirão o
enunciado como um todo, mas podem e devem ser vistas como componentes
de um dispositivo maior. São uma combinação original de uma (ou duas,
junto com a escrita) matéria(s) da expressão e de um conjunto de códigos,
e por essa razão podem ser descritas apenas em termos de sistema. O autor
afirma que o que se busca é uma via de acesso ao interior desse sistema que
permita explorá-lo em sua totalidade e mostrar sua coerência (p. 18).
Nesse sistema, Groensteen aponta o predomínio da imagem, uma vez que
a maior parte da produção de sentido ocorre através dela. Mas como as nar-
rativas sequenciais se distinguem de outras expressões imagéticas, como por
exemplo o cinema ou as artes plásticas? O autor oferece a seguinte resposta:
Os quadrinhos são, de fato, um gênero baseado na
relutância. Não só suas imagens imóveis e silenciosas
não possuem o mesmo poder de ilusão que as imagens
cinematográficas, mas também sua sequência, longe de
produzir uma continuidade que imita o real, oferece ao
leitor uma narrativa cheia de intervalos que aparecem
como lacunas de sentido. Mas se essa dupla relutância
chama a uma “reconstrução por parte do espectador”, a
história “a ser reconstruída” não está menos disposta nas
imagens, conduzida pelo complexo jogo da sequenciali-
dade.[...] Todo leitor de quadrinhos sabe que, a partir do
momento em que se projeta na ficção (o universo diegé-
tico), ele esquece, até certo ponto, o caráter fragmentado
e descontínuo da enunciação. (2015, p. 19)

373
Para Groensteen, o único fundamento imanente dos quadrinhos é a co-
nexão de uma pluralidade de imagens solidárias. Esse é seu elemento cen-
tral: a “solidariedade icônica”. São solidárias as imagens que participam de
uma sequência, apresentando a dupla característica de estarem apartadas
(descartando-se quadros individuais, que encerram em si uma riqueza de
padrões ou anedotas) e serem plástica e semanticamente sobredeterminadas
pelo simples fato da sua coexistência (p. 25).
A solidariedade icônica é a condição necessária para que uma mensa-
gem visual possa, à primeira aproximação, ser assimilada por uma história
em quadrinhos. Como objeto físico, todas as histórias em quadrinhos po-
dem ser descritas como uma coleção de ícones apartados e solidários (p.
31). Groensteen, então, oferece definições para esses ícones — o que, mais
adiante, permitirá uma melhor compreensão acerca da irrupção do horror
nos quadrinhos:
Requadro: em grande medida, é o requadro que faz o quadro. A prancha,
sendo um aglomerado de quadros justapostos da mesma forma, é reduzida à
sua estrutura, o que se batiza de “multirrequadro”. A representação esquemá-
tica tradicional de uma página de HQ nada mais é do que uma grade onde
os compartimentos são deixados em branco; o “esqueleto”, sendo apenas o
corpo do objeto suscitado.
Quadro: menor unidade do quadrinho. Em sua configuração normal, ele
é apresentado como uma porção de espaço isolada por vazios e delimitado
por um requadro que assegura sua integridade. Assim, independentemente
de seu conteúdo (icônico, plástico, verbal) e da complexidade que possa
manifestar, o quadro é uma entidade aberta à manipulação geral.
Emoldurado, isolado por vazios geralmente de pequena dimensão, o qua-
dro permite sua fácil identificação e destaca-se no continuum sequencial. O
quadro tem o poder de prender o leitor, contrariando por um instante a “fúria
de leitura” que o leva a galopar pelas imagens, sempre em frente.
Página dupla: unidade pertinente que merece atenção. As páginas da
esquerda e da direita não são equivalentes no que diz respeito à utilização
das posições. A sensação de surpresa acontece ao virar a página e descobrir
uma página nova (na esquerda). O suspense geralmente é sustentado na
página da direita.

374
Balões: existem não apenas para dizer aquilo que as imagens não con-
seguem exprimir; também têm a função importante de dar naturalidade e
aproximar da realidade – as pessoas, no geral, falam. O formato, o número e
o posicionamento de balões também participam da gestão do espaço e con-
tribuem de maneira determinante para conduzir o olhar do leitor.

Narrativas literárias e
HQs de horror: diálogos

Expostas essas definições teóricas, cabe agora verificar como se articu-


lam as estratégias do horror entre narrativas literárias e quadrinhos. Para
tanto, serão analisadas duas obras: o conto “Casa de Fazenda”, de autoria do
potiguar Márcio Benjamin, e a HQ “Butim”, que está na coletânea brasileira
de histórias em quadrinhos Delirium tremens de Edgar Allan Poe, com nar-
rativas inspiradas pela vida e pela obra do autor de “O corvo”.
O conto de Benjamin consta na coletânea Maldito Sertão (Jovens Escribas,
2012), obra que explora o imaginário e o universo sertanejos com o objetivo
de causar o efeito do horror. Aqui, pretende-se verificar em que medida a
voz (oralidade) e o corpo participam dessa construção, ou dessa intenção,
por meio de um conceito literário basilar: o de performance proposto pelo
suíço Paul Zumthor. Tal objetivo vem acompanhado por uma indagação: ao
evocar o hábito ancestral de compartilhar histórias à luz da fogueira, seria a
estratégia da “escrita-falada” capaz de causar o efeito ou de desferir o golpe
do horror?
Os estudos da oralidade aplicada à produção literária, no entanto, en-
sejam desafios. Neste espaço, o principal impasse será o de inferir ao “texto
oral” de Márcio Benjamin os mesmos significados e interpretações que se
aplicam ao escrito. Como nos lembra o teórico Frederico Fernandes, “não
se trata, apenas, de diferenciar o escrito do oral; a palavra transmitida pela
voz é produção de sentido e, enquanto tal, existem diferentes formas pelas
quais o texto se ordena ou reordena” (2013, p. 13).

375
Para enfrentar esse impasse, recorrer-se-á aos postulados de Paul Zumthor
contidos em Performance, Recepção, Leitura, livro publicado originalmente
em 1990. O medievalista e crítico suíço dedicou boa parte de sua pesquisa a
debates acerca da noção de literatura; e, na obra em questão, propõe que a
voz, o corpo e a presença física assumam protagonismo na constituição do
fenômeno literário, e que a performance seja compreendida como linguagem.
Afirma Zumthor que:
É ele [o corpo] que sinto reagir, ao contato saboroso
dos textos que amo; ele que vibra em mim, uma presen-
ça que chega à opressão. O corpo é o peso sentido na
experiência que faço dos textos. Meu corpo é a materia-
lização daquilo que me é próprio, realidade vivida e que
determina a minha relação com o mundo. (2018, p. 164)

Referindo-se à leitura não como uma operação neutra, de decodificação


de grafismos, e sim como uma atividade capaz de proporcionar um prazer
que “emana de um laço pessoal estabelecido entre o leitor que lê e o texto
como tal” (2018, p. 177), Zumthor introduz, nos estudos literários, a consi-
deração das percepções sensoriais “de um corpo vivo” (p. 189). Neste ponto,
começa a delinear-se o conceito de performance, que o medievalista entende
por reconhecimento: “a performance realiza, concretiza, faz passar algo que
eu reconheço, da virtualidade à atualidade” (p. 240). Como consequência
desse reconhecimento, a performance se localiza em um contexto cultural
e situacional, tornando-se um fenômeno que se desloca desse contexto ao
mesmo tempo em que nele se insere — e que, assim, ultrapassa a percepção
comum dos acontecimentos. Cabe já notar, aqui, uma conjugação favorável
às narrativas de horror, que muito frequentemente dependem dessa recepção
invulgar para cumprirem-se como tais.
Mais à frente, Zumthor define a performance a partir da teoria da comunica-
ção: “É, com efeito, próprio da situação oral, que transmissão e recepção cons-
tituam aí um ato único de participação, copresença, esta gerando o prazer. Esse
ato único é a performance” (p. 256). Tal concepção de prazer sensorial confere
poeticidade ou literariedade ao texto, e permite relacionar o pensamento do me-
dievalista às formulações aqui propostas para as narrativas de horror. Afirma ele:

376
Que um texto seja reconhecido por poético (literá-
rio) ou não depende do sentimento que o nosso corpo
tem. Necessidade para produzir seus efeitos; isto é, para
nos dar prazer; é este, a meu ver, um critério absoluto.
Quando não há prazer, ou ele cessa, o texto muda de
natureza. (2018, p. 283-296, destaque nosso).

Ora, se as narrativas literárias de horror constituem-se a partir de um


efeito e de estratégias discursivas para obtê-lo, parece cabível incluir, entre
essas estratégias, textos que se proponham a acentuar a presença da voz, e
portanto do corpo, em suas estruturas. Textos marcados pela oralidade, que
ofereçam “a escuta de uma voz” que permita ao leitor refazer “em corpo e em
espírito o percurso traçado pela voz do poeta [escritor]: do silêncio anterior
até o objeto que lhe é dado, aqui, sobre a página”. Assim, “a leitura torna-se
escuta, apreensão cega dessa transfiguração, enquanto se forma o prazer,
sem igual” (2018, p. 235).
Este é o caso da prosa de Márcio Benjamin. Nela, verifica-se que predomi-
nam marcas de oralidade, sobretudo do falar do sertão nordestino. O conto
“Casa de Fazenda” fornece um exemplo representativo daquilo que se pode
chamar de texto-falado em função do horror. O breve relato traz a história
de um homem já idoso que está sozinho em uma casa de fazenda em meio
aos ermos do sertão, na qual ocorreu uma imensa tragédia. O homem aguar-
da por alguém ou algo que, no primeiro momento, não se sabe o que é; mas
aguarda com fúria. Na narração, a palavra escrita — elaborada, planejada,
correta — esforça-se para se tornar palavra falada — não-planejada, pouco
elaborada, permeada por desvios e incorreções, tanto no plano dos diálogos
quanto da narração em terceira pessoa, um procedimento recorrente na fic-
ção do autor potiguar, como pode ser constatado no trecho a seguir:
A cadeira de balanço rangia a cada empurrada do
velho, a cada alisada na espingarda. Seus dentes também
rangiam; iguaizinhos às juntas dos dedos, arrudiando
a arma.

Rangiam era de ódio.


Aguardando. Atocaiando.

377
Era sexta-feira. Desde manhãzinha, os cachorros
tavam era tudo agoniado. O que era mais forte acordou
foi estraçalhado em cima de um formigueiro, bem de
frente pra casa-grande.

Os outros, presos e já meio doidos, puderam fazer foi


nada enquanto os urubus rodavam no céu, pousando de
ruma para devorar o que sobrou daquelas tripas.

Coisa de não se crer o pavor nos olhos mortos do


bicho. (2015, p. 14-15)

O homem é o proprietário do local, de onde “o restinho até dos mais fiéis


empregados tinham ido embora” (p. 15). Sabe-se que as filhas e a esposa do
homem haviam morrido: “seis moças. Tudinha morta. O filho único? Tomou
a estrada. Louco. Sua mulher tinha sido a última” (p. 15). Note-se como os
marcadores da fala permeiam o enunciado: frases curtas e simples, inversões,
distorções e regionalismos.
Logo se descobre que o homem aguarda por alguma espécie de criatura,
que aparentemente fora o agente da tragédia. Ele até tentou salvar a esposa,
que protegia uma das filhas, porém “chegou foi tarde demais”. O velho “ainda
descarregou a munição inteirinha, mas o bicho só fez dar uma olhada pelo
rabo do olho e sumir para dentro da mata, com os pedaços da inocente ba-
lançando dentro da boca” (p. 15).
Cabe constatar como o enunciado busca corporificar o texto, conforme
postulou Zumthor. A prosa acentua a “escuta de uma voz”, remetendo o leitor
ao “ato único de participação, de copresença”, ou à performance, que aqui é
situada no contexto ancestral de se compartilhar histórias assustadoras. A
ponto de, em certo momento, a narração se dirigir ao leitor: “O senhor já se
viu sozinho, numa casa de fazenda, com os restos da sua família esparrama-
dos pelo chão de areia?” (2015, p. 15). Trata-se de um recurso metalinguístico
que alude a técnicas recorrentes na ficção literária de horror: personagens-
-narradoras e narrativas emolduradas.
No entanto, ainda que acene para essa tradição, a ficção de Márcio Benjamin
opera de outra forma, impregnando-se de marcações orais também quando a
narrativa ocorre na terceira pessoa, assim acentuando a performance da leitura.

378
Evidências disso são encontradas mais adiante no conto, quando o enunciado
começa a revelar, ainda que por relances, a criatura que ronda a casa:
Apois o sangue daquele chão e o sangue daqueles
olhos vermelhos acompanhavam o velho era todos os
dias. Todas as noites.

Mortas as meninas, morta a mulher, rondava a casa


aquele satanás, uivando alto como um condenado. Cha-
mando quem tinha sobrado.

Foi aí que o velho sentiu as juntas doerem. Mas não


de idade, de idade não.
(2015, p. 16).

Intui-se que se trata de um lobo. No entanto, convém apontar que o autor


utiliza esse recurso de vaga revelação — também bastante caro a ficcionistas
de horror — com eficácia, uma vez que o procedimento contempla o que
Umberto Eco chamou de “um duplo Leitor Modelo”:
Ele [um texto] dirige-se a um leitor modelo de pri-
meiro nível, que chamarei de semântico, o qual deseja
saber (e justamente) como a história vai acabar [...]. Mas
o texto dirige-se também a um leitor modelo de segundo
nível, que chamaremos de semiótico ou estético, o qual
se pergunta que tipo de leitor aquele conto pede que ele
seja, e quer descobrir como procede o autor modelo que
o instrui passo a passo. (2003, p. 208)

Ora, o primeiro contingente de leitores, os semânticos, captura a refe-


rência ao lobo, e eventualmente até a referência à figura lendária de um
lobisomem. Já o segundo grupo, de leitores estéticos, talvez mais atento às
pistas fornecidas pela narração, deduza que se trata da acepção brasileira,
e até mesmo regional, da criatura. Em um breve ensaio intitulado “Lican-
tropia sertaneja”, Luís da Câmara Cascudo explica que a origem da lenda do
lobisomem encontra-se na mitologia grega: Lycaon, filho de Pelasgo, rei da
Arcádia, tentou matar Júpiter e foi transformado em lobo. O folclorista situa
o monstro em um contexto luso-brasileiro da seguinte forma:

379
Em Portugal, o lobisomem é o filho que nasce depois
de uma série de seis filhas [...] Para o Sertão o lobisomem
está fixado em dois modos: como castigo e como molés-
tia. A reminiscência de Lycaon é patente no primeiro
caso. Júpiter, pai dos homens, castigou um filho espúrio,
fazendo-o lobo. O mau filho é candidato a lobisomem.
O “doente” é pessoa apontada comumente. (2016, p. 2)

Em “Casa de Fazenda”, sabe-se que as seis filhas do velho estão “tudinha


morta”, e que o filho único tomou a estrada, “louco” — ou doente. Contudo,
o narrador em momento algum nomeia a criatura, cuja presença é tão re-
corrente no imaginário sertanejo; não se menciona nem o lobisomem deste
conto, nem outros monstros que povoam demais relatos de Maldito sertão,
como a Mula sem cabeça de “À sombra da cruz” ou o Papa-figo de “Estradinha
de barro”. Elípticos, os textos se configuram como um jogo de adivinhação
endereçado ao leitor estético, disposto a acompanhar mais de perto o “passo
a passo” do autor modelo a que se Eco se referiu.
De volta ao relato, observa-se uma rápida intensificação do suspense: “A
noite entrou na fazenda sem pedir licença [...] até que o relógio grande na
cozinha badalou doze vezes. E ele deu um pulo, aconchegando a espingarda no
peito como quem aninha uma criança. Mas aconteceu foi nada.” (2015, p. 17).
Nota-se aqui um expediente próprio de textos literários de horror, sobretudo
de contos: após a apresentação de personagens e da história pregressa (por
meio de saltos temporais), necessária para o desenvolvimento do enredo, a
narração enfim se fixa, detendo-se em elementos cênicos que contribuem para
a composição da atmosfera antecedente ao clímax: os badalos do relógio, “o
chiado das cigarras e, vez por outra, uma zuadinha de vento no juazeiro perto
da porteira”, a “Lua grande do lado de cima, reluzindo na arma” (p. 17), entre
outros. Há, por assim dizer, uma desaceleração da narrativa, procedimento
que a literatura toma de empréstimo do cinema — mais especificamente
por meio da montagem.
É neste momento que se dá o confronto entre o velho e o lobisomem, que
“apareceu em um piscar de olhos, uma cochilada de nada” (p. 18). A ação
a seguir é rápida. A criatura ataca e o homem dispara a espingarda, que,

380
“tinhosa que só ela, cuspiu no peito do bicho as balas derretidas no tacho
de rapadura” (p. 19); balas de prata, as únicas capazes de matá-lo. E de fato
o fazem: “Com o peso das balas, o bicho voou de costas e caiu ciscando no
chão, dando um uivo gemido. Até que se calou” (id.). Aproximando-se da
criatura inerte, o velho descobre tratar-se de seu filho, “O sétimo, depois
das seis meninas. Lobo.” O relato encerra-se com essa única palavra, que
denuncia o filicídio.
Já a coletânea em quadrinho Delirium Tremens (Draco, 2019) oferece
exemplos bastante ilustrativos de como o horror pode ser trabalhado na
nona arte. Inspiradas pelo universo Edgar Allan Poe, as histórias percorrem
caminho mais livre, sem as amarras da adaptação do texto literário. Neste
trabalho, abordaremos a narrativa “Butim”, que tem roteiro de Raphael Fer-
nandes e arte de Tiago Palma e se inspira livremente no conto “O enterro
prematuro”, de Edgar Allan Poe (que trata também de um dos maiores medos
do autor estadunidense, de acordo com seus biógrafos).
Transitando entre a ficção policial e o horror, a HQ é apresentada do
ponto de vista de um narrador-defunto — literalmente, já que toda a ação
ocorre diante dos olhos de Antônio Correa, homem idoso que acaba de
ser assassinado. A narrativa segue uma estrutura simples: cada página
dupla é dividida em seis quadros retangulares, todos do mesmo tamanho.
Quadros estáticos, pois estático é o olhar de um morto, conforme mostra
a imagem abaixo:

381
Assim, funcionando como a visão do defunto (um recurso muito se-
melhante à câmera subjetiva de narrativas audiovisuais), esses quadros
apresentam os acontecimentos que sucedem imediatamente o assassinato
de Antônio — o evento principal é o inquérito policial para descobrir quem
o matou, tendo em vista que o homem possuía uma considerável herança.
De seu ponto de vista mudo e impotente, o cadáver ainda consciente acom-
panha as intrigas e acusações de familiares, especulando ele próprio sobre
o(a) assassino(a).
Neste contexto, exercem papel fundamental os balões, uma vez que os
quadros estáticos apresentam uma verdadeira cacofonia: diálogos entre po-
liciais, conversas transcendentais entre médicos legistas, debates acalorados
entre possíveis herdeiros durante o velório etc. São os balões que orientam
o olhar do leitor; são os diálogos e a voz da consciência do defunto, pedindo
desesperadamente para ser ouvida, que organizam a narrativa e estabelecem
a “gestão do espaço”, como determina Groensteen.
Essa forma de narração visual já representa um distanciamento das HQs
em relação à ficção literárias de horror, uma vez que é necessária a primazia

382
da imagem para que dela se depreenda sentido. Ainda conforme o teórico
belga, é a primazia da imagem que permite que se cumpra solidariedade
icônica entre os elementos em cena, ou seja, cada elemento adquirindo sen-
tido somente quando em relação com os demais. Tal organização em meio
à cacofonia não seria possível nas narrativas literárias, cuja linearidade do
texto impõe uma orientação específica e determinante para a leitura.
Em relação ao efeito do horror, “Butim” ancora-se em dois elementos
principais. O primeiro se refere ao enredo: a HQ trata de algo que apavora
não apenas Edgar Allan Poe, mas a humanidade desde tempos imemoriais:
sermos enterrados vivos. De início, o narrador-defunto parece não saber
que está morto; e quando descobre sua condição, luta angustiadamente
contra ela, até chegar ao mais profundo desespero, intensificado por uma
terrível revelação final. Nesse território, a narrativa sequencial de Delirium
Tremens de Edgar Allan Poe filia-se a uma vasta tradição de obras literárias
criadas a partir do medo de sepultamentos prematuros, tendo o próprio Poe
como figura de proa. Também relaciona-se a consagradas ghost stories da
literatura, de autores como M. R. James, Henry James, Robert Aickman,
entre tantos outros.
“Butim” também busca o efeito do horror por meio da primazia da ima-
gem, bastante vinculada ao grotesco. Aqui, a narrativa novamente se afasta
da literatura, uma vez que a descrição textual de uma autópsia, por exemplo,
jamais será tão explícita ou vívida quanto uma descrição visual; é o caso da
HQ em questão, em que o narrador-defunto acompanha todos os detalhes
sórdidos da própria autópsia, conforme demonstrado a seguir:

383
Por outro lado, a virada de página é um recurso que pode aproximar am-
bas as linguagens no território do horror. Tanto o texto como os elementos
visuais das HQs podem ser organizados de modo a proporcionar uma reve-
lação, conforme Groensteen estabelece na conceituação de páginas duplas;
um “abrir de portas” para o leitor, apresentando-o a cenários assustadores
(frequentemente pela via do grotesco). As narrativas sequenciais, em especial,
tiram proveito disso, acentuando o suspense que necessariamente se vincula
ao efeito do horror. Em “Butim”, esse recurso é utilizado em dois momentos:
na realização da autópsia e na página que antecede o último quadro, com a
revelação final.
Por fim, uma última estratégia narrativa pode ser apontada como elemen-
to recorrente nas narrativas literárias e sequenciais de horror, em especial
“Butim” e “Casa de Fazenda”: a oralidade. No caso da HQ, a história é toda
relatada por meio de diálogos, uma vez que mesmo os balões recordatórios
expressam a consciência do defunto, e não a voz de um narrador onisciente.
Como afirmou Groensteen, a fala tem “a função importante de dar natura-
lidade e aproximar da realidade” os leitores, procedimento semelhante ao

384
observado no conto de Márcio Benjamin, em que a oralidade é trabalhada
de modo a intensificar a performance de quem conta uma história de horror.

385
Notas

1 Widely read and published — and not like other genres that rely more heavily on
specific historical e locational coordinates, such as the Western and the science
fiction — horror is largely defined by its affective pretences. Horror takes its name,
in other words, from the effects that it seeks to elicit in its readers.
2 [...] more readily associated with the film industry than with the literary one.
3 Unlike cinema, which cannot help but show us images, fiction forces us to pro-
cess information [...] may more readily disturb the minds of readers by engaging
with their imagination.
4 “Horror e a ideia da vida cotidiana: ameaças céticas em Psicose e Os pássaros”
5 (1) An appearance of the evil supernatural or the monstruous (this includes the
psychopath who kills monstruously); and (2) the intentional elicitation of dread,
visceral disgust, fear or startlement in the spectator or reader.
6 Realistic.
7 [...] monsters are essentially fictional, not something to be worried about in real life.

386
REFERÊNCIAS

BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias


do sublime e do belo. Campinas, SP: Papirus, 1993.
BENJAMIN, Márcio. Maldito sertão. Natal: Jovens escribas, 2015.
CARROLL, Noël. A filosofia do horror ou paradoxos do coração. Trad.: Roberto
Leal Ferreira. Campinas: Papirus, 1999.
ECO, Umberto. Sobre a literatura. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Re-
cord, 2003.
FERNANDES, Frederico. Apresentação. In: FERNANDES, Frederico (org.).
Oralidade e literatura: manifestações e abordagens no Brasil. Londrina:
Universidade Estadual de Londrina, 2013. Disponível em: <http://www.
uel.br/editora/portal/pages/livros-digitais-gratuitos.php>, acessado
em 03/02/2020.
FERNANDES, Raphael; PALMA, Tiago. Butim. In: FERNANDES, Raphael
(org.). Delirium Tremens de Edgar Allan Poe. São Paulo: Draco, 2018.
GROENSTEEN, Thierry. O sistema dos quadrinhos. Trad.: Érico Assis. São
Paulo: Marsupial, 2015.
JAUSS, H. R. apud FIGURELLI, Roberto. Hans Robert Jauss e a Estética da
Recepção. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 1988. Disponível
em: <https://revistas.ufpr.br/letras/article/view/19243>, acessado em
11/05/2020.
LOVECRAFT, Howard Phillips. O horror sobrenatural em literatura. Trad.
Celso M. Paciornik. São Paulo: Iluminuras, 2000.
NICKEL, Philip J. “Horror and the Idea of Everyday Life: On Skeptical Threats
in Psycho and The Birds”. In: FAHY, Thomas. The Philosophy of Horror.
Lexington: The University Press of Kentucky, p.14-32, 2010.
NODIER, Charles. Du fantastique en littérature. Paris: Chimères, 1989.
ROAS, David: Tras los límites de lo real - Una definición de lo fantástico. Ma-
drid: Páginas de Espuma, 2011.
TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. Trad. Maria Clara
C. Castello. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.
WALPOLE, Horace. O Castelo de Otranto. Trad. Oscar Nestarez. Barueri:
Novo Século, 2019.

387
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura (trad. Jerusa Pires Ferreira
e Suely Fenerich). São Paulo: Ubu Editora, 2018.

388
B
Honwana e a língua do avesso
Marana Borges

Neste artigo, buscamos oferecer uma chave de leitura para um conjunto de


narrativas curtas do moçambicano Luís Bernardo Honwana. Primeiramente,
faremos um percurso pela coletânea de contos Nós matamos o Cão Tinhoso!
para depois determo-nos no conto “Rosita, até morrer”. Este último, escrito
posteriormente, foi incluído no final da coletânea, na edição brasileira da
editora Kapulana (2017).
Nosso objetivo é duplo: por um lado, propor uma leitura da coletânea que
leve em conta o binômio violência - imobilidade como elemento estruturador
das narrativas. A partir daí, defenderemos que o conto “Rosita, até morrer”
(doravante chamado apenas “Rosita”) não somente recupera alguns aspec-
tos do livro, mas os leva a outro patamar, sugerindo formas particulares de
rebelar-se contra certas formas de violência.
Há algumas ressalvas a serem feitas. Tratam-se de dois corpora separados
no tempo e no espaço: a antologia é de 1964, publicada em Moçambique; o
conto sobre Rosita apareceu em 1971 na revista Vértice, em Portugal, onde o
autor cursou Direito após sair da prisão em Moçambique, prisão decorrente
de sua militância política.
Há diferenças importantes entre o livro e “Rosita” também no que con-
cerne o tom e a linguagem. Apesar disso, “Rosita” resgata alguns aspectos
do livro, nomeadamente a imobilidade, mas a trata de um modo todo novo.

389
Agora nos deteremos no livro. Quando, aos vinte e dois anos, Honwana
publica aquele que viria a ser seu único livro de ficção, Nós matamos o cão
tinhoso!, Moçambique era colônia portuguesa e Honwana, um militante da
Frente pela Libertação de Moçambique. No mesmo ano, tem início a luta
anticolonial e o escritor é preso em decorrência de sua atuação política. Ele
passaria três anos encarcerado.
A obra foi um marco na sociedade intelectual moçambicana e de outros
países africanos. Eleita um dos cem melhores livros africanos do século XX
pela Zimbabwe International Book Fair, exerceu grande influência sobre as
gerações de escritores que lhe seguiu. Foi elogiada por poetas como José
Craveirinha e, em 2007, Ondjaki escreve o conto “Nós choramos pelo cão
tinhoso”, uma homenagem explícita ao mais famoso conto de Honwana.
Para a análise da narrativa, buscaremos pôr à prova as hipóteses de que:
a) as personagens veem-se enredadas em situações de opressão e violência
física e simbólica das quais não conseguem escapar; b) face à violência, a
reação das personagens é de imobilidade; c) a imobilidade se explica por
interditos de várias ordens que impedem as personagens de verbalizar e/ou
partilhar pela linguagem o entendimento da violência em toda sua extensão.
Há uma coesão no que se refere ao tema, ao tempo e ao espaço dos con-
tos. Todos tratam de situações de opressão vividas por personagens pobres
em Moçambique colonial. Mas há uma outra coesão que unifica o livro, já
anunciada em outra ocasião (BORGES, 2019), e que agora é oportuno apro-
fundar: a imobilidade. Ela funcionaria como elemento estruturador das
sete narrativas. Imobilidade aqui abrange muitos sentidos: uma posição de
espera; uma imobilidade social representada por personagens sem qualquer
possibilidade de ascensão social; impossibilidade de autoafirmação, de se
mover, de falar, de recusar.
Em todos os casos, a imobilidade é a resposta possível das personagens
para um contexto de violência. Via de regra, elas se veem enredadas em si-
tuações de opressão e violência física e simbólica das quais não conseguem
escapar. Um exemplo é o velho Madala do conto “Dina”, dobrado durante horas
sobre o ventre enquanto retira ervas daninhas do chão. Nessa posição, sob o
sol do meio dia, Madala é incapaz de se queixar ou se levantar, à espera de
que o capataz dê sinal para a pausa do almoço. Vejamos algumas passagens:

390
Dobrado sobre o ventre e com as mãos pendentes
para o chão, Madala ouviu a última das doze badaladas do
meio-dia. (...) Apoiou os cotovelos aos joelhos e esperou
pacientemente. (...) A dor dos rins era-lhe insuportável, e
muito mais agora que já tinha tocado o dina. (...) Madala
curvou-se à frente até experimentar uma dor lancinante
(...) Madala arrancou mais duas plantas e esperou, de
cotovelos apoiados aos joelhos. (HONWANA, 2017, p.
57, 58, 59, 60)

É a hora do almoço, mas o capataz não ordenou a suspensão temporária


do trabalho. Por isso, Madala, trabalhador agrícola, passa toda a primeira
parte do conto ajustando-se da melhor maneira à posição de espera. Uma
espera que é labor: as badaladas já anunciaram o meio dia, mas os trabalha-
dores não foram liberados. A pausa não depende do horário, mas do poder do
capataz. O que resta a Madala, então, é seguir trabalhando, economizando o
pouco de força que tem, aguentando as dores nos tendões do joelho, depois
dos órgãos internos.
Madala não para de trabalhar, mas o próprio jeito que o faz, aos poucos,
medindo cada pequeníssimo movimento, é a imagem da imobilidade. Uma
imobilidade voluntária e subserviente. É o pacto da violência, da coerção, que
obriga a vítima a aceitar os mandos, sob pena de represálias físicas. Madala
não se levanta. Imobilidade, aqui, é sobrevivência.
Contudo, descrever a personagem apenas como um obediente trabalhador
seria ignorar toda a tensão que se alonga desde os músculos dos braços até o
interior de Madala. Ele está faminto e exausto; ele quer, ele precisa levantar-
-se. Após o capataz finalmente anunciar a pausa, a reação de Madala é, para
surpresa do leitor, adiar seu alívio: “Não se levantou logo” (HONAWA, 2017, p.
61). O verbo ‘convir’ revela a complexidade dessa espera: “Não convinha que o
capataz notasse que tinha pressa em largar o trabalho.” (HONWANA, 2017, p. 61).
Espera e imobilidade andam juntas. Estão todas revestidas do bom grado
e da concordância, mas, no fundo, elas trazem um disfarce que é fingimen-
to e simulação: ao decidir obedecer, Madala, o que faz, é estacar por dentro
suas dores e conflitos. A imobilidade de ação torna-se espelho da imobili-
dade social.

391
Como explicar a imobilidade?

Quando entramos nos contos com essa chave, percebemos que muitas
personagens não conseguem nomear ou entender seus sentimentos nem
aquilo que lhes acontece. Mais do que não conseguir, melhor seria dizer: não
podem. Vejamos “A velhota”. Um filho mais velho chega em casa, depois de
apanhar na rua de um grupo. Em casa, a mãe dava um jantar parco aos fi-
lhos menores. O mais velho, doído, acaba abraçando a mãe, que se comove:
– Bateram-te? Diz-me, meu filho, eles bateram-te?
Quem foi?
– Não, não me bateram.
– Mas eles fizeram-te alguma coisa, não fizeram? Tu
estás com raiva, não é? [...] Não queres contar? Não?
Não queres?
– Não serve de nada.
[...]
– Meu filho, eu não entendo bem o que estás para aí
a dizer, palavra que não entendo. Mas tu tremes, tu estás
ou assustado ou muito zangado... [...]
– (...) Sim, eu vou dizer: eles bateram-me. (...) Eles
fizeram-me pequenino e conseguem que eu me sinta
pequenino. (...) E por quê? (...)
– Bem, acho que o melhor é não querer saber disso
para nada, porque não percebo nada do que tu dizes...
(HONWANA, 2017, pp. 83-85)

Os dois ficam em silêncio, abraçados. A mãe quer dizer-lhe algo: “Ela


tinha estado um bom pedaço a matutar na maneira de me dizer qualquer
coisa que afinal não disse” (HONWANA, 2017, p. 86). Não se sabe o que a
mãe queria dizer e por que não o fez, se não podia ou não conseguia fazê-lo.
O leitor fica no escuro, mas inventa algumas interpretações: as palavras da
mãe podem ser mais dolorosas que o silêncio; diante de uma realidade que
não se pode mudar, melhor é calar-se; ao silenciar-se, a mãe está concordan-
do com a indignação do filho, mas ambos sabem que esse sentimento não
terá consequências. Em qualquer dos casos, o silêncio diz tudo: legitima o
sofrimento, mas não oferece uma via para a rebeldia.

392
O que a imobilidade põe em questão não é a incapacidade cognitiva, mas
o medo de entender, nomear, apontar. O silêncio é ferramenta de sobrevi-
vência. Provavelmente a briga em que se meteu o filho envolvia relações de
poder típicas de um sistema colonial racista. É o mesmo medo que tem o
Cão Tinhoso de olhar para os olhos, em outro conto. A frase evocada diver-
sas vezes ao longo do conto que dá nome à coletânea refere àqueles olhos “a
olhar como uma pessoa a pedir qualquer coisa sem querer dizer” (HONWA-
NA, 2017, p. 11 e 18). Ora, um cão sarnento, velho, magro, cheio de feridas.
Por que seus olhos haveriam de meter medo? Porque olhá-los é reconhecer
a opressão; uma opressão sofrida, aceita e reproduzida.
A explicação da violência, em toda sua extensão, segue sem ser partilha-
da. Uma extensão que abrange tanto o uso direto da força quanto a estrutura
social desigual e excludente motivada pela origem, cor, classe, gênero. Sem
ser partilhada, a violência não pode ser desmantelada. Não há revolução. As
personagens engolem-na.
Desde os anos 1960, o norueguês Joahn Galtung desenvolveu um amplo
conceito de violência, do qual nos valemos aqui. Em seu artigo mais famoso,
“Violence, Peace, and Peace Research” (1969), ele rejeita que a violência possa
ser uma lista de coisas indesejáveis. Por meio de deduções lógicas, almeja
uma definição ampla o suficiente para servir de base comum a diferentes
sociedades e estreita o suficiente para guiar ações concretas em busca da
paz. Apesar da tendência tipológica e dicotômica de Galtung, ele pode nos
ser muito útil para entender a profundidade da violência.
Segundo Galtung, a violência apresenta-se em várias dimensões: pode ser
física-somática ou psicológica; direta ou indireta; praticada por um sujeito
identificável ou não; intencional ou não; decorrente do uso direto da força
ou, por exemplo, da distribuição de recursos materiais. De modo geral, pode
ser definida como “danos evitáveis às necessidades básicas dos seres huma-
nos, e mais amplamente à vida” (GALTUNG, 1990, p. 292, tradução nossa).
Nem sempre a violência comporta o esquema a ‘sujeito — ação — obje-
to’, isto é, um sujeito que pratica uma ação contra um objeto. Se é mais fácil
sinalizar a violência resultante do uso direto da força praticada por agentes,
como é o caso de guerras e homicídios, a violência estrutural é mais complexa
e possui uma natureza abstrata. Os atos não são cometidos apenas por indi-

393
víduos isolados, nem apenas por indivíduos em nome de grupos específicos,
mas todo um sistema torna-se responsável: “A violência está alicerçada na
estrutura e aparece como poder desigual e, consequentemente, oportunida-
des de vida desiguais” (GALTUNG, 1969, p. 171). Não apenas os recursos são
distribuídos de modo desigual, mas o poder de decidir como e onde empre-
gá-los. Na base da violência estrutural está a injustiça social.
Contudo, um escopo tão abrangente do conceito de violência acaba por
tornar o termo de difícil aplicação e suscetível a diversos problemas filosófi-
cos. Ele define a violência como sendo tudo aquilo “que aumenta a distância
entre o potencial e o atual”, e, adiante, diz: “Em outras palavras, quando o
potencial é maior que o factual, então o factual é por definição evitável e,
quando é evitável, existe a violência.” (GALTUNG, 1969, p. 168 e 169). Ou seja,
Galtung a diagnostica na impossibilidade e no fracasso da realização plena do
potencial humano. No limite, a privação de certos elementos ou bens na vida
de pessoas, ao contrapor-se ao potencial, responde a uma norma teleológica
do que seria o potencial humano. Em geral, definido segundo uma ideia de
progresso técnico e científico que pretende ser universal.
Apesar dessas reservas, a posição consequencialista de Galtung é crucial
para uma teoria que pretende servir à tomada de ações concretas de constru-
ção da paz. O sociólogo chama atenção não para as intenções das ações, mas
sobretudo para suas consequências. O resultado concreto de certas situações
para a vida das pessoas prescinde de um sujeito identificável. Por isso, ao
apelar às consequências, a teoria de Galtung permite incluir as estruturas
sociais excludentes e injustas na conta da violência. Se há resultados que não
derivam de sujeitos e portanto, resultados sem ações, não cabe pensar em
intenção (a ação intencional é própria dos sujeitos), mas em consequências.
O consequencialismo é defendido por Yves Winter (2012) como uma
batalha contra a visão positivista segundo a qual o conceito de violência
depende de um perpetrador visível a quem se possa responsabilizar e culpar
pelos atos que geram sofrimento em outras pessoas: “Individual agency and
legal responsibility are unsatisfactory criteria for determining the incidence
of violence” (WINTER, 2012, p. 197). Ainda no século XIX, quando Friedrich
Engels, disse não haver diferença entre uma morte por tiro ou uma morte
decorrente da pobreza dos trabalhadores no sistema capitalista – “o ato é

394
assassinato” – ele buscava o reconhecimento de um tipo de violência invi-
sível. Invisível, mas conhecida. A sociedade sabia que colocar milhares de
pessoas em condições de grande precariedade material lhes causaria danos
e mesmo uma morte precoce.
Winter aponta os limites da teoria consequencialista e a propensão de
Galtung (e Engels) a classificações estáticas e binárias para diagnosticar a
violência: morte/vida, saúde/doença, etc. Esta tendência, aliás, colaboraria
para colocar Galtung em uma espécie de ostracismo algumas décadas se-
guintes aos seus trabalhos mais conhecidos que fundaram os estudos da paz.
A maneira que Winter encontra de reinventá-lo é manter a crítica de
Galtung à invisibilidade, mas aproximá-lo à noção de violência na tragédia
grega. Não nos cabe aqui aprofundarmos a questão, mas vale a pena avançar
às conclusões de Winter: “O que torna a violência estrutural não é o fato de
ela ser invisível, mas de ser herdada através de gerações” (WINTER, 2012,
p. 201). Deste modo, invisível, herdada e intergeracional, a violência se pro-
paga. Precisamente por ser invisível, aliás, a violência atravessa gerações.
Quando nos voltamos aos contos de Honwana com esse olhar entre Gal-
tung e Winter, vemos que imobilidade social e de ações contrasta com a ca-
pacidade de a violência mover-se: move-se para cruzar todas as gerações de
uma família. O leitor cedo compreende que a violência em Honwana não é
apenas de socos e espingardas, como aparece em alguns contos de Nós mata-
mos o Cão Tinhoso!. O escritor desentranha o campo minado de práticas da
violência direta e estrutural do sistema colonial que, às vezes visíveis, outras
invisíveis, acometem e aprisionam gerações de moçambicanos.
O autor vai além: em suas narrativas, a própria natureza é violenta – as
rolas devoram as plantações de milho; o sol do meio-dia devasta os corpos
e turva a vista; a cobra mata um cachorro e esse simples acontecimento po-
derá arruinar o pai da família.
Ora, mas nesses últimos exemplos, se os fenômenos da natureza seguem
seu curso inexorável e seus resultados são inevitáveis – então, em teoria,
não seriam expressão de violência nem suportariam o adjetivo violento.
Galtung mais uma vez nos socorre: o que pode ser evitado depende, entre
outras coisas, do uso e da distribuição de recursos. Se esses recursos “são
monopolizados por um grupo ou uma classe ou são usados para outros pro-

395
pósitos, (...) então a violência está presente no sistema” (GALTUNG, 1969,
p. 169, itálico no original). Ou em outra passagem: “a fórmula geral por trás
da violência estrutural é a desigualdade, acima de tudo na distribuição do
poder” (GALTUNG, 1969, p. 175).
Como ele mesmo exemplifica, um terremoto não pode ser evitado. Mas,
se uma parte da sociedade vive em casas sólidas, enquanto outras dispõem de
moradias tão precárias que as tornam vítimas mortais dos impactos de um
terremoto, então essas diferenças habitacionais são uma expressão da violência
estrutural: “Em outras palavras, mesmo que o desastre natural seja inevitável,
o impacto social diferente pode ser evitado” (GALTUNG, 1969, p. 186).
É assim que podemos questionar se em Moçambique colonial não haveria
meios de impedir a devastação das plantações pelas rolas ou minimizar o im-
pacto negativo sobre os camponeses; se não se poderia suspender o trabalho
agrícola e a consequente exposição dos corpos ao sol durante as horas mais
quentes do dia; se deveria ser o vizinho pobre a pagar pela picada de uma
cobra no cachorro do vizinho rico. Como se vê, desprovidos de quaisquer
recursos materiais, os colonos pobres ficam à mercê dos eventos naturais.
Portanto, é a violência social, aquela cujos resultados poderiam ser evi-
tados, aquela impetrada pelos homens contra outros homens, que mina as
personagens. É uma construção social baseada na injustiça e abuso de poder,
opressão social e pobreza. Essa forma de violência está em todas partes, e
mostra sua força especialmente ao instalar-se no seio das relações familiares.
Em “Papá, a cobra e eu”, como já adiantamos, o cachorro do vizinho é
acidentalmente picado por uma cobra no quintal de Ginho, e morre. Mas
o vizinho é homem branco, homem de poder, Sr. Castro, e obriga o pai da
família a pagar-lhe uma indenização tão absurda quanto inviável para seus
escassos recursos. Então esse pai insulta o Sr. Castro em voz alta – mas so-
mente depois de o algoz ir embora.
– Filho da mãe!
Aproximei-me dele e puxei-lhe a manga do casaco:
– Papá, por que é que não disseste isso à frente dele?
Não me respondeu
(HONWANA, 2017, p. 102).

396
Há um interdito que impede as personagens de fortalecerem e partilha-
rem esse entendimento pela linguagem: mais uma vez, é o medo. O medo
paralisa. Silencia. Imobiliza. O pai que perde a filha para a prostituição, o
trabalhador que perde suas terras férteis para o Estado. Todos têm medo.
Novamente, a revolta vai se encarcerar no silêncio de uma casa, como
encarcerou-se no corpo do velho Madala. Imóveis, adultos engolem a indigna-
ção e ensinam a engoli-la. Praticam uma educação do consentimento. É aqui
que desponta a figura da criança. Ela forma a espinha dorsal das personagens
do livro e é particularmente acometida pela violência e a imobilidade. Em
quatro dos sete contos, o narrador é uma criança, em alguns casos a mesma,
e há outras crianças em vários enredos.
O uso consistente do olhar infantil é uma das escolhas melhor trabalhadas
do livro: ele causa um descompasso entre uma ideia de infância à qual nos
acostumamos a apreciar e a crueza da realidade social em que a criança vive.
Uma noção bastante estendida e aceita na contemporaneidade, herdeira,
entre outros, de Jean Jacques Rousseau, enxerga a infância como um esta-
do inocente da humanidade que merece proteção. Daí que a educação que
Rousseau defendia em Émile, ou de l’Éducation (1762), envolvesse proteção
e desenvolvimento da inocência e bondade inatas da criança, além da sepa-
ração do domínio tirânico dos adultos.
Não é esta infância que aparece no livro de Honwana. As crianças estão
desprotegidas, são vítimas da violência e, algumas vezes, suas reprodutoras.
O desconcerto do leitor ao testemunhar a criança em meio a um contexto
de violência acentua-se pela própria peculiaridade do olhar infantil. Por
exemplo, a maneira como narradores de pouca idade procuram e oferecem
explicações para os fenômenos da natureza e as mazelas sociais é peculiar:
às vezes repetem, sem crítica, o que os adultos disseram; outras vezes, ex-
plicam com base em observações empíricas inusitadas, não científicas ou,
ainda, diria um adulto, óbvias ou ingênuas.
Em “Papá, a cobra e eu”, Ginho afirma: “Quando uma cobra nos morde a
gente morre. A Sartina diz que para a gente não morrer depois de ser mor-
dido por uma cobra é preciso matá-la, queimá-la até ficar seca e comê-la.”
(HONWANA, 2017, p. 98). Já em “Inventário de imóveis e jacentes”, o narra-
dor descreve sua casa, minúscula e asfixiante, e define o corredor: “Para se

397
passar da sala de jantar para a sala de estar, tem-se de passar forçosamente
pelo Corredor. Acho que por lá passamos sempre que vamos de uma divisão
para a outra” (HONWANA, 2017, p. 53).
Em meio à visão inusitada e poética enreda-se a violência. Desta junção
forma-se um complexo tecido de significados a cada vez que se procura, se
aceita e se oferece uma explicação para coisas da vida. A tentativa de expli-
car racionalmente os fatos vai do fenômeno natural mais simples ao social
mais complexo e, a atravessá-la, os dados emocionais humedecem a crueza
da realidade.
O conto “As mãos dos pretos” é um dos mais fortes neste sentido. Durante
a narrativa, tenta-se explicar por que razão a palma da mão das pessoas negras
é mais clara que a pele do corpo. O início simula um modo descompromis-
sado, “Já não sei a que propósito é que isso vinha”, para introduzir uma série
de explicações também, à primeira vista, descompromissadas, mas no fundo
de alto teor racista. As explicações, via de regra não científicas e discrimi-
natórias, são oferecidas pelos adultos. O narrador criança as reproduz. Não
é gratuitamente que ele o faz. Nota-se que, ao mesmo tempo em que reforça
essas explicações, custa entendê-las ou aceitá-las.
Ao escutar o que teriam dito ao filho, a mãe desata a rir, “agarrada à bar-
riga como quem não pode mais de tanto rir”. À longa gargalhada segue-se
a última explicação sobre a cor das mãos dos negros, dada por ela ao filho:
(...) foi para mostrar que o que os homens fazem é
feito por mãos iguais, mãos de pessoas que se tiverem
juízo sabem que antes de serem qualquer outra coisa
são homens. Deve ter sido a pensar assim que Ele fez
com que as mãos dos pretos fossem iguais às mãos dos
homens que dão graças a Deus por não serem pretos.
(HONWANA, 2017, p. 109)

Este conto é o que mais projeta a voz da personagem. Uma fala de resis-
tência que dá causas, explica, acusa. Inclusive, que debocha, a julgar a crise
de riso que precede a fala da mãe. Nesse sentido, destoa dos demais e rompe
o longo silêncio do livro e o interdito da linguagem. Como se não bastasse,

398
à explicação verbal segue-se um gesto de amor, contrapondo-se vertigino-
samente ao racismo que pontuava toda a narrativa: a mãe dá um beijo nas
mãos do narrador.
É com pesar e alívio que ele, no fim, corre ao quintal, como se estivesse
libertado. “Quando fugi para o quintal, para jogar à bola, ia a pensar que
nunca tinha visto uma pessoa a chorar tanto sem que ninguém lhe tivesse
batido.” (HONWANA, 2017, p. 109). Compreendemos, então, que mãe e filho
são negros. O riso da mãe terá sido mesmo riso ou choro? Ao entender a
explicação dada por ela, seu filho terá, realmente, se libertado?
Quando dizemos que a imobilidade atinge todas as personagens, é porque
a criança que corre desembestada, no fundo, também está presa. Presa nas
amarras de relações sociais injustas, racistas e violentas. Ela é tão imóvel
quanto a cama dura, a sala de visita, a estante que o narrador descreve no
conto “Inventário de imóveis e jacentes”.
A imobilidade presente no livro Nós matamos o Cão Tinhoso! trata também
da impossibilidade de ser criança. Esta ideia resume-se na frase da mãe do
narrador de “Papá, cobra e eu”: “Lembra-te de que já não és nenhuma crian-
ça” (HONWANA, 2017, p. 95). Não é apenas porque o corpo está crescendo,
mas porque a violência impõe rupturas entre a infância, no que ela tem de
sonho, de inocência e de confiança nos outros, e a idade adulta. Rompe-se
fronteiras entre as visões modernas do infantil e do adulto. Desde cedo a
criança é chamada a viver e a testemunhar acontecimentos terríveis que
julgamos impróprios para ela.
Uma das formas que a violência se materializa é na relação com os ani-
mais. No livro, as crianças lhes dão descrições corriqueiras, simples, mas por
isso mesmo despercebidas pelo adulto. No já citado “Papá, a cobra e eu”, por
exemplo, Ginho observa Totó deitado a fingir que já comeu a comida, mas
que na verdade esperava as galinhas amontoarem-se em volta do arroz para,
assim, saltar atrás delas. Mais uma vez, ocorre um descompasso quando, na
possível relação de afeto das crianças com os animais, irrompe a violência.
No conto mais famoso de Honwana, aquele que dá nome ao livro, o des-
compasso coloca-se de forma radical. O enredo dá conta de um cachorro
abandonado que vivia na cidade e, devido à sarna e ao seu estado precário
de saúde, causava repugnância (especialmente nos adultos). Até que um

399
adulto, aquele com mais poder, decide matá-lo. Mas serão o narrador e seu
grupo de amigos os incumbidos de executarem a ordem.
O título condensa vários níveis de significado: Nós matamos o Cão Tinho-
so! é, ao mesmo tempo, uma sentença e uma denúncia: ficamos a saber que
o cão está morto. Mais: é assassinado.
A lista de culpados é longa e, quanto mais detalhada, mais revela o peso
da hierarquia social: o Senhor Administrador pedira a cabeça do cão por um
motivo fútil (perdera uma partida de cartas e ficara zangado, quis descontar
no cão); o Duarte da Veterinária foi o encarregado de executá-lo, mas prefe-
riu transferir a outrem o serviço sujo; coagiu as crianças, que cumpriram a
tarefa. O sujeito do título estende-se à toda a comunidade. Em ‘nós’ cabem
muitos nomes, mais do que os citados. Com ponto de exclamação, o título
abrange toda a sociedade, aquela que executa a violência e aquela que se cala.
A figura do cão é ambígua: por um lado, coloca-se como vítima. Afinal,
trata-se de um animal indefeso, abandonado, faminto. É o animal doméstico
por excelência. Por outro lado, parece causar desconforto inclusive em outros
cães. Vaga pelas ruas arrastando suas feridas. Um “cão feio”, diria o narrador.
Um pária. Daí um certo consentimento com sua morte, defendida em nome
da higiene e da coesão social, mas que não durará muito face à consciência
do absurdo e da crueldade.
O título é também uma confissão: são os meninos, o narrador e seus cole-
gas, que o mataram. O leitor desconcerta-se ao ter de abdicar da (idealizada)
ingenuidade atribuída à infância. A infância não basta para desculpar um
crime. Mesmo o fato de se tratar de um ato coletivo não é atenuante nem
exime os meninos da culpa que eles próprios sentem: “É uma coisa de malta,
mesmo de malta” (HONWANA, 2017, p. 25).
Pouco a pouco, apercebemo-nos que nem todos os meninos, para não dizer
nenhum, estão à vontade com a tarefa que lhes é imposta. Até mesmo o líder
do grupo, o destemido Quim, ordena a outros que atirem no cão, e não ele.
Ginho empunha a arma para matar o cão sarnento, mas tem medo. Também
Ginho, no fundo, não se move. Primeiro, literalmente, quando não consegue
disparar, pese as ordens de Quim. Depois, em sentido figurado, quando dispara.
Porque imobilidade aqui é obediência. O narrador atira no cão, sim, mas sua imo-
bilidade, como a dos colegas, é não conseguir reagir ao arbítrio, ao abuso de poder.

400
A mesma imobilidade é partilhada com o cão. No início, ainda antes de ser
decidida sua morte, o cão parece rebelar-se: “(...) o Cão Tinhoso começou a
chiar com boca fechada e avançou para os outros [cães] quase que a correr”. Não
consegue: “Quando os outros se viraram para ver o que ele queria, teve medo
e parou no meio da estrada” (HONWANA, 2017, p. 12). Quem vence é o ‘quase’:
como Ginho, quase se rebela, quase tem coragem suficiente para a desobediência.
Alguns críticos literários enxergaram no cão sarnento o regime colonial
em agonia, que precisava ser abolido para o fim do regime; não por acaso, a
luta contra a metrópole também se deu com armas.
Essa comparação do cão ao regime colonial parece-nos equivocada. Só
pode ser aceita em um sentido parcial, e não enquanto alegoria. Porque
aceitá-la de forma muito estrita é ignorar uma série de elementos: a empatia
do leitor com o cão indefeso; a morte que resulta de uma ordem arbitrária
de um agente do Estado; o estatuto das crianças que a concretizaram – ao
mesmo tempo vítimas e reprodutoras do abuso de poder.
Portanto, talvez o cão se assemelhe ao lado mais fraco: o colonizado. Afi-
nal, o colonizado é desumanizado. Quando o Senhor Administrador, ou seja,
a agente do Estado, ao perder um jogo de cartas, ao mesmo tempo olha para
o menino e para o cão, e vê que ambos estão rindo dele, quando o Senhor
Administrador cospe em algum lugar entre o menino e o cão – o que se está
a dizer é que não há diferença entre os dois, colonizado e cachorro sarnento.
O cão, com aqueles olhos “a olhar como uma pessoa a pedir qualquer
coisa sem querer dizer” (HONWANA, 2017, p. 11, 18), equipara-se ao homem
não porque o cão é humanizado, como gostaria o narrador, mas porque o
homem é desumanizado. Entre eles, especialmente os negros, os negros po-
bres e não assimilados. Também as crianças. Elas são pequenas demais para
terem direitos, e grandes demais para merecerem afeto e proteção.

A língua do avesso

Outrora descrevemos o silêncio enquanto resposta à violência. A língua


na qual se poderia nomear a violência em toda sua profundidade traz em si a

401
herança do colonizador. Contudo, Honwana abre gretas na língua, integrando
expressões em outras línguas africanas, como o ronga, bastante difundido
em Moçambique. Se é verdade que os contos são todos escritos em portu-
guês, as expressões africanas, embora em muito menor número e restritas
basicamente ao vocabulário, são significativas se pensarmos no contexto da
luta anticolonial que marca a produção e publicação da obra.
A impossibilidade de transformar a violência sofrida em verbo – o verbo
indica ação –, bem como ter essa linguagem partilhada e reconhecida pela
comunidade, desembocará em “Rosita, até morrer”.
“Rosita” pode ser lido justamente como uma espécie de desembocar: de
deságue, de um lugar que se chega depois de um percurso, mas que traz con-
sigo esta nascente de rio que é Nós matamos o Cão Tinhoso. É um desembocar
também porque radicaliza problemas apresentados no livro. O conto distan-
cia-se do livro em muitos sentidos. Já não traz qualquer marca do universo
infantil. Contudo, a opressão segue presente e gera formas de imobilidade.
Em forma epistolar, Rosita dita a outrem uma carta ao amado que foi
embora. A carta está em português, e por isso indica que o destinatário se-
ria um assimilado. Isto é, uma pessoa que aderiu ao Estatuto do Assimilado,
em vigor dos anos 1920 aos anos 1960. Esse estatuto conferia a condição de
cidadão português aos colonizados que aceitassem renunciar à cultura au-
tóctone, incluindo o próprio nome, a fim de aderir à cultura da metrópole
(língua portuguesa, cultura, religião, vestuário etc.). Pese a condição oficial
de portugueses, os assimilados continuaram a ser discriminados.
Uma das passagens do conto confirma esta condição do destinatário:
“Você vai pruguntar as pessoa que anda aqui a falar
assim: Ó! Manuel tem esta nossa pele mas agora é branco,
comprou ser branco nos papel, esquenceu os vovô dele
que morreu, esquenceu filha dele que nasceu, esquenceu
terra, esquenceu tudo” (HONWANA, 2017, p. 140).

Em países com altas taxas de analfabetismo, é bastante comum o envio


de carta escrita por uma pessoa em nome de outra. Basta lembrar que, em
1975, quando Moçambique se torna independente de Portugal, o analfabetis-
mo rondava 93% da população, segundo a UNESCO. Antes disso, não havia

402
seguimento e divulgação regular das taxas, mas poderíamos supor que, em
Moçambique colonial, elas eram ainda maiores.
Em “Rosita”, a carta escrita por alguém que conhecia rudimentos do por-
tuguês, e ditada pela protagonista, evidencia a as barreiras à alfabetização
e ao domínio da língua, que são bens culturais e de ascensão social. Esse
interdito contribui para a perpetuação da violência e da imobilidade.
Apesar dessas marcas de exclusão, existe uma rede de solidariedade aí
constituída entre Rosita e quem escreve a carta. Ela diz: “Chico não vai di-
zer ninguém coisa que escreveu para vocé” (HONWANA, 2017, p. 141). Essa
mesma rede também é de desigualdade. Quem escreve, isto é, quem tem
um acesso à língua e à escrita, ainda que precário, é homem, não mulher. O
remetente, sendo mulher e colonizada, é duplamente excluído da escrita e
da leitura, sendo estas mediadas pela voz masculina. Vale ressaltar, contudo,
que Rosita é uma mulher forte o bastante para recorrer a outrem que lhe
escreva a carta que ela quer.
Mas há surpresas interessantes. E é que essa mulher que espera, que
foi abandonada grávida pelo amado, e que só sabe escrever o próprio nome
(é pouco, mas já é simbólico), essa mulher que ainda chora de saudade de
Manuel, mas que depois da chuva acordou contente, vendeu mandoinha e
comprou um lindo vestido para sua filha – essa mulher fala. Se expressa.
Expõe suas dores e alegrias. Partilha.
O elemento mais surpreende e ousado do conto é o tratamento da língua.
Já vimos que na coletânea Nós matamos o Cão Tinhoso integram-se termos
em línguas africanas. Mas, em seu conjunto, as narrativas são fiéis à norma
do português europeu. A africanização do português, um pouco tímida no
livro e circunscrita sobretudo ao léxico, será levada ao limite e com força
em “Rosita”.
“Rosita” reproduz à exaustão os desvios gramaticais da norma culta por-
tuguesa. Cria uma “espécie de poética do erro” (BORGES, 2018, p. 206) que
separa a ignorância da língua e os malabarismos para comunicar o amor e o
sofrimento pela escrita. Não sabemos se o erro é de quem escreve ou de quem
fala, e essa mesma confusão é constitutiva do lugar da personagem femini-
na. Em todo caso, sabemos que há dois filtros no texto e que as personagens
não dominam a norma culta do português europeu: eles a reinventam. Não

403
há dúvidas de que quem primeiro o faz é a própria Rosita, analfabeta, e por
isso mais proclive a abrir gretas no português.
Eu não esquence tu brabou, dormiu comigo, eu era
menina – você encontrou – deixou eu com prenha, fu-
giste com outra mulher. Eu não esquence mas eu já não
zanga nem nada, minha mãe diz é assim, os homem é
maluco. Eu não foi na escola, não tem o estudo nem
nada, escrever meu nome foi vocé que ensinaste. Só sabe
fazer machamba, fazer comida para vocé, lavar teu rou-
pa, gostar vocé. Tratar tua filha também. (HONWANA,
2017, p. 139-140)

Rosita é uma mulher que espera. À semelhança das demais personagens


de Honwana, ela está imóvel. Mas nem tanto. Tem força para dizer. Não se
pode reduzi-la somente ao lugar de inferioridade nas relações de gênero, a
uma mulher traída, uma mãe solteira que aguarda o amante. A força dela é
do tamanho de seu amor e da sua voz que, aos barrancos e do avesso, enuncia
coisas que lhe acontecem por dentro, o cotidiano de uma dor que a reforça
humana – se lembrarmos as discussões sobre “As mãos dos pretos”, veríamos
a audácia dessa voz.
“A língua, somente do avesso, pode dar algum poder ao enunciador: o
poder de comunicar um sentimento privado” (BORGES, 2012, p. 206). Esta-
mos em terreno do indivíduo, sem rebeliões, sem coletivo. Nem por isso há
de se menosprezar a força daquele que tem coragem de falar. Rosita o faz, e
denuncia as misérias de Manuel ao deixar se assimilar, ao querer ser branco.
O gesto político está na tomada de voz, por metonímia, de uma classe dupla-
mente subalterna que aponta e recusa a ferida de querer-se branco. Tomada
de voz com recursos que desafiam a norma e o sistema cultural imposto. Por
isso, talvez se possa dizer que o tratamento da linguagem é ao mesmo tempo
político e poético.
Por isso, qualquer coisa de diferente acontece aqui: Rosita se apropria
de uma língua que não é sua língua mãe e com a qual pena para descrever
o tamanho do amor; invade um território alheio e o torna também seu, mas
ao seu modo: desviando das barreiras da norma, da gramática que se ergue
como lápide para impedir o passo. Mas Rosita vai, Rosita avança. A língua

404
do avesso é a língua falada, língua viva, língua inventada que nos faz lembrar
Guimarães Rosa, mas cuja voz, mesmo mediada, já não pertence a Riobal-
do: é de Rosita. O uso radical da língua talvez seja um primeiro passo para
a rebeldia; e a primeira rebeldia talvez seja a de assumir a outrem nosso
sentimento privado.
Rosita, por isso, rompe o silêncio que atravessa a obra Nós matamos o Cão
Tinhoso!, silêncio preenchido somente pelas balas das espingardas.

* Todas as traduções são de nossa responsabilidade.

405
Referências Bibliográficas

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infantil”. Literartes, v. 1, n. 9, pp. 198-207, Dezembro 2018.
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Research. vol 06, nº 3, (1969), pp. 167-191.
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1990), pp. 291-305.
HONWANA, Luís Bernardo. Nós matamos o Cão Tinhoso, 1ª ed. São Paulo:
Kapulana, 2017. [1964]
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Relatório Anual 2015, UNESCO Moçambique. Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura. Disponível em: https://unesdoc.
unesco.org/ark:/48223/pf0000246143_por. Acesso em 05 abril 2020.

406
r
Infância, jogo mimético e
experimento da língua
Maria Rosa Duarte de Oliveira

[...] a Terra está repleta dos mais incomparáveis objetos de atenção e exer-
cícios infantis. [...] as crianças [...] sentem-se irresistivelmente atraídas pelo
resíduo que surge na construção, no trabalho de jardinagem ou doméstico,
na costura ou na marcenaria. Em produtos residuais reconhecem o rosto
que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e para elas unicamente.
Neles, elas menos imitam as obras dos adultos do que põem materiais de es-
pécie muito diferente, através daquilo que com eles aprontam no brinquedo,
em uma nova, brusca relação entre si. Com isso as crianças formam para si
seu mundo de coisas, um pequeno no grande, elas mesmas.
Walter Benjamin1

Nada melhor do que esta reflexão de Benjamin sobre o universo da infân-


cia e de seu modo de operar sobre o mundo para extrair dela a linha de força
deste ensaio, qual seja a de focalizar o lugar da infância, porém, distante da
associação com a criança na cronologia da história de determinada pessoa.
Aqui, o ponto de inflexão está na infância como operador perceptivo e de
linguagem, naquele intervalo intempestivo entre não-língua e língua, ou
ainda, entre sons desarticulados (phoné) e discurso; entre natureza e cultura.2
No fragmento, Benjamin nos alerta sobre essa perspectiva ao destacar dois
modos do pensamento e da linguagem da infância se articular: a imitação e a

407
recolha de restos. Imitação aqui entendida como produção de semelhanças,
como definirá Benjamim no ensaio “A doutrina das semelhanças”, no cami-
nho oposto ao de reprodução para o de recriação, a partir de restos de objetos
recombinados num brinquedo, agora, com função lúdica. Trata-se de uma
apropriação daquilo que perdeu sua função utilitária para gerar uma outra
função, agora, sob o comando do princípio do jogo e do prazer. Interessante
é perceber que é essa também a correlação que Benjamin faz sobre o lugar
do poeta na modernidade: o de coletor do lixo, dos restos, daquilo que a in-
dústria, na sua produção em série, lançou fora como inútil. Esse é o material
que o poeta recolhe, lapida e transforma, em pedras preciosas, como afirma
Valèry em “Poesia e pensamento abstrato” (1991, p. 215).

Infância e jogo mimético

Em “A doutrina das semelhanças”, de 1933, Benjamin dedica-se a investi-


gar o principio condutor da produção de símiles, que está no jogo mimético,
distante do sentido de reprodução da realidade sensível, implicando a confi-
guração de semelhanças, como Aristóteles já apontou na Poética, ao definir
a imitação (mimese) como a produção de um raciocínio de equivalência
– “este é tal” - do qual se deriva conhecimento e prazer devido à unidade,
beleza e verossimilhança da imitação e não do objeto imitado (1998, p. 107).
Assim como Aristóteles, Benjamin também percebe que engendrar seme-
lhanças surge já nas primeiras brincadeiras infantis: “Os jogos infantis são
impregnados de comportamentos miméticos, que não se limitam de modo
algum à imitação de pessoas. A criança não brinca apenas de ser comerciante
ou professor, mas também moinho de vento e trem”. (BENJAMIN, 1985, p. 108).
Benjamin observa, ainda, que as semelhanças que são fruto da percepção
dos cinco sentidos, no contato com a realidade, são aquelas mais evidentes
e que exigem menor gasto energético; o foco de seu interesse, porém, está
nas semelhanças não-sensíveis, que exigirão a maior força criadora do ser
humano. Essas são semelhanças que estão submersas, invisíveis, nas camadas
mais profundas da faculdade mimética, como um rio subterrâneo de evocação

408
sutil de correspondências, presente nos sonhos e, não por acaso, associada
à memória involuntária de Proust, como na famosa cena em que o sabor de
uma simples madeleine despertou todo um conjunto de afetos, sensações,
paisagens, pessoas e lugares da infância do narrador-autor.
Mas é na linguagem que as semelhanças não-sensíveis encontram seu
“ter-lugar” e a faculdade mimética pode se inscrever em plenitude, pois
A linguagem seria a mais alta aplicação da faculdade
mimética: um medium em que as faculdades primitivas
de percepção do semelhante penetraram tão completa-
mente, que ela se converteu no medium em que as coisas
se encontram e se relacionam, não diretamente, como
antes, no espirito do vidente ou do sacerdote, mas em
suas essências, nas substancias mais fugazes e delicadas,
nos próprios aromas. Em outras palavras: a clarividência
confiou à escrita e à linguagem as suas antigas forças, no
correr da história. (BENJAMIN, 1985, p. 112)

A faculdade mimética, que se inscreve na linguagem, não se faz, assim,


de modo direto, numa espécie de osmose natural com as coisas do mundo
sensível, mas é uma mediação, uma construção na qual as combinações e
correspondências se fazem com e na linguagem, que é o ter-lugar onde se
engendram as semelhanças, entre elementos que não são idênticos, mas
podem ser tocados, em sua interioridade mais sutil, numa sintonia de sen-
sações que se reencontram na semelhança de sua essência, de seu aroma,
de seu som, de seu silêncio e que a palavra poética, especialmente, recolhe
e condensa, como ocorre neste trecho de “O recado do morro”, de Guima-
rães Rosa: “Papagaios rouco gritam: voam em amarelo, verdes. Vez em vez,
se esparrama um grupo de anús, coracóides, que piam pingos choramingas.
O caracará surge, pousando perto da gente, quando menos se espera – um
gaviãoão vistoso, que gutura” (ROSA, 2001, p. 31).
Destaca-se, aí, a distância que separa o escrito daquilo que foi ouvido pelo
narrador no mundo sensível. A mesma distância que vai do som à letra, pois
é a semelhança não-sensível que estabelece essa ligação “entre o escrito e
o intencionado”. Interessante é perceber que, nessa escrita poética, a inten-
ção não é a de reproduzir os sons das aves (papagaios, gavião) e do pássaro

409
(anú), por meio de vocábulos, como ocorre nas onomatopeias, mas sim a de
criação dessas vozes sem-palavra por meio de associações inusitadas, cor-
respondências que nascem de uma outra lógica que opera por semelhança
daquilo que está distante, por meio de dispositivos poéticos como a metáfora
e o paradoxo. Por isso, “papagaios roucos podem gritar”; “anús piam pingos
choramingas” e um “gaviãoão vistoso que gutura”, isto é, “vistoso” na própria
escrita que o faz mais gavião pela repetição do “ão” aliado ao som gutural e
grave, vindo da profundeza da garganta.
Este princípio das semelhanças não-sensíveis opera, especialmente, na
linguagem escrita e falada pelo simples fato de não serem iguais às próprias
coisas, mas manterem com elas uma relação de representação, substituição
e equivalência.
[...] É, portanto, a semelhança não-sensível que es-
tabelece a ligação não somente entre o falado e o inten-
cionado, mas também entre o escrito e o intencionado, e
entre o falado e o escrito. [...] A mais importante dessas
ligações é talvez a última, entre a palavra escrita e a
falada. Pois a semelhança que nela prevalece é com-
parativamente a menos sensível de todas [...] A escrita
transformou-se assim, ao lado da linguagem oral, num
arquivo de semelhanças, de correspondências não-sen-
síveis. (BENJAMIN, 1985, p. 111)

Como destaca Benjamin, a faculdade mimética, que teve grande força nas
civilizações mais antigas, na modernidade, ganhou outro estatuto: transfor-
mou-se, mas não desapareceu, de modo que é possível delinear uma história
dessa faculdade das semelhanças não-sensíveis ao longo do tempo: desde
os xamãs e os astrólogos, que traçam correspondências entre os astros e o
destino dos homens, até a linguagem, seu novo habitat e, nela, as onomato-
peias3 inscrevem-se nessa tentativa de encontrar alguma representação no
código alfabético para mimetizar sensações, sons, ruídos, e, especialmente,
a voz dos animais, por ser intraduzível em palavras. E isso só pode ser feito
pela criação de termos que busquem inserir a não-língua na língua por meio
de semelhanças não-sensíveis, que desejam ser equivalentes ao que foi per-
cebido pelo sensível. A esse respeito, Gagnebin (1993) esclarece que

410
Benjamin tenta pensar a semelhança independen-
temente de uma comparação entre elementos iguais,
como uma relação analógica que garanta a autonomia
da figuração simbólica. A atividade mimética sempre
é uma mediação simbólica, ela nunca se reduz a uma
imitação. Em vão procurar-se-ia uma similitude entre a
palavra e a coisa baseada na imitação. Saber ler o futuro
nas entranhas do animal sacrificado ou saber ler uma
história nos caracteres escritos sobre uma página signi-
fica reconhecer não uma relação de causa a efeito entre
a coisa e as palavras ou as vísceras, mas uma relação
comum de configuração. (GAGNEBIN, 1993, p. 80-81).

Rememoração da infância

É em Infância em Berlim por volta de 1900, de 1933, que Benjamin expe-


rimenta essa linguagem da infância alicerçada sobre o jogo mimético das
semelhanças não-sensíveis em textos-fragmentos que transitam entre o
ensaio, a rememoração de cenas da infância e de sonhos esparsos, além de
reflexões sobre a vida e a sociedade. Esse discurso, sem nome e sem cate-
gorização definida, instiga-nos a percorrer seus corredores labirínticos por
meio de algumas setas indicativas como estas: “O telefone; Caçando borbo-
letas; A despensa; Esconderijos; As cores; O jogo das letras; Um fantasma;
A escrivaninha; Armários...”.
O mapa é ziguezagueante e sugestivo. Escolhemos um deles para aden-
trar nesse espaço lúdico. Entremos, junto com esse sujeito que rememora a
infância em Berlim, num certo armário:
O primeiro armário que se abriu por minha vontade
foi a cômoda. [...] Lá dentro ficava guardada minha rou-
pa. Mas entre todas as minhas camisas, calças, coletes,
que deviam estar ali e dos quais não tive mais notícia,
havia algo que não se perdeu e que fazia a minha ida a
esse armário parecer sempre uma aventura atraente. Era
preciso abrir caminho até os cantos mais recônditos; en-

411
tão deparava minhas meias que ali jaziam amontoadas,
enroladas e dobradas [...] de sorte que cada par tinha o
aspecto de uma pequena bolsa. Nada superava o prazer
de mergulhar a mão em seu interior tão profundamente
quanto possível. Quando encerrava no punho a posse da-
quela massa suave e lanosa, começava então a segunda
etapa da brincadeira que trazia a empolgante revelação.
Pois agora me punha a desembrulhar o “capturado”4 de
sua bolsa de lã. Eu o trazia cada vez mais próximo de mim
até que se consumasse a consternação: ao ser totalmente
extraído de sua bolsa, o “capturado” deixava de existir. Não
me cansava de provar aquela verdade enigmática: que a
forma e o conteúdo, que o capturado e a bolsa, eram uma
única coisa. E sem dúvida, uma terceira: aquela meia em
que ambos haviam se convertido. (BENJAMIN, 2012, p.
123-124; destaques nossos).

No fragmento, é importante observar, em primeiro lugar, o ato de re-


memorar, no presente do relato, que não consiste em simples reprodução
de um arquivo memorialista, mas sim na mediação, pela linguagem, de um
conjunto de sensações misturadas, que “vem junto” com o toque da mão da
criança na textura da lã, excedendo essa semelhança sensível do tato para
capturar outras semelhanças não-sensíveis, produzidas pela faculdade mi-
mética e imaginativa.
Trata-se da produção de um jogo, um prazer desinteressado que absorve
o jogador e retira-o do curso da história por um instante, rompendo o conti-
nuum pela insurgência intempestiva de uma semelhança não-sensível que
transforma um simples par de meias numa bolsa em cujas dobras se oculta
algo ainda mais imprevisto: o desfazer-se e recompor-se entre a imagem e a
realidade, o invisível e o visível, de modo a produzir um raciocínio que opera
por analogia ainda mais distante da observação dos sentidos: a do jogo de
metamorfose entre forma e conteúdo, de modo que alterar um deles significa
alterar o outro também.
É esse lugar da infância como construto perceptivo que nos interessa
neste ensaio, e que Benjamin exerce com maestria nestes textos de Infância
em Berlim nos quais recompõe, na linguagem, uma infância que renasce a

412
cada vez que se entra nessa aventura de pensar-relembrar-escavar-escrever
sob o signo das reverberações fugazes de semelhanças não-sensíveis, sempre
em trânsito para se desdobrarem em outras, ainda por vir.

Infância e experimento da linguagem

Estudos do filósofo contemporâneo Giorgio Agamben (1942) apontam


para este lugar da infância na linguagem, tal qual viemos tratando até aqui.
Trata-se do limiar entre não-língua (língua sem palavras) e língua, ou me-
lhor, da cisão entre língua, como a potencialidade de produzir enunciados
mas sem fazê-lo, e a fala articulada, ou discurso5. Daí o fato de que o homem
não nasce falante, como ocorre com os animais, cuja linguagem está em
continuidade com sua própria natureza. O ser humano, no entanto, precisa
separar-se da linguagem-natureza, em seu estado de infância da “língua sem
palavra” (Agamben, 2008, p. 64) e apropriar-se do seu poder de dizer a fim
de se constituir como sujeito do discurso e da história.
Se quisermos uma imagem correlata, à luz da faculdade mimética da
semelhança não-sensível de que nos falou Benjamin, encontraremos numa
espécie anfíbia6, a salamandra albina ou axolotl, essa correspondência com
a “ideia da infância”7, segundo Agamben:
Nas águas doces do México vive uma espécie de sa-
lamandra albina que há muito tempo atraiu as atenções
dos zoólogos e dos estudiosos da evolução animal. Quem
tenha tido a oportunidade de observar um espécime em
aquário fica surpreendido com o aspecto infantil, qua-
se fetal, deste anfíbio: a cabeça relativamente grande e
enterrada no corpo, a pele opalescente, com uma leve
mancha de cinzento no focinho e azulada e rosada nas
excrescências febris à volta das guelras, as delicadas
patas com dedos em forma de flor-de-lis (1999, p. 90).

413
Fig. 01: Axolotl

O mais interessante é saber que essa espécie, o axolotl, que vive em lagos
próximos à cidade do México, pode ou não seguir o curso natural evolutivo
e metamorfosear-se em salamandra, na sua fase adulta, passando a viver
na terra. E mesmo que isso ocorra, no corpo das salamandras permanecem
resquícios do seu estágio larval, como as brânquias externas.
Esta recusa em seguir o curso natural de sua evolução, que implicaria
assumir a forma adulta e terrestre, faz da imagem desta forma larvar, o axo-
lotl, um poderoso dispositivo para a intempestiva aproximação da “ideia da
infância”, assim como do sentido dessa obstinada “involução” no contexto
da linguagem humana, no instante extremo de cisão entre natureza, o fato
de o homem não nascer falante, e cultura, a necessidade do aprendizado
de uma língua, que vem de fora, a fim de que se constitua como sujeito de
um discurso.
A criança, o in-fans é primeiro aquele que não fala,
portanto aquele animal monstruoso (como o dizia Lyo-
tard), no sentido preciso de que não tem nem rugido,
nem canto, nem miar, nem latir, como os outros bichos,

414
mas que tampouco tem o meio de expressão próprio de
sua espécie: a linguagem articulada. (GAGNEBIN, 1997,
p. 170).

Interessante é essa aproximação do in-fans ao animal monstruoso, que


é justamente o modo como é conhecido o axolotl no México. O salto agora é
criar esta equivalência invisível e não-sensível com o estado da infância na
linguagem, isto é, a língua em sua condição larvar, sem semântica, que re-
siste à “fase adulta” de fala articulada e de discurso, mas deixa sinais de sua
presença nesse contínuo “estar sendo”, a cada vez que o ser humano entra na
língua e se percebe nesse estado larval, silencioso e gaguejante, como diria
Deleuze (2011, p.138)8, de busca labiríntica dentre tantas palavras nascentes,
o “o que” e o “como dizer”, outra vez e outra vez...
Desse modo, não se trata de regressão a uma origem fixada, cronologi-
camente, num passado remoto, no qual poderíamos vislumbrar um espaço
mítico que antecederia o surgimento da linguagem humana. A linguagem
poética é o lócus privilegiado para esse experimento da infância, materia-
lizado na fratura entre língua e fala. É nela que se dá a tensão entre o fluxo
irresistível da fala e a sua interrupção, investindo no contrafluxo do hábito
linguístico e seu caudal de palavras.
O experimento de linguagem9, ao qual se refere Agamben, consiste em
permanecer nesse lugar fraturado do balbucio gaguejante, da possibilidade
de dizer sem dizer, entre potência e ato, em pleno experimento da potência
de privação da língua em seu estado larvar de infância, tal qual o axolotl.
Este é o desafio de todo escritor: a busca desta linguagem in-fans, sempre
nascente e, ao mesmo tempo, perdida, no vórtice desta língua sem palavra.
Deleuze ecoa tudo isso ao definir o que seja uma “gagueira”- in-fans ins-
crita na linguagem poética e que tensiona a língua dentro da língua, de tal
forma que é percebida como uma língua estrangeira:
[...] É uma gagueira, cada posição de “um ” ou de
“o” constituindo uma vibração. A língua treme de alto a
baixo. Há aí o principio de uma compreensão poética da
própria língua; é como se a língua estendesse uma linha
abstrata infinitamente variada. [...] Já não é a sintaxe

415
formal ou superficial que regula os equilíbrios da língua,
porém uma sintaxe em devir, uma criação de sintaxe que
faz nascer a língua estrangeira na língua, uma gramática
do desequilíbrio. [...] Quando a língua está tão tensiona-
da a ponto de gaguejar ou de murmurar, balbuciar..., a
linguagem inteira atinge o limite que desenha o seu fora
e se confronta com o silencio[...] A obra gaguejante [...]
lançada num devir-criança que não é eu, mas cosmos,
explosão do mundo: uma infância que não é a minha,
que não é uma recordação, mas um bloco, um fragmen-
to anônimo infinito, um devir sempre contemporâneo.
(DELEUZE, 2011, p. 140, 145, 146; destaques do autor)

E, nesse ponto, Deleuze e Agamben se encontram ao definirem o “ter-lu-


gar” da infância na linguagem, respectivamente, no “balbucio gaguejante” e
na “língua sem palavra”. Distanciam-se, portanto, seja da cronologia de uma
idade infantil, seja da associação com a infância de um sujeito determinado.
A linguagem poética é, então, aquela que “faz a língua tremer” ao desativar
o padrão da sintaxe discursiva e da mediação simbólica para investir na lin-
guagem em seu estado de infância, de língua sem palavra e sem semântica,
que vibra e ressoa na potência-de-não (passar a ato).

Experimento com a língua


em estado de infância.

O desafio, neste tópico final, é o de propor um experimento com a língua


em estado de infância. Propositalmente, selecionamos um livro ilustrado, já
de antemão catalogado como destinado ao leitor criança: Chão de peixes, de
Lúcia Hiratsuka, editado pela Pequena Zahar, em 2018.
O questionamento de partida é que não é o fato de um livro ser classi-
ficado como “Literatura Infantil” que determina, automaticamente, o ter-
-lugar da infância na sua linguagem. Para isso, é necessário que ele invista

416
na criação de uma poeticidade na qual os jogos imitativos primem pelas
semelhanças não-sensíveis entre palavra, não-palavra e ilustração, de modo
que a ressonância e as vibrações construam uma pauta capaz de desativar
o código padrão sem negá-lo completamente, porém, submetendo-o a um
experimento-limite.
O objetivo será, então, o de explorar Chão de peixes à luz da infância da
linguagem sob duas perspectivas - a do sumiê da ilustração e a da estrutura de
haicai, presença marcante em vários dos textos poéticos do livro. São compo-
sições que, já de início, exploram essa fissura sutil entre narrativa e poema, de
modo que, de um lado, justapõem-se fragmentos que criam uma narrativa de
lembranças da infância da narradora-autora, cujo motor é, justamente, o chão
de terra do quintal onde a avó desenhava peixinhos; de outro, é um outro chão
anunciado pelo título: o das páginas do livro que dão nascimento a imagens,
cintilações, aparições de peixes que também podem ser semelhantes a folhas,
ou melhor ainda, a simples movimento de pinceladas que nada significam fora
delas mesmas, a não ser que se mostram como o que são: pinceladas, movi-
mentos e intensidades da pressão do pincel sobre o papel, sem que se crista-
lizem numa forma determinada de representação de um referente externo.
No sumiê, conforme a própria autora define ao final do livro, “não há ne-
nhum traço sem sentimento” (HIRATSUKA, 2018); entenda-se “sentimento”
aí como a integração mão-corpo-pensamento do artista e traços e cores da
própria composição. Sobre essa arte, uma das definições10 diz que:
Sumiê é uma técnica de pintura surgida na China no
século II e introduzida no Japão por monges budistas,
durante o século XIV. Esse estilo de pintura simples e
elegante foi muito difundido no país, estabelecendo-se
como uma arte típica japonesa. Na pintura sumiê, os ob-
jetos são retratados a partir de sua essência, com formas
reduzidas e simplificadas. A técnica tradicional utiliza
somente a tinta preta, à base de carvão, de pigmentação
bastante concentrada. As pinceladas escuras, com traços
rápidos, geram grande contraste sobre o papel branco, e
a variação de pressão do pincel cria linhas mais finas ou
mais grossas, refletindo a inspiração do artista enquanto
pinta e tornando cada resultado algo único.

417
Por outro lado, o haicai, não por acaso, caminha na mesma direção das
linhas mestras do sumiê, ou seja, concentração, condensação e simplicida-
de. Se, no sumiê, o foco de interesse do artista não está na reprodução das
semelhanças captadas pelos cinco sentidos, mas sim naquelas invisíveis
e produzidas pela faculdade imaginativa - as semelhanças não-sensíveis
segundo Benjamin -, o mesmo ocorre no haicai, forma poética originária
do Japão, na qual o que se sobressai é a captação de cintilações do instante
materializadas em bruscas interrupções e silêncios por entre palavras-ver-
sos que se deslocam, em movimentos sutis, pelos espaços do vazio-branco
das páginas. Sugere mais do que nomeia aquilo que excede a gramática da
língua: o ritmo, a intensidade, os tons e sobretons ressonantes de uma ver-
dadeira língua estrangeira dentro da língua de partida, seja ela o japonês, o
português, ou qualquer outra.
Barthes, no seminário que ministrou no Collège de France, entre 1978-
1979, dedicou ao haicai reflexões iluminadoras como estas:
[...] o haicai ensina a dizer eu, mas é um eu de escri-
ta: escrevo eu, logo sou. [...] Haicai= a arte (uma arte)
de “desnatar” a realidade de sua vibração ideológica ,
isto é, de seu comentário, mesmo virtual. Talvez os mais
belos haicais = aqueles que conservam um rastro, uma
fragrância dessa luta contra o sentido [...] Considero que
o haicai é uma espécie de Incidente, de pequena prega,
uma fenda insignificante numa grande superfície vazia.
(BARTHES, 2005, p. 136, 140, 141; destaques do autor)

Em Chão de peixes, tais premissas serão significativas para esse experi-


mento com o limite da língua e da imagem da ilustração, na captura de seu
estado de infância, numa das cenas selecionadas:

A lua de hoje
ilumina também
uma lagartixa

418
Fig. 02: Página de Chão de Peixes

Embora o texto esteja em linha de prosa, os espaços perfazem os cortes


que permitem a verticalização em “versos”, como fizemos. São três tomadas,
à semelhança de uma câmera que enquadrasse, num movimento de cima
para baixo, a lua, a luz e o foco, imprevisto, na lagartixa, em destaque graças à
dimensão e ao negrito de sua forma-corpo. É uma composição que incorpora
o haicai em sua extrema condensação e simplicidade, como se brotasse do
“chão” do livro agora, no presente do ato de ler, justapor, olhar e manusear
a página dupla, que aqui faz do projeto gráfico um parceiro significativo.
Repropõe, assim, a forma breve do haicai, que, nas palavras de Barthes:
[...] Haicai = forma exemplar da Anotação do presen-
te = ato mínimo de enunciação, forma ultrabreve, átomo
de frase que anota [...] um elemento tênue da vida ‘real’,
presente, concomitante. [...] Portanto, trata-se de um Dis-
curso, não da Explicação, nem mesmo da Interpretação,
mas da Ressonância (2005, p. 47-49; destaques do autor).

O fato de a mensagem estar em página dupla corrobora a percepção in-


tegrativa, exigindo do leitor a correlação entre o texto verbal e o imagético,

419
que aqui não tem a mera função de ilustrar, no sentido de complementar
ou tornar visível aquilo que o texto verbal diz, mas de compor com ele uma
nova configuração em trânsito entre palavra, não-palavra, imagem e projeto
gráfico, irmanados na construção do objeto-livro.
Interessante é perceber que se trilharmos a direção de leitura esquer-
da-direita, aprendida pela alfabetização, o que se sobressai é o texto verbal
que condensa os três momentos de uma cena: a de um agente - a lua – a sua
ação de iluminar e o corpo que recebe essa luz – uma lagartixa – palavra
que recupera o seu estado de infância de “língua sem palavra” na medida
em que o sentido de ter em seu corpo a iluminação da lua se faz por meio
de intensidade (negrito) e gradação (tamanho das letras). Trata-se de uma
operação por semelhança não-sensível, que faz da palavra a condensação
daquilo que nomeia: uma lagartixa + luz + lua.
Há aí a construção de uma semelhança que afeta não apenas a percepção
sensível (visão), mas incorpora, também, a não-sensível, isto é, a correlação
com o conceito, à semelhança de um ideograma11, que é uma “pintura abrevia-
da de ações ou processos” (FENOLLOSA, 1977, p. 124) e no qual não se trata
de somatória, mas de correlação entre os elementos formadores do sentido:
[...] Nesse processo de compor, duas coisas que se
somam não produzem uma terceira, mas sugerem uma
relação fundamental entre ambas. [...] Um nome ver-
dadeiro, uma coisa isolada, não existe na Natureza. As
coisas são apenas pontos terminais, ou melhor, pontos de
encontro de ações, cortes transversais em ações, instan-
tâneos. [...] a vista apreende como uma coisa só, o subs-
tantivo e o verbo: as coisas em movimento, o movimento
nas coisas, e é desta maneira que a concepção chinesa
tende a representá-los. (FENOLLOSA, 1977, p. 124)

Ao avançarmos no movimento de leitura, o destaque está na dobra da pá-


gina dupla, na qual se marca o papel do projeto gráfico ao criar um campo de
ressonância entre as duas faces por meio do traço negro, que atravessa ambas
e, em apenas dois movimentos firmes da tinta no pincel, é capaz de construir
a fusão entre a lua e a lagartixa, “sugerindo uma relação fundamental entre

420
ambas”. São dois traços únicos, simplificados e intensos de um mesmo ges-
to composto por pinceladas em negro, indicando a “variação de pressão do
pincel ao criar linhas mais finas ou mais grossas” em contraste com o branco
do papel. Nesse gesto, integram-se mão, pincel, impressão gráfica e intenção
da forma, próprios do sumiê, que faz “aparecer” uma nova forma reduzida ao
essencial: lua-luz-lagartixa. Refrata-se, assim, na composição gráfico-visual,
por semelhança e diferença, a mensagem inscrita no texto verbal.
As semelhanças não-sensíveis entre lua – lagartixa, presentes no próprio
traçado do sumiê, contrastam, no entanto, com as semelhanças sensíveis,
responsáveis pelo detalhamento de patas, olhos e manchas em verde-azul,
que conduzem ao reconhecimento da figura da lagartixa. Poema e prosa,
juntos, num mesmo corpo. O oriente e o ocidente dos signos, como afirma
o poeta, ensaísta, critico literário e tradutor, Décio Pignatari ao afirmar que
“a arte é o oriente dos signos” (1987, p.17).
Nesse sentido, é no jogo que a “dobra” propicia entre as duas faces da pá-
gina dupla, que se articula o “lugar lógico” da experiência-limite da infância
num experimento de linguagem, isto é,
[...] um experimentum linguae deste tipo é a infância,
na qual os limites da linguagem não são buscados fora
da linguagem, na direção de sua referência, mas em uma
experiência da linguagem como tal, na sua pura auto-re-
ferencialidade [...] a aposta da infância é que seja possível
uma experiência da linguagem [...] da qual se possa, ao
menos até certo ponto, indicar a lógica e exibir o lugar e
a fórmula. (AGAMBEN, 2008, p.12-13; destaque do autor).

É nesse espaço de intervalo e passagem que o leitor é instigado a penetrar


e permanecer nele, nem que seja por breves instantes, a fim de experimentar,
nessas fulgurações instantâneas do presente, outra vez e a cada vez que não
cessa de acontecer, uma nova aparição e desaparecimento da infância da e
na linguagem, pois,
[...] assim como a experiência, enquanto infância
e pátria do homem, é algo de onde ele desde sempre
se encontra no ato de cair na linguagem e na palavra.

421
Por isso a história não pode ser o progresso contínuo da
humanidade falante ao longo do tempo linear, mas é, na
sua essência, intervalo, descontinuidade, epoché. Aquilo
que tem na infância a sua pátria originária, rumo à in-
fância e através da infância, deve manter-se em viagem.
(AGAMBEN, 2008, p. 65)

Configura-se, então, nesse jogo de alteridades e contrastes, tensionado


entre a linha sucessiva da prosa [A lua ilumina uma lagartixa] X a conden-
sação e instantaneidade do haicai e, por outro, entre a arte caligráfica do
sumiê, em sua extrema redução ao essencial X o desdobrar-se em detalhes
naturalistas, o “ter-lugar” de uma experiência que se dá no intervalo entre
natureza e cultura, entre os balbucios e silêncios de uma não-língua e a
língua, ou ainda, em termos de linguagem gráfico-visual, entre uma “não
ou quase-forma” - sugerida nos intervalos entre o vazio e o cheio - e o reco-
nhecimento e a visibilidade de uma figura determinada.
Eis a infância como experimento com os limites da linguagem, neste Chão
de peixes, que, embora classificado como Literatura para a infância, tendo
por critério mais provável a idade cronológica de seu leitor, é muito mais do
que isso na medida em que a infância, neste livro instigante, está no ter-lugar
da linguagem neste espaço cindido entre a potência-de–não ou de privação
do ato - seja ele o de um enunciado discursivo, seja o de uma ilustração fi-
gurativa de reconhecimento imediato - e a expressão propriamente dita.
Trata-se, assim, de um exercício criativo de resistência e desativação
dos hábitos perceptivos ao inscrever nos limites da linguagem deste “chão
de peixes” tanto a privação da língua-sem-palavra quanto a da não ou qua-
se-forma inacabada, dispositivos para a apreensão do estado de infância na
linguagem e que o haicai e o sumiê legaram como herança à arte do ocidente
e, em especial, a este Chão de peixes, de Lúcia Hiratsuka.

422
Notas

1 Trata-se de um trecho do fragmento – Canteiro de obra – em Rua de mão única


(2012, p.17).
2 Perspectiva similar assume Francisco Thiago Camêlo em ensaio crítico sobre o
lugar da infância como operador discursivo-poético, na obra de Murilo Mendes;
ver “Cartografia da infância: exercício de releitura de A idade do serrote, de Murilo
Mendes”, em FronteiraZ.
3 Onomatopeia ou “mimologia” é um termo da língua grega antiga que significava
“criar um nome”, “fazer um nome”. É uma figura de linguagem na qual se repre-
senta um som por meio de fonemas ou de pedaços de palavras. Ruídos, gritos,
cantos de pássaros, sons de animais ou da natureza, barulhos de máquinas e o tim-
bre da voz humana fazem parte do universo das onomatopeias.
4 Gagnebin, no ensaio “O trabalho de rememoração de Penélope”, traduz essa
passagem de Benjamin do seguinte modo: “Nada superava o prazer de mergulhar
a mão no seu interior tão profundamente quanto possível. E não apenas pelo calor
da lã. Era o ‘trazido junto’ enrolado naquele interior que eu sentia na minha mão e
que, desse modo, me atraía para aquelas profundezas” (2014, p.228).
5 São conceitos elaborados por Benveniste a quem devemos esta percepção da
diferença entre o plano semiótico e o semântico de uma língua, isto é, entre o
paradigma de signos disponíveis, em estado potencial, e o discurso, que é aquela
atividade responsável por colocar em ato a potencia de uma língua por meio da
apropriação e da construção de enunciados pelos sujeitos falantes.
6 Anfíbio vem do grego αμφι, amphi (‹ambos›) e βιο, bio(‘vida’), que significa
«ambas vidas» ou «em ambos meios», isto é, uma espécie que possui um ciclo de
vida dividido entre a água e a terra. Axolotle é um nome asteca que numa tradução
aproximada significa “monstro aquático” e na mitologia asteca era a evocação do
deus Xoloth.
7 Esta “ideia da infância” faz parte do livro Ideia da prosa, de Agamben, cuja 1a.
edição em italiano é de 1985.
8 Trata-se do ensaio “Gaguejou...”, no qual Deleuze define o que para ele significa
uma língua que gagueja, balbucia, tal qual ocorre na linguagem poética em estado
de infância.
9 Esse experimento da linguagem, para Agamben, consiste num ato de resistência,

423
especialmente para o escritor, que retira a sua força criativa ao se lançar nesse lugar
de abismo e fratura entre potência e ato: o que ainda não está expresso e a expressão
propriamente dita. Segundo suas palavras: “[...] Há em cada ato da criação, algo
que resiste e se opõe à expressão [...] Esse poder que retém e detém a potência no
seu movimento em direção ao ato é a impotência, a potência-de-não” (2018, p. 66).
10 Trecho retirado de: “Sumiê, com Lúcia Hiratsuka”. Japan House, 15/04/2020;
texto e vídeo disponíveis em https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esr-
c=s&source=web&cd=&cad=rja&uact=8&ved=2ahUKEwiCieBxaPrAhWtH7k-
GHQtRC3sQFjAKegQIBBAB&url=https%3A%2F%2Fwww.japanhouse.jp%2F-
saopaulo%2Fculture%2Fsumie.html&usg=AOvVaw1-aPTo9UpEwA91cOYXHSck
11 O ideograma é a escrita tradicional da China, cujos pictogramas - segundo
Ernest Francisco Fenollosa (1853-1908), filósofo e orientalista norte-americano -
possui estrita relação com a linguagem poética graças à relação de analogia entre
a ideia e a forma expressiva, como desenvolve no ensaio “The Chinese written
character as a medium for poetry”, publicado por Ezra Pound em 1920, segundo
nos informa Haroldo de Campos em Ideograma –Lógica, poesia, linguagem (1977,
1a ed.). Nesse livro, do qual é também organizador, Haroldo aborda e amplifica
tais relações no ensaio “Ideograma, anagrama, diagrama”. Pode-se falar, ainda,
na estreita relação do ideograma com a montagem cinematográfica e não e à toa
que Eisenstein dedica um estudo nessa direção em “O principio cinematográfico
e o ideograma”, que se encontra no mesmo livro já citado.

424
REFERÊNCIAS

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Lisboa: Edições Cotovia, 1999, p. 90-95.
AGAMBEN, G. O fogo e o relato. Ensaios sobre criação, escrita, arte e livros.
Trad. Andrea Santurbano e Patricia Peterle. São Paulo: Boitempo, 2018.
BARTHES, R. A preparação do romance I – Da vida à obra (Notas de cursos
e seminários no Collège de France, 1978-1979) Trad. Leyla Perrone-
-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
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425
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PIGNATARI, D. Semiótica & Literatura. 3a. ed. São Paulo: Cultrix, 1987.
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Baile). 9a. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 27-105.
VALÈRY, P. Poesia e pensamento abstrato. In: Variedades. Trad. Maiza Martins
de Siqueira. Paulo: Iluminuras, 1991, p. 201-218.

426
f
Intertextualidades em
quadrinhos: a arte em diálogo
em Don Juan di Leônia
Nathália Xavier Thomaz

As histórias em quadrinhos são, em essência, uma linguagem intersignica,


que se comunica por meio de co-relações, co-referências, analogias, e outras
possibilidades narrativas. Pesquisas de estudiosos da área, como McCloud
(1995), Groensteen (2015) e Sousanis (2017) indicam que a construção de sen-
tido em uma mídia como essa envolve a capacidade de relacionar: relacionar
a imagem com o texto, relacionar um quadro com outro em uma sequência,
relacionar o conteúdo de uma página e um livro completo. Sabemos que o
diálogo entre HQ e literatura é constante, em diversas referências, citações
e em adaptações que vão desde trabalhos que buscam alcançar alguma fide-
lidade ao texto original até os que constroem novas versões.
Para este artigo, selecionamos a graphic novel Don Juan di Leônia, de Dalton
Cara, lançada em 2015 como publicação independente. A partir dela, pretende-
mos demonstrar como a literatura aparece nos quadrinhos, se renova e ajuda
a construir uma produção que desafia o leitor contemporâneo, num singular
jogo intertextual. Julia Kristeva (1969) afirma que todo texto se configura como
absorção e transformação de outros textos. Isso não significa que estamos sem-
pre repetindo, mas que estamos criando e recriando. “Cada obra surge como
uma nova voz (ou um novo conjunto de vozes) que fará soar diferentemente
as vozes anteriores, arrancando-lhes novas entonações” (MOISÉS, 1990, p. 63).
São estas entonações que este artigo pretende observar na obra selecionada.

427
O quadrinho de Cara nos reapresenta ao personagem Don Juan, velho
conhecido do imaginário popular. Na literatura, essa história apareceu pela
primeira vez em 1630, na peça El Burlador de Sevilla y el convidado de piedra,
escrita pelo clérigo espanhol Gabriel Téllez, mais conhecido como Tirso de
Molina. Nessa história, Don Juan é um nobre enganador, que conta menti-
ras para mulheres com a intenção de seduzi-las. Suas conquistas acontecem
baseadas em mentiras: finge ser o noivo de uma moça para deitar-se com ela
ou faz promessas de casamento e foge logo após consumar o ato sexual. Ele
não precisa encarar as consequências de seus atos, pois sua origem nobre o
protege de qualquer punição. O Don Juan de Molina não usa de sua aparência
ou lábia para seduzir as mulheres, ele as ilude e não se sensibiliza com seus
sofrimentos nem se preocupa com o estrago que seu comportamento pode
causar. A história da peça foca-se principalmente nos efeitos maléficos das
atitudes de Don Juan, que chegam ao seu auge quando o sedutor convida
a estátua do homem que matou para jantar em tom de troça e acaba sendo
atendido. O encontro entre os dois termina com Don Juan sendo enviado
diretamente para o inferno após apertar a mão do convidado de pedra.
Don Juan é de fato um burlador. É por meio da enganação que ele con-
segue o que deseja e diverte-se com isso. Escolhe suas vítimas ao acaso e
utiliza-se de duas estratégias básicas: finge ser o que não é ou promete o que
não vai cumprir. Quando as mulheres têm a mesma condição social que ele,
como a Duquesa Isabela e a D. Ana que possuíam títulos de nobreza, Don
Juan as engana disfarçando-se de seus noivos. No entanto, se as moças são
de uma condição social inferior, como é o caso da pescadora Tisbea e da
camponesa Arminta, ele faz promessas de uma vida melhor, aproveita-se
da ingenuidade e da vontade das moças de ascender de classe social para
concretizar os próprios desejos carnais. Em qualquer uma das duas situa-
ções, o burlador não faz questão de ser amado pelas moças que seduz. Ele se
aproveita e zomba do sofrimento de suas vítimas, a ponto de brincar com a
estátua do túmulo do homem que assassinou.
Durante a peça, Don Juan não é obrigado a enfrentar as consequências
de seus atos de forma alguma, sempre livrado pelos parentes influentes das
punições do rei – que acontecem apenas nos casos dos envolvimentos com
membros da nobreza. Apesar da peça destacar as consequências danosas de

428
seu comportamento, ele não precisa lidar com elas e essa impunidade é que
dá força ao Convidado de Pedra, cuja presença é enfatizada no título. É ele
quem personifica a justiça do personagem e o pune com a morte. Ao analisar
esta obra, Tereza Cristina Mauro aponta que:
Nesta versão inicial do mito, as seduções empreen-
didas por Don Juan guardam profundas relações com
questões religiosas e de honra marcantes nos séculos XVI
e XVII. No tocante à religião, esta peça é construída de
acordo com a tensão entre a autoafirmação, nos moldes
renascentistas, de Don Juan como indivíduo a partir de
suas seduções e a negação dessa individualidade, oriun-
da da Contrarreforma, o que desencadeia o castigo do
sedutor. (MAURO, 2015, p. 14)

Dessa forma, Don Juan nega a coletividade da nobreza à qual pertence


quando afirma a própria individualidade, mas é punido no final de forma
exemplar, demonstrando as consequências de tal escolha.
Renato Mezan (1988) afirma que a sedução possui diversos aspectos que
parecem incompatíveis entre si. A partir das definições do dicionário Aurélio,
o autor mostra a pluralidade de significados contidos na palavra sedução e
identifica que eles podem ser agrupados em dois aspectos: o da ética e o da
estética. No primeiro, o sedutor seria um enganador, que oculta as próprias
intenções, mente sem escrúpulos e promete o que não cumprirá. Nesse as-
pecto, há também o âmbito político da sedução, na ideia do sedutor como
alguém que questiona a realidade imposta e contraria as regras do jogo. No
segundo aspecto, estão as características do sedutor que atraem, encantam
e deslumbram. Enquanto na dimensão ética, o sedutor rouba e contraria as
regras do jogo, subtrai de suas vítimas, no aspecto estético ele acrescenta,
desperta sensações inéditas no outro e faz com que o seduzido experimente
a vida de uma forma nova. Ainda assim, essa dimensão não é inofensiva:
O encanto não é desprovido de perigos. As conota-
ções de “encantar” são sombrias: arrebatar, por exemplo,
não significa apenas extasiar, mas também arrancar,
raptar, roubar (e o mesmo vale para “arroubo”). “Des-
lumbrar” é retirar o lume, cegar, ainda que pelo excesso

429
de luz. [...] A imagem que mais nitidamente veicula esta
série de noções entrelaçadas é a da sereia, que encanta,
maravilha quem ouve suas melodias, mas em seguida
arrasta quem escravizou para a morte e para o desespero.
(MEZAN, 1988, p. 89)

Essa ambiguidade é característica da sedução e coloca a sexualidade e


a morte lado a lado. Mezan observa que, no texto de Molina, o aspecto ético
da sedução era o mais evidente, mas a medida em que as recriações foram
acontecendo, o aspecto estético passou a ganhar cada vez mais projeção.
Ainda no âmbito da dualidade de Don Juan, Mauro (2015, p. 21) mostra
que no caso da narrativa de Molina, é interessante notar que ele é conside-
rado um grande sedutor apenas no plano das palavras, mas a eficácia de sua
ação não é muito grande, considerando que ele depende completamente das
mentiras e dos disfarces para conseguir o que quer.
Don Juan não tem remorso em fingir ser o noivo de uma vítima ou fazer
promessas infundadas para uma moça que aspira melhorar a própria con-
dição social. Mauro (2015, p. 13) indica que a rebeldia ética de Don Juan se
estende também ao caráter político, se considerarmos que algumas de suas
vítimas (como as personagens Tisbea e Arminta) eram de classes sociais
consideradas inferiores a dele e, ao se unir a elas, rompe com as regras da
esfera social da qual faz parte, a nobreza. Apesar das promessas de casamento
ficarem apenas nas palavras e nunca se concretizarem efetivamente, essa
rebeldia foi importante para as versões posteriores da história.
Outro ponto importante da história destacado por Mauro (2015, pp. 19-
20) é a punição que Don Juan sofre no final da peça. Como mencionamos
anteriormente, a nobreza é bastante tolerante com Don Juan e não pune suas
ações, as mulheres nada podem fazer para se vingar e, portanto, o castigo
precisa acontecer de forma sobrenatural. Essa morte também é reflexo do
contexto em que a peça foi escrita, marcado pela intensificação da autori-
dade da Igreja, que não deixava espaço para manifestações individualistas
como as de Don Juan.
Com o passar dos anos, Don Juan recebeu diversas versões, por Moliére,
Mozart, Byron, Hoffmann, entre outros. O mito do sedutor atingiu seu auge na
literatura e no teatro durante o Romantismo (MAURO, 2015). Os românticos

430
glorificavam figuras que buscavam ir além dos limites comuns da vida. Nesse
cenário, personagens como Fausto e Don Juan tornaram-se heróis muito carac-
terísticos, que simbolizavam a busca eterna sempre por mais, nunca satisfeitos:
O herói romântico surge como um ser misterioso,
rebelde, sedutor, um amante perseguido pelo destino. As
paixões, que no período neoclássico eram comprimidas
no interior da alma, agora transbordam e afloram na
superfície do personagem romântico e empreendem sua
vida. A mulher idealizada simboliza o sentimento amoro-
so mais puro, quase sagrado e, por isso, inalcançável. Em
sua trajetória vital, o homem romântico frequentemente
se vê ameaçado pela morte, que conforma o ideário de
um destino trágico e determinado. (ARRUDA, 2011, p. 2)

Segundo Mauro, é em 1844, na peça Don Juan Tenorio do espanhol José


Zorrilla y Moral, que o sedutor consolida-se como personagem romântico. A
constante tensão entre o divino e o diabólico é aprofundada, ao apresentar
ao leitor um Don Juan satanista, muitas vezes associado à imagem do diabo,
mas que no fim da história é redimido pela personagem Doña Inés, que tem
características divinas.
A graphic novel Don Juan di Leônia revisita o clássico personagem Don
Juan em uma narrativa que se inicia com a personagem no inferno, após a
própria morte, durante a punição que lhe é atribuída em muitas das versões
que a história recebeu. A partir desse momento, o autor desenvolve uma nar-
rativa nova, que faz diversos tipos de relações intertextuais e, consciente delas,
extrapola as conexões com as versões anteriores de Don Juan. Ao ambientar
a HQ na cidade de Leônia, criada por Ítalo Calvino em Cidades Invisíveis,
Cara cria conexões inéditas que enriquecem a narrativa. Trabalhando dessa
forma, o autor faz diversos tipos de relações intertextuais, selecionando obras
e deslocando-as de seu tempo e espaço originários, traçando conexões sem
necessidade de vínculos temporais. Há, de fato, um forte intuito de contra-
riá-los, misturando textos e referências de diferentes épocas e mídias. Tal
mistura, acreditamos, é também típica dos quadrinhos, uma arte que dialo-
ga constantemente com outras artes, sem se preocupar com fronteiras, ao
considerar a liberdade para mover-se entre elas parte de sua característica.

431
Figura 1 – Capa da história em quadrinhos Don Juan di Leônia.
Fonte: CARA, Dalton. Don Juan di Leônia. São Paulo: Edição do autor, 2015.

Na capa do quadrinho, uma máscara é colocada em destaque, pregada


por dois alfinetes, logo em cima do título da obra. Muito associada à perso-
nagem Don Juan, a máscara funciona como um símbolo de tudo o que ela
significa. Nesse contexto, a máscara é, como dito por Eisner (2005), um
“artifício econômico para o contador de histórias”, passando uma mensagem
instantânea ao leitor, confirmando que a personagem na narrativa prestes
a começar é a mesma que se encontra no imaginário popular. É importante

432
lembrar que, apesar do objeto estar bastante associado à Don Juan, não exis-
tem menções a máscaras na peça El Burlador de Sevilla de Tirso de Molina,
o primeiro registro escrito da história. No entanto, é bastante presente na
peça romântica Don Juan Tenório de José Zorrilla y Moral, que será referen-
ciada de forma direta ao longo do desenvolvimento da história. A peça de
Zorrilla é ambientada durante o carnaval e, por isso, Don Juan e parte das
personagens usa máscara por um bom tempo na história. Com o passar do
tempo, o visual com máscara foi adotado em outras versões, inclusive em
Don Juan di Marco (1994), a famosa versão cinematográfica. Em sua versão,
Cara dá destaque especial a esse elemento, não apenas na capa e na folha
de rosto, mas em toda a obra, cobrindo o rosto dos protagonistas principais.
Ainda nas páginas pré-textuais, o leitor encontra uma citação extraída
de Matadouro 5 de Kurt Vonnegut: “Tudo isto aconteceu, mais ou menos”
(VONNEGUT apud CARA, 2015, p. 7). A citação soa como uma espécie de
comentário sobre a narrativa que iniciará em seguida, que será “mais ou
menos” a história de Don Juan, ambientada “mais ou menos” na cidade de
Calvino. O “mais ou menos” indica a voz narrativa de Dalton Cara, que rea-
lizou não apenas a colagem e o diálogo entre autores de tempos, gêneros e
espaços diferentes, como adicionou uma nova camada de leitura por meio
da imagem e criou mais uma versão de Don Juan ao construir a narrativa.
A epígrafe indica que, nas páginas da história que está prestes a começar, o
leitor encontrará uma mistura de muitas versões de Don Juan, do livro de
Calvino e da imaginação Dalton Cara.
No decorrer da obra, é possível perceber que a construção da persona-
gem contempla a multiplicidade de versões. Dalton Cara constrói um Don
Juan com características próximas à personagem de Molina, mas acrescenta
elementos típicos das versões românticas do sedutor. Ao mesmo tempo em
que não se arrepende de nada do que fez em vida, este Don Juan sente que é
merecedor do inferno como algo que ele escolheu para si, que acredita que
merece. Portanto, apesar de libertino, Don Juan também é um conservador,
pois acredita profundamente que deve ser punido pelo que fez.
A história começa onde a versão de Molina termina: com o sedutor no in-
ferno, sendo punido pelo diabo. Lúcifer é abordado por três figuras femininas
que o convencem a tentar novas formas de torturar Don Juan. As três mulheres

433
dizem que apenas manter Don Juan no inferno não é suficiente, pois este não
se arrepende de nada e aceita o inferno como consequência de suas escolhas.
Don Juan é descrito por elas não como um colecionador de mulheres, mas
como um homem torturado, que perdia uma possibilidade de conquista toda
vez que concretizava uma sedução. Nesse aspecto, Cara se aproxima da visão de
Don Juan como um herói romântico, em uma cruzada interminável em busca
de viver intensamente, experimentar tudo, torturado pelos próprios impulsos.
No entanto, não podemos associar completamente este Don Juan ao ro-
mântico, pois seu arrependimento ainda não se concretizou. Madre, a líder
das mulheres, explica para Lúcifer que Don Juan não sente culpa por seus
atos e que entende o inferno como parte do jogo. É evidente que a caracteri-
zação da personagem não está completa na fala dela, já que se trata do olhar
enviesado de uma mulher que foi traída e busca vingança, mas aponta para
o fato de que Don Juan sempre escapou de suas punições, como narrado nas
primeiras versões da peça. Na peça de Tirso de Molina, o sedutor sempre saía
impune por sua descendência nobre, confiando no pai e no tio para livrá-lo de
confusões, mas considera-se que ele é punido quando vai para o inferno no
fim da história. No quadrinho, porém, Dalton Cara nos mostra que o inferno
também não atinge Don Juan e propõe uma nova história a partir dali, na qual
aquelas mulheres tentarão finalmente dar a punição merecida ao sedutor.
Para lançar Don Juan no caminho de seu castigo, o trio de figuras femini-
nas o tenta com a essência de três mulheres que ele nunca teve a oportunidade
de conquistar: Cleópatra, Marilyn Monroe e Helena de Tróia. Nota-se que o
autor apresenta uma personagem histórica, uma diva do cinema e uma figura
mitológica, costurando o arcaico e o moderno, indo do Egito Antigo, passan-
do pela mitologia grega e chegando ao cinema estadunidense do século XX.
Após a provocação de Lúcifer, Don Juan parece não se interessar pela
proposta e permanece sentado em sua mesa junto a uma estátua que pode
ser facilmente reconhecida como o Convidado de Pedra da peça de Molina
ou a estátua do Comendador na história de Zorrilla. Quando o demônio se
afasta, porém, Don Juan começa a agir para fugir do inferno, incapaz de
resistir à possibilidade de seduzir novas mulheres. Esse comportamento
indica a essência transgressora da personagem: ele tem a chance de sair
sob a autorização de Lúcifer para conhecer as mulheres, mas prefere fugir,

434
utilizando a sedução e a violência para abrir caminho. Don Juan foge para a
cidade de Leônia. Descrita por Ítalo Calvino em Cidades invisíveis, a cidade
é materializada pela ilustração no quadrinho, enquanto o texto reconstrói
uma descrição muito semelhante à feita por Calvino.
A cidade de Leônia refaz a si própria todos os dias: a
população acorda todas as manhãs em lençóis frescos, la-
va-se com sabonetes recém-tirados da embalagem, veste
roupões novíssimos, extrai das mais avançadas geladeiras
latas ainda intatas, escutando as últimas lenga-lengas do
último modelo de rádio. (CALVINO, 2017, p. 138)

Ao manter o texto dos balões de fala tão próximo do texto de Calvino, o


autor deixa o diálogo com a literatura mais evidente e expande o texto ao
acrescentar a dimensão imagética. Dessa forma, ainda que o texto seja citado
quase literalmente e o diálogo com a literatura pareça mais óbvio e pouco
criativo à primeira vista, a presença da imagem e a condensação do texto
em balões modifica o original. Ao comprimir e colocar as palavras de Calvi-
no na voz de um aparato tecnológico, Cara o modifica, ilustrando de forma
concreta o fato de que o que acontece ali é a reprodução de algo já existente.
O livro Cidades Invisíveis é, em sua trama principal, o diário de viagens de
Marco Polo. Dentro do contexto do quadrinho, modernizado e modificado,
é um aplicativo de turismo.
Cara reverencia o texto de Calvino que o inspirou e, ao mesmo tempo, o
renova, ao transformar as palavras em imagens e ambientar ali uma histó-
ria diferente do livro, no qual esse texto originalmente se insere. Ao colocar
as palavras de Calvino em diálogo com o mito de Don Juan, Cara provoca
o leitor a fazer inferências e estabelecer relações entre textos que não esta-
vam necessariamente relacionados, fazendo com que a leitura de um texto
modifique a leitura de outro.
Don Juan se impressiona com as montanhas de lixo que circundam a
cidade. Cara coloca o sedutor em uma cidade que a tudo descarta, uma ten-
dência que ele mesmo segue em suas paixões. Leônia amplia e concretiza a
forma como Don Juan viveu sua vida. Depois de usados uma vez, os objetos
não têm mais valor para os habitantes de Leônia, assim como as mulheres

435
deixam de despertar interesse em Don Juan após a conquista. Depois de
usados, só resta o descarte. Na cidade onde tudo é descartável, Don Juan é
uma celebridade, rei do superficial.
O narrador de Calvino comenta sobre a possibilidade de que a paixão
da cidade não seja necessariamente o prazer da novidade, e sim a ideia de
livrar-se de uma impureza recorrente. Como dito anteriormente, Don Juan
é, apesar de libertino, um conservador. Por se considerar indigno do céu,
abraça o inferno. Ao livrar-se da mulher conquistada, ao objetificar e des-
cartar, Don Juan se livra de encarar a própria impureza. Ele se dá o direito
de sempre recomeçar, em uma nova conquista, sem nunca contemplar os
erros que cometeu no passado. No entanto, sabemos que é exatamente por
essa atitude que o sedutor não consegue livrar-se de toda a impureza que
carrega: seu desprezo pelas regras e pelas mulheres com que se envolve o
conduzem ao inferno. Há uma busca dicotômica pela absolvição, ao mesmo
tempo que um desejo constante de desafiar.
Mais adiante na história em quadrinho, é possível identificar claramente
uma conexão intertextual com a versão romântica construída por José Zor-
rilla em Don Juan Tenório. Trata-se de um momento da obra em que a mon-
tagem ganha profunda importância, apoiando-se no que o teórico Thierry
Groensteen define como escalonamento de sentido (2015, p. 117).
Ao explicar como o diálogo entre os quadros produz sentido na história
em quadrinhos, o teórico esclarece que, como leitores, construímos sentido
a partir das inferências que nos parecem mais prováveis. Primeiro nosso
olhar flutua na dupla de páginas como um todo, depois se retém nos quadros
isoladamente. Nesse momento, existe aquilo que as imagens efetivamente
mostram e existe aquilo que a confrontação entre elas permitem dizer. O
sentido de um quadro pode ser determinado tanto pelo que vem antes dele
quanto pelo que vem depois. A leitura pode ser vetorizada, pois lemos sem-
pre na mesma direção, mas a construção do sentido não é. Existe, portanto,
um sentido que se constrói no primeiro contato com o quadro da histórias
em quadrinhos e, depois, um sentido que se compõe à medida que o leitor
avança sua leitura, em um intenso movimento de conexões entre o que ele
já interpretou da história, seu próprio repertório e o que a sequência narra-
tiva indica. É esse movimento que ele chama de escalonamento de sentido.

436
437
Figuras 2 e 3 – Páginas 71 e 72 de Don Juan di Leônia

438
No Capítulo Cinco de Don Juan di Leônia, esse movimento fica eviden-
te. Desconectado do tempo e do espaço onde a história se passa, o capítulo
apresenta uma queda de Don Juan por suas próprias memórias. Na primeira
página, o vermelho que predominou na história até então dá lugar ao azul e
amarelo das lembranças e a página se rasga em duas.
O primeiro quadro, que ocupa toda a linha superior da página, tem o fundo
vermelho e apresenta Don Juan no centro, com uma expressão de surpresa
no rosto. No fundo vermelho, em uma cor rebaixada, é possível ler adjetivos
pelos quais Don Juan é conhecido: libertino, machista, vulgar, degenerado,
devasso, cruel, entre outros. A figura da personagem no centro se torna dimi-
nuta nos quadrinhos seguintes e inicia uma queda livre que continuará por
quase todo o capítulo. Abaixo desse quadro, histórias imagens que contam a
história utilizam apenas as cores azul e amarelo. A sarjeta aparece normal-
mente na horizontal, mas a divisão vertical entre os quadros é feita de forma
rústica, como se fosse vidro quebrado ou papel rasgado.
Scott McCloud (1995) destaca a importância da sarjeta entre os quadros
como um espaço de silêncio, a partir do qual o leitor tem tempo para extrair
sentido dos quadros e transformá-los em uma realidade única. Embora não
considere a sarjeta um elemento tão fundamental da narrativa, Groensteen
a considera um lugar de articulação, que permite ao leitor participar ativa-
mente da construção de sentido do quadrinho. Nesse capítulo da HQ, a sar-
jeta rasga e fragmenta a narrativa e assume também o papel de contar outra
história: a do imenso sofrimento de Don Juan ao relembrar como foi parar
no inferno, até o momento final onde, ao se lembrar da morte de Inês e seu
pai, cai no chão e se parte completamente (Fig. 6). O diabo recebe Don Juan
no inferno e escarifica a famosa máscara e seu rosto como parte da punição.
Como é possível ver na Figura 2, a nova narrativa nos apresenta um Don
Juan visivelmente mais jovem, conversando com um amigo em um bar. Con-
siderando o conhecimento prévio adquirido dentro da própria HQ, é possível
reconhecer os traços de Lúcifer no rosto do interlocutor de Don Juan. Se o leitor
tiver como parte de seu repertório a obra de José Zorrilla, pode acrescentar a
essa percepção a associação a Don Luís Mejía, personagem com quem o mas-
carado Don Juan faz apostas em um carnaval. Até certa altura da obra, Don
Juan tem a personalidade muito parecida com o conquistador da história de

439
Molina: reafirma o próprio valor às custas do sofrimento dos outros, apoian-
do-se na enganação. O encontro entre Don Juan e Don Luís tem a intenção
de contabilizar o placar de uma aposta que fizeram anteriormente, sobre
quem causaria mais estrago no prazo de um ano, considerando o número de
homens mortos e mulheres conquistadas por eles. Don Juan vence a aposta
e, para confirmar sua superioridade sobre o rival, propõe-se a seduzir num
prazo de seis dias a noiva de Don Luís e uma noviça prestes a completar seus
votos. Ao escrever sobre a narrativa de Zorrilla, Michele Fonseca de Arruda
sublinha a necessidade da personagem de reafirmar o próprio poder:
A aposta entre conquistadores revela que Don Juan
visa ao poder em suas relações amorosas e que busca
sacrificar as mulheres em nome de sua glória e, pela gló-
ria, destacar-se de outros homens” (ARRUDA, 2011, p. 3)

A autora lembra que, em sua versão, Zorrilla acrescenta um satanismo


que ainda não estava presente na versão de Molina, oriundo das outras re-
criações românticas e da imagem do homem fatal que passou a ser difundida
a partir da metade do século XIX. Durante o texto, é frequente as persona-
gens afirmarem que Don Juan está acompanhado por Satanás, é filho de
Lúcifer ou a própria encarnação do diabo. Tenório, segundo Mauro (2015),
é mostrado como um personagem sobre-humano, a expressão máxima do
mal irremediável.
Considerando tais fatos, faz sentido que o amigo de Don Juan na versão
em quadrinhos de Dalton Cara seja, na verdade, o próprio Lúcifer, conser-
vando assim a aura satanista que a personagem apresenta em muitas de suas
versões. Aqui ele está, de fato, acompanhado pelo diabo.
Para retratar o diálogo entre os amigos, Cara opta por utilizar ícones den-
tro dos balões de fala nessa sequência e não recorre a nenhum texto verbal.
Aqui, Lúcifer (talvez disfarçado de Don Luís) não parece estar comparando
as próprias conquistas com o sedutor, parece apenas incentivá-lo a se vanglo-
riar e a propor uma aposta. Como na versão de Zorrilla, Don Juan aposta que
seduzirá uma freira, selando a aposta com um brinde e, na página seguinte
(Fig. 3), podemos vê-lo escalando o muro do convento para encontrar a moça.
Don Juan a espia, sendo repreendida por uma freira mais velha. Assim que

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441
Figuras 3 e 4 – Páginas 73 e 74 de Don Juan di Leônia

442
a freira vira as costas, no quadro seguinte, Inês mostra-lhe os dois dedos do
meio, indicando certa rebeldia e personalidade forte. O encontro entre os
dois é fragmentado em pequenos momentos, trocas de olhares sem palavras,
nem mesmo os balões com ícones estão presentes, pois a comunicação entre
os dois parece ser de outra ordem. A paixão que surge sem necessidade de
uma conversa dialoga, mais uma vez, com a versão de José Zorrilla, onde
Don Juan se apaixona por Dona Inés só de ouvir a descrição da jovem por
sua dama, Brígida. O mesmo acontece com a noviça:
Encerrada em um convento ao nascer, Inés encarna
a mulher ideal, símbolo da pureza e o desconhecimento
completo do amor, que desperta com forças graças às
palavras de Brígida a respeito de Don Juan, o qual só
vira de longe. (MAURO, 2015, p.69)

Nasce um amor que transcende o carnal, capaz de derrotar o satanismo


de Don Juan e começar a empurrá-lo rumo à absolvição. Conforme apontado
por Mauro, Zorrilla combina dessa forma a vertente da absolvição cristã à
da redenção pelo amor, abordadas em boa parte das versões românticas do
mito. Ao retratar a cumplicidade instantânea entre Don Juan e Inês, Cara
também faz essa conexão, apresentando uma Inês com personalidade mar-
cante que logo se identifica com Don Juan.
O último quadrinho mostra os dois fugindo do convento juntos. No meio
das páginas, entre os quadros, Don Juan continua sua queda por aquela
memória, em uma narrativa paralela à que está sendo contada. Ele parece
não ter nenhum controle sobre a própria queda, abandonado-se às dores
daquelas lembranças afiadas.
A narrativa paralela, contada no espaço que divide os quadros, ganha cor-
po nas páginas seguintes, onde Don Juan e Inês andam juntos e aprofundam
sua relação de amor e cumplicidade. Em sua queda, Don Juan atravessa o
próprio coração e chega a fragmentar os quadros da página seguinte, como
metáfora da dor da memória, aprofundando-a a cada dupla.
Na versão de Zorrilla, é no encontro com Dona Inês que Don Juan ren-
de-se à ternura e à inocência da mulher, utilizando sua linguagem sedutora
para expressar um arrebatamento genuíno. Na história em quadrinhos, é

443
444
Fig. 5 e 6 – Páginas 77 e 78 de Don Juan di Leônia

445
nesse momento que Don Juan permite que Inês tire sua máscara e conheça
seu rosto, simbolizando a entrega da personagem àquela relação. O rosto
de Don Juan não é mostrado completamente para o leitor, com a imagem
partindo sempre de um ponto de vista que não permite a visualização com-
pleta (Figura 4). Tal escolha indica a intimidade conquistada por Inês e a
vulnerabilidade exposta de Don Juan. Cara retrata a personagem disposta
a compartilhar tudo com Inês e aproxima-se da versão de Zorrilla, em que
Don Juan inclina-se à redenção ao admitir seu amor verdadeiro.
Na versão romântica, Don Juan deixa de lado o orgulho e pede a mão
de Dona Inês para seu pai, o comendador Don Gonzalo de Ulloa. A atitude
do sedutor, entretanto, é interpretada como covardia pelo interlocutor, que
não só rejeita o pedido, como o desafia para um duelo. O mesmo acontece
na história em quadrinhos, o pai de Inês acha a proposta tão absurda que
gargalha e propõe o duelo. Da mesma forma que nas páginas anteriores, o
diálogo acontece em ícones, e não em palavras. Na sarjeta da página, espaço
do duelo, acompanhamos a queda de Don Juan, agora atravessando o cérebro.
Durante o duelo, o sedutor acaba por ferir o pai de Inês. Cara isola Don Juan
do lado direito da página nesse momento, como é possível ver na Figura 5.
A partir dos elementos gráficos, retrata o isolamento da personagem, além
do fato de que, ao assassinar o pai da mulher que amava, feriu também a
si mesmo. Separado dos outros pelo abismo da sarjeta, Don Juan vê o cho-
que no rosto de Inês e o escárnio no rosto do amigo. Acaba por assassiná-lo
também, abandonando a moça que chora a morte do pai. É, então, que a
queda da personagem pela sarjeta termina, batendo no chão e partindo-se
em pedaços, como se fosse feito de vidro (Figura 6). Ele se feriu de diversas
formas durante a queda, mas o baque do pecado terrível que cometeu é o
que o destrói.
Na versão de José Zorrilla, Don Juan retorna a Sevilla cinco anos depois.
Ele se depara com um cemitério no qual estão enterradas todas as suas víti-
mas, inclusive Dona Inês, que morreu de tristeza. Ao encarar a consequên-
cia de seus atos, fica profundamente arrependido. No cemitério, Don Juan
conversa com o escultor das estátuas que adornam as lápides das pessoas
que ele atingiu com seu comportamento e consegue convencê-lo a deixá-lo
sozinho no cemitério. Andando pelos túmulos, passa a ironizar a situação e

446
os mortos, mas não o faz com Dona Inês. Para ela, dedica apenas respeito,
ressalta sua inocência e reafirma seu amor. Então, o fantasma da amada
aparece e diz que, para salvar a alma impura de Don Juan, ela ofereceu sua
própria alma a Deus e, se ele praticar o mal, os dois irão para o inferno. Ele
também recebe a visita da estátua do Comendador e acaba convidando-a
para jantar, incrédulo. A estátua comparece ao jantar e anuncia que Don
Juan deve morrer em um dia. Ao analisar este momento, Mauro destaca que:
O significado romântico da salvação do sedutor não
seria, portanto, passível da compreensão de todos, mas
apenas dos justos, daqueles que compartilham da con-
cepção do amor como um instrumento de purificação da
alma. Ao trazer novamente à cena o Tenorio de Molina,
diante da constelação de Don Juans que lhe disputava a
supremacia, Zorrilla confere um acabamento coerente
à tendência de remissão ao personagem delineada na
primeira metade do século XIX, transformando o Bur-
lador temerário que seduzira a pescadora Tisbea em um
homem rendido pelo amor. (MAURO, 2015, p. 72)

Dessa forma, é na obra de Zorrilla que a tendência do mito para voltar-


-se ao arrependimento sincero e à redenção da personagem se consolida. O
protagonista é salvo do inferno pelo amor verdadeiro de uma mulher, é a
pureza dela e o arrependimento dele que possibilitam o perdão.
No quadrinho de Dalton Cara, o arrependimento de Don Juan tão subli-
nhado pelos românticos também aparece, mas de forma diferente. A dupla
de páginas (Figuras 7 e 8) inicia com dois quadros seguidos com a imagem
de Don Juan, sendo a maior diferença entre as imagens a idade de Don Juan.
A partir daí, ele passa a ter a aparência que foi apresentada ao leitor nas pri-
meiras páginas do quadrinho. Visita o túmulo de Inês e de seu pai e entra em
uma casa, ali encontra uma estátua de pedra com as feições do homem, que
o informa que sua vida acabou. No entanto, nessa versão, Inês não aparece
para salvá-lo. É Lúcifer quem aparece e, satisfeito, escarifica a máscara que
Don Juan usou por tanto tempo em seu rosto.

447
Figuras 7 e 8 – Páginas 79 e 80 de Don Juan di Leônia.

Pode-se interpretar que a máscara escarificada no rosto de Don Juan enfa-


tiza o papel da máscara na história da personagem. Aquilo que antes o protegia
e completava a imagem sedutora que cultivava de si, torna-se carne exposta,
vulnerável, dolorida e uma ferida acessível para quem quiser feri-lo. A partir
desse momento, a máscara não é mais algo que Don Juan pode tirar para mostrar
mais de si a alguém. Ela é parte dele, algo que ele não pode tirar. É nesse instan-
te que a personagem entende que o fundo vermelho da capa – que a princípio
lembra um tecido ou ranhuras da madeira – é, na verdade, a carne exposta do
protagonista. Cara nos diz pela imagem que, ao ler essa história, entraremos
debaixo da pele da personagem e exploraremos sua ferida aberta e dolorida.
Enfatizando seu sofrimento, o corpo de Don Juan se fragmenta cada vez

448
mais no chão fora do quadro, despedaçando-se depois da longa queda durante
o capítulo. Da mesma forma, fragmentam-se também as bordas dos quadros.
A dor é profunda, mas não o absolve de seus pecados, apenas conta como ele
foi parar no inferno e, de certa forma, altera o equilíbrio da história para o
leitor. Afinal, apesar do profundo arrependimento retratado na sequência de
páginas, a absolvição não acontece. Don Juan converte-se, portanto, em uma
espécie de injustiçado, pois não consegue se livrar do peso dos pecados que
cometeu. É transformado em um homem que está sendo punido principal-
mente por uma série de acontecimentos infelizes que o levaram ao inferno.
A história apresentada nesse capítulo apoia-se, em grande parte, no co-
nhecimento prévio do leitor sobre a história de Don Juan. A escolha de Cara
em narrar os acontecimentos pela imagem é amparada por esse repertório,
já que a memória do leitor pode acrescentar novos sentidos à cena. O autor
entrelaça linguagens, recriando a história de um suporte narrativo em outro,
com liberdade o suficiente para alterar detalhes e enfatizar semelhanças. É
a ênfase nos pontos em comum da história conhecida que ajuda o leitor a
compreender os acontecimentos, mas são as diferenças que conferem mar-
cas autorais à obra. Com a sequência desse capítulo, Cara lembra o leitor
do passado de Don Juan, das razões para a personagem acreditar merecer o
inferno e o motivo da violência do homem de pedra que é, na verdade, o pai
de Inês. Sabemos, pela história contada na sarjeta, que essa é a história que
mais machuca Don Juan, sua maior tristeza.
Na história em quadrinhos, a redenção acontece no final, quando Madre,
a líder das misteriosas mulheres que se propõem a torturar Don Juan reve-
la ser Inês. Seu objetivo não era a vingança, como declarado inicialmente,
mas vencer uma aposta feita com Lúcifer quando Don Juan era um jovem e
inconsequente conquistador. Lúcifer acredita que o sedutor já tem lugar ga-
rantido no inferno enquanto Madre acredita que o sedutor é capaz de alcançar
a redenção. As duas figuras fazem uma aposta, que culmina nos aconteci-
mentos que o leitor acompanha no Capítulo Cinco. A revelação leva o leitor a
reinterpretar a reação do amigo de Don Juan à morte do pai de Inês (Figura
6). O sorriso no rosto do amigo é de Lúcifer, que provou que nem mesmo o
amor verdadeiro foi capaz de redimir o sedutor. Mas Inês mostra-se magoada
e irritada. Tirar Don Juan do inferno foi, para ela, a forma de forçar Lúcifer

449
Figura 9 – Página 110 de Don Juan di Leônia.

450
a dar uma nova oportunidade para absolvição, a qual Don Juan finalmente
aproveita e mostra-se um homem diferente do sedutor no passado.
A alegria de Inês pela redenção de Don Juan é rapidamente estragada por
Lúcifer. O diabo aponta que, ao tentar salvar Don Juan, Inês agiu de forma
satânica: mentiu, causou mortes e feriu pessoas sem se preocupar com as
consequências, tendo como único objetivo vencer.
Don Juan descobre-se objetificado e manipulado, usado e descartado. Tor-
na-se vítima, um lugar oposto ao que sempre esteve. O burlador foi burlado.
Ao finalmente entender o que aconteceu, Don Juan ganha poder sobre sua
própria história. Então, escolhe atacar Lúcifer, utilizando-se da força con-
ferida pelos cidadãos de Leônia, que acompanhavam sua trajetória como a
de uma celebridade e, portanto, fizeram dele uma figura tão elevada quanto
Lúcifer e Inês. Pelo menos por aquele dia, em que ainda era a pessoa mais
falada de Leônia, Don Juan consegue derrotar Lúcifer.
É interessante notar que, ao entrelaçar os textos sobre Don Juan com o de
Ítalo Calvino e o seu, Cara cria uma relação de solidariedade entre os textos.
Colocados próximos um do outro, um relê e interpreta o outro, construin-
do novos sentidos. A solidariedade é, também, segundo Groensteen, parte
essencial da linguagem dos quadrinhos, já que o sentido de um quadro só é
construído a partir dos outros que vieram antes dele e dos que virão depois.
Ao optar por esse suporte, Cara criou uma narrativa com formas únicas,
explorando as possibilidades oferecidas por essa linguagem no intuito de
dialogar com a tradição e, ao mesmo tempo, construir novos caminhos.
Assim como na versão de Zorrilla, é o amor de Inês que leva Don Juan à
redenção. O quadrinho termina com Don Juan dizendo que pretende ficar
sozinho pela primeira vez na vida e Inês dizendo que seguiria o exemplo de
Don Juan e tentaria se tornar uma pessoa melhor. Nesse final, a redenção
do sedutor é ainda mais aprofundada que nas versões românticas do mito,
pois ele não apenas se redime, como é colocado como uma vítima de um jogo
entre poderes maiores. Tanto sua perdição quanto sua redenção foram cons-
truídas por figuras sobrenaturais. Assim, ao fazer essa leitura, Cara constrói
Don Juan como um impuro que teve pouco controle sobre o próprio destino
e, portanto, a escolha entre o sagrado e o profano é um jogo eterno, em que
a vitória de um sobre o outro é sempre temporária.

451
Na página final, (Figura 9) Inês veste a máscara de Don Juan e olha em
direção ao leitor. O texto no balão de fala dela diz: “Não seria legal se essa
máscara também ganhasse um novo significado?” e encerra a história de
forma metalinguística. É nesse momento que Cara mostra-se consciente de
que sua história é mais uma camada de interpretação de um enorme leque de
possibilidades. O olhar de Inês voltado para o leitor indica um convite para
que ele também atribua novos significados ao mito de Don Juan.
Em sua obra, Cara conduz o leitor pela longa tradição de histórias de Don
Juan e a entrelaça ao texto de Ítalo Calvino, assim, seduz o leitor tanto pelo
aspecto ético quanto pelo estético. No campo da ética, Cara escapa à fide-
lidade narrativa, ensaia uma aproximação com uma história clássica, mas
constrói um caminho moderno, valoriza ao mesmo tempo em que contraria
o que já está posto sobre a personagem. No campo estético, Cara também
seduz. O ritmo, as cores e os traços da HQ despertam encantamento e levam
o leitor a experimentar conexões novas com o texto que julgava já conhecer.

452
Referências

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José de Zorrilla. Revista Hispanista. Vol. XII nº 47. Dez. de 2011.
Burlar. In: Michaelis DICIONÁRIO Brasileiro da Língua Portuguesa. São Paulo:
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com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/burlar/>.
Acesso em 22 de jan. de 2020.
CALIL, Davi. Uma noite em L’Enfer. São Paulo: Dead Hamster, 2018.
CALVINO, Ítalo. Cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
CARA, Dalton. Don Juan di Leônia. Edição do autor, 2015.
EISNER, Will. Narrativas gráficas. São Paulo: Devir, 2005.
GROENSTEEN, Thierry. O sistema dos quadrinhos. Trad. Érico Assis. Nova
Iguaçu, RJ: Marsupial Editora, 2015.
KRISTEVA, Júlia. Introdução à Seminálise. São Paulo: Debates, 1969.
MAURO, Tereza Cristina. Entre a descrença e a sedução: releituras do mito de
Don Juan em Álvares de Azevedo e em Castro Alves. São Paulo: Rafael
Copetti Editor, 2015.
McCLOUD, Scott. Desenhando quadrinhos. Tradução Roger Maioli dos Santos.
São Paulo: Makron Books, 2008.
McCLOUD, Scott. Reinventando os quadrinhos. Trad. Helcio de Carvalho,
Marisa do Nascimento Paro. São Paulo: Makron Books, 2006.
McCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. Tradução Helcio de Carvalho,
Marisa do Nascimento Paro. São Paulo: Makron Books, 1995.
MEZAN, Renato. Mille e quattro, mille e cinque, mille e sei: novas espirais da
sedução. In: RIBEIRO, Renato Janine (org). A sedução e suas máscaras:
ensaios sobre Don Juan. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 83-114.
MOISÉS, Leyla Perrone. Literatura comparada, intertexto e antropofagia.
In: Flores na Escrivaninha. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
MOLINA, Tirso. Teatro de Tirso de Molina. Trad. Orlando Neves. Porto: Com-
panhia Editora do Minho, 1967.
SOUSANIS, Nick. Desaplanar. São Paulo: Editora Veneta, 2017.
ZORRILLA, José. Don Juan Tenorio. Ave Fénix - Clásicos. Madrid: Plaza &
Janés, 1998.

453
g
Literatura e artes plásticas no
livro ilustrado contemporâneo:
a formação do leitor em tela
Eliane Aparecida Galvão Ribeiro Ferreira
João Luís Ceccantini

Sobre formar o olhar

Este texto tem por objetivo apresentar, a partir do aporte teórico da Es-
tética da Recepção e do Efeito (JAUSS, 1994; ISER, 1996, 1999), uma visada
panorâmica do livro ilustrado1 contemporâneo publicado no Brasil, pautado
por recursos ao metapictórico, à metaficção, à intertextualidade e a hibridis-
mos, assim como por inovações em projetos gráfico-editoriais e homologias
entre poéticas. Esses aspectos, associados não apenas à literatura infantil,
mas à produção artística pós-moderna de um modo geral, são explorados
aqui, sobretudo, na medida em que ampliam as potencialidades do livro
ilustrado na formação do leitor crítico. Para a consecução do objetivo, ele-
geu-se para análise obras nacionais e estrangeiras2 cuja tônica recai sobre a
dialogia com o universo das artes plásticas, pois facultam ao leitor, conforme
Umberto Eco (2003), perceber a citação intertextual e sentir-se participante
do relato. Justifica-se, então, o título deste capítulo.
Neste texto, constrói-se a hipótese de que a leitura do livro ilustrado, to-
mado como objeto de cultura, suscita um particular discernimento de mundo
e posicionamento perante a realidade. Conforme Lawrence Sipe (2020), o
conhecimento, pelos leitores iniciantes, de referências ao universo da arte,
ao trabalho do designer e ao ofício do ilustrador, promove uma apreciação

454
mais elevada do livro ilustrado como objeto estético. Esse livro auxilia na
formação do leitor crítico, pois ativa sua memória transtextual ao permitir-lhe
compreender o texto verbal e não verbal em interação, além de seu suporte.
Além disso, sua leitura é necessária, pois ressignifica, no diálogo com as artes
plásticas, a magia/fantasia que lhes é inerente (FISCHER, 2015), ampliando
o imaginário do leitor.
Para Oliveira (2008(b)), uma das funções da ilustração é criar a me-
mória afetiva do leitor de pouca idade e, assim, “alfabetizar” seu olhar.
Como o livro ilustrado contemporâneo constitui uma forma “específica de
expressão” (LINDEN, 2011, p.29), na qual a materialidade produz efeitos
de sentido, ele é projetado para valorizar a interação sinestésica com seu
público, instalar a “cena” na folha dupla (LINDEN, 2011), além de assegurar
a articulação entre a narrativa e o plano imagético. Seu objetivo é cativar
o olhar, pela apresentação de cores intensas; formatos surpreendentes; in-
serções imagéticas do universo mundano e das artes plásticas; linguagens
dinâmicas, entre outros recursos (LINDEN, 2011; NIKOLAJEVA; SCOTT,
2011; SALISBURY; STYLES, 2013).
Conforme Judith V. Lechner (2020), os livros ilustrados que dialogam com
o universo das artes plásticas configuram-se como galerias portáteis. Para
muitas crianças, representam a única oportunidade de acesso a esse universo.
Por meio de sua leitura, seu público pode se conscientizar das propriedades
sensoriais ou dos elementos da arte, como a existência de linha, forma, cor,
textura, bem como de seus princípios formais. Segundo Lechner (2020), a
mediação desses livros pode promover o prazer na leitura, pela descrição
dos recursos empregados pelo ilustrador, assegurando o domínio de um vo-
cabulário visual, o reconhecimento da variedade de expressões utilizadas
para contar uma história e a valoração dos desafios da expressão artística.
Na análise dos livros ilustrados contemporâneos, procurou-se associá-los
às quatro categorias conceituais identificadas por Sipe (2020). A primeira
refere-se aos livros ilustrados que dialogam com as artes plásticas, pelo viés
da subversão. Nesses livros, texto verbal e/ou texto imagético fazem uso de
forma paródica das convenções da literatura, da cultura popular e da arte
erudita, diminuindo o hiato entre ambas (HUTCHEON, 1991). Embora a
paródia não seja fenômeno recente na literatura infantil, segundo Sandra

455
Beckett (2020), como demonstram as obras de Lewis Carroll, Alice no país
das maravilhas e Através do espelho (2002), para apreciá-la, o leitor necessita
reconhecê-la, identificar o trabalho apropriado e interpretar seu significado
em outro contexto. Faz-se necessário, então, um trabalho de mediação que
vise ao fomento de repertório cultural.
Na segunda categoria, encontram-se os livros que ficcionalizam a vida de
renomados artistas plásticos. Nesses livros, o protagonista e/ou o narrador
pode ser tanto um artista, quanto uma criança ou um animal que estabelece
uma relação de amizade com um artista ou a ele se associa. Neste caso, temos
a oportunidade de vê-lo através dos olhos da criança. Esses livros aproximam
os artistas dos leitores, auxiliando-os a se entender como pessoas, cujas vidas
também se pontuam de sucesso e fracasso, tristeza e alegria.
Na terceira categoria, os livros situam a espacialidade de suas narrativas
em museus, valorizando a experiência de visitá-los. Esses livros ajudam a
desmistificar e humanizar o contato com a arte, por isso atuam como pre-
lúdio para despertar o interesse por mostras de arte, galerias e museus. Eles
liberam a imaginação das crianças, pois as convidam a considerar como seria
o mundo dentro de uma pintura ou o que aconteceria se as personagens de
uma pintura adentrassem o mundo real.
As obras que constituem a quarta categoria possuem ilustrações que,
pelo recurso à paráfrase (visual), ou seja, que imitam ou se baseiam em estilos
artísticos identificáveis ou em escolas estéticas. No contato com essas obras,
o leitor iniciante pode criar e/ou ativar seu repertório cultural sobre estilo
artístico e refletir sobre como a produção de um artista dialoga com a de
outro, bem como as escolas de arte se desenvolvem3.
Para análise, foram eleitos livros cujo sentido não emerge só das imagens
ou do texto, mas, antes, da estreita relação de colaboração entre os dois,
por meio da qual um preenche as lacunas do outro (LINDEN, 2011); e/ou de
contraponto (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011), em que um subverte o discurso
do outro. Almejou-se contemplar também os que exploram o recurso à folha
dupla, pois nela tanto o texto verbal quanto a imagem se dispõem livremente,
possibilitando aos criadores um campo fundamental e privilegiado de regis-
tro e de expressão. A representação nessa folha, por propor uma leitura que
considera a abertura do livro como um suporte expressivo em si, rompe com

456
os conceitos prévios dos leitores, pois escapa ao movimento automático de
encadear páginas durante a leitura (LINDEN, 2011).
Partiu-se do pressuposto de que a literatura é condicionada, em seu caráter
artístico e em sua historicidade, pela relação dialógica que estabelece com
o leitor implícito (ISER, 1996). Essa relação decorre da estrutura de apelo
do texto verbal e do imagético, os quais se configuram por meio da presença
de lacunas ou vazios. Esses textos solicitam desse leitor a participação na
feitura e acabamento da composição literária e ilustrada. Para Martin Salis-
bury e Morag Styles, na leitura desses livros ilustrados, a lacuna que exige
preenchimento pelo leitor é “criada pelo espaço e pela tensão entre o que as
palavras dizem e o que as imagens mostram” (2013, p.75). Essa produtivida-
de exigida é, conforme Wolfgang Iser (1999), retomando Roman Ingarden, o
que pode levar ao prazer, pois “provoca aquela turbulência no leitor que dá
partida à atividade constitutiva e só se tranquiliza quando produz o objeto
estético” (ISER, 1999, p.113).
Para produzir essa emoção, a materialidade do livro necessita ser convi-
dativa à leitura. O desafio ainda amplia-se mais quando da incorporação de
obras de arte a esse livro, requerendo que a linguagem verbal estabeleça ho-
mologias e/ou oposições com sua escola, estilo e/ou tendência. Essas obras,
ao fomentarem a leitura verbal e imagética, visando à obtenção pelo leitor de
diferentes interpretações (NIKOLAJEVA; SCOTT, 2011), também potencializam
a interatividade e a criatividade, revelando, assim, uma intenção de leitura. Ou
seja, projetam um leitor implícito, no caso, perspicaz (HUNT, 2010).
Como se pode constatar, o livro ilustrado contemporâneo, cuja elaboração
se entrelaça com as artes plásticas, resulta em objeto complexo. O que leva
à indagação: sua leitura pode ampliar os horizontes de expectativa do leitor
iniciante e integrá-lo a uma vasta cultura, de tradição solidamente instau-
rada? Será que as imagens que compõem esses livros possuem pregnância
suficiente para compor a memória afetiva desse leitor e arrebatá-lo pelo
surpreendente e encantador? Essa leitura pode ser feita de forma autônoma
até mesmo pelo leitor com pouco contato com o universo das artes plásticas?
As análises a seguir consideram, além da função de colaboração e de con-
traponto das ilustrações na estrutura do texto (LINDEN, 2011; NIKOLAJEVA;
SCOTT, 2011), as identificadas por Luís Camargo (1998), pautadas em Jakob-

457
son. Entre essas funções, são destacadas: a função narrativa, orientada para
o referente, visando situar o representado, suas transformações e/ou ações
que asseguram a progressão discursiva; a expressiva, orientada para o emis-
sor da mensagem quando capaz de manifestar seus sentimentos e emoções
ou para o ser representado na manifestação interior; a estética quando põe
em relevo a forma ou configuração visual com o objetivo de sensibilizar por
meio das cores ou sua sobreposição em pinceladas com textura, manchas,
alternâncias, abstrações, linhas etc.; a lúdica, em que a imagem apresenta-se
sob a forma de um jogo, seja em relação ao emissor, ao referente, à forma
da mensagem visual ou ao destinatário; a metalinguística, orientada para o
próprio código visual com remissão ao universo da arte.

Músicos da subversão

Para as crianças, o prazer da leitura de um livro ilustrado advém da


possibilidade de intensa vivência da fantasia e do ludismo, com a conse-
quente ampliação do imaginário. Para Sipe (2012), incentivar a interação
lúdica entre os leitores iniciantes e as obras de arte promove o caminho da
liberdade crítica. A experiência com as artes em geral, em especial com as
artes visuais, evoca uma epistemologia, uma maneira de ver, de conhecer e,
também, de afastar-se do representado para melhor observá-lo. Nesse afasta-
mento, avulta sua função social (JAUSS, 1994), pois a imaginação que a arte
promove é, conforme Sipe (2012), porta de entrada para uma compreensão
mais profunda sobre o que significa a existência humana. Por meio dela,
o leitor em formação pode perceber as maneiras pelas quais a arte reflete
e reinscreve aspectos tanto positivos, quanto negativos ou limitadores de
uma dada cultura. Nesse viés crítico, insere-se na primeira categoria de Sipe
(2020), pelo recurso à paródia, o cativante livro, em formato álbum (20,3 cm
de largura x 27,3 de altura), intitulado Os três músicos: Pablo Picasso, escrito
por Véronique Massenot e ilustrado por Vanessa Hié (2014). Sua narrativa
configura-se no plano verbal e imagético, com a exploração de ilustrações
sangradas, dispostas na folha dupla4. Suas ilustrações exercem função nar-

458
rativa, pois pertencem a um continuum que conduz o olhar para diferentes
direções. Elas imprimem dinamismo pelas cores, pelos fundos e cativam
o olhar pela riqueza de detalhes. Pela abordagem crítica de temas sociais,
como opressão e abuso de poder; pela riqueza de suas representações; pela
dialogia com o Cubismo, a música e a commedia dell’arte; por oferecer níveis
de fruição diversos, essa obra infantil pode cativar leitores de diferentes ida-
des. Sua diagramação rompe com a previsibilidade na leitura ao intercalar
o texto verbal entre o texto imagético da página par e da página nobre. Na
composição dessas ilustrações, prevalece a função estética, explorando a
interpenetração de cores, no recurso a pinceladas visíveis que geram dife-
rentes texturas e nas sobreposições de tons, em especial, no plano de fundo.
O discurso dialógico na obra (MASSENOT, 2014) advém da criação de
uma história ilustrada e inspirada, como se anuncia na quarta capa, no
quadro Os três músicos, de Pablo Picasso (1881-1973). Embora Picasso tenha
produzido duas versões com esse mesmo título, a obra de Massenot (2014)
dialoga com o óleo sobre tela de 1921 que, atualmente, se encontra no museu
de Nova Iorque. Por sua vez, esse quadro, pela representação de três perso-
nagens arquetípicas reunidas em uma mesa – Arlequim, cantando e tocando
guitarra; Pierrô, clarinete; e Capuchinho, cantando e segurando uma partitu-
ra, interceptada pelo tom de azul – tanto estabelece dialogia com a comme-
dia dell’arte, quanto com os demais quadros de Picasso e até mesmo outras
obras que se debruçaram sobre esse tema, como Os três músicos (1618), de
Velazquez. Aos pés desse grupo, deitado, encontra-se um imenso cachorro
marrom escuro, do qual em parte se vê algumas das patas e a cauda, mas
não a cabeça, produzindo uma lacuna preenchida somente pela sombra desta
na parede de fundo. Essa sombra desaloja o leitor, pois parte dela projeta-se
para frente, ganhando relevo, podendo sugerir que a liberdade prevalece na
arte. No quadro, esse cachorro conota companheirismo e amizade duradoura
entre os músicos.
A inovação na narrativa de Massenot (2014) advém da homologia que
estabelece com esse quadro de Picasso (1921), a música e o teatro, mais
propriamente com a commedia dell’arte. Sua opção por ficcionalizar uma
cena retratada pelo artista espanhol pode divertir o leitor, pois lhe confere
visada dessacralizada. No diálogo com Os três músicos, de Picasso (1921), as

459
ilustrações de Vanessa Hié (2014), parodiam as figuras estilizadas do artista,
dispostas em primeiro plano pelo jogo de cores antitéticas, e capturadas em
movimento, com vestimentas e máscaras arquetípicas da commedia dell’ar-
te. Para tanto, Hié (2014) retira suas máscaras, conferindo, pelo recurso à
função expressiva, emoções aos músicos, bem como os configura com formas
arredondadas, marcadas pelo emprego da linha. Todavia, mantém o efeito
de humor e de teatro itinerante que eles evocam.
Cabe destacar que a projeção de uma história para Pierrô, Arlequim e
Capuchinho, bem como de performances advêm da representação favorável
dessas figuras no quadro de Picasso (1921), pois há círculos sob a forma de
moldura ao redor de seus olhos vazios, que são interceptados pela cor do
fundo, reforçando a percepção de que se trata de marionetes. Conota-se,
assim, um diálogo metapictórico em que essas figuras remetem a construtos
prontos a atuarem a serviço da arte, da imaginação e da criação. A paródia
na obra de Massenot (2014) avulta no abandono da dialética das unidades
picturais que se instala entre figura e fundo no quadro (1921), a qual imprime
um ritmo ao olhar e produz fascínio, pelo desalojar da percepção usual do
leitor. Esse desalojar no quadro (1921) resulta do jogo formal cubista – que
se instala entre claro e escuro, ângulos diversos e diferentes formas geome-
trizadas e planificadas que se interceptam, quebrando a good continuation
(ISER, 1996, 1999) –, o qual projeta as figuras, gerando contiguidade com-
positiva no emprego das cores.
Essa contiguidade das cores no quadro (1921) resulta do avanço de umas
sobre as outras: o azul vem pontuado de preto; o branco de tons ocre, cinza,
lilás e marrom; o marrom de tons de preto e vermelho; e o preto de tons de
azul escuro. Vale destacar que duas cores – azul e marrom – destacam-se,
pelo predomínio e poder de integração das figuras ao cenário. O azul, pela
associação afetiva (FARINA; PEREZ; BASTOS, 2006), remete à paz, amizade,
confiança, amor e fidelidade, por isso é a cor que une os três músicos acom-
panhados de seu cachorro marrom (1921). Esta cor, pela associação afetiva
(FARINA; PEREZ; BASTOS, 2006), evoca resistência e vigor. Em conjunção
com o cenário, essas cores conotam a resistência da arte em suas diversas
manifestações e sua potência para promover emoções que a levem a per-
manecer como herança na memória cultural. A técnica de pintura, pelo

460
recurso à função estética, evoca uma colagem na sobreposição de elementos
intensamente coloridos, dispostos em camadas sobrepostas que revelam alta
pregnância na forma.
Na obra de Massenot (2014), mantém-se no plano imagético o mesmo
jogo de cores do quadro, com a gama cromática semelhante à da fonte, que
avança para a maioria dos espaços cênicos; as mesmas vestimentas das per-
sonagens; os mesmos instrumentos musicais e as mesmas funções para eles,
como “saltimbancos: músicos, comediantes, malabaristas”. No caso do cão,
ele também se faz presente, contudo amplia-se a percepção sobre o animal,
que se define como “amestrado” (p.10). Seu narrador aproxima-se do con-
tador de histórias que estabelece relação afetiva com o relato e seu público,
evocando o teatro de rua. Seu discurso cômico, às vezes, irônico e interativo,
pelo recurso à lacuna instaurada nas reticências, posiciona a narrativa in
medias res, instaurando o suspense, em especial, quando relata sobre o lobo
“Boca de Fogo!”, do qual todos no reino têm medo, embora “Poucos o haviam
visto de frente...” (2014, p.4).
O enredo, como na commedia dell’arte (STALLONI, 2001; VENDRAMI-
NI, 2001), explora um elemento feérico – “Boca de Fogo” –, possui intriga
simplificada, linguagem informal que trata de desvalidos explorados por um
monarca tirano, presença do engodo e do quiproquó, e situa sua espacialidade
no reino de Mirador. Este nome suscita reflexão metalinguística, evocando
um local elevado de onde se descortina um panorama desfavorável à ação.
De fato, o cenário que se apresenta é o da denúncia social de um governo
autoritário, cujo monarca se utiliza do medo de seus súditos, para mantê-los
subjugados e em constante vigília. Esse rei amedronta-os com uma lendária
história sobre um lobo feroz e imenso, que a tudo devora e ataca. Justifica-se,
então, que o nome desse rei, desprovido de caráter, seja Minus e sua ilustra-
ção o apresente com estatura muito baixa, de olhar desvairado, dentes agu-
dos, em um esgar agressivo (2014, p.6-7), ativando a função metalinguística.
Essa função consubstancia-se nas suas características que correspondem a
seu reduzido talento para governar, por isso utilizando-se do engodo para
impor sua autoridade ao povo. As motivações desse rei levam-no a ignorar
a cultura, a natureza e o amor, obrigando seus súditos a empunhar armas
em constante vigília.

461
Pelas ilustrações na capa e nas folhas de guarda, nota-se que a história
transcorre em uma cidadela medieval fortificada, construída em torno de
um castelo situado no alto de um morro. O diálogo com o Cubismo, tão caro
a Picasso, realiza-se pelas formas angulosas das construções desse local e
pela focalização planificada. Pelas ruas desse burgo, encontra-se um curio-
so e alegre grupo de artistas itinerantes que avança tocando instrumentos
musicais na companhia de um imenso cachorro, cujo nome Cacau faz refe-
rência à cor de sua pelagem e ao cão do quadro de Picasso (1921). A função
narrativa e expressiva define esses personagens e pontua toda obra. Assim,
nas folhas duplas de guarda pode-se ver, na página da esquerda, somente
uma das pernas de um homem descalço que usa uma calça comprida azul.
Como ele adentra rapidamente a porta de sua casa e derruba uma cadeira
nesse processo de fuga, conota-se que o medo impera nesse local, marcado
por ruas desérticas de pedra e paisagem desoladora. Justamente, esse grupo
itinerante, composto por Pierrô – cujas roupas brancas evocam as feitas de
saco de farinha –, Arlequim – cujas roupas em losangos coloridos remetem
à alegria própria do espetáculo –, e Capuchinho – cuja vestimenta remete
ao hábito dessa ordem, assim como seus pés descalços –, traz para o local a
sua arte e, por meio dela, a libertação de temores, com consequente retorno
da alegria, do amor, da vida e da natureza.
Essa libertação é reforçada pelo avanço da cor azul – muito significa-
tiva no quadro de Picasso (1921) – nas ilustrações. Assim, se no início da
narrativa, essa cor aparecia apenas na calça do fujão, em um telhado, uma
ou outra janela da cidadela ou de forma fragmentada e restrita nas vesti-
mentas de seus moradores; com a presença dos músicos e a realização de
seu espetáculo (2014, p.14-15), ela começa a permear as cenas e a dominar
seu plano de fundo, evocando o término do medo, pela conquista de valores
mais autênticos: “Todos aprenderam a cantar, dançar, mas também a falar
sobre o medo, a alegria e todas as coisas que emocionam. A enxada tomou o
lugar da lança.” (p.17). Essas mudanças comportamentais promoveram ou-
tras no cenário da cidadela: “Plantas nasceram no meio das pedras, e verdes
oásis enfeitaram o cenário. A beleza dos jardins favoreceu o amor. Flores e
poemas eram oferecidos... Beijos eram trocados, Boca de Fogo não deu mais
notícias...” (p.17 – destaques gráficos do editor). Em síntese, pela associação

462
afetiva (FARINA; PEREZ; BASTOS, 2006), o povo gradualmente conquista
paz e confiança, o que leva o rei ao descontentamento.
Desse modo, para romper com este estado de euforia, o monarca, com a
ajuda de seus guardas, simula um ataque de “Boca de Fogo” a um touro na
praça central, afirmando que o cachorro dos músicos era esse monstro feroz
e assassino. Os guardas desacordam o touro, prendem o cão em uma jaula
e pintam tanto a boca deste, quanto o pescoço daquele com tinta vermelha.
Assim, anunciam a tragédia ao povo que se amedronta novamente. Todavia,
surge o quiproquó, o qual complica e enriquece a intriga, além de favorecer ao
cômico da situação, quando uma moradora descobre a lata de tinta vermelha
e anuncia a farsa ao povoado. Em seguida, o touro desperta e “Furioso, [...]
correu na direção de Minus e dos guardas. Nem é preciso contar com que
velocidade eles fugiram em disparada!” (2014, p.24). A cena provoca efeito
de humor e libertação tanto no leitor, quanto no enredo, por isto informa-se
que passou a ser dramatizada “todos os anos na praça principal, durante
a festa de Mirador... que não tem mais um rei.” (p.25 – destaque gráfico do
editor), ou seja, foi apropriada pela arte.
No desfecho da história, o narrador, pelo recurso à metalinguagem, relati-
viza seu papel e cede a voz aos músicos: ““Minus, você aprendeu que governar
é uma arte que, infelizmente, não se improvisa!”, cantaram Arlequim, Pierrô
e Capuchinho enquanto Cacau recolhia todos os hurras e bravos.” (p.25). Por
sua vez, como contador de causos, esse narrador desloca e instala a conclusão
na memória popular: “Talvez até mesmo – vai saber... – entre eles os vivas de
um Boca de Fogo musicomaníaco, domesticado, encantado nalgum lugar...”
(p.25 – destaques nossos).
A reflexão metalinguística avulta, ainda, nos destaques gráficos de fra-
ses-chave da narrativa que podem ser lidas isoladamente, evocando uma
síntese da história. Para o leitor em formação, a descoberta desse recurso
pode conferir-lhe prazer na leitura, pela economia de esforços. Ao término
do livro, o mesmo recurso de economia é utilizado nos paratextos que apre-
sentam o quadro de Picasso com o qual a obra dialoga (2014, p.26-27), e
breves explicações sobre: quem são os três músicos representados no quadro
(p.28); o interesse do artista por esses personagens da comédia italiana que
retratou em outras obras (p.29); as dimensões do óleo sobre tela e a técnica

463
utilizada, a qual evoca a colagem (p.29); o cubismo e pintores contemporâ-
neos ao artista espanhol que também exploraram a colagem em suas pinturas
(p.30); o fascínio dele por monstros, em especial, pelo Minotauro (p.30); a
sua fama em vida (p.31); e onde podem ser vistas suas obras (p.31). Existem
outros livros infantis que, ao subverter as formas e sentidos das obras origi-
nais, pelo recurso à paródia, permitem inúmeros níveis de fruição, é o caso,
por exemplo, de O dia da festa, com texto e ilustrações de Renato Moriconi
(2017) e O grande livro dos retratos de animais (2010), com texto e ilustrações
de Svjetlan Junaković, entre outros. Essas obras, por se apropriarem de obras
de arte reconhecidas, configurando-as na ilustração, podem, aliás, divertir o
leitor, pois ele é convidado percebê-las segundo uma visada crítica, cômica
e dessacralizada.

O Barroco em três tempos

Na segunda categoria de Sipe (2020), pode ser incluído o livro Três anjos
mulatos do Brasil (2011)5, escrito e ilustrado por Rui de Oliveira, uma vez que
a obra ficcionaliza biografias sensíveis, comoventes e ricamente ilustradas
de três grandes artistas do século XVIII. Essas biografias abordam a genia-
lidade do músico, maestro, compositor e multi-instrumentalista padre José
Maurício Nunes Garcia (1767-1830), conhecido como padre Maurício; do es-
cultor, entalhador e urbanista Valentim da Fonseca e Silva, conhecido como
Mestre Valentim (1745-1813); e do escultor, entalhador e arquiteto Antônio
Francisco Lisboa, conhecido como Aleijadinho (1730-1841). Além disso, in-
troduzem os leitores ao estilo de cada um e tematizam a luta desses artistas
por reconhecimento e seus sofrimentos, sobretudo aqueles provocados pela
discriminação racial.
Oliveira (2011), ao eleger essas personalidades, dialoga com o Barroco
em suas manifestações na arte, música e arquitetura. Essa obra, além de
auxiliar na formação do leitor, pelo valor estético que possui, fomenta a
memória cultural brasileira. No plano imagético, Oliveira faz uso da função
metalinguística ao emoldurar cada cena em folha dupla, sem numeração das

464
páginas, levando o leitor a compreender que, embora, se depare com uma
criação ilustrada, ela não se presta apenas e devaneios, antes à reflexão,
pois se vincula aos quadros que compõem nossa história artística e cultural.
Conforme explicita o prefácio da obra, por meio de estudos iconográficos de
diversas fontes, o autor e artista plástico recriou cenas que, provavelmente,
ocorreram, embora não tenham sido representadas. Nota-se, então, que a obra
(2011) é construto artístico em que prevalece o imaginário, a subjetividade
de seu autor e a metaficção historiográfica (HUTCHEON, 1991).
O emprego da moldura aparece também na capa e quarta capa. Na capa,
a moldura apresenta três enquadramentos que exercem função metalinguís-
tica, pois conotam o mesmo número de biografias que o livro abarca. Nos
cantos dessa moldura, a qual remete à madeira, estão dispostos pequenos
ramos de flores coloridas – motivo recorrente nos quadros barrocos; em seu
centro, aparece o título que se projeta para o olhar do leitor, pois escrito em
caixa alta com verniz localizado. A quarta capa, composta pelos mesmos
elementos da capa, dialoga com esta, pois apresenta uma profusão desses
ramos de flores coloridas. Desse modo, instaura-se uma lacuna, sugerindo
que, ao término da leitura, ao mirar-se a quarta capa, o olhar depara com
a multiplicação da beleza, similar ao encantamento promovido pela leitura
das biografias dos artistas retratados e das ilustrações de Oliveira (2011),
que com elas dialogam.
Em Três anjos mulatos do Brasil (2011), a organização interna da obra é
atraente, pela divisão das três histórias acompanhadas ao seu término por
ilustrações de excelente qualidade. Essas ilustrações possuem função nar-
rativa, pois instauram o movimento na cena – folha dupla sem numeração
alguma –, pela captura do instante. Seu título, capa e contracapa apresen-
tam coerência em torno da temática da criação artística durante o Barroco.
Aliás, a ilustração de um anjo barroco, disposto acima do título, reforça essa
ideia. Seu título instiga o leitor a descobrir quem são os três anjos mulatos.
Suas ilustrações exercem função estética, pois dialogam com o estilo bar-
roco (FARTHING, 2010; O LIVRO DA ARTE, 1996), pelo recurso à ilumina-
ção dramática, aplicação exuberante de luzes e sombras, apelo imediato aos
sentidos pela plasticidade das formas, emprego de cores vibrantes, riqueza
de traços e exploração de texturas que evocam pinceladas visíveis, compos-

465
tas por diversas camadas de tinta. Seus textos verbal e imagético também
dialogam com o Barroco, contudo de forma parodística, ao romperem com
conceitos, como o de arte ornamental e/ou sob encomenda (STRICKLAND;
BOSWELL, 2004), visando a denunciar desigualdades e opressões promovi-
das pelo sistema social, pela Igreja, por mecenas e burgueses.
Pelo apelo às emoções e ao emprego de molduras, as ilustrações dia-
logam também com o leitor implícito, ampliando as significações do texto
verbal. Em sua configuração, produzem lacunas, pois estimulam o leitor a
um retorno ao texto verbal na tentativa de descobrir a que evento narrado
cada uma das cenas ilustradas ao final dos capítulos se refere. Um exemplo
dessa interação aparece ao término da biografia do Mestre Valentim, na cena
em que, supostamente, conversa com os representantes do governo sobre a
construção do Passeio Público (2011, p.34-35). Nessa ilustração, nota-se a
função expressiva, pois o Mestre sentado em um sofá ao fundo da cena, com
as mãos entrelaçadas, embora ilustrado de forma digna por traços vigorosos,
dirige seu olhar fatigado para o leitor, como se lhe comunicasse que espera a
aprovação dos dirigentes do governo de seus projetos para começar a obra, já
que sua opinião ali não é solicitada. Nota-se, também, que a maioria desses
dirigentes olha para o projeto e discute sobre ele, contudo, um deles dirige
seu olhar irônico para o leitor, conotando que sabe que está sendo julgado
por este olhar que vem do exterior. A visada crítica do ilustrador pode ser
observada nessa cena (p.34-35), pela discrepância entre as ricas vestimentas
dos dirigentes e as roupas modestas do Mestre.
Pela atuação de Oliveira no campo das artes plásticas, ao término do
livro (2011, p.52-53), encontram-se minuciosos esboços de seus estudos,
identificando os recursos manipulados e as técnicas para a constituição do
plano imagético na obra. Esse procedimento adotado por Oliveira é muito
utilizado em exposições de quadros, esculturas, instalações e catálogos, mas,
em geral, ignorado pelos ilustradores. Trata-se de uma estratégia editorial
atraente para o leitor de pouca idade, pois o insere em um universo em geral
desconhecido, revelando-lhe que a criação demanda elaboração e sistemati-
zação de recursos. Na sequência, o projeto gráfico elucida para o leitor três
cenas (p.54) que, numeradas, revelam personalidades notáveis da época
retratada. Nota-se, por esse recurso, preocupação com o contexto histórico,

466
a fim de assegurar a verossimilhança. O livro se encerra com as referências
bibliográficas utilizadas como fonte de pesquisa. Todas essas informações
auxiliam na obtenção de dados que podem ampliar a leitura das ilustrações.
Nessa mesma categoria de Sipe (2020), podem ser incluídos livros, como
Claude Monet, com texto e ilustrações de Mike Venezia (1996), e Crianças
famosas: Michelangelo, com texto e ilustrações de Tony Hart e Susan Hellard
(1995), entre outros.

Um museu para ler

Na terceira categoria de Sipe (2020), em que a espacialidade na narrativa


se situa em museus, visando à experiência de visitá-los, pode-se classificar
Érica e os impressionistas, livro escrito e ricamente ilustrado por James
Mayhew (2001). Em seu enredo, a pequena protagonista, cujo nome confe-
re título ao livro, visita um museu de arte na companhia de sua avó, com o
fito de comemorar o aniversário dessa senhora. A folha de abertura do livro
(2001, p.16) e a primeira cena da obra (p.3) apresentam-nas de mãos dadas
na entrada desse museu, exercendo função expressiva, pois conota o carinho
e a proteção dessa avó para com a pequena menina. Seus casacos opõem-se
pelas cores, o de Érica é vermelho e de sua avó, verde. Desse modo, sinalizam
para o leitor, pela associação afetiva (FARINA; PEREZ; BASTOS, 2006), que
a menina se define pelo dinamismo e pelas emoções, enquanto a avó, pela
tolerância e tranquilidade.
O livro exibe ilustrações narrativas e sangradas que, pela configuração,
aproximam a experiência do museu ao universo mundano, reconhecível pelo
leitor implícito. Além disso, esse recurso desempenha função metalinguísti-
ca, pois estabelece distinção entre as ilustrações e os quadros emoldurados
de autorias diversas que as personagens avistam no espaço do museu. Suas
páginas sem numeração, ora apresentam o texto verbal na parte baixa da
folha, ora na parte alta, ora ao centro, impedindo a mesmice na disposição
para o olhar. Suas ilustrações apresentam profusão de cores claras e escuras,
pontuadas por texturas. Desse modo, exercem função estética e dialogam

467
com o Impressionismo, quanto ao jogo cromático variado e dinâmico que
se estabelece. Algumas cenas apresentam-se em folha dupla, convidando o
leitor a mergulhar ao lado da protagonista nos quadros de renomados pin-
tores impressionistas.
Nessa visita ao museu, a avó destaca para a neta alguns quadros que re-
presentam em intensas pinceladas a exuberância de diversos tipos de flores.
A menina, embora seja visitante assídua desse espaço, alega que as pinturas
são compostas por “borrões” (2001, p.4). Essa apreciação, resultante de visa-
da parcial sobre a pintura, é reforçada pelo plano imagético, pois na cena o
quadro indicado pela avó tem a parte de cima de sua moldura sangrada, bem
como sua lateral esquerda (p.4). A avó elucida para a neta, pelo recurso à
linguagem metapictórica, o modo de olhar, por meio do afastamento. Este é
necessário na apreciação da pintura impressionista cuja técnica rompe com
pinceladas fundidas e quase invisíveis, pelo recurso a camadas sobrepostas
de tinta em composições dinâmicas que apresentam cenas descentralizadas
e/ou sangradas, com cores intensas e pinceladas livres (FARTHING, 2010),
marcadas por lacunas.
Assim, Érica ao visitar “a próxima sala” (2001, p.5), utiliza-se do afasta-
mento e consegue ver um lindo jardim que compõe o quadro O almoço, de
Claude Monet (1840-1926). Na apresentação desse quadro, o ilustrador pa-
rafraseia-o, configurando a cena, pela técnica impressionista, em que a cor
estabelece os limites, pois não há a presença da linha. Como ela se apropria
da pintura pelo olhar, esta se configura no centro da parede e emoldurada,
pondo a cena em foco também para o leitor implícito (p.5). Diante de tantas
flores, Érica pensa que a avó gostaria de receber algumas de presente pelo
aniversário. Em uma ampliação de suas experiências sensoriais, Érica, ao
sentir o perfume das flores, fecha os olhos e quando os abre encontra-se
dentro do jardim representado por Monet. Essa cena – manifesta na folha
dupla para deleite do leitor (p.6-7) – dialoga com os quadros impressionis-
tas, cujos cenários, em geral, possuem ponto de entrada para o olhar. Tem
início, então, a jornada de Érica que a conduz a adentrar inúmeros quadros
nos quais avista flores, como: Menina com regador (p.10) e A primeira noite
(p.21), ambos de Pierre-Auguste Renoir (1841-1919); Campo de papoulas (p.15),
também, de Monet; As dançarinas azuis (p.30), de Edgar Degas (1834-1917).

468
A eleição desses quadros justifica-se, pois no primeiro, de Monet (2001,
p.5), embora Érica tenha colhido flores, feito amizade com o filho e a esposa
desse pintor, inclusive pintado na companhia desse menino, elas começam a
murchar assim que retorna ao museu. Desse modo, na busca por água, adentra
o segundo quadro, de Renoir (p.10). Nesse espaço, a protagonista entabula
jogos e brincadeiras com a menina dona de um regador, que a aconselha a
colher outras flores. Todavia, na correria de ambas pelo jardim, quebram um
vaso, provocando descontentamento na mãe da menina. Irritada, a mulher
deseja castigar Érica, por ser desordeira. Diante da ameaça, a protagonista
foge do quadro, derrubando flores pelo museu e, com a finalidade de colher
papoulas, adentra o terceiro quadro (p.15).
Nesse espaço, reencontra a esposa e o filho de Monet (p.16-17), e participa
de um piquenique ao lado deles (p.18). Mas o grupo é atacado por abelhas.
Érica foge novamente para o museu, mas perde suas flores pelo caminho.
Avista, então, o buquê da jovem que está no quadro de Renoir (p.21), mas
não consegue obtê-lo. Como todo herói, a protagonista precisa provar com-
petência para conseguir o que deseja (CAMPBELL, 2000). Assim, novamente
em fuga, adentra o quadro de Degas (p.30), justamente quando as bailarinas
vão se apresentar no palco. Érica não se intimida e, despindo-se de seu ca-
saco, realiza uma excelente performance. Como resultado, seus admirado-
res atiram-lhe flores. Finalmente, de posse do objeto desejado, ela retorna
e presenteia a avó que, embora desconheça a origem do belíssimo buquê,
aceita serenamente o presente, como já era acenado pela cor verde de seu
casaco no início do livro, evocando serenidade. Dado o caráter circular da
obra, que indica o museu como cenário para aventuras inesgotáveis, Érica
percebe um pincel no bolso do seu casaco e retorna ao quadro de Monet
(p.31), colocando-o sobre a sua moldura.
O livro, pelo recurso à função lúdica, utiliza-se da antítese, assim, convi-
da o olhar do leitor a perceber que a protagonista, ao adentrar os cenários
dos quadros, imprime-lhes formas arredondadas e linhas, configurando-os
como ilustrados. Desse modo, mimetiza-se nas cenas a apropriação da arte
pela criança que a aproxima de si, pelo caminho da identificação. O projeto
gráfico-editorial prevê com exatidão seu público mediador, pois explicita,
ao término do livro, as referências aos quadros e pintores impressionistas,

469
inclusive elucidando brevemente seu estilo, sua técnica e seus motivos, bem
como os museus em que se encontram os quadros com os quais a obra dia-
loga. Há inúmeros livros que se enquadram nesta categoria, podendo-se
mencionar, por exemplo, Lineia no jardim de Monet, de Christina Björk, com
ilustrações de Lena Anderson (2019), e Somos todos obras de arte, escrito por
Mark Sperring e ilustrado por Rose Blake (2019), entre outros.

Machado em traços e pinceladas

Na quarta categoria de Sipe (2020), em que os livros possuem ilustrações


que imitam ou se baseiam em estilos artísticos identificáveis ou mesmo “es-
colas artísticas”, enquadra-se a obra Conto de escola (2002), composta pelo
conto homônimo de Machado de Assis (1839-1908) e por ilustrações de Nel-
son Cruz (1957-)7. A estratégia do ilustrador de resgatar um texto canônico
e ilustrá-lo, tanto permite ao leitor contato com um texto de natureza crítica
e lúdica, quanto lhe faculta a ampliação de seus horizontes de expectativa,
por meio do emprego da memória e da interação com a linguagem visual.
Sua inovação recai na ilustração dialógica com o universo das artes plásti-
cas e na materialidade atraente do livro que, no formato álbum (21,5 cm de
largura x 28,5 cm de altura), promove a confluência das duas linguagens,
por meio da espetacularização.
Nesse divertido e intrigante conto de Machado de Assis, disposto de forma
integral na obra, um menino inteligente e questionador divide-se entre a razão
e a emoção. Para atender à primeira, deve ser obediente ao pai e frequentar
a escola, evitando castigos memoráveis. Já em atendimento à segunda, basta
divertir-se com jogos e brincadeiras ao lado dos amigos, pelas ruas do Cam-
po de Sant’Ana ou no morro de S. Diogo. Suas ilustrações, em várias cenas,
adaptam e reendereçam quadros, como a pintura a guache de Franz Josef
Frühbeck (1795-1830), intitulada Campo de Santana, de 1818 (p.2); a pintura
a óleo de Pedro Godofredo Bertichem (1796-1856), Vista da entrada do Rio
de Janeiro Tomada da Ilha dos Ratos, de 1845 (p.9); além da gravura de Jean
Baptiste Debret (1768-1848), Aceitação provisória da Constituição de Lisboa

470
no Rio, de 1821 (p.29), aproximando essas obras, pelo arredondamento das
formas e emprego de cores intensas, do público infantil, e alcançando um
estilo mais próximo do universo desse potencial leitor.
Cruz também adapta e reendereça uma fotografia de 1909, de Augusto
Cesar Malta de Campos (1864-1957), do antigo Largo da Sé, configurando-a
como intensamente colorida e marcada pela luz solar, a qual projeta sombras
metonímicas de construções que, pelo recurso à função lúdica, instauram
lacunas na leitura, pois só podem ser adivinhadas por essas formas, já que
o sangramento da página as colocou em elipse (2002, p.29). Além disso, o
quadro de Bertichem, na releitura de Cruz (p.9), tem a focalização invertida
para que seja coerente ao olhar do protagonista que, da janela do sobrado
de sua escola, avista o morro do Livramento e sonha com a liberdade ao ar
livre, soltando pipa. Desse modo, essa cena exerce função metalinguística,
podendo propiciar no leitor a reflexão sobre a intencionalidade na adaptação
que, como recurso, visa a determinados efeitos de sentido.
A eleição do ilustrador por obras artísticas que se instalam na transição
do Neoclassicismo para o Romantismo atende aos seus anseios de resgatar
obras solenes que “espelham” o Rio de Janeiro do século XIX. Contudo, como
essas obras de vanguarda filiam-se ao Romantismo, elas se opõem ao racio-
nalismo e ao rigor neoclássico (FARTHING, 2010), pois expressam também
as interpretações e emoções de seus autores a respeito do que veem. Desse
modo, pela homologia entre poéticas, o texto imagético afina-se ao jogo entre
razão e emoção manifesto no texto verbal de Machado.
Na obra, a capa exerce função metonímica, pois apresenta a imagem de
uma cena dramática do conto que só será entendida durante a leitura. Desse
modo, pelo recurso à função lúdica, o ilustrador confere às imagens o papel
de catáfora, antecipando uma informação importante e produzindo curiosi-
dade no leitor iniciante. Durante a leitura, o reconhecimento da mesma cena
confere a esse leitor a sensação de prazer, pois esta se apresenta como um
payoff, uma recompensa, por tê-la analisado na primeira leitura e, também
sensação de poder, já que, pelo contexto, seu entendimento dessa imagem
não só se completa, como surge ressignificado. Nessa cena com função esté-
tica, pois representada como aquarela, com camadas de pinceladas, pode-se
visualizar uma sala de aula do século XIX. Ao seu fundo, em segundo plano,

471
um aluno troca informações com outro, entregando-lhe um pedaço de papel.
Para o leitor contemporâneo, trata-se de uma cena cotidiana de sala de aula,
em que, às vezes, os alunos se comunicam por meio de bilhetinhos. Contudo,
em primeiro plano, outro aluno com o rosto, exercendo função expressiva,
pois marcado pelo descontentamento, olha para trás, conotando que reprova
a atitude de seus colegas.
A dramaticidade da cena é ampliada pelo emprego de cores quentes
(FARINA; PEREZ; BASTOS, 2006), em tons permeados de magenta, vinho,
ocre, mostarda, marrom, laranja, que ampliam a atmosfera claustrofóbica e
“infernal” do local, retratado com a focalização de tipo contra-plongé, pois
filiada ao olhar da jovem personagem descontente que aparece em primeiro
plano. Essa cena representa o momento crítico do texto, em que o protago-
nista, Pilar, entrega um papel contendo as respostas de um exercício a um
amigo de sala. Trata-se, justamente, de Raimundo, o filho do professor que,
tinha dificuldades de aprendizagem, pela pressão psicológica que sofria,
pois seu pai era mais severo com ele e “[...] buscava-o muitas vezes com os
olhos, para trazê-lo mais aperreado.” (2002, p.13). Pode-se notar, então, que
as imagens exercem função narrativa, pois instauram a ação e relatam cenas
significativas do enredo.
No livro, as ilustrações exercem função estética, pois apresentam cores
intensas e evocam sobreposições de camadas de tinta, que as pigmentam em
vários tons. Essa pigmentação granula as imagens e confere-lhes efeito de
sombreado e de textura, projetando-as para mais perto dos olhos do leitor.
As folhas de guarda, de abertura e de fechamento do livro, dispostas em folha
dupla, possuem fundo branco e representam o descanso para olhar, antes de
adentrar a história ilustrada. Nas margens inferiores das folhas de guarda,
aparecem dispostas em sentido horizontal diversas baquetas e canetas-tin-
teiro, elas se transformam na página da direita em instrumentos para tocar
um tambor ricamente ilustrado, com fitas coloridas amarradas. Nas folhas
de encerramento, esse tambor reaparece na página da esquerda, criando
assim movimento e circularidade no fechamento do livro. Tanto as imagens
da quarta capa, quanto as da folha de guarda e de encerramento serão com-
preendidas somente ao término da leitura. Como funcionam como catáforas,
projetam o olhar do leitor adiante, em busca de entendimento. Além disso,

472
instauram lacunas, convocando hipóteses que antecedem a leitura.
As folhas duplas de abertura possuem na margem inferior um cenário
urbano, do século XIX, sangrado, com sobradinhos dispostos lado a lado
que remetem à ideia de vilarejo. Na página da esquerda, no alto, há um sol
personificado sob a forma de um rosto com óculos, que remete ao escritor
Machado de Assis e conota, desse modo, que ele ilumina a obra. Ao centro
dessa página, há outra homenagem a Machado, pois seu nome aparece em
caixa alta, tendo abaixo dele, em caixa baixa e alta, a indicação de que as
ilustrações são de Nelson Cruz. Mais abaixo do nome de ambos, está o da
editora em fonte menor, mas em negrito e caixa alta, denotando sua impor-
tância na constituição do projeto gráfico. Na folha da direita, contornado por
linha preta e preenchido em vinho, aparece o título do livro, remetendo à
letra cursiva, pois mais próxima do público juvenil que com ela se identifica.
As ilustrações na obra despertam a curiosidade pela riqueza de detalhes
representados e produzem efeito de humor, pelo recurso à hipérbole nos
traços de determinadas características das personagens. Pela disposição das
imagens, nas folhas duplas do livro, pode-se notar que estas ora ocupam o
espaço nobre da folha dupla – a página do lado direito – ora do esquerdo,
ora margeiam o texto verbal – localizadas no rodapé dessa folha –, ora as-
sumem papel metonímico de pista narrativa, representando somente um
objeto cênico. Desse modo, pela função lúdica, desautomatizam o olhar do
leitor, que se surpreende com a sua disposição sempre diversa da anterior,
atuando com função catafórica, em que se entrevê o que ainda será narrado.
Na obra, as ilustrações ampliam o sentido do texto verbal, pois represen-
tam cenas carregadas da subjetividade do ilustrador que, pelo tom de denúncia
social, inscrevem lacunas que exigem produtividade do leitor. Uma dessas
cenas ilustra a afirmação do narrador de que, motivado pela razão, decidira
ir à escola. Suas ilustrações apresentam dramaticidade (2002, p.4), a qual é
intensificada pelos tons de magenta que configuram um homem imenso, de
terno vermelho, sentado em uma cadeira, segurando com a mão direita o
braço do protagonista. Este menino está de bruços, com as calças arriadas
e expressão de dor no rosto, sobre a perna direita deste homem hiperbólico.
O homem, por sua vez, tem a mão esquerda levantada, pronta para desferir
palmadas no traseiro da criança. Aos pés desse homem, há uma vara par-

473
tida, conotando que se quebrara durante o castigo e, por isso, ele decidira
prosseguir com a própria mão.
O tom de denúncia dessa cena (p.4) avulta na discrepância da proporção
do tamanho do homem em relação ao da criança e das cores que se opõem
em suas roupas; as do homem são predominantemente vermelhas e as do
menino verde. Assim, elas sinalizam para o leitor, pela associação afetiva (FA-
RINA; PEREZ; BASTOS, 2006), que a criança se define pela leveza, enquanto
o pai, pela agressividade. As sombras dessas imagens projetadas na parede
e no encosto de madeira da cadeira ampliam o gesto da mão erguida para
bater. Além disso, conferem aspecto demoníaco ao adulto, pois destacam o
formato de seu cabelo repartido ao meio e voltado para o alto, como chifres.
Seu bigode imenso, também disposto para o alto amplia essa concepção. O
leitor pode deduzir, então, pelas imagens, que as lembranças do castigo físico
foram, na verdade, a “razão”, a qual moveu o garoto a ir à escola.
Na leitura do texto, percebe-se que este adulto era seu pai e o castigo
adveio de duas cabulações de aula. A brutalidade do pai manifesta na cor
de suas roupas é justificada pela profissão, como empregado do Arsenal de
Guerra, e pelo temperamento “[...] ríspido e intolerante” (2002, p.5). Con-
tudo, não há na narrativa remissão ao emprego das mãos no castigo, ape-
nas da vara de marmelo. Nota-se, então, a interpretação do ilustrador para
justificar a afirmação: “As sovas de meu pai doíam por muito tempo.” (p.5).
Apesar da intenção de ir à escola e, assim, seguir a razão, o protagonista
percebe que a violência também adentra esse espaço, promovendo medo,
corrupção e delação, por um dos colegas que anseia agradar ao autoritá-
rio e violento professor. Diante da impossibilidade de enquadrar-se nessa
ordem social, o protagonista elege a emoção como guia, cabulando aula e
seguindo a marcha dos soldados, motivado pelo “diabo do tambor” (p.28).
Desse modo, justifica-se a presença desse instrumento musical nas folhas de
guarda e de fechamento do livro, como se fosse um promotor de tentações
irresistíveis. Sua presença na narrativa estabelece circularidade, ao abrir e
fechar a obra, saciando a curiosidade do leitor que, no desfecho da história,
finalmente, o compreende.
Esse tambor ambíguo, tocado por uma baqueta e uma caneta tinteiro,
exerce função metalinguística e lúdica, pois metaforiza o jogo na alma do

474
protagonista entre a razão e a emoção, e funciona como motivo para a cria-
ção literária e imagética. Ao desenlace da narrativa, pode-se deduzir que o
protagonista chega à conclusão de que tanto em casa, quanto na escola há
castigos físicos, então, opta pelas ruas, pela liberdade, rendendo-se ao pra-
zer e ao brinquedo, elementos ausentes do âmbito escolar e familiar. Seu
comportamento afina-se aos ideais dos artistas românticos desiludidos com
a racionalidade, pois percebem que, apesar dela, o mundo não se tornou
melhor (FARTHING, 2010).
O projeto gráfico-editorial da obra prevê com exatidão o público media-
dor, pois apresenta, ao término do livro, um glossário (2002, p.30) e um texto
de Cruz (p.31), em que revela as referências aos quadros e à fotografia com
que a obra dialoga, inclusive, indicando os acervos e as coleções, bem como
os museus a que pertencem. Também se enquadram nessa categoria das
ilustrações que, pelo recurso à paráfrase, imitam ou se baseiam em estilos
artísticos identificáveis ou em escolas, os seguintes livros: A grande onda:
Katsushika Hokusai, escrito por Véronique Massenot e ilustrado por Bruno
Pilorget (2014) e O pássaro na gaiola, com ilustrações de Javier Zabala e texto
de Vincent van Gogh (2015), entre outros.

Imagens fora dos muros

Conforme Rui de Oliveira (2008(a), p.44-45), “ler de forma consciente


e participativa a palavra e a imagem constitui, acima de tudo, um ato de re-
sistência cultural e social”. Pela análise das obras, pôde-se observar que suas
narrativas e planos imagéticos cativam o leitor, pela temática e comunicabi-
lidade, pois o implicam na construção do sentido, convocando-o, como “ato
de resistência”, ao questionamento sobre o entorno social, a história da arte
e a própria constituição da obra que lê.
Em realidade, se a leitura do livro ilustrado contemporâneo, com recurso
estético ao emprego da paráfrase, paródia, intertextualidade, metalinguagem,
sobreposição de códigos, de diálogos entre palavra e imagem, pelo efeito de
estranhamento, resulta a princípio complexa para o leitor em formação, em

475
especial sem familiaridade com o universo das artes plásticas, pela mediação,
suas ilustrações podem, pela pregnância estética, surpreendê-lo, arrebatá-lo
pelo encantamento, ampliar seu imaginário, compor sua memória afetiva,
enfim, integrá-lo à cultura. Desse modo, a leitura desses livros ilustrados
que dialogam com as artes plásticas é formadora de experiências, as quais
podem agir na própria percepção do mundo para esse leitor.
Conforme Beckett (2020), os autores e ilustradores desses livros con-
temporâneos, por se utilizarem de recursos que impõem diferentes níveis
de complexidade, projetam um leitor implícito dotado de competência e
repertório cultural. Independente da existência de um leitor empírico equi-
valente a esse projetado na estrutura do texto, a produção de ilustradores,
designers e escritores não pode esperar pela existência de domínio entre o
público infantil e juvenil de todos os códigos necessários ao entendimento de
seus textos (BECKETT, 2020). Justamente, a obra desafiadora faz-se neces-
sária, pois eleva os níveis de leitura em sociedade, desalojando mediadores
e pesquisadores, convocando-os à reflexão e à pesquisa.
Vale destacar que, nas quatro obras analisadas, pelo recurso à função
metalinguística no plano imagético, o diálogo das ilustrações com as artes
plásticas resulta enriquecedor, pois as revela ao leitor como distintas daque-
las. Assim, pela leitura, a criança pode apreender que, apesar das ilustrações
serem construtos provenientes da criatividade, cuja função é narrar, possuem
características próprias que, dotadas de valor estético, as categorizam como
artísticas. Assim, se a pintura, de acordo com Oliveira (2008b), possui um
ritual de percepção, pois é feita para apreciação em ambientes específicos,
como galerias de artes, mostras, museus, entre outros; a ilustração pode ser
reproduzida tanto quanto o livro que a contém e pode ser fruída em qualquer
espaço de forma espontânea e lúdica. Em síntese, no diálogo estabelecido
com a pintura, a ilustração disposta no livro infantil democratiza-a, liberta-a
dos museus, das molduras e dos pedestais, propicia uma experiência viva e
intensa. A pintura é trazida para perto do leitor, colocando-se ao alcance de
suas mãos e de seus olhos, impregnando seu imaginário e propiciando um
mergulho profundo no universo tanto das artes plásticas quanto da literatura.

476
Notas

1  Entende-se aqui por livro ilustrado, a categoria de obras – no amplo universo


da literatura infantil – que apresenta texto verbal e não-verbal (ilustrações) de
tal forma imbricados, que ambos dão contribuição essencial para a construção
de sentidos pelo leitor. Isto, em oposição a livros infantis em que as ilustrações
desempenham papel menor – meramente decorativo ou recreativo – em sua
relação com o texto verbal.
2  Obras traduzidas para o português e publicadas no Brasil.
3  Na pesquisa mais ampla que está sendo realizada sobre livro ilustrado e ar-
tes plásticas, criamos mais duas categorias para dar conta do grande conjunto
de livros ilustrados com os quais estamos trabalhando: 5) os livros de caráter
informativo (ainda que possa haver alguma dose de ficção na obra) voltados
sobretudo a apresentar uma obra ou um conjunto de obras de arte para o leitor
e a esboçar algum tipo de análise introdutória sobre o objeto em causa; 6) os
livros que propõem a interação do leitor com o livro num nível que ultrapassa
o da mera leitura, convocando a que ele mesmo se torne um “artista” e produza
sua própria arte, com base em estímulos, informações e sugestões específicas
que integram o livro.
4  Na folha dupla, tanto o texto verbal quanto a imagem se dispõem livremente,
possibilitando aos criadores um campo fundamental e privilegiado de registro,
e de expressão, que evoca a espetacularização.
5  Esta análise modifica e aprofunda o artigo: FERREIRA, Eliane Ap. G. R.; MAT-
SUDA, Alice A. A cultura afro-brasileira na sala de aula: uma proposta de trabalho
pedagógico com obras que dialogam com o livro Três anjos mulatos do Brasil, de
Rui de Oliveira. Revista Impossibilia. v.8, p.179-193, 2014.
6  Como não há numeração das páginas no livro, a paginação realizou-se pela
contagem da primeira folha.
7  Esta análise adapta e aprofunda o artigo: FERREIRA, Eliane Ap. G. R.; BU-
LHÕES, Ricardo M. O cânone reendereçado: uma análise do texto Conto de es-
cola, de Machado de Assis, ilustrado por Nelson Cruz. In: Anais do XII Congresso
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B
Literatura Infantil e Juvenil
africana de língua portuguesa:
um olhar para Cabo Verde
Avani Souza Silva

Até mesmo para falar consigo próprio


é preciso fingir que se é duas pessoas.
Walter Ong

As estrelas da noite eram navios que navegavam


havia longos séculos, para nos virem buscar.
Baltasar Lopes

Os países africanos de língua portuguesa tiveram o início de sua produ-


ção de Literatura Infantil e Juvenil a partir de 1975, embora alguns títulos
tenham sido publicados anteriormente não como Literatura Infantil e Juvenil,
mas como literatura para adultos, mas que tiveram grande ressonância no
público jovem. Dessas obras, destacamos Chiquinho (1947), do caboverdiano
Baltasar Lopes, Nós matamos o cão tinhoso (1964), do moçambicano Luís
Bernardo Honwana, e As aventuras de Ngunga (1975), do angolano Pepetela.
As estruturas narrativas dessas três obras, cada qual em seu tempo, tipificam
a Literatura Infantil e Juvenil nos espaços de produção em que se deram,
seja pelos temas abordados, pela linguagem, pelas personagens infantis, pelo
imaginário infantil que evocam, pela presença de animais e pelos contextos
que envolvem a criança e o jovem. De tal sorte, que nós as consideramos

481
como os verdadeiros marcos de nascimento da Literatura Infantil e Juvenil
nesses países.
Pontuamos, entretanto, que, diferentemente das obras literárias inau-
gurais de Cabo Verde e de Moçambique, As aventuras de Ngunga foi escrito
durante a guerra de libertação nacional pelo guerrilheiro e professor Pepe-
tela, como um texto didático para suprir a falta de manuais escolares para o
ensino da língua portuguesa. Para essa finalidade, o trabalho foi publicado
em 1972 pelo Serviço de Cultura do Movimento Popular de Libertação de
Angola, de acordo com Tania Macedo (2003, p. 303). Posteriormente, com a
sua publicação pela União de Escritores Angolanos (UEA), em 1975, passou
a integrar o acervo de Literatura Infantil e Juvenil angolana, pois embora
de caráter pedagógico mostrava certa poeticidade típica dos textos do autor.
Não obstante o aspecto inaugural das obras citadas, lembramos que a
Literatura Infantil e Juvenil nos países africanos de língua portuguesa ini-
cia-se mais fortemente a partir da Independência Nacional desses países
do governo colonial português. Literaturas jovens, porém, comparadas às
do Brasil, cujo início de produção é marcado pelas publicações de contos da
carochinha, do início do século XX. É certo que no Brasil houve o boom da
literatura para crianças e jovens, em meados dos anos de 1970, com diver-
sas publicações que marcaram o gênero, como, por exemplo, O menino e o
pinto do menino, de Wander Piroli, obra atenta à criança em diálogo com a
realidade circundante.
A Literatura Infantil e Juvenil, concebida como produto cultural volta-
do para crianças, nos séculos XVIII e XIX, foi essencialmente inspirada na
necessidade de repassar valores morais, noções de bom comportamento e
de boa conduta aos filhos da recente burguesia. Antes disso, a criança não
era vista como um ser social, mas sim como uma miniatura do adulto. Im-
portante lembrar que o percurso da Literatura Infantil e Juvenil africana,
não só dos países de língua portuguesa, se deu também nas pegadas do
que foi a Literatura Infantil e Juvenil europeia: do didatismo e moralismo
à criação artística.
O viés didático-pedagógico é um ponto de convergência de diversas Li-
teraturas Infantis e Juvenis produzidas em todo o mundo e que não ficou
no passado. Porém, à medida em que avança o tempo, democratizam-se os

482
acessos não somente às outras literaturas, mas ao conhecimento em geral,
abrem-se fronteiras, diminui-se o analfabetismo, circulam produtos culturais,
há trocas, mesclas, hibridações (CANCLINI, 2003, p. XXIX), novos cursos
de Letras e Humanidades são criados ou dinamizados, o diálogo com outras
artes (pintura, desenho, escultura, cinema, música, quadrinhos etc.) torna-se
mais profícuo, naturalmente haverá mais espaço para a produção literária
para crianças e jovens em que a mera intenção educativa se dilui ou fica em
segundo plano em prol de realizações mais artísticas.
O fato também de a Literatura Infantil e Juvenil dos países africanos
de língua portuguesa ter tido a trajetória europeia de reescritura de contos
populares, fábulas, lendas ou mitos da tradição oral, por si só não torna es-
sas publicações simples aparatos pedagógicos. É apenas uma característica
dessas literaturas. Observamos inúmeros contos da tradição oral reescritos
com engenho e com muita qualidade artística, sendo suas fontes buscadas
diretamente na oralidade ou a partir de recolhas já efetuadas por pesquisa-
dores da cultura, missionários e antropólogos.
Além disso, tomamos em consideração as ponderações de Walter Ong
(1998, p. 22), para quem as narrativas orais são muito engenhosas, artísticas
e complexas, trazendo diversas características, como o emprego de determi-
nados tempos verbais e de jogos mnemônicos e canções na sua construção.
Para o filósofo e historiador americano, a complexidade e sofisticação do
pensamento na cultura oral vai ser transposta para a cultura escrita (ONG,
1988, p. 199). Se esses aspectos são preservados nas narrativas artísticas orais,
que dizer então quando são apropriadas pela Literatura?
Acreditamos que esteja havendo nos países africanos de língua portu-
guesa, não obstante as dificuldades dos últimos anos, significativa produção
para crianças e jovens. Também nesses países, muitos escritores de literatu-
ra para adultos se dedicaram ou se dedicam à Literatura Infantil e Juvenil
como são os casos, só para citar alguns, de Mia Couto, Nelson Saúte, Lucílio
Manjate, Pedro Pereira Lopes, João Paulo Borges Coelho, Ungulani Ba Ka
Khosa (Moçambique); Ondjaki, Pepetela, José Luandino Vieira, José Eduardo
Agualusa (Angola); Fátima Bettencourt, Orlanda Amarílis, Jorge Araújo e
Dina Salústio (Cabo Verde); Odete Costa Semedo (Guiné-Bissau), e Ondina
Beja (São Tomé e Príncipe).

483
Lembramos ainda que muitos escritores, em suas produções para adultos,
resgatam o universo e o imaginário infantis. Muitos temas recorrentes na
literatura africana de maneira geral, não só a dos países de língua portugue-
sa, são as memórias familiares e comunitárias e reminiscências da infância
e, nesse ponto, estabelecem diálogos com a Literatura Infantil e Juvenil não
só de seus respectivos campos literários, mas do macrossistema literário de
língua portuguesa (ABDALLA JUNIOR, 2003).
Importante assinalar, entretanto, que os temas da Literatura se interconec-
tam, mudam, se subdividem, se multiplicam, formando grandes repertórios
em que subjaz a universalidade da experiência humana, da qual não estão
de fora nem o amor nem a morte, segundo Claudio Guillén. Para o crítico
espanhol, “mudam não só as formas, as palavras e a individualidade, mas
também aquilo que os homens e mulheres sentem, valorizam e dizem” (1985,
p. 31). Não fosse assim, nenhum elemento resistiria à passagem do tempo. O
mesmo é válido para a Literatura Infantil e Juvenil que também consagra a
multiplicidade de seus temas e subtemas em diálogos constantes não só com
o imaginário e a cultura, mas também com a realidade e a suprarrealidade,
privilegiando a arte e a linguagem simbólica e tentando superar o caráter
pedagógico marcante em muitas narrativas.
Os estudos de Literatura Infantil e Juvenil ocupam um lugar de destaque
nos meios acadêmicos do Brasil, com inúmeras cátedras que ensinam esses
conteúdos, não só no âmbito das faculdades de Educação, mas principalmente
das Faculdades de Letras e Humanidades, especialmente na interface com a
Teoria da Literatura, a Literatura Comparada, os Estudos Comparados e os
Estudos Culturais, preparando, em ambos os casos, professores na abordagem
literária desses textos e na formação do leitor literário. Se anteriormente,
no Brasil, a Literatura Infantil e Juvenil não ocupava um lugar de destaque
dentro dos Estudos Literários era porque vigorava no país um ranço de que
a literatura escrita para crianças e jovens era menor, do ponto de vista da
qualidade artística.
Na nossa opinião, Nelly Novaes Coelho sintetiza a matéria ao definir a
Literatura. Para ela, “é, antes de tudo, literatura; ou melhor, é arte: fenômeno
de criatividade que representa o mundo, o homem, a vida, através da pala-
vra. Funde os sonhos e a vida prática, o imaginário e o real, os ideais e a sua

484
possível realização” (2000a, p. 27). A pesquisadora brasileira lembra ainda
que a Literatura medeia a descoberta do significado da vida por parte das
crianças (NOVAES COELHO, 1987, p. 35).
O texto literário infantil deve ser em linguagem simbólica, em que o eixo
paradigmático se sobrepõe ao eixo sintagmático, ou seja, deve ser aquele texto
em que a linguagem poética é a linguagem dominante (YAKOBSON, 2001).
Nesse sentido, também a definição concebida por Ezra Pound se aplica per-
feitamente à Literatura Infantil e Juvenil: “Literatura é linguagem carregada
de significado até o máximo grau possível” (POUND, 2006, p. 32). Já para
Bettelheim (1980, p.11), “a literatura infantil procura divertir ou informar ou
as duas coisas”. Com isso, é possível dizer que a literatura tem caráter duplo
e essencial sobre a vida do pequeno leitor: ensinar, porque ela vai sempre
ensinar alguma coisa, e alimentar sua sensibilidade. Ensinar alguma coisa
não significa, entretanto, que ela deva ser concebida com a finalidade me-
ramente educativa.
Embora com o protagonismo das disciplinas de Literatura Infantil e Ju-
venil nas Faculdades, os países africanos de língua portuguesa ainda não
contemplam especificamente essa disciplina em suas grades curriculares, de
acordo com nossas pesquisas. No caso específico de Cabo Verde, entretanto,
e objetivamente a partir de 2019, tem havido a implementação de projetos
que contemplam a formação de professores na área de Pedagogia e Letras,
visando promover a “literatura infanto-juvenil como recurso pedagógico
em sala de aula e estimular o hábito da leitura junto dos públicos infantil e
juvenil e, bem assim, dos educadores”, proposta levada a cabo pela ProCul-
tura, ação financiada pela União Europeia, Fundação Calouste Gulbenkian
e Instituto Camões, que também faz a gestão do projeto.
Em relação a Moçambique, há importantes projetos de leitura e de divul-
gação da Literatura Infantil e Juvenil, alguns no âmbito das escolas, biblio-
tecas e de Centros Culturais, sob a forma de rodas de leitura, conversa com
os escritores, dramatização de textos e outros meios de divulgação. Há, no
entanto, um grande entrave para a divulgação das obras, não só pelas questões
de publicação, mas também de distribuição, pois o país conta com pouquíssi-
mas livrarias, sem contar ainda que as edições nacionais são muito reduzidas,
situação essa de praticamente todos os países africanos de língua portuguesa.

485
Os estudos literários atuais, avançando na questão da definição do que
é a Literatura Infantil e Juvenil a partir das características intrínsecas ao
texto, e não a partir do seu receptor (leitor jovem), e levando em conta ainda
a construção visual da obra, considera a literatura produzida para crianças
e jovens como literatura, a depender, naturalmente, de suas características,
de seu nível de aprimoramento do texto, de sua linguagem marcadamente
literária, conjunto que serve à fruição estética e que cumpre com a função
da literatura de que nos fala Antonio Candido: a humanização do homem
(CANDIDO, 2002, p. 85).
Muito comum são mestres e doutores em Letras produzirem ficção. Desse
modo, o crítico literário passa então a ser produtor de literatura, o que, na
nossa opinião, impacta a qualidade das obras. A análise literária pode ainda
dispor de um relevante método crítico-analítico possibilitado pelos Estudos
Culturais, sendo que o contexto sócio histórico das produções literárias é de
extrema importância na análise dos textos. Para Antonio Candido (1976), o
contexto é essencial no estudo da literatura, fornecendo-nos instrumental
para análise da obra literária. Todavia, é o contexto que emerge da obra que
deve interessar à análise, e não o contrário.
Um fator de incentivo à produção literária, inclusive no gênero infantil e
juvenil, que não podemos deixar de citar, são as oficinas de criação literária
que tiveram importante incremento nas duas últimas décadas em diversos
países. Segundo o escritor e professor brasileiro Luiz Antonio de Assis Brasil,
idealizador dessas oficinas no sul do país, elas são derivadas do “amadure-
cimento progressivo da ideia da responsabilidade do escritor perante sua
própria obra, o que conduz a uma capacidade de refletir sobre os temas que
dizem respeito ao seu ofício” (BRASIL, 2011, p. 5).
Quanto à produção específica de Literatura Infantil e Juvenil, entende-
mos que estamos, não obstante as dificuldades regionais, num momento
produtivo em que novos nomes se somam diariamente aos catálogos de
publicações, especialmente no Brasil, em que pese o grande número de li-
vros traduzidos para crianças e jovens que lotam as prateleiras das livrarias.
Contudo, malgrado as dificuldade de publicação e de distribuição nos países
africanos de língua portuguesa e os elevados índices de analfabetismo, vê-se
que a Literatura Infantil e Juvenil sobrevive heroicamente, embora em países

486
como Guiné-Bissau, por exemplo, até 2011, não havia livrarias, realidade hoje
totalmente diferente, de que destacamos a Editora Ku Si Mon, que publicou
uma série de títulos para crianças, em francês e em crioulo guineense, e pu-
blica títulos importantes de literatura e cultura. Assinalamos obra seminal
da poeta e escritora Odete Costa Semedo e seu relevante trabalho na área da
cultura e na recolha e tradução de narrativas orais guineenses.
Em relação à literatura santomense escrita para crianças e jovens, des-
tacamos a produção de Olinda Beja, especialmente a obra infantil e juvenil
O chá do Príncipe (Fyá Xalela), integrante do Plano Nacional de Leitura de
Portugal, desde 2018. Assinalamos que em São Tomé e Príncipe sobrevive a
contação de histórias (soyas, na língua santome) como forma de resistência
e de defesa da identidade cultural, (HALL, 2006, 1998), ressentindo-se o país
das dificuldades de publicação e de distribuição da literatura que produz.
Personagem importante nas soyas é a tartaruga, por sua esperteza, inteli-
gência e rapidez na solução de conflitos e contendas.
Merecem destaque as produções angolanas e moçambicanas de Literatura
Infantil e Juvenil, de que citamos alguns autores, enfatizando a intensa pro-
dução de Cremilda Lima: Maria Eugénia Neto, John Bela, Pepetela, Ondjaki,
Octaviano Correia, Maria Celestina Fernandes, Darío de Melo, Manuel Rui,
Gabriela Antunes, Rosalinda Pombal, José Eduardo Agualusa, José Luandino
Vieira, Yola Castro, Marta Santos, Maria de Jesus Haller, António Pompílio,
Fernando da Costa Andrade, Henrique Guerra, Jorge Macedo e tantos outros.
E os moçambicanos: João Paulo Borges Coelho, Mia Couto, Pedro Pereira
Lopes, Aurélio Furdela, Angelina Neves, Celso C. Cossa, José dos Remédios,
Mauro Brito, Calane da Silva, Fátima Langa, Rogério Manjate, Carlos dos
Santos, Machado da Graça, Lucílio Manjate, Nelson Saúte, Lourenço do
Rosário, Fátima Langa, Rogério Manjate, Carlos dos Santos, Machado da
Graça, Carlos dos Santos, Alexandre Dunduro, Hélder Faife, Adelino Timó-
teo, Marcelo Panguana, Lurdes Breta, Aurélio Furdel, só para citar alguns.
As dificuldades de publicação também atingem Cabo Verde. Não obstante
haja quase uma centena de títulos publicados para a infância e juventude, a
partir de 1975, sobrevive nas áreas rurais das ilhas a contação de histórias,
fontes por excelência da Literatura infantil em todos os tempos. Nas áreas
urbanas, essa prática social está em franco declínio em virtude dos novos

487
interesses das crianças e jovens pelos videogames, jogos interativos na inter-
net, desenhos, filmes e novelas. Esse é um fenômeno mundial em virtude da
globalização, processo caracterizado pelo intenso trânsito de bens, pessoas e
capitais financeiros, que interfere nos hábitos e modos de vida em escala global.
A contação de histórias, em Cabo Verde, é uma prática social que envolve
adultos e crianças e acontece no âmbito familiar e comunitário. Reuniam-se
as pessoas na frente da casa de um vizinho ou parente, ou dentro de casa,
alguns inclusive vindos de longe, e passavam a ouvir histórias, contar adivi-
nhas, partidas (piadas e casos acontecidos que inspiram o riso) e relato de
experiências e acontecimentos pessoais ou comunitários.
Nesse convívio, sobressaem as narrativas orais da tradição, como os con-
tos de Ti Lobo (Tio Lobo em crioulo ou língua cabo-verdiana), personagem
picaresco muito querido pelas crianças devido às suas trapalhadas. Vale
lembrar ainda que Ti Lobo troca fonemas e é muito musical: gosta de tocar
instrumentos, especialmente um tamborzinho, como ocorre em uma de suas
mais conhecidas e admiradas aventuras: “Ti Lobo e a figueirinha”.
Uma particularidade da contação de histórias em Cabo Verde é que ela
obedece a um ritual. Inicia-se assim: a contadora, também chamada botadei-
ra de histórias, ou o contador anuncia: Stória, stória! (História, história, em
crioulo ou língua cabo-verdiana). A plateia responde: Fortuna di céu, amén!
(Fortuna do céu, amém! Em crioulo ou língua cabo-verdiana). A expressão
– fortuna do céu – é uma constatação da riqueza simbólica das histórias e de
sua origem mítica, enquanto a expressão “amém”, que encerra a exortação,
supõe agradecimento.
Logo após a fórmula introdutória, geralmente o narrador inicia imedia-
tamente a história ou então faz uma segunda abertura, invocando o início
mítico das histórias: Era uma vez (Un bês, em crioulo ou língua cabo-verdia-
na). Depois então, a narradora ou a botadeira de histórias passa a contá-la
para a alegria dos ouvintes, especialmente das crianças.
Já para terminar a história ou fechá-la, o contador pronuncia uma fór-
mula, que varia de ilha para ilha, e equivaleria aos fechamentos das histórias
orais brasileiras: “Acabou-se a história. Entrou pelo bico do pinto, saiu pelo
bico do pato. Quem quiser que conte outra”. Os fechamentos mais comuns
das histórias cabo-verdianas são os seguintes:

488
Ken k’máx piknin
Bá ta koré pa bera d’mar,
Bá panhá um sak d’dinher

Ou
Sapatinhu pa mar riba
Sapatinhu pa mar báxu
Ken ki sabi más konta midjor!1

E ainda uma terceira fórmula, muito usada também, que contempla as


duas anteriores:
Sapatinha rubera riba
Sapatinha rubera baxu
Ken ki sabe mas
Konta midjor
Ken k’és mas pikinoti
Pa ba panha um saku di dinheru
La rubera ta ba baxu!2

Os atos de abrir e fechar as histórias representam simbolicamente a en-


trada e a saída do mundo da fantasia e do imaginário. E os rituais e mantras
que os precedem marcam as fronteiras desses mundos.
Importante observar a variedade de seres maravilhosos que povoam o
imaginário crioulo, ou povoavam, participando das narrativas orais. São seres
chamados de cosa runhe (coisa ruim, em crioulo ou língua cabo-verdiana),
em virtude de suas características sobrenaturais, de que destacamos, por sua
singularidade, o canelinha. Adiante voltaremos a falar sobre ele. Contudo, os
dois ciclos de narrativas orais mais conhecidos, e já apropriados pela Lite-
ratura Infantil e Juvenil, são as narrativas do Boi Blimundo e do Lobo, esta
última com dezenas de variantes.
Assim, a Literatura Infantil e Juvenil cabo-verdiana processa-se inten-
samente, e mesmo assim em menor grau do que antigamente, de forma oral
e não escrita, uma vez que o acesso aos livros é restrito, seja pela diminuta
quantidade das edições (geralmente em torno de 500 exemplares, no máximo

489
1000), seja por questões de distribuição para todas as ilhas e outros motivos
regionais. Segundo dados de 2015, (SILVA, 2015, p. 150), na escola básica ca-
bo-verdiana, que se estende do 1º ao 8º ano, atendendo crianças dos 6 aos 13
anos, não havia oficialmente oferta de livros de Literatura Infantil e Juvenil
para os alunos, cujo aprendizado de língua portuguesa se processava com
base apenas no Manual Escolar.
No entanto, como também nos foi informado por ocasião de nossa pes-
quisa para a tese, alguns professores costumavam trazer livros de Portugal,
lendo-os para as crianças. Nesse sentido, além de, na época, não haver esco-
larização da Literatura Infantil e Juvenil cabo-verdiana, as obras do gênero
produzidas por escritores cabo-verdianos no arquipélago eram preteridas pelas
portuguesas ou pelas traduções portuguesas. Essa situação está mudando
sensivelmente com a valorização e divulgação da literatura cabo-verdiana
e com o empenho dos escritores, da imprensa, das próprias escolas, das li-
vrarias e bibliotecas, do Instituto Internacional da Língua Portuguesa - IILP
e da Academia Cabo-verdiana de Letras.
Destacamos também importante trabalho realizado pela escritora, educa-
dora, contadora de histórias e cantora cabo-verdiana Celina Pereira, radicada
em Portugal, na divulgação de cantigas e histórias crioulas em Portugal e nas
escolas de Cabo Verde, com enorme sucesso entre os alunos repercutindo
em dramatizações de textos e em gravações de cantigas.
A Claridade – Revista de Arte e Letras, teve seu primeiro número publica-
do na Ilha de São Vicente, reduto intelectual do arquipélago, em 1936. Com
edições esparsas foram publicados nove números, sendo o último em 1960.
O ideário da revista era a divulgação de textos literários, em prosa e poesia,
bem como textos divulgando a cultura crioula, alguns escritos em crioulo,
língua materna cabo-verdiana que convive em situação de diglossia com o
português, língua oficial do Arquipélago.
A diglossia consiste na coexistência, em uma mesma sociedade, de duas
línguas ou registros linguísticos funcionalmente diferentes, sendo que o uso
de um ou de outro depende da situação comunicativa. O crioulo, língua
materna, usada em casa, na família, com os amigos e também na imprensa,
em alguns telejornais e entrevistas com cabo-verdianos. O português é uma
língua oficial, falada na administração e nos negócios.

490
No primeiro número da Claridade, em março de 1936, foi publicado um
excerto do romance Chiquinho, de Baltasar Lopes, sendo que outros excer-
tos do romance foram publicados no número seguinte, em agosto de 1936.
O romance completo foi publicado em 1947, em Lisboa, e é considerado
o primeiro romance moderno cabo-verdiano. Todavia, como já dissemos
anteriormente, nós o consideramos como a primeira obra de Literatura In-
fantil e Juvenil cabo-verdiana. Aconselhamos como leitor ideal para a obra,
analisado o contexto escolar cabo-verdiano, como sendo pré-adolescentes
e adolescentes, a partir de 12 anos, considerados leitores críticos, de acordo
com a classificação de Nelly Novaes Coelho (2000b).
O livro retrata a trajetória do narrador-protagonista da infância à vida
adulta, culminando com a emigração para os Estados Unidos, destino da
maior parte dos cabo-verdianos em busca de melhores condições de vida, em
razão das secas e das fomes que assolavam o Arquipélago, especialmente no
primeiro e segundo quarteis do século XX, tematizadas em grandes romances,
de que destacamos Chiquinho (1947), de Baltasar Lopes; Hora di Bai (1962),
de Manuel Ferreira, Os flagelados do vento leste (1968), de Manuel Lopes, e
Famintos – romance de um povo (1962), de Luís Romano. A emigração foi
um fenômeno importante na história e cultura cabo-verdianas, iniciada no
século XVI com os navios baleeiros, e também retratada na Literatura, na
Música, na Pintura e nas Artes.
Sublinhamos, a propósito, a morna Sodade, composta por Armando Ze-
ferino Soares nos anos de 1950, e imortalizada na voz de Cesária Évora, te-
matizando a partida para as roças de São Tomé e o dilema do amor à terra e
a dualidade de ter de partir, querendo ficar, elementos constitutivos de uma
escola poético-literária em Cabo Verde. Se antes a emigração era motivada
por questões financeiras, a partir dos anos de 1980 passou a ser por outros
motivos dentre eles o estudo e o trabalho em países como França, Itália, Por-
tugal e Bélgica, além dos grandes ciclos migratórios para os Estados Unidos,
intensificado a partir do segundo quartel do século XX.
Chiquinho, romance de formação, retrata a vida da personagem em meio
à sua cultura, e é muito rico em narrativas orais, que se encaixam umas nas
outras em que participam diversas personagens, adultas e crianças. O sentido
de Chiquinho está ligado ao narrar, pois as personagens narram suas histó-

491
rias, criam outras e recontam as que lhe são contadas, num fio narrativo que
vai sendo renovado a cada nova história: de almas penadas, de espíritos, de
Carlos Magno, de encantados, do Lobo e do Chibinho, de Passo Amor, de seres
maravilhosos que povoam a cultura crioula, da qual o romance é porta-voz,
preservando as tradições orais, consoante o ideário da Revista Claridade:
Grande contadeira de histórias era Nhá Rosa Calita,
velha pretona a quem os rapazes trocistas chamavam
Camões, por lhe faltar um olho em virtude pau-de-findo
mal curado. (...) Era um gosto ouvir-lhe referir aqueles
casos todos, contos de meninos presos, a engordar, den-
tro de caixas grandes, por velhas feiticeiras, pastorinhos
que se casavam com a filha do rei, rapazotinhos sabidos
que tinham enganado. Aquele Homem – pelo sinal da
Santa Cruz – e as demoniarias das feiticeiras que iam
ao Esponjeiro tomar ordens de seu chefe, um diabo tro-
cista, de cara descarada, e depois saíam, transformadas
em bichos, a agourentar a vida da criatura (...) (LOPES,
1986, p. 12).

Não só as histórias, cantigas, sonhos, vida rural, trabalho, imagens, es-


cravatura, passeios, vida escolar, mortes, brincadeiras, almas penadas e
lembranças nutrem o imaginário das personagens do romance. Na obra,
também estão presentes diversas manifestações religiosas e esconjuros, de
que destacamos o seguinte:
– Nha Rosa, você conte a história de sexta-sábado...
– Nhor, Não. As bruxas são amigas do nosso inimigo,
e se eu mentar o nome dele Aquele Homem aparece...
– Figas, canhoto, mar de Espanha, beldroegas, rabo
de gato preto... (LOPES, 1986, p. 13).

Todas as publicações havidas desde 1947 a 20143, no âmbito da Litera-


tura Infantil e Juvenil Cabo-verdiana – não consideradas as publicações
institucionais didáticas para ensino de noções de saúde, higiene, cuidados
pessoais, combate às drogas, preservação de patrimônio artístico-cultural,
bem como as revistas de banda desenhada (gibis) que fogem à classificação

492
de Literatura Infantil e Juvenil, embora dinamizem o imaginário infantil e
juvenil – totalizam cerca de meia centena de títulos, dos quais apontaremos
a seguir alguns, sem juízo de valor ou de supremacia em relação aos demais,
mas somente para oferecer uma visão ilustrativa das publicações voltadas,
no geral, a um público, desde crianças pequeninas, como a obra 1, 2, 3, de
Marilene Pereira (2002), ao romance Comandante Hussi, de Jorge Araújo
(2003) e à novela para adolescentes Capitão Farel – A fabulosa história de
Tom Farewell, o Pirata de Monte Joana, de Leão Lopes (2006).
Algumas obras da Literatura Infantil e Juvenil Cabo-verdianas foram
premiadas no Arquipélago e em Portugal, de que destacamos Comandante
Hussi, de Jorge Araújo, e Saaraci, o último gafanhoto do deserto, de Luísa
Queirós, premiados com o Grande Prêmio de Literatura Infantil e Juvenil da
Fundação Calouste Gulbenkian, respectivamente em 1998 e 2003. Em 2000,
Dina Salústio foi contemplada no 3º Prêmio de Literatura Infanto-Juvenil
PALOP, com a obra A estrelinha Tlim Tlim; em 2001, foi contemplada a obra
Minguim, o pirata (2003), de António Luis Rodrigues, com o prêmio “Conto
para a Infância”, da Câmara Municipal de São Vicente; em 2003, a obra in-
fantil e juvenil As aventuras do Rei Titão, escrita e ilustrada por Leopoldina
Barreto, foi premiada pela Associação de Escritores Cabo-verdianos.
Em 2013, o escritor mindelense Dai Varela, pseudônimo de Odair Varela
Rodrigues, foi distinguido com “Menção Honrosa” no concurso lusófono de
Trofa – Literatura Infantil (Portugal), com a obra A fita cor-de-rosa.
Relacionamos demais escritores cabo-verdianos de Literatura Infantil e
Juvenil para dar um panorama atual da produção crioula. São eles: Abraão
Vicente, Dina Salústio, Mana Guta, Helena Centeio, Ana Maria Carvalho
Furtado, Carlos Araújo, Carmelinda Gonçalves Abu-Raya, Celina Pereira,
Zaida Sanches, António Luis Rodrigues, Giselle Neves, Hermínia Curado
Ferreira, Vilma Vieira, João Lopes Filho, José Luiz Tavares, Graça Matos Sou-
sa, Maria José Mizé Costa, Natacha Magalhães, Manuel Ferreira, Humberto
Lima, Ineida Kénia Brito, Orlanda Amarílis, Fátima Bettencourt, Leopoldina
Barreto, Milú Leite, Ivone Aída, Florizanda Delgado Porto, Ivete Livramento
Santos, Manuel Bonaparte Figueira, Armindo Martins Tavares, Mizé Costa,
Carmelinda Gonçalves Abu-Raya e muitos outros.
Como nos demais países africanos de língua portuguesa, as publicações

493
em Cabo Verde são relativamente raras, com edições reduzidas, e enfren-
tam problemas de distribuição fora do Arquipélago, pelas próprias questões
editoriais que os escritores de países em desenvolvimento médio passam. As
edições, todas ilustradas, tematizam diversos assuntos relacionados à cultura
local, mas também temas universais e maravilhosos.
Descrevemos alguns desses temas que, de modo geral, são abordados na
Literatura Infantil e Juvenil Cabo-verdiana, confluindo para a construção
da identidade crioula: apresentação de Cabo Verde, seu povo e sua cultura;
cantigas de roda; aspectos geográficos das ilhas; chuvas; estrelas, céu; mar:
aventuras no mar, barcos em mar violento; fauna marítima (baleias, tubarões,
cavalos marinhos); traços culturais e vivências infantis; mitos fundadores
das ilhas; seres maravilhosos (pássaros encantados); animais antropomor-
fizados; pescaria; chuvas; monstrinhos do mar salvos em terra; preservação
ambiental; vento; emigração, morte, sementeiras; plantações; milho; sonhos;
piratas; proteção divina; resgate de narrativas orais como as do ciclo do Lobo;
outras que dialogam com As Mil e uma noites, como a narrativa oral Unine,
recolhida e reescrita por Leão Lopes; insetos da fauna cabo-verdiana e temas
ligados à cultura crioula. Algumas obras são ilustradas por artistas plásticos
locais, e outras são escritas e ilustradas pelos próprios artistas.
Dentre as obras há também a presença de temas e de personagens do
mundo do maravilhoso. De todas as obras publicadas, sob a chancela de Li-
teratura Infantil e Juvenil cabo-verdiana, não detectamos o fantástico, como
definido por Todorov (1975), que se manifesta quando se tem uma hesitação
do leitor ou das personagens quanto à existência real de determinados acon-
tecimentos na narrativa, numa relação ambígua com o texto. O fantástico,
portanto, se caracteriza pela indecisão, sua base é a dúvida que se instala
seja nas personagens, no narrador ou no leitor.
Ao analisar os mais de 50 títulos de Literatura Infantil e Juvenil cabo-
verdiana, ou seja, o acervo a que tivemos acesso publicado de 1947 a 2014,
concluímos que o fantástico como categoria discursiva não tem presença
marcante nessa literatura. Como vimos pelos temas descritos, a maioria
deles refere-se à cultura crioula. No entanto, há muitas obras que primam
em abordar, em contrapartida ao fantástico, o maravilhoso, os seres sobre-
naturais ou encantados, em que as leis que regem o mundo diegético são

494
diferentes daquelas que regem o mundo real, tangível, mas são aceitas com
naturalidade pelo leitor. Há um pacto de leitura em que o leitor ingressa no
mundo do maravilhoso e depois retorna ao mundo real, sem trazer questio-
namentos, dúvidas ou incertezas sobre se os acontecimentos sobrenaturais
descritos aconteceram ou não, características do fantástico. Segundo Roas
(2014, p. 34), “quando o sobrenatural se converte em natural, o fantástico
dá lugar ao maravilhoso”.
Se o fantástico e a reminiscência caracterizam de maneira geral as obras
da literatura produzida nos países africanos de língua portuguesa, o mesmo
não podemos dizer em relação à Literatura Infantil e Juvenil Cabo-verdia-
na, em que prevalecem os temas ligados à cultura crioula e ao maravilhoso,
como gênero discursivo. No âmbito do maravilhoso, inserem-se os ciclos
narrativos da sereia, do lobo, do boi etc. Quanto às Literaturas Infantis e Ju-
venis pertencentes aos demais países africanos do macrossistema literário
de língua portuguesa (ABDALLA JUNIOR, 2003), ainda faltam pesquisas
que nos mostrem como essa literatura é construída, que temas abordam, e
como elas dialogam com as demais. E um obstáculo a ser superado nesse
percurso é a distribuição e circulação das obras no Brasil.
No âmbito das narrativas orais cabo-verdianas e daquelas que foram
apropriadas literariamente, reescritas e que compõem o acervo da Literatura
Infantil e Juvenil cabo-verdiana, há uma grande diversidade de seres maravi-
lhosos. As narrativas orais formam verdadeiros ciclos, contados em todas as
ilhas: de Blimundo, de Ti Lobo, das sirenas e da velha má feiticeira. Há outros
seres que povoam o imaginário crioulo e participam de relatos acontecidos
com pessoas ou por elas inventados, passando a ter existência não palpável.
Relembramos esses seres, personagens de histórias contadas ou de relatos
acontecidos ou não. São eles: canelinha, gongon, bitcha-fera, catchorrona,
capotona, bruxas, sereias, pateados, velhas más feiticeiras, luzonas, velhos
feiticeiros, xuxo, pateados, cutumbembém, homem do pé de cabra, homem
do chapéu de Panamá, feiticeiro de Santo Antão etc.
Cena emblemática que referencia feiticeiros e bruxas acontece no roman-
ce Chiquinho, levando o leitor ao riso. Totone Menga-Menga, personagem
caracterizado por sua bondade e religiosidade, uma vez recebeu a visita de
uma mulher que fora bisbilhotar em sua casa. Crente de que ela era uma

495
feiticeira, ele preparou um estratagema para descobrir: “Chamou a mulher
para o quintal, para ir espiar um galo de crista vermelha e branca que tinha
lá...” (LOPES, 1947, p. 75). A mulher foi muito contente na esperança de des-
cobrir alguma coisa, e então Totone lhe disse:
Por favor você espie se aquela galinha tem ovo... A
mulher foi espiar e Totone depressa voltou para dentro e
num dizendo-fazendo virou de pernas para o ar o banco
em que a bruxa tinha estado sentada. Quando Totone
voltou para o quintal, disse-lhe: “vamos para dentro”...
Ela bem que queria ir, mas não conseguia passar a soleira
do porte porque, já se vê, tinha sido amarrada. Totone
muito sério, mas rindo para dentro. Ela dançou, cantou,
fêz o diabo-a-quatro. Depois virou burro, mula, porco,
cabra. Por fim, Totone, condoído, rezou umas orações e
desamarrou-a. Ela virou figura de gente. Totone disse-
-lhe: - Para você nunca mais se meter na minha vida...”
(LOPES, 1947, p. 75).

De todos os seres maravilhosos, o mais singular, na nossa opinião, é o


canelinha ou canilinha (em crioulo ou língua cabo-verdiana). Esqueleto
imenso, do dobro do tamanho de um homem, assusta as pessoas nas altas
horas da noite, em lugares ermos. Ele costuma correr atrás das pessoas para
comê-las e a forma delas se livrarem dele é correr em zigue-zague ou fazer
repentinamente uma curva, ou dobrar uma esquina, assim o canelinha se
desmonta, caindo todos os ossos, enquanto a pessoa foge.
No imaginário crioulo, o canelinha é um dos seres maravilhosos da galeria
dos menos perigosos. Os mais assustadores são a capotona e a catchorrona,
cujo encontro pode provocar em que os vê a loucura e a falta de juízo. A
catchorrona, entretanto, quando bem tratada pelos viajantes os acompanha
sem fazer mal, dizem. Mesmo em relação a esses seres maravilhosos, não há
a presença do fantástico como gênero discursivo, pois não causam dúvidas
no leitor sobre sua existência ou não, pois são compreendidos e aceitos como
seres imaginários ou sobrenaturais, sem existência real. Não podemos nos
esquecer que a questão fundamental do Fantástico é a hesitação, a incerteza.
Para o leitor, são seres do outro mundo, e há até uma hipótese a respeito de-

496
les, dada por um dos estudiosos mais conhecidos da cultura crioula, Manuel
Ferreira (1973), a de que foram inventados na época da escravatura para
colocar medo nos escravizados fujões.
Presentes nas narrativas orais e na Literatura cabo-verdiana, a capotona
faz parte de uma plêiade de seres sobrenaturais designados por Luís Romano
de “medos”. Lembrando que tais “medos” se apresentam de formas diferentes
nas ilhas, o folclorista e escritor cabo-verdiano descreve a capotona tal como
é conhecida em sua terra natal, a Ilha de Santo Antão:
Monstrengo que tem diversos nomes e semelhanças
e ‘enrosca’ ou cerca os ‘plingrines’ ou peregrinos que via-
jam em horas aziagas. Ele pode ser dócil como qualquer
animal doméstico e acompanhar a caravana, quando é
‘mentado’ ou mencionado pelo nome de bicho caseiro.
Assim, até protege os viageiros e nenhuma outra ‘Bi-
cha-Féra’ se aproximará para embargar o caminho. Se,
porém, algum imprudente desata um insulto ou maldi-
ções, a ‘Capotona’ cresce de vulto até abafar a criatura,
que neste caso ou enlouquece, ou perde a fala. Se o grupo
entoar orações apropriadas e invocar ‘Jesus, Maria e José’
é ‘muito capaz’ de conseguir salvação e o bicho desapare-
cer num estrondo (ROMANO, apud SILVA, 2015, p. 215).

Finalizando, chamamos a atenção para um aspecto da Literatura ca-


bo-verdiana, especialmente aquela sob a chancela de Literatura Infantil e
Juvenil, que é o fato de haver outras obras que dialogam estreitamente com
o imaginário infantil e, por extensão, com a Literatura Infantil e Juvenil. São
obras que referenciam as experiências da infância dos narradores, o universo
e imaginário infantis, lembranças e memórias familiares, fatos do cotidiano,
ambientes escolar e comunitário, cultura crioula, canções populares e seres
imaginários, mas que foram escritas para adultos. Porém, podem ser lidas
por jovens adolescentes, uma vez que a linguagem e a construção narrativa
possibilitam o acesso do jovem ao mundo descrito nas obras, em que a cul-
tura crioula é marcante, enriquecendo sua experiência leitora.
Dentre essas obras, lembramos: Racordai - vengo da un’isola di Capo Ver-
de, de Maria de Lourdes Jesus; Tempo de Gongon, de Maria Augusta de Melo

497
Nascimento; O menino do campo, de Viriato Gonçalves; Futcera ta cendê na
Rotcha (Feiticeira acende na rocha, em crioulo), de Ivone Ramos; Minha vó
Chica Nácia, de José Maria Ramos, alguns contos tanto da coletânea Tchuba
na Desert (Chuva no deserto, em crioulo), organizado por Francisco Fontes,
quanto da obra Contos, de Jorge O. S. Silva, e Todi Cadabra e novas estórias,
de Euclides Meneses, só para citar alguns exemplos. E, como não poderia
deixar de ser, Chiquinho, de Baltasar Lopes, considerado no Arquipélago o
melhor romance cabo-verdiano de todos os tempos.

498
Notas

1 Quem for mais pequenininho/Corra até a beira-mar/E apanhe um saco de di-


nheiro. Ou Sapatinho pelo mar acima/Sapatinho pelo mar abaixo/Quem souber
mais que conte melhor (Tradução do crioulo badiu, crioulo falado na Ilha de
Santiago). Todas as traduções do fechamento das histórias foram realizadas pela
jornalista cabo-verdiana Verónica Oliveira. 
2 Sapatinha ribeira acima/Sapatinha ribeira abaixo/Quem sabe mais/Conta
melhor/Quem é mais pequeno/Apanha um saco de dinheiro/Na água que está
a correr (Tradução do crioulo sampadjudo, falado no Arquipélago, à exceção da
ilha de Santiago).
3 Houve um hiato nas publicações. Depois de Chiquinho, em 1947, ocorreu a publi-
cação do primeiro livro infantil e juvenil cabo-verdiano somente em 1982: História
de Blimundo, de Leão Lopes. Antes disso, nos anos 60 e 70, houve publicações
em Portugal, de Ferreira, português naturalizado cabo-verdiano, profundamente
ligado à cultura cabo-verdiana, tendo escrito obras literárias cujo contexto eram
as ilhas. Ele é considerado escritor pertencente ao sistema literário cabo-verdiano.

499
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503
z
Livros-jogos literários no Brasil
Pedro Panhoca da Silva

INTRODUÇÃO

Quando se fala em livro-jogo, ainda hoje, desperta-se uma curiosidade


nos leitores quanto a seu nome. Afinal, ele é um livro que funciona como
jogo ou um jogo em forma de livro? De acordo com Silva (2019), num livro-
-jogo o leitor atua de forma ativa e fundamental para a narrativa prosseguir
dentre algumas escolhas que lhe são dadas. Essas ramificam o texto, po-
dendo oferecer ao leitor-jogador duas ou mais opções de como a narrativa
deve continuar e é justamente ele quem toma as decisões, confundindo-o
propositalmente com o próprio protagonista. Além dessa grande imersão na
leitura, essa narrativa de aventura deve apresentar um sistema de regras no
estilo RPG – o que significa atrelar à leitura-jogo mapas, fichas para anotar
pistas e objetos que o protagonista obtiver durante a aventura, uso de dados
ou cartas de baralho como elementos de aleatoriedade (determinar testes
de habilidades ou conhecimentos específicos, por exemplo) – e ter de mais
de 50 páginas de extensão. Ainda segundo o mesmo autor, livros que não
possuem sistemas de regras são classificados ficções interativas, por pelo
menos oferecerem a leitura não sequencial, e textos de leitura não sequen-
cial e regras de RPG em forma de livretos ou publicados em revistas cuja
extensão é inferior a 50 páginas são classificadas como aventuras solo. Vale

504
ressaltar que, normalmente, esses reduzidos textos interativos normalmente
precisam de manuais complementares de regras, pois sua extensão muitas
vezes não permite deixá-los autossuficientes (SILVA, 2019).
Surgido na Inglaterra em 1982 com a publicação do livro-jogo The Warlock
of Firetop Mountain (1982) visando inovar o catálogo de livros destinados a
jovens leitores da época, que não se interessavam mais tanto por fantasia e
ficção científica (GREEN, 2014), esse híbrido lúdico textual começou como
um experimentalismo de sua época e tomou proporções colossais com o pas-
sar das décadas, alcançando países periféricos do grande centro europeu de
literatura. Mesmo pertencente a essa margem, o Brasil importou essa cultura
com sucesso e também conseguiu produzir algumas obras autênticas. Porém,
uma nova “fórmula” de livro-jogo surgiu em 2019 no país, com a tradução de
Alice’s Nightmare in Wonderland (2015). Trata-se de um livro-jogo inspirado
no clássico de Lewis Carroll (1832-1898) Alice’s Adventures in Wonderland
(1865), o primeiro livro lúdico desse tipo inspirado em um clássico literário.
Essa ousadia que tanto seu autor, Jonathan Green (1971-), como a editora
que aceitou o desafio de traduzir e publicar a obra em português, a Jambô
editora, tiveram não só servem para inaugurar uma nova fase na história
do livro-jogo no Brasil como também podem inspirar novas produções (na-
cionais) desse tipo, que muito interessaria para adultos e jovens leitores.
Antes da publicação da versão nacional de Green, intitulada Alice no
País dos Pesadelos (2019), o Brasil apenas conhecia uma produção nacional
chamada A travessia do Liso do Suçuarão: uma aventura pelo grande sertão de
João Guimarães Rosa (2004), um pequeno texto em formato lúdico que teve
ampla divulgação no país. Portanto, o Brasil poderia aproveitar essa fase e
fomentar pesquisas e produções utilizando esses livros interativos.

A SÉRIE ACE GAMEBOOKS

Jonathan Green é o criador e autor de todos os livros-jogos da série ACE


Gamebooks. Desde criança sonhava em ser escritor e fez parte de uma geração
de jovens leitores que presenciou o surgimento do livro-jogo na Inglaterra e

505
consumiu o máximo que pode, principalmente da série Fighting Fantasy (1982
– 1995), aposta da Penguin Books e coleção pioneira nesse tipo de literatura
interativa. De ávido leitor-jogador passou a ser colaborador da série e, anos
depois, passou a publicar seus próprios livros-jogos por outras editoras ou
sob financiamento coletivo (GREEN, 2017). Somadas a seus livros de contos e
romances, ultrapassa as 60 publicações, e por esses e outros motivos é consi-
derado hoje como um dos maiores escritores de livros-jogos (SVALDI, 2019)1.
O livro-jogo que originou a série de adaptações literárias para seu forma-
to foi, justamente, Alice’s Nightmare in Wonderland. Green afirma que tinha
a intenção de criar uma adaptação do livro de Lewis Carroll, e que o 150°
aniversário de publicação de Alice no País das Maravilhas em 2015 foi mera
coincidência (GREEN, 2017). A repercussão dessa publicação logo passou de
experimentalismo para cair no gosto do público, pois seus leitores lhe per-
guntavam se haveria uma continuação, assim como o livro de Carroll, o que
não aconteceria, pois Alice’s Nightmare in Wonderland abrange os enredos
de Alice no País das Maravilhas, Alice Através do Espelho e o que Ela Encon-
trou por Lá (1871) e A Caça ao Snark (1876). Segundo Hutcheon, “tal como
a tradução, a adaptação é uma forma de transcodificação de um sistema de
comunicação para outro” (2013a, p. 9), e esse tipo de adaptação muito cha-
mou a atenção do público-leitor.
Tendo percebido boa recepção do público leitor-jogador, Green decidiu
produzir outras adaptações. O resultado disso foi a criação de The Wicked
of Wizard of Oz (2017), inspirado n’O Mágico de Oz (1900), Neverland – Here
Be Monsters! (2019), inspirado em Peter Pan (1904), Beowulf Beastslayer
(2019), inspirado no poema épico Beowulf (ca.1000), ‘TWAS - The Krampus
Night Before Christmas (2019), inspirado no poema A Visit from St. Nicholas
(1823) e, ainda, uma adaptação de Drácula (1897) que está sendo produzida
e prevista para ser lançada em 2020.
A motivação de Green para produzir seus livros-jogos vem do desafio de
reimaginar histórias famosas, repensando suas personagens e cenários, até
que, de tanto recriar, acaba por se deparar com algo novo que atraia tanto
leitores-jogadores acima dos 40 anos, mas também os de 10 anos de idade
(GREEN, 2017). Os leitores mais velhos constituem a primeira geração de
leitores-jogadores, que cresceram com jogos de videogame e computador

506
muito rudimentares e viam nos livros-jogos, assim como nos jogos de RPG
(coletivos), uma possibilidade de praticarem a ficção através da leitura e da
imaginação. Já os mais jovens são a nova geração de consumidores de livros-
-jogos, filhos de pais que pertenceram à geração anterior e que, motivados
por eles, continuam o legado dessa leitura lúdica. Além disso, há também a
vantagem de tais obras pertencerem ao domínio público, o que isenta o autor
do pagamento de direitos autorais a seus escritores.
A classificação de leitor “jovem adulto” é relativamente nova. No século
passado, livros como a saga d’O Senhor dos Anéis (1954-55) eram apreciados
por ambos públicos – infantil e adulto. Isso permite os livros-jogos de Green,
versões distópicas de livros clássicos da literatura mundial, “adultizar” ou
“infantilizar” obras, a fim de atingir os dois públicos, mesmo reconhecendo
que desta forma teria mais leitores-jogadores adultos do que jovens (GREEN,
2018). Para isso, Green abole qualquer conteúdo sexual ou palavrões e investe
em narrativas de suspense e perigo.
Talvez o grande mérito do autor britânico seja o de não se preocupar com
a fidelidade no processo de adaptação. Ainda hoje há críticas negativas de
consumidores fanáticos sobre como uma obra “adaptada” deixou de ser fiel à
sua “progenitora” e essa mentalidade deve ser abandonada subitamente, pois
um livro nunca será um filme, que por sua vez jamais será um livro-jogo, e
assim por diante. Um dos problemas referentes a essa aversão às adaptações
pode ser a persistência de alguns na dicotomia alta cultura x baixa cultura.
Hutcheon dá como exemplo a adaptação de Romeu e Julieta (1597):
Parece que adaptar Romeu e Julieta para uma forma
de arte elevada, como a ópera ou o balé, é algo mais ou
menos aceitável, ao passo que adaptar a peça para um
filme – especialmente no caso de uma versão moderni-
zada como Romeu + Julieta (1996), de Baz Luhtmann –,
não o é. Se a adaptação é vista como uma “vulgarização”
da história (em conformidade com alguma hierarquia
de mídia e gênero imaginada), a resposta tem tudo para
ser negativa (HUTCHEON, 2013c, p. 23, grifos do autor).

Desta forma, há uma estranha cisão entre adaptações: algumas são acei-
táveis (ópera e balé, por exemplo), e outras não (filme), dando a entender

507
que tudo o que é mais moderno – ou “menos clássico” – não será proveitoso
ao consumidor. Segundo Stam, “o “original”2 sempre se revela parcialmente
“copiado” de algo anterior” (2006, p. 22), Portanto, cada obra é uma obra por
si só e Green foi ousado e criativo o bastante para criar suas versões distó-
picas dos clássicos literários.

ALICE NO PAÍS DOS PESADELOS

Antes de dar início à sua linha de livros-jogos frutos de adaptações lite-


rárias, Jonathan Green já havia criado uma releitura da obra de Carroll para
o gênero conto chamado White Rabbit, publicado no livro The Ulysses Quick-
silver Short Story Collection (2011), da coleção Pax Britannia, mas sentiu que
poderia explorá-lo em outras dimensões e atribuir outro formato (GREEN,
2018). Foi assim que Green deu origem a Alice’s Nightmare in Wonderland.
O “filho mais velho” da série ACE gamebooks foi resultado de uma versão
steampunk – subgênero retrofuturista e estilo de moda vintage que combina
elementos históricos, principalmente da Era Vitoriana, com características
tecnológicas anacrônicas inspiradas na maquinaria industrial a vapor do
século XIX – de Alice’s Adventures in Wonderland. Ele possui uma vantagem
sobre os anteriores escritos por Green: suas contribuições à pioneira Fighting
Fantasy, como Spellbreaker (1994), Knights of Doom (1994) e Curse of the
Mummy (1995) foram os últimos livros-jogos da série, e além de serem muito
difíceis de serem completados com sucesso (exigindo exaustivas tentativas até
se descobrir o caminho correto ao final da aventura) foram escritos pensando
mais em vencer leitores-jogadores trapaceiros que usavam o finger-shaped
bookmark (“dedo-marca-página”. Esta técnica consiste em marcar a última
seção lida enquanto se avança para a nova seção, pois se a nova escolha for
prejudicial para o protagonista, volta-se à seção anterior e faz-se uma nova
escolha, algo que só é permitido fazer se o enredo autorizar), bem como
outras artimanhas para se obter sucesso de forma desonrosa (WALTERS,
2012). Assim, Green esqueceu-se da maior qualidade de um livro-jogo, que
é divertir seu leitor-jogador (GREEN, 2017), pois este se desinteressa pelo

508
livro-jogo por muitos motivos, dentre os quais a extrema facilidade ou difi-
culdade em se obter sucesso.
A ideia de se ler-jogar de todas as formas possíveis, como visto, pode ser
cansativo. Por isso Alice no País dos Pesadelos, assim como outros livros-jogos
de Green, visam o replayability (GREEN, 2017), que consiste na ideia de con-
tinuar obtendo diversão explorando o livro-jogo (em games de computador
e videogame o replayability pode, dependendo do jogo, ser facilmente senti-
do) mesmo depois de finalizado, seja por pura curiosidade ou pela sensação
de que o final obtido através de uma leitura-jogo pode ser ainda melhor se
outra combinação de escolhas narrativas forem feitas. Logo nas instruções
de como usufruir do livro-jogo, o autor comenta que
Há três formas de jogar Alice no País dos Pesadelos.
A primeira é usando dois dados. A segunda é usando
um baralho. A terceira é ignorando as regras – fazendo
escolhas quando elas surgirem, mas ignorando os testes
ou combates, sempre presumindo passar em todos os
testes e vencer cada combate. Note que, mesmo jogan-
do assim, você ainda pode falhar! (GREEN, 2019, p. 9,
grifos do autor)

Não haveria como Green fazer um trabalho de adaptação totalmente fiel


à obra máxima de Carroll. Logo, subverteu o universo paralelo do País das
Maravilhas em uma distopia, funcionando como uma continuação à própria
obra de Carroll com Alice retornando ao País das Maravilhas quase dois anos
depois de seu primeiro contato (GREEN, 2019), que agora se encontra no caos
graças ao toque “pesadelístico” que o autor lhe concedeu (GREEN, 2017). É
justamente essa releitura distópica a grande contribuição do autor para se
(re)criar uma versão autêntica do livro mais famoso de Lewis Carroll. O
caráter de distopia da obra, muito popular pelo mundo, no Brasil é algo que
está em crescimento no interesse do público geral (IZEL; AQUINO, 2019).
Portanto, o autor acertou em não se prender a uma releitura “fiel”, pois
a estrutura de uma narrativa de livro-jogo é totalmente diferente se compa-
rada a uma narrativa convencional. Acertou também em não se preocupar
em fazer algo “razoavelmente fiel” à obra original, já que, segundo Hattner,

509
“não se pode falar em texto “razoavelmente” fiel da mesma maneira que não
podemos dizer que uma mulher encontra-se “razoavelmente grávida”” (2010,
p. 148). Green simplesmente criou uma nova versão para a obra de Lewis
Carroll, num formato inédito até então.
Embora em muitas partes um leitor que já conheceu a “obra original”
consiga estabelecer intertextualidades entre cenas, características e falas
das personagens e até poemas inteiros, o mesmo é surpreendido pela criati-
vidade do autor o qual ao mesmo tempo tenta manter a “coerência” da obra
(traçar um enredo que seja a continuidade do que Alice vivera n’o País das
Maravilhas) enquanto deixa sua contribuição como adaptador. Para isso,
o autor concede à Alice uma amnésia que aos poucos vai desaparecendo
a cada contato com os elementos do universo paralelo governado pela Ra-
inha de Copas. Um exemplo pode ser visto no (re)encontro de Alice com
o Gato de Cheshire, que a reconhece, embora a reciprocidade não tenha
sido a mesma:
253
– Sinto muito, Gato – você diz –, mas quem é você?
– Quem sou eu? – o Gato pergunta incrédulo, o sor-
riso intacto. – Ora, sou o Gato de Cheshire, mas você já
deveria saber disso. A pergunta é: quem é você?

– Eu sou Alice! – você diz indignada. (GREEN, 2019,


paginação irregular, grifo do autor).

A seção 253 é uma das bifurcações de enredo que a narrativa oferece ao


leitor-jogador. Sua seção precedente é a 228. Caso o leitor-jogador tenha o
código “Revelações”, ele poderá optar pela outra opção, indo para a seção
secreta (283). Nela, Alice obtém uma revelação do próprio gato, sensação
que funciona como encaixar corretamente uma peça no quebra-cabeça que
pode parecer um livro interativo desse tipo:
– Gato de Cheshire! – você exclama contente. – Que
maravilhoso ver um rosto amigável no País das Mara-
vilhas.

O Gato não diz nada, meramente fita-a com os olhos


esmeraldas e um sorriso de orelha a orelha.

510
– Você me diria, por favor, para onde devo ir daqui?
– Isso depende de onde você quer chegar – diz o Gato.
– Preciso chegar ao Palácio da Rainha de Copas, ou
assim me convenceram – você diz. (GREEN, 2019, pagi-
nação irregular, grifo do autor).

Percebe-se que mesmo tendo a revelação de um rosto conhecido, as de-


cisões de Alice não ficam muito mais fáceis, pois a sequência de seções
partindo de 253 ou 228 é quase a mesma até convencer o Gato de Cheshire,
desconfiado, de que Alice é realmente ela mesma.
Jonathan Green, no entanto, reconhece que graças ao conhecimento da
obra “original” possivelmente seus leitores-jogadores adultos gostarão mais
de suas releituras em livros-jogos do que os jovens que desconhecem de onde
esses produtos “derivados” vieram (GREEN, 2018). Porém, o conhecimento
da obra de Lewis Carroll não é pré-requisito para a apreciação de Alice no
País dos Pesadelos, e um jovem leitor que nunca teve contato com a obra
“original” poderá traçar o caminho inverso partindo do livro-jogo para a
aventura nonsense de Alice publicada no século XIX.

O (INEXISTENTE) PANORAMA BRASILEIRO

Livros-jogos no Brasil existem desde 1995, frutos de adaptações de fil-


mes, jogos de computador, RPG ou criações vindas da imaginação de seus
idealizadores. Porém, a primeira manifestação da literatura brasileira nos
livros-jogos aparece timidamente com o “livreto-jogo” A travessia do Liso
do Suçuarão: uma aventura pelo grande sertão de João Guimarães Rosa. Essa
coautoria de Maria do Carmo Zanini, nome de grande relevância quando se
pensa em RPG pedagógico e tradução de RPG estrangeiros para o português
(BOLZAN, 2003) e Carlos Eduardo “Caco” Lourenço não chega a ser um li-
vro-jogo na classificação de Silva pela sua reduzida extensão, mas possui sua
relevância para o panorama brasileiro do mesmo (SILVA, 2019).
Sendo ou não um livro-jogo com traços literários, A travessia do Liso do

511
Suçuarão: uma aventura pelo grande sertão de João Guimarães Rosa, ironi-
camente, foi a obra interativa de maior sucesso no Brasil, pois foi publicada
como encarte na edição de janeiro de 2004 da Revista do Ensino Médio com
a impressionante tiragem de aproximadamente 400 mil exemplares, sendo
distribuída gratuitamente a todas as escolas públicas que ofereciam o Ensino
Médio no Brasil, algo bem acima das tiragens de 2000 ou 4000 exemplares
que os livros-jogos brasileiros normalmente conseguem (SILVA, 2019).
O “encarte-jogo” de Zanini e Caco teve sua importância e pioneirismo
por trazer ao público estudantil a primeira e única aventura-solo literária.
Claramente inspirada no Grande Sertão: Veredas (1956), o leitor-jogador,
nele, é o chefe Urutu-Branco, o qual deve liderar seu bando de jagunços ao
mesmo tempo que busca resolver situações-problemas as quais envolvem co-
nhecimentos de disciplinas escolares, como química e biologia. Um exemplo
pode ser conhecido a seguir:
Você olha desgostoso pra água oleosa que mana da
cacimba que seus homens cavaram. Será que não é mes-
mo obra do demo? Mas Deus também escreve certo por
linhas tortas.

– Peço vossa licença, chefe, de ceder minha rasa opi-


nião – começa o Alaripe. Se Deus serviu, não reclamo
da janta. A gente encontrou essa água no meio do raso
mais seco que há. Alguma serventia deve de ter. E a sede
é grande, chefe. Eu digo que é pra se tomar assim mesmo.

– Eu também, chefe, pego licença de falar – diz o


Fafafa. – Até de mandioca brava se faz boa farinha. É só
saber preparar. Um jeito deve de ter de separar o óleo
da água.

O que você faz?


Se você decidir acatar a sugestão do Alaripe, vá para
a cena 2.
Se você decidir acatar a sugestão do Fafafa, vá para
a cena 18. (LOURENÇO; ZANINI, 2004, p. 11, grifos dos
autores).

512
Percebe-se que a situação-problema envolve conhecimentos da discipli-
na de ciências, mais especificamente sobre a técnica da decantação. Caso o
leitor queira acatar a sugestão de Fafafa, esse deparar-se-á com a seguinte
consequência:
O Fafafa coça a cabeça. Troca de pé. Vai até o cavalo,
pega o bogó remendado. Todo o mundo olhando. Ele en-
che a bolsa de couro com água. Coça a cabeça outra vez.
Anda até a canela-do-brejo e pendura o bogó.

– É esperar pra ver.


Passa uma meia hora. O Fafafa coloca uma panela
amassada embaixo do bogó. Abre o remendo, e a água
escorre, livrinha do óleo.

– É milagre!
– Nonada. É a força do pensamento. (LOURENÇO;
ZANINI, 2004, p. 15).

Além do caráter lúdico-pedagógico, destaca-se a linguagem com pala-


vras que podem parecer novas ao jovem leitor, como os vocábulos “cacimba”,
“bogó” e “nonada”. Porém, diferentes do complexo léxico rosiano, pela leitura
no contexto o leitor pode entender sem ser desestimulado, podendo resolver
o problema dos sinônimos equivalentes com pesquisas complementares à
leitura lúdica.
Esse livreto-jogo ainda trazia um sistema de regras autêntico, possivel-
mente pensado para uma narrativa mais complexa e de maior extensão. Isso
porque atributos como “descrição física” e “personalidade” em nada alteram
essa narrativa lúdica. Já os atributos “inteligência”, “agilidade”, “força”, “saúde”
e “força de vontade” são, pelo menos, superficialmente requeridos. A única
exceção, e a mais importante, é o atributo “jagunçama”, uma espécie de indi-
cador de jagunços que o “leitor- chefe Urutu Branco” não pode deixar chegar
ao valor zero, pois resultaria em fracasso da missão e, automaticamente, à
interrupção da leitura lúdica (SILVA, 2019).
A segunda e última aparição de livro-jogo literário no Brasil se deu não
mais com a publicação de obras literárias nacionais adaptadas para o livro-
-jogo, mas na tradução de uma adaptação estrangeira. Alice’s Nightmare in

513
Wonderland, que já havia ganhado uma tradução para o alemão – Alice im
Düsterland (2018) –, conheceu sua versão brasileira em novembro de 2019.
Conhecida por ser a nova “portadora da chama do livro-jogo no Brasil”
(SILVA, 2020), a editora Jambô já era conhecida e querida pelos leitores-jo-
gadores brasileiros por ter retomado as traduções dos livros-jogos de Fighting
Fantasy, tarefa antes feita pela extinta editora Marques Saraiva de 1990 a
1998, desde 2009, além de ter lançado novos livros-jogos nacionais (alguns
com alta qualidade e acabamento gráficos).
A editora gaúcha de RPG, tendo conhecido bons resultados de vendas
com seus livros-jogos (muitos de seus títulos já estão em suas segundas
edições com tiragens que variam de 2 a 4 mil exemplares ou encontram-se
esgotados), sempre busca por novos títulos. Porém, um quesito na mais re-
cente busca por novidades ao público leitor-jogador foi determinante para
a escolha de traduzir Alice’s Nightmare in Wonderland: atingir um público
mais geral e amplo do que só o masculino infanto-juvenil e adulto. Sabendo
que a maior parte dos livros-jogos da série Fighting Fantasy foi pensada por
seus idealizadores, os britânicos Ian Livingstone e Steve Jackson, para me-
ninos fãs de RPG cuja faixa etária abrangeria de 11 a 14 anos, o livro-jogo de
estreia da ACE Gamebooks poderia atrair o público gamer feminino em plena
ascensão, já que o leitor-jogador representa uma protagonista feminina, a
própria Alice. A versão brasileira deixa isso mais explícito do que a edição
original logo na capa do livro-jogo:

514
Figuras 1 e 2: artes de capa das edições britânica e brasileira, respectivamente.
Fontes: capas dos livros-jogos Alice’s Nightmare in Wonderland
e Alice no País dos Pesadelos, respectivamente.

Vê-se na edição britânica que o foco está na cena do encontro de Alice


com o gato de Cheshire, cuja arte pertence ao ilustrador Kev Crossley, res-
ponsável pelas artes de capa e interna de outros livros-jogos da série ACE
Gamebooks. Já na capa da edição brasileira, de autoria do ilustrador Eudete-
nis, é a própria Alice quem está no primeiro plano, enquanto o Jabberwocky
encontra-se em segundo.
A própria tradução em português foi feita de modo a ser mais imersiva do
que o texto original em inglês. Por exemplo, a 1ª seção da narrativa inicia-se
com a frase “Alice stares at the rabbit unsure what to say, a dozen questions
crowding her mind” (GREEN, 2015, p. 12, grifo nosso). Já a mesma seção na
versão brasileira a frase é traduzida por “Você encara o coelho incerta do
que dizer, várias perguntas enchendo sua mente” (GREEN, 2019, paginação
irregular, grifo nosso). Assim, a protagonista, na versão britânica, parece

515
ser apenas uma boneca sendo controlada pelo leitor-jogador numa brinca-
deira com action figures, bonecos articulados popularmente conhecidos no
Brasil como “bonequinhos” ou mesmo “figuras de ação” (CYPRIANO, 2001),
enquanto na versão brasileira o próprio leitor-jogador “é” Alice, sendo por
diversas vezes interpelado pelo pronome de tratamento “você”.
Além de ampliar seu público-leitor, a escolha de uma obra de Jonathan
Green poderia ser sinônimo de sucesso de recepção, pois como já dito, trata-
-se de um autor cuja relevância no livro-jogo é indiscutível. Ademais, Green
já começa a ser um autor conhecido pelo público brasileiro pelo fato de já
ter dois livros-jogos traduzidos para o português: Ossos Sangrentos (2017) e
Uivo do Lobisomem (2018), ambos pela Jambô.
O último motivo que pode ter motivado a publicação de Alice no País
dos Pesadelos é a popularidade que a obra original possui no Brasil. Assim
como em outros países, a franquia da obra de Lewis Carroll possui grande
popularidade, tendo o Brasil traduzido desenhos animados, filmes, produtos
comerciais (brinquedos, chaveiros, cartas de baralho, materiais escolares dos
mais diversos etc.) e livros dos mais variados que, agora, englobam o tipo de
livro interativo “livro-jogo”. Mesmo tendo mais de um século e meio de “vida”,
Alice no País das Maravilhas parece ser uma obra atemporal, pois trabalha
com o onírico, o fantástico, o nonsense, dentre muitas outras características
que tanto agradam o público leitor dos últimos séculos e resistem ao tempo.
Sendo A travessia do Liso do Suçuarão: uma aventura pelo grande sertão
de João Guimarães Rosa a única manifestação de livreto-jogo cuja origem
remete à literatura brasileira, convém se pensar na criação de novas obras
desse tipo. Se, porventura, forem dotadas de maior extensão, complexida-
de, tecnologia, pouco importa, mas aproveitar a primeira tradução de um
livro-jogo fruto de uma adaptação de um clássico da literatura inglesa pode
ser um momento oportuno para se pensar em novos experimentalismos que
tanto agradam jovens quanto adultos.

516
CONCLUSÃO

Analisar mais profundamente o livro “original” e seu produto “derivado”


contribuirá para se pensar talvez não em uma fórmula precisa e fechada, mas
em um padrão a ser otimizado por publicações posteriores. A produção bri-
tânica, somente com a série ACE Gamebooks, já contabiliza cinco livros-jogos
lançados e uma nova produção entrará em financiamento coletivo em 2020
(Dracula – Curse of the Vampire), o que demonstra interesse do público-leitor
na continuidade do consumo desse tipo de literatura lúdica. Infelizmente,
ainda há muita desconfiança por parte de críticos mais conservadores, pois
segundo Hutcheon, tem-se “de um lado, a popularidade das adaptações; de
outro, o desprezo sistemático com o qual são atacadas” (2013b, p. 14).
Já a produção brasileira, no momento, conta com um livreto-jogo e a
tradução do livro-jogo objeto de estudo deste artigo. Por um lado, isso pode
parecer desanimador, mas por outro pode abrir caminho para os novos auto-
res de livros-jogos nacionais. Caso livros-jogos físicos não sejam viáveis após
pesquisa de mercado feita por editoras, uma alternativa seria escritores em
potencial unirem-se a estúdios de aplicativos para produzirem seus textos,
já que a tecnologia está cada vez mais envolvida nesses meios (WARD, 2016).
Tal requisição, porém, poderá ser feita no formato físico, de acordo com seu
público. O futuro do livro-jogo é incerto, pois pode-se imaginá-lo com inte-
ração e jogabilidade melhores, mas também é possível pensá-lo na direção
oposta, sendo mais narrativo e até literário (WARD, 2016, p.31).
O preconceito quanto a adaptações literárias serem vistas, ainda, como
um subproduto de obras “clássicas” dificulta muito a aceitação desse tipo de
projeto e deve ser superado, já que um livro é uma plataforma e um livro-
-jogo – assim como um filme, ou jogo de videogame, um desenho animado,
entre outros –, outra, e justamente por isso devem ser analisados sob vieses
diferentes. De acordo com Bazin, o processo de adaptação pode ser tornar
perturbador para o autor-adaptador caso ele seja atormentado pelas quali-
dades literárias da obra escolhida (1991).
Talvez jovens leitores não conheçam as obras que deram origem aos pro-
dutos que eles têm contato sozinhos, e uma boa saída para que a conexão
com o literário se estabeleça pode ser pelo livro-jogo adaptado. Porém, não

517
se trata de usar o livro-jogo apenas como um atrativo, e sim analisá-lo de
forma isolada ou comparada com o “original” a fim de se extrair o melhor
dos dois produtos.

518
Notas

1 Orelha de Livro. Mesmo que o texto de orelha não apresente o nome do autor,
Guilherme Dei Svaldi confirma que ele é de sua autoria.
2 Optamos por usar o par de aspas nos vocábulos original e derivado(a) por
estarmos de acordo com a teoria de Hutcheon, a qual afirma que “[...] a arte
deriva de outra arte; as histórias nascem de outras histórias” (2013, p. 22). As-
sim, não se acredita ser possível tratar Alice’s Adventures in Wonderland como
a obra original e Alice’s Nightmare in Wonderland como uma obra derivada da
primeira, pois mesmo a obra de Lewis Carroll de 1865 foi um produto de ideais,
esboços, aprimoramentos, inspirações literárias e culturais feitos até sua pu-
blicação, sendo derivada deles. Por mais que a obra de Green deixe de forma
explícita a intertextualidade com a de Carroll, Green deu uma nova dimensão
à sua obra, o que lhe concede um caráter de originalidade e ineditismo perante
outros produtos derivados da obra de Carroll.

519
REFERÊNCIAS

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Disponível em: http://www.fightingfantazine.co.uk/page/. Acesso 10
jan. 2020.

521
X
Lógicas do poder e ilusão
ideológica em O planalto
e a estepe , de Pepetela
Sérgio Guimarães de Sousa

Na vida, tem de se saber deixar alguma coisa para trás


(Pepetela, Se o passado não tivesse asas)

Um revolucionário sabe educar os seus filhos dentro dos princípios do


socialismo, isto é, a fidelidade mais absoluta à pátria e ao grande líder. Ter
uma ligação com um estrangeiro revela falta de fidelidade à pátria, prova
de uma péssima educação em casa.
(Pepetela, O planalto e a estepe)

Se porventura reduzíssemos O Planalto e a Estepe, de Pepetela, ao seu


núcleo semântico básico, ficaríamos, é de crer, com uma estrutura semelhan-
te à de grande porção das intrigas romanescas, digamos, camilianas. Com
efeito, à semelhança do que sucede em larga porção dos enredos do grande
novelista de Seide, temos dois jovens, oriundos de universos distintos, muito
embora sujeitos ao contexto de um mesmo regime ideológico, norteados por
uma paixão irrefreável, mas condenados à separação por razões estranhas
ao coração, porque determinadas por preconceitos socioculturais insuperá-
veis. E isso de tal modo que o reencontro ocorrerá apenas muitos décadas

522
mais tarde. Numa altura, porém, em que a reaproximação sentimental será
forçosamente de curta duração. Efetivamente, o protagonista, Júlio Pereira,
acaba por falecer minado por uma grave doença. Ou seja, na senda de Ca-
milo e de um modo geral na esteira dos autores românticos, neste romance
de Pepetela o amor rima com o túmulo.
A intriga não carece, contudo, de razões suficientes para a afastar do ima-
ginário romântico camiliano. Desde logo, pelo facto de no epílogo, a lembrar
agora Machado de Assis, o leitor se achar reconfortado pela voz além-túmulo
do protagonista (expediente discursivo-enunciativo ao gosto de Pepetela,
pense-se em Sua Excelência, de Corpo Presente1). Uma voz flutuante, tudo
leva a crer, imbuída mais da missão de nos dizer que a personagem, no fim
de contas, atingiu a merecida existência espiritual, estando verdadeiramente
livre, do que propriamente incumbida de recapitular os momentos decisivos
do seu trajeto empírico, pese embora o faça. Oiçamo-la:
[...], deambulo em novas viagens. Etereamente. Ago-
ra sobre a Serra de Chela. Podia ir visitar as estepes da
Mongólia, ou as montanhas Altai. Ou até planar sobre as
ilhas do Pacífico. Mas não me apetece. Prefiro o Planalto
a partir da Chela, as rochas de muitas cores, as falésias e
suas cascatas, o verde dos prados, o campo das estátuas,
o milho ondulando, as árvores retorcidas pelo vento.
E pairar sobre a gigantesca fenda da Tundavala, fenda
que aponta o deserto. E o mar. E aponta o Sul, o grande
Sul. O Sul da minha vida. (PEPETELA, 2012, p. 189-190)

Deste modo, o desfecho não se salda por um fim trágico. Se o amor não
foi inteiramente possível em vida, fruto das circunstâncias político-ideoló-
gicas adversas, se bem que o fosse na parte final, sem grandes empecilhos e
de uma forma perfeitamente harmoniosa, há, na verdade, ainda outra vida
(ao arrepio, note-se, do entendimento materialista da realidade professada
pelas circunstâncias político-ideológicas...), e esta cheia de incomensurável
plenitude, para além do percurso terreno. E nessa outra vida, inteiramente
espiritual, o reencontro será, presume-se, definitivo. Em suma, dar-se-á o
irrestrito triunfo do amor.
Um triunfo sobre constrições político-ideológicas, como se disse. Recorde-

523
mos, a traços largos, a intriga: Júlio, o protagonista, jovem angolano branco e
de impressivos olhos azuis, a lutar pela independência de Angola, depois de
frequentar medicina em Coimbra, onde se envolve com grupos de esquerda
e solidifica uma consciência revolucionária a favor da independência do seu
país, parte para Marrocos. E daí, por uma questão discriminatória em fun-
ção da cor da pele, como iremos ver, é enviado para Moscovo, a então Meca
do comunismo. É lá que conhece Lua Cheia, ou melhor, Sarangerel, a jovem
filha do Ministro da Defesa da Mongólia. Apesar de ambos alinharem pelo
diapasão da ideologia marxista-leninista, apregoadora de uma fraternidade
sem fim entre todos os povos, o certo é que a relação dos dois colide de frente
com todo o tipo de obstáculos que não suspeitaríamos possíveis em regimes
declaradamente progressistas e crentes num mundo sem classes e descrimina-
ções. Obstáculos, é bom dizer, cujo funcionamento não faz senão inflacionar
o sentimento amoroso, atuando como objetos-causa do desejo (Lacan). Como
é evidente, a valia desses obstáculos não se esgota ao serviço da combustão
do desejo. Todos eles evidenciam a inesperada presença de preconceitos de
toda a ordem, inclusive rácicos, numa ideologia supostamente emancipada,
porque teoricamente avessa a hierarquias e preconceitos étnico-culturais,
e porta-estandarte da Liberdade Universal. Suficiente ilustração disso é o
facto de Sarangerel, grávida de Júlio, ser levada, ao arrepio da fraternidade
ideológica entre povos e a despeito do coração, à força para a Mongólia.
Dito de outro modo: este romance é assaz revelador das lógicas de poder
existentes em contexto de ideologia marxista, que é como quem diz, enfatiza
a vacuidade dos discursos ideológicos, discursos divorciados da realidade
prática. Trata-se, em síntese, de um romance, em larga medida, de aprendi-
zagem: aquela aprendizagem pela qual se perde a inocência quanto ao real
valor dos discursos ideológicos, os quais, ao fim e ao resto, não passam de
ficções (basta verificar a existência de notórios comportamentos racistas
no âmago mesmo dos regimes libertários), num mundo que delas precisa
como de pão para a boca. Ficções especialmente presentes num contexto de
drástica emulação, como é aquela em que duas grandes ideologias rivalizam
pela supremacia ideológica da Humanidade.
Não é assim ocioso sublinhar O planalto e a estepe como narrativa a res-
ponder ao conceito de ideologia. Melhor dizendo, como um romance a partir

524
do qual se torna exequível, senão mesmo desejável, pensar a ideologia e os
seus discursos. Comecemos pelo manifesto, isto é, por referir a ideologia na
lógica de um discurso com o qual o indivíduo tende a manter uma relação
espontânea. Aliás, eis a razão pela qual se torna difícil, em geral, rebater o
discurso ideológico e dele manter uma salutar distância crítica. O mesmo é
dizer, o discurso ideológico, sobre o qual se erige o poder, confunde-se com
o mundo do indivíduo, o que amolece e suprime a sua capacidade reflexiva.
Através dele percecionamos, pois, o significado das coisas, sendo que, com
a ideologia, vemos aquilo que se dá a ver. Nada disto é novidade, como igual-
mente o não é a evidência de todos nós mantermos, tudo bem considerado,
uma relação problemática com a verdade, em virtude de esta, caso exista, se
achar camuflada pela verdade – talvez devêssemos aqui escrever: distorção
– ideológica, a bem das lógicas do poder instituído ou a instituir. Noutros
termos, a verdade é dificilmente pensável, sobretudo se formos adeptos de
Nietzsche e de um dos seus mais célebres discípulos, Foucault, fora dos sis-
temas de poder, porque a verdade é ela própria poder.
Daí que aceder à verdade por detrás da ideologia se possa afigurar doloroso.
Ou, como a certa altura se diz no romance, «A verdade é dura, sempre» (Pe-
petela, 2012, p. 46). Somos, enfim, impelidos a repensar o que, aparentemente,
se percecionava como espontâneo. A um nível global, não é difícil estabelecer
uma correlação com as guerras independentistas de África, uma vez que a
aprendizagem dolorosa da liberdade se achou, e de que maneira!, presente na
ruína, traumática como todas, de um mundo pré-estabelecido aquando das
independências africanas. Queremos com isto dizer que o desmoronamento
da ideologia colonial e das repugnantes práticas de exploração humana2 deu
lugar em Angola, como noutros países, a uma longa e sangrenta guerra civil,
como se o preço a pagar pela Liberdade tão duramente obtida fosse a reati-
vação, noutros moldes, da guerra, adiando o sonho da paz e da prosperidade.
Mas o que este romance de Pepetela, na esteira de outros da sua auto-
ria, enfatiza é aquilo que, com Žižek, diríamos ser o reverso obsceno da Lei.
Expliquemo-nos: o edifício ideológico, seja qual for, assenta no seu inverso.
Pensemos nos regimes patriarcais do antigamente. O casamento, ocasião
para manter ou, na melhor das perspetivas, aumentar o capital patrimo-
nial e/ou simbólico (o poder da genealogia), celebrava-se, como é sabido,

525
menos por razões sentimentais e mais por motivos utilitaristas. Ora, todo
este sistema castrador do coração e radicado em conveniências socio-pa-
trimoniais e linhagísticas perdurou muito à custa da sua transgressão. Nas
sociedades patriarcais oitocentistas, como sabemos, o patriarcado andava,
não raramente, a compasso, com o adultério. O que isto significa é, ao fim
e ao cabo, que nenhuma consistência ideológica persiste à margem da sua
violação esporádica, sendo, em consequência, a transgressão o mais eficaz
meio de se consolidar o que se transgride. Conforme sublinha Slavoj Žižek:
Vous pouvez vous la permettre parce que vous êtes
absous de toute culpabilité en vertu du fait que, pour le
grand Autre [leia-se: sistema ideológico comunista], ils
n’ont strictement rien fait. Les apparences comptent :
vous pouvez vous autoriser toutes sortes de fantasmes
suspects, mais ce qui compte c’est qu’une version moins
suspecte soit présentée dans le domaine public de la loi
symbolique, en tant qu’enregistrée par le grand autre.
Cette double lecture n’est pas un simples compromis
de la part de la loi symbolique, dans la mesure où la
loi s’intéresse seulement à maintenir les apparences et
vous laisse libre d’exercer votre imagination, à la con-
dition qu’elle n’empiète pas sur le domaine public. La loi
elle-même a besoin de ce supplément obscène dont elle
reçoit le soutien. (ŽIŽEK, 2001, p. 96)

Desta maneira, percebe-se um paradoxo digno de nota. Quando alguém


advoga uma incondicional fidelidade à ideologia, seja qual for, o que daí
sobressai é o oposto. Porque toda a ideologia – repita-se – supõe uma mol-
dura ficcional por via da qual se consente no contrário do que a ideologia
preconiza, não raro sob a forma de paródia espontânea da norma em vigor.
Cabe, pois, sendo assim, às ideologias cuidarem da sua estabilidade, salva-
guardando-se – e este é o ponto crucial – de serem tragadas pelo reverso
obsceno do que propõem, incorporando-o. Não estar em condições de reco-
nhecer e, sobretudo, tolerar um reverso obsceno da realidade ideológica, sem
o qual esta não se sustenta, equivale a colocá-la em risco. Todo o fervoroso
purista dos valores ideológicos corre o risco de não se aperceber do cinismo

526
no campo da afirmação ideológica e da valia desse cinismo na garantia da
hegemonia da ordem – no caso deste romance, a ordem comunista. Numa
palavra, não admite a ficção ideológica e, com isso, põe em perigo a ideolo-
gia. Em tais casos, o sistema encarrega-se de liquidar o excesso de pureza.
Foi o que sucedeu, regressando à narrativa de Pepetela, ao jovem e idealista
Jean-Michel, senão veja-se:
E fui percebendo, à medida que o tempo, à medida
que o tempo passava e que ele ia subindo na Juventude,
até ser o chefe máximo da organização, que perdera as
antigas convicções. As suas cartas denotavam desespero
por estar a colaborar com uma farsa, qual socialismo qual
nada, só pensam em mulheres e carros, já que enriquecer
é difícil em terra tão pobre. A notícia repentina não me
surpreendeu. Jean-Michel se meteu numa tentativa de
revolução que correu mal, fuzilaram-no numa esquina
perto do estádio de futebol. Juntamente com um cantor
de músicas revolucionárias. (PEPETELA, 2012, p. 41)

A «farsa» do socialismo é aquela que um jovem assessor, o Serguei, de-


nuncia, não sem involuntária candura, quando pergunta, certo dia, a um
militar de alta patente:
– O general me perdoe o abuso, mas gostaria de lhe
fazer um reparo, se não se importa. Não vejo nenhum
responsável angolano ir passar férias à URSS ou a um
país socialista. Talvez um ou outro vá a Cuba, mas mes-
mo assim é raro. Vão ao Brasil ou Portugal, ou a França
e Itália, países capitalistas, e alguns chegam mesmo a ir
a Inglaterra e Estados Unidos, países imperialistas. Por-
que não vão gastar os vossos dólares nos países amigos?
(PEPETELA, 2012, p. 135)

A resposta do general é lapidar e reveladora: «Basta-nos onze meses por


ano de socialismo e de países amigos [...] por um mês de férias preferimos
espairecer nas molezas do capitalismo. Amigos amigos, férias à parte!» (PE-
PETELA, 2012, p. 135). Estas palavras merecem uma observação, para além de
nelas se constatar o óbvio facto de o desejo constituir a categoria fundamental

527
do capitalismo (não era, pois, Marx que definia o capitalismo como o sistema
que produzia a necessidade daquilo que produzia?). São, com efeito, ilustra-
tivas da inconsistência do comunismo (o descanso dos guerreiros marxistas
na jouissance capitalista). E aqui o problema reside menos nas mentiras da
ideologia (edificar sem falhas a austeridade comunista, elevada a valor éti-
co-moral de primeira importância, quando, na verdade, ocorre uma entrega
sazonal aos prazeres capitalistas), antes nas verdades parciais pelas quais se
sustentam essas mentiras (a necessidade, a despeito do rigor ideológico mas
a bem da manutenção da ideologia, de se infringir por vezes os dogmas da sua
Lei). Significa isto que mesmo sendo o capitalismo uma ideologia perspetivada
como abjeta pelos comunistas, um contrassentido à sua natureza ontológica,
esse repúdio pela ordem capitalista é sobretudo uma forma de dissimular as
verdadeiras razões pelas quais os comunistas – ou, pelo menos, os provenientes
da elite – advogam a sua posição ideológica (a manutenção, desde logo, de uma
lógica de poder, a qual, entre outras benesses, proporciona a eventualidade de
um mês de verão em plenitude capitalista...). Assim sendo, as férias de verão
capitalistas, mais do que uma transgressão ao credo marxista-lenisnista, cum-
prem a essencial função de garantirem que o comunismo se perpetue enquanto
realidade ideológica coesa (evita-se o abandono da rígida realidade comunista
com momentos de realidade capitalista, suficientes para garantir a disciplina
mental de um ano de provação comunista...). Tratar-se-ia não de um elemento
externo, a invadir, corrompendo-o, o sistema comunista, mas, pelo contrário,
de um elemento, por assim dizer, patológico e, por esse motivo, inscrito no
interior do sistema e destinado a aliviá-lo momentaneamente da sua pesada
disciplina ideológica, tornando-a mais digerível (pelo menos, para a elite, que
é quem conduz a ordem sistémica em vigor). Ao constituir a base de sustenta-
ção da substância ideológica, já que permite um alívio momentâneo das suas
durezas, alívio esse que permite, como dissemos, recobrar forças e enfrentar
com maior disciplina a luta contra o inimigo externo (as forças capitalistas), a
exceção capitalista, resumindo, surge na condição de antagonismo escondido e
destinado a preservar o funcionamento ideológico. Tal como, em regime psica-
nalítico, a patologia consiste naquela cisão através da qual se acede à perceção
do sujeito em toda a sua “normalidade”. O que isto quer dizer, em bom rigor,
é que a ideologia comunista, como qualquer ideologia, por tratar-se de uma

528
narrativa imposta, não requer forçosamente uma crença cega e abrangente, da
mesma forma, aliás, que a premência económica inerente ao capitalismo torna
irrelevante a distinção entre «clientes» comunistas e outros. Existe, portanto,
uma espécie de semântica do cinismo, pode dizer-se, suficientemente espessa
para lhe garantir o exercício à margem da crença. Nas palavras de Žižek: «This
is how ideology works in our cynical era: nobody takes seriously democracy or
justice, we are all aware of their corruption, but we practice them – i.e., display
our belief in them – because we assume they work even if we do not believe
in them» (ŽIŽEK, 2020, p. 11). Dir-se-ia, enfim, que, a fim de superar as suas
inconsistências, a ideologia requer o suplemento de inconsistências menores
(as tais verdades parciais) sob a forma de contradições pragmáticas. Não as
contradições sobre as quais assenta a distinção entre a trincheira ideológica
comunista e a capitalista, mas, sim, as contradições adstritas ao interior da
ideologia comunista (como as há, seguramente, no interior da substância
ideológica capitalista), configuradas pela reivindicação pública de inalienáveis
princípio universais (austeridade, abolição de privilégios de casta social, luta
de classes, perceção da realidade enquanto movimento dialético, etc.) em per-
feita discrepância com práticas particulares (a sintonia com comportamentos
capitalistas mais ao menos assumidos).
Regressemos ao romance. O facto de a realidade marxista-socialista se
afirmar em manifesto contraponto à teoria salta à vista desde cedo. Júlio, e
seus camaradas, ainda em Moscovo, não tinham dificuldade em vislumbrar
um historial de golpes palacianos no poder soviético. Ou seja: «Havia golpes
e contragolpes na pátria perfeita do socialismo, cartas escondidas debaixo da
mesa, pior, facas escondidas nos casacos, sangue escorrendo pelas paredes»
(Pepetela, 2012, p. 48). Tudo isto destoa, como é bom de ver, da propagan-
da oficial. E este exemplo vindo das cúpulas estende-se, contaminando-as,
naturalmente às camadas inferiores do edifício ideológico. Tanto assim é
que, do já referido e sagaz Jean-Michel, mártir, no fundo, em nome da causa
ideológica, ouvia o narrador estas palavras, a propósito do seu amor por Sa-
ranangel: «[...] meu velho, deixa-te de ilusões, o internacionalismo proletário
é uma treta, a amizade indestrutível entre os povos é outra, o que conta é
que tu não és mongol, portanto és um ser inferior. Nem que fosses o rei do
Kongo» (PEPETELA, 2012, p. 67). Esta constatação não se afigura somente

529
pertinente por denunciar a inconsistência generalizada da utopia comunista
do internacionalismo proletário, é também interessante por evidenciar uma
falha ao nível das complexas interações da ideologia com outras lutas afora
a que opõe a burguesia utilitarista e argentária ao mundo proletário. Quer
isto dizer que uma contraposição (burguesia versus proletários) desencadeia
outras das quais depende, como sucede com aquela que opõe – e é o tema
central do romance – imperialistas e colónias, a qual, por seu turno, se revela
em dependência direta da primeira, uma vez que não existem colónias sem
capitalismo (cf. ŽIŽEK, 2020, p. 20). O que Jean-Michel faz é diagnosticar
uma ficção generalizada, que parte do núcleo central da ideologia – ou, se
se quiser, da contradição de base, mas que no contexto do romance não é
dominante – e se estende pelas interações secundárias, como seja a questão
do racismo e da opressão colonial. O que Jean-Michel está a dizer, de forma
invertida, é, numa palavra, a mensagem segundo a qual a falência do inter-
nacionalismo proletário é acima de tudo, em contexto colonial, decorrente
da notória infelicidade de a ideologia ser incapaz de superar o racismo rei-
nante nas suas fileiras (ou nalgumas).3 Dito de outro modo: reabilitar a luta
de classes e a emancipação dos proletários oprimidos implicaria reconhecer
a existência de uma opressão de base racial, na exata medida em que uma
luta eficaz contra as desigualdades sociais é já uma forma eficaz de prevenir
contra a tentação de aferir os povos e as comunidades em função da cor da
pele e de correlatos costumes e culturas de que seria expressiva essa cor.
Assim, uma pessoa não seria delimitada senão como resposta a um ideal
(revolucionário) de emancipação. Ora, nada de mais estranho a esta onto-
logia do que desfazer barreiras sociais, sem atender aos obstáculos coloniais
causados por hierarquizações biológicas. Não se pode, em resumo, apregoar
a validade universal de valores da irmandade comunista sem um sentimento
de incongruência face a atitudes discriminatórias com base na proveniên-
cia cultural e geográfica, como se se tratassem de realidades desgarradas.
Tal como não há inconsistência ideológica (os valores comunistas como
discurso vácuo e empastelado, o mesmo é dizer, como treta, como afirmaria
Jean-Michel) que não admita inconsistências noutros domínios (a questão
das diferenças raciais, por exemplo). A crer em Jean-Michel, a situação seria
de uma tal ineficácia ideológica, talvez porque autorreferenciada em excesso

530
(quando se erige a partir de uma construção teórica que, em rigor, dispensa
práticas efetivas, como se esta carência fosse incorporada de algum modo
na ideologia, passando a fazer, implicitamente, parte da sua definição), que
tudo no edifício teórico do comunismo não passaria de fraude retórica; quer
dizer, estaríamos diante de um discurso desprovido de validade empírica.
Um discurso, na realidade, enquanto desvio e exoneração dos valores e das
consentâneas práticas que deveria propalar com convicção – enfim, um erro
teórico. Aquele erro de perceção segundo o qual os países pudessem funcio-
nar entre si e para o mundo em geral enquanto fronteiras de pura justiça
social, países entre os quais se abolisse todo o tipo de distância, convertendo
a geopolítica num encontro fraterno de culturas.4
E antes de prosseguir, seja-nos consentido um breve parêntesis para fazer
notar o que separa um Jean-Michel, que é quem melhor compreende a falência
teórica de um discurso ideológico a arrastar consigo a inconveniência do seu
desempenho empírico, de um Júlio, personagem que se exime às infirmações
que poderiam comprometer a leitura ideológica para além da sua superfície
retórica. Jean-Michel é na sua expressão mais pura a definição do idealista, o
que o torna particularmente apto a transformar dúvidas em problemas, com
vontade de corresponder à promessa de sentido da ideologia, reformando as
mazelas do sistema, reendireitando-o, ciente de que cada contexto supõe uma
atualização com o seu quê de singular das normas ideológicas e esclarecido
quanto ao facto de que a ideologia, se não for contextualmente descriminada
com factos sociais e históricos, não é senão uma cegueira. Quanto a Júlio,
pautado por uma sólida insubmissão ao autoritarismo colonial português,
corporifica aquele tipo de revolucionário inexpressivo. Entenda-se por inex-
pressividade o cinzentismo do revolucionário honesto nas convicções e no
modo como regula o seu desempenho, evitando ceder à tentação de um desvio
ético-moral que o pudesse comprometer com as noções e ideias da ideologia;
é, em suma, aquele tipo de revolucionário incapaz de ir para além da prudên-
cia e das boas intenções. Razão pela qual dele se não pode esperar que ponha
em xeque a ideologia nos seus princípios, regras, motivos e causas. Cumpre-a
sem denunciar os seus incumprimentos. Não admira que seja complacente
com a transgressão ideológica, reservando a intransigência para um assunto,
apetece dizer, quase do foro íntimo. Eis o motivo porque sobrevive e dispõe

531
mesmo de um muito assinalável prestígio junto dos seus pares e dos seus
superiores hierárquicos, mesmo quando já não serve o Governo e trabalha
para o setor privado. É, digamos ainda, o lado bom e impoluto da ideologia,
sem com isso, ao invés de Jean-Michel, ser a benzina que pretende limpar as
manchas dos desvios ideológicos. Jean-Marie Domenach, num livro que fez
época e hoje um tanto esquecido (O Retorno do Trágico), observa o seguinte:
O herói trágico [...] concentrado no seu objetivo,
esforça-se por esquecer a sua própria história, por negar
o seu destino. Mas este alcança-o, recorda-lhe um esque-
cimento, uma culpa, e prende-o à sua hereditariedade,
ao seu corpo, ao seu remorso, ao seu dever, até o cruci-
ficar sobre si mesmo. Nesta conjuntura, o erro do herói
trágico parece ser o de separar o seu destino do destino
comum [...]. A ironia trágica por excelência consiste em
dizer que se quer o bem, em querê-lo de facto, e acabar
por cair o mal. (1968, p. 50-51)

No caso de Jean-Michel, esse mal chama-se morte ou, se se preferir,


martírio. Seja como for, ambos revelam uma nítida fidelidade aos princípios
pelos quais se norteiam. Jean-Michel, consciente da degeneração dos princí-
pios revolucionários, não se conforma e persiste na luta, guiado pela pureza
ideológica de querer reformar o sistema; Júlio, esse, não pede explicações à
ideologia. Como afirma, com inteira justeza, Conceição Pereira:
Será sempre visto, pela maior parte dos outros, como
diferente, nos vários contextos geográficos, sociais e po-
líticos por que vai passando. Sujeito a mudança(s), in-
teriormente, a personagens permanecerá, no entanto,
fiel aos seus valores, à sua pertença, sendo este traço a
marca dominante do seu caráter. (PEREIRA, 2013, p. 91)

Isto é, e para nos socorrermos novamente de palavras justas de Concei-


ção Pereira,
[...] [Em] Júlio não parece haver fragmentação, ape-
sar da natureza compósita da sua identidade e da eviden-
te diferença entre o modo como a maior parte dos outros

532
o vê e o modo como ele se define. Não parece nunca
ocorrer qualquer momento de deslocação da identidade,
apesar dos muitos locais por onde a personagem passa
e dos grupos diferentes de pessoas com as quais se re-
laciona. Júlio é uma personagem idealizada, sem cisões
identitárias ou outras, que nunca muda, pois é essa a sua
natureza e com ela vive e morre, enfrentando todas as
vicissitudes que a vida lhe traz sendo sempre ele próprio,
Júlio Pereira, angolano da Huíla. (PEREIRA, 2013, p. 97)

Acresce, conforme fica claro, que tanto Jean-Michel como Júlio, em grau
diverso, dão a ver a falência ideológica, engolida por lógicas de poder. A
passagem dos valores a princípios fundadores não se converteu em prin-
cípios plenamente conscientes e operacionais. Desembocou, antes, e com
isto regressemos à questão essencial do reverso ideológico, à denegação da
ideologia a partir do seu interior. São diversas as passagens em que o leitor
é confrontado, para dizê-lo com outra reformulação, com uma realidade em
notório contraponto à ideologia pela qual é suposto nortear-se, como é o caso
do consumo descomedido de bens luxuosos ao arrepio da degradação econó-
mica do país. Estamos, não se duvide, perante o reverso obsceno da ideologia
na sua evidencia empírica mais enfática. E o cinismo ideológico, porque em
boa verdade é disso que se trata, atinge o seu ponto alto naquele momento
em que fica visível que o sentimento de culpa não advém da declarada infi-
delidade à ideologia, antes decorre de não se infringir suficientemente essa
ideologia por via da sua transgressão. Em registo psicanalítico, corresponde
isto à transição operada entre o desejo, que supõe contenção e castração, e
o gozo, que implica consumo desassombrado.
Outro aspeto realçado pelo romance no tocante ao cinismo ideológico e
co-extensivo do reverso obsceno da Lei prende-se com o facto de a ideolo-
gia se mover como espécie de contentor vazio e, como tal, aberto a todos os
significados vazios. É, de resto, isso que lhe garante a sua extensão e a sua
ambição universal. Daí ser reconhecível num ponto perdido em África como
noutro não menos esquecido na Ásia. O caráter universal da ideologia faz-se
à custa de reactualizações das suas componentes em função do contexto,
reactualizações tão flexíveis ao ponto de lhe permitirem transitar por diver-

533
sas latitudes e coordenadas, conciliando, inclusive, o inconciliável. Assim
se explica que no interior dos movimentos armados destinados a combater
o colonialismo e, por extensão, o racismo ocorram momentos de inegável
descriminação. Eis um deles, aquele a que aludimos no início do nosso texto,
um momento bem eloquente:
Andámos uns meses por Rabat, onde havia um escri-
tório para os movimentos das colónias portuguesas. Que-
rendo ir lutar. Era um grupo misturado, todas as cores.
Depois, dividiram-nos. Os mais escuros iam combater.
Recebiam treino militar na fronteira entre Marrocos e
Argélia. Os mais claros tinham bolsas de países amigos,
iam estudar para a Europa. A razão era não existirem
condições subjectivas para os mais claros participarem
na luta armada. Traduzido por miúdos, os mais claros
ainda não eram suficientemente angolanos para arrisca-
rem a vida na luta pela Nação, pelo menos havia dúvidas
quanto à sua nacionalidade. E utilidade. De novo as ra-
ças a separarem os grupos. Fiquei desiludido, sobretudo
humilhado. (PEPETELA, 2012, p. 33-34)

É bom recordar que isto acontece no contexto do internacionalismo pro-


letário que, como faz notar o narrador, «obriga a misturar pessoas diferentes
para se conhecerem e se solidarizarem umas com as outras» (PEPETELA,
2012, p. 37). De resto, o racismo, um tema importante deste romance, tanto
surge, como seria de esperar, em contexto colonial, como é dominante em
regime emancipatório e pós-colonial.
Outro exemplo, já agora, é o da morte de Jean-Michel. Qual Che Gueva-
ra, morreu na defesa intransigente dos seus ideais. As justificações do seu
assassinato, essas, divergem. Para uns, mereceu o destino reservado a todos
aqueles que resvalam no pecado capital (é caso para dizer) da revisão di-
reitista; de acordo com outras vozes, tratou-se de um perigoso esquerdista,
tendo sido, logo, forçoso eliminá-lo. Resta a certeza de a causa da sua morte
se ter ficado a dever à ameaça das suas ideias. Em rigor, ao seu manifesto
ceticismo, que o levava a querer atingir a ideologia no seu cerne.
Pelo que vais dito, conclua-se dizendo que se há traço estruturante do

534
discurso ideológico, esse traço dá pelo nome, como é bom de perceber, de
ficção. Em geral, associamos a ideologia a um discurso assinado por um de-
terminado grupo social (ou movimento orgânico) através do qual se pretende
disseminar uma certa visão do mundo. Todavia, não será descabido considerar
a ideologia sob outro prisma. O prisma segundo o qual o discurso ideológico
enquanto ficção se destina a preencher o vazio do real, não havendo realida-
de à margem desse discurso. Uma narrativa, por outras palavras, enquanto
construção (paranoica?) coesa e coerente a fim de preencher a realidade de
uma organicidade convincente. E, para torná-la procedente, força é recorrer
a bodes expiatórios, acusados de veicularem todos os antagonismos sociais.
Mas tudo não passa, à mistura com momentos de verdade, de um discurso
entre outros discursos ou, se se quiser, de uma ficção, válida na porção de
outras. E quem no romance cumpre o papel de desmistificar a ficção ideo-
lógica é, não sofre dúvida, Jean-Michel. A ele se deve o pensamento crítico.
Aquele pensamento crítico que lhe confere a lucidez com a qual perceciona
da realidade sem a fixidez do filtro representacional da ideologia, que é,
como já ficou sobejamente assinalado, uma moldura alteradora da aparência.
Flagrante amostra disso é o modo como a personagem desfaz, em matéria
sentimental, a ingenuidade e as quimeras românticas do seu amigo Júlio. Se
este se achava convencido de que seria perfeitamente possível pedir a mão
de Sarangerel ao pai, o tal ministro da defesa mongol, apoiado no interna-
cionalismo proletário – já que a «Mongólia», como o próprio refere com in-
voluntária candura, «como país socialista, apoia a luta dos povos oprimidos.
O meu povo é colonizado e eu sou um lutador pela liberdade do meu povo»
(PEPETELA, 2012, p. 66) –, é Jean-Michel quem o faz regressar à órbita ter-
rena, esclarecendo-o sobre a Realpolitik, como já se disse.
Bem vistas as coisas, o que resta do passado e da ideologia cifra-se por
esta emblemática e impressiva cena, aquando do regresso de Júlio, agora
general aposentado, de Cuba, onde se deslocou para rever Sarangerel, numa
época em que os ideias comunistas não passam já de meros ideais, vergados
pelo peso da realidade:
Comemos com apetite a última refeição antes de
enfrentarmos a longuíssima viagem. Os companheiros
cubanos fingiam não partilhar do nosso apetite, mal pro-

535
varam a comida, poupando mantimentos para futuras
visitas, a ilha passava dificuldades que eles, por delica-
deza, tentavam esconder. Assim é Cuba, assim são os
cubanos, com o seu orgulho, pobres mas não pedintes.
Nem forretas. (PEPETELA, 2012, p. 174)

Chegados aqui, poderíamos ser levados a resumir a lição global do ro-


mance em termos de insolvência do ideal socialista («Nós éramos socialistas
só de boca, isso já tinha percebido há muito. Estávamos todos à espera da
primeira oportunidade para declarar de viva voz o nosso fervor capitalista»
– PEPETELA, 2012, p. 136), ideologia que não só não conseguiu vingar, como,
em boa verdade, jamais se terá mostrado estritamente consentânea com os
seus irredutíveis propósitos e, nessa medida, emancipada dos discursos co-
loniais («[...] tu não és mongol, portanto és um ser inferior. Nem que fosses
o rei do Kongo»).
Mas é decerto redutor ficar-se por aqui, até porque outros novelos de
sentido há pelos quais valeria a pena puxar. Sugira-se, pelo menos, um deles.
Tem a ver com a voz do protagonista surgir em condição assaz peculiar. É uma
voz portadora de um discurso memorialista e localiza-se nesse insondável
território a que chamamos, entre outros nomes, o além. E esta «fenomenolo-
gia» do morto-vivo em que é colocado o protagonista não é sem sugerir uma
possibilidade interpretativa ampla. Ao colocar-se fora da História, porque
numa dimensão de pura espiritualidade e, como tal, de máxima reflexividade,
Júlio oferece-nos aquela distância plena e só possível em quem vê as coisas
verdadeiramente de fora (a observação a observar-se). Distância através da
qual a História adquire um sentido, na verdade, ilusório – ou seja, a persona-
gem encontra-se na posição de quem pode, tendo acumulado a experiência
de uma vida, descobrir toda a inconveniência e toda a desadequação dos
discursos ideológicos e de suas consequências. A voz de Júlio situa-se, por
conseguinte, num berço que é o túmulo do sujeito ideológico. Porque o que
a sua voz sideral nos diz é que o sentido da vida, que contém histórias por
detrás da História, é mais do que a sincronicidade das populações demar-
cada por relógios e calendários ideológicos e correspondentes dispositivos
mitológicos. Talvez esta seja uma das lições de fundo a extrair do romance.
E talvez nada melhor para a interiorizar do que transcrever, para concluir-

536
mos, este significativo trecho de uma conhecida carta do escritor e ativista
negro norte-americano James Baldwin:
Talvez toda a raiz do nosso problema, o problema
humano, seja que sacrificamos toda a beleza das nos-
sas vidas nos aprisionando em totens, tabus, cruzes, sa-
crifícios de sangue, torres, mesquitas, raças, exércitos,
bandeiras, nações, a fim de negar a evidência da morte,
que é a única certeza que temos. Sou dos que acreditam
que o indivíduo deve alegrar-se com a certeza da morte –
pois ele deve decidir, de fato, conquistar a própria morte,
confrontando com paixão o enigma da vida. Somos res-
ponsáveis pela vida: é o pequeno farol naquela escuridão
aterradora de onde viemos e para a qual retornaremos.
(BALDWIN, 2020)

537
Notas

1 Eis o incipit do romance: «Estou morto. / Estou morto, de olhos cerrados, mas
percebo tudo (ou quase) do que acontece à minha volta. Sei, estou deitado dentro
de um caixão, num salão cheio de flores, as quais, em vida, me fariam espirrar.
As pessoas não sabem que flores de velório cheiram mal? Sabem, mas a tra-
dição é mais forte e velório sem flores é para pobre. / Ora, não somos pobres,
dominamos uma nação. / Estou morto, no entanto posso escutar, entender os
dizeres, mesmo os sussurros, e, em alguns casos, adivinhar pensamentos» (PE-
PETELA, 2018, p. 9).
2 A ocupação colonial em si era uma quão de apreensão, demarcação e afirmação
de controle físico e geográfico – inscrever sobre o terreno um novo conjunto de
relações sociais e espaciais. Essa inscrição de novas relações espaciais [...] foi,
enfim, equivalente à produção de fronteiras e hierarquias, zonas e enclaves; a
sublevação dos regimes de propriedade existentes; a classificação das pessoas de
acordo com diferentes categorias; extração de recursos; e, finalmente, a produ-
ção de uma ampla reserva de imaginários culturais» (MBEMBE, 2018, p. 38-39).
3 Leia-se ainda: «Jean-Michel tentou tirar-me as ilusões, há racismo, e o racismo
nem sempre é de branco contra negro ou de negro contra branco, há entre to-
dos os grupos. E o marxismo não extirpou esse cancro, meu irmão, podes crer»
(PEPETELA, 2012, p. 68).
4 E há ainda a questão sensível de o internacionalismo proletário (tal como
qualquer pretensão internacionalista) se traduzir por uma hegemonia, sendo o
mesmo que dizer: numa neocolonização, na medida em que presume forçosamen-
te a anulação de circunstancialismos locais e regionais a favor da disseminação
hegemónica – isto é, internacionalista – da causa defendida (proletarismo).

538
Referências bibliográficas

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Haroldo Saboia, revisão de Humberto Torres. Portal da editora n-1
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lítica da morte. São Paulo: n-1 edições, 2018.
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2012.
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Pepetela. In: Navegações, 2012, v. 6, n.º 1, p. 91-98.
ŽIŽEK, Slavoj. Comment lire Lacan. Calvados: NOUS, 2001.
ŽIŽEK, Slavoj. A Left that dares to speak its name. Cambridge: Polity Press,
2020.

539
R
Marie-Catherine d’Aulnoy
e o conto de fadas de
autoria feminina nos termos
de Nelly Novaes Coelho
Paulo César Ribeiro Filho

O conto de fadas tal qual o conhecemos hoje, em termos de estrutura e de


elementos narratológicos (enredo, personagens, tempo e espaço) , adquiriu
forma literária definitiva em território francês entre os séculos XVII e XVIII.
Com a publicação de Contos da Mamãe Ganso ou Histórias do Tempo Passado
com Moralidades em 1697, Charles Perrault lança a pedra angular no estabe-
lecimento de uma contística que viria a habitar o imaginário dos homens do
Ocidente ad eternum. Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, A Bela Adormecida,
O Pequeno Polegar e O Gato de Botas são os títulos indubitavelmente mais
populares da coletânea, o que pode ser explicado, em partes, pelo sucesso de
suas adaptações para o cinema via Estúdios Disney. Barba Azul, As Fadas,
Riquete de Topete, Grisélidis, Pele de Asno e Os Desejos Ridículos completam
a lista de contos presentes na publicação, os três últimos em forma poética.
Malgrado seu enorme sucesso, a obra-prima de Perrault esteve envolta em
polêmicas à época do lançamento. Isso porque o século XVII francês foi in-
tensamente marcado por ideais racionalistas, tendo como principal marco
a publicação do Discurso do Método de René Descartes em 1637. O louvor à
Razão perpassou todas as artes e disciplinas, não se contendo à filosofia; no
campo da literatura, por exemplo, essa tendência se expressou no surgimento
de movimentos adeptos à emulação dos modelos literários greco-latinos. É
justamente nesse ínterim de vigorosa efervescência cultural que despontam

540
as obras de grandes nomes da literatura: entram em circulação os textos
teatrais de Racine e Molière, a poesia de Jean de La Fontaine e as sátiras de
Boileau, por exemplo.
Cerca de dez anos antes da publicação dos Contos da Mamãe Gansa, Char-
les Perrault escreve um poema em homenagem ao rei Luís XIV intitulado O
Século de Luís, o Grande (Le Siécle de Louis le Grand), lido pelo abade Louis
Lavau diante da Academia Francesa em 27 de janeiro de 1687. O elogio à mo-
dernidade e a censura ao louvor dos antigos presentes no texto reacendem os
debates em torno da poética vigente, vivificando um debate teórico-filosófico
conhecido como Querela dos Antigos e Modernos. O tom combativo emprega-
do por Perrault, na tentativa de justificar a superioridade dos modernos em
face aos antigos , causa grande polêmica. Os antigos, liderados por Boileau,
sustentavam a ideia de que o mérito das obras dos escritores da antiguidade
era incontestável e insuperável, de modo que os escritores do século das luzes
nada poderiam fazer senão tentar imitá-los. La Fontaine e Molière também
eram signatários dessa linha de frente. Os modernos, por sua vez, liderados
por Perrault com o apoio de Bernard Le Bovier de Fontenelle, defendiam a
superioridade da arte literária de então, que deveria se legitimar em si, sem
a necessidade de buscar chancelas no passado.

A bela Antiguidade sempre foi venerável


Mas eu nunca cri que ela fosse adorável.
Vejo os Antigos sem dobrar os joelhos,
Eles são grandes, isso é verdade, mas homens como nós
[...]
Platão, que foi divino no tempo dos nossos antepassados,
Começa a se tornar um tanto tedioso1
(PERRAULT, 1687, p. 3-4, tradução nossa)

Percebe-se, sem grandes dificuldades, que a publicação dos Contos da


Mamãe Gansa não faz jus aos ditames em voga em uma série de aspectos,
dentre os quais podemos destacar: (1) predileção pelo conto, uma forma
literária não canônica, (2) remissão a motivos populares em detrimento do

541
panteão temático clássico e (3) efabulação simples, própria para leituras
episódicas e fácil memorização.
Os ideais modernos que subjaziam ao posicionamento enfático de Per-
rault pressupunham, entre outras coisas, não apenas a descanonização do
modelo clássico e da estética da emulação, mas também a horizontalização
da relação autor/obra e a dessacralização da função autoral, enxergando
no povo e em suas histórias uma potencial fonte de inspiração para a arte
literária. É nesse sentindo que uma outra importante reinvindicação dos
modernos passou a ganhar forma: a possibilidade de abertura de espaço para
a presença feminina no círculo dos literatos.
A divergência de posicionamentos entre antigos e modernos quanto ao
valor social da mulher se tornou mote para algumas produções literárias.
De um lado, as invectivas de Molière em obras como As Preciosas Ridículas
(1659) e Escola de Mulheres (1662), que ridicularizavam a intelectualidade
feminina; de outro, A Marquesa de Saluce ou A Paciência de Grisélidis (1691,
posteriormente adicionada à coletânea de 1697), de Charles Perrault, que
serviu como resposta às sátiras de Boileau contra as mulheres.
Foi nas últimas décadas do século XVII que os salões literários presidi-
dos por condessas e demais madames da alta sociedade francesa ganharam
grande notoriedade, sendo Perrault um “frequentador assíduo” desses sa-
lões (COELHO, 1985, p. 65; sua sobrinha, a autora Marie-Jeanne L’Héritier
de Villandon, também acabou se tornando uma famosa salonnière (anfitriã
de salão literário). Na voga do preciosismo literário, a vertente barroca da
literatura francesa, as mulheres que cultivaram a arte do conto de fadas de
acordo com o gosto do momento receberam a alcunha de “preciosas”, e seus
salões de “salões das preciosas”.
Faz-se mister destacar o trabalho de divulgação empreendido pela pro-
fessora e pesquisadora Susana Ramos Ventura na popularização dos contos
de fadas de autoria feminina entre a comunidade lusófona, iniciado há mais
de uma década e que tem como um de seus feitos a publicação da coletânea
Na Companhia de Bela: Contos de Fadas por Autoras dos Séculos XVII e XVIII
(Florear Livros, 2019), em parceria com Cassia Leslie e ilustrações e projeto
gráfico de Roberta Asse. Cinco das autoras francesas supracitadas têm seus
contos traduzidos na obra, que presenteia o público leitor com excelentes in-

542
fográficos a respeito do movimento literário das preciosas, suas vidas e obras.
Por vezes, nos livros que falam sobre aqueles tempos,
são mencionadas “as preciosas”, mulheres que lançaram a
moda de contar, escrever e publicar esses contos. Quando
isso acontece, em geral, é para afirmar que o que elas
escreviam não era boa literatura e, por isso, suas obras
ficaram esquecidas. Por terem suas identidades escondi-
das por essa “identidade de grupo”, que as transformou
em “Condessa X”, “Mademoiselle Y”, “Baronesa Z” e que
acabou por desvalorizá-las, o resultado é que tanto a
vida quanto o trabalho literário dessas mulheres ficaram
quase esquecidos [...]” (VENTURA; LESLIE, 2019, p. 11)

Como forma de trazer à lume a identidade de algumas dessas autoras,


apresentamos a seguir uma listagem rudimentar, organizada pela ordem
ascendente dos anos de nascimento: Madeleine de Scudéry (1607-1701),
Madeleine Pioche de La Vergne, a condessa de La Fayette (1634-1693), Ma-
rie-Catherine Le Jumel de Barneville, a condessa d’Aulnoy (1651-1705), Char-
lotte-Rose de Caumont de La Force, a mademoiselle de La Force (1654-1724),
Marie-Jeanne L’Héritier de Villandon, a mademoiselle L’Héritier (1664-1734),
Henriette-Julie de Castelnau de Murat, a condessa de Murat (1670-1716), Ga-
brielle-Suzanne Barbot de Villeneuve, a madame de Villeneuve (1695-1755),
Louise de Bossigny, condessa d’Auneuil (16??-1700), Marguerite de Lubert ou
Marie-Madeleine de Lubert (1702-1785), Jeanne-Marie Leprince de Beaumont
(1711-1780) e Catherine Caillot, a madame de Lintot (1728-1816).
Apesar do protagonismo de Perrault, a crítica literária especializada
atribui a Marie-Catherine Le Jumel de Barneville, baronesa (ou condessa)
d’Aulnoy, a cunhagem do termo “conto de fadas” (contes de feés). Zipes
(2012) atenta para o fato de que nenhum escritor teria utilizado o termo
antes de 1697, ano de publicação da primeira coleção de contos de Mme.
d’Aulnoy, Os contos de fadas (Les contes des fées). O autor indica que o termo
“fairy tale” só teria se popularizado em língua inglesa na segunda metade
do século XVIII, anos após a primeira tradução dos contos de d’Aulnoy, inti-
tulada Tales of the Fairies, publicada em 1707. Backscheider (2013) também
outorga a Mme. d’Aulnoy a autoria do termo, indicando que a publicação

543
do primeiro conto de fadas literário de que se tem notícia ocorreu em 1690,
com A Ilha da Felicidade (L’Île de la félicité), um dos episódios da primeira
novela publicada pela autora, História de Hipólito, conde de Duglas (Histoire
d’Hypolite, comte de Duglas). Para Backscheider, o referido conto é inova-
dor por ser “mais longo que os contos de fadas populares, mais complexo,
estilisticamente distinto, altamente intertextual, repleto de plot twists” e
“originalmente publicado como uma narrativa interpolada e tematicamente
enriquecedora” (BACKSCHEIDER, 2013, p. 83). Schacker (2015) corrobora a
cunhagem do termo e afirma que os contos de Mme. d’Aulnoy podem parecer
demasiadamente longos e complexos aos olhos dos leitores modernos, mas
que ajudaram a definir o que seria um “conto de fadas” à época: narrativa de
“paisagem fantástica” na qual “as personagens enfrentam desafios sociais”,
além de ser escrito como “entretenimento adulto e provocação intelectual”
(SCHACKER, 2015, p. 41). Donald Haase (2008), autor do The Greenwood
Encyclopedia of Folktales and Fairy Tales, obra de referência nos estudos de
literatura infantil e juvenil, também localiza a origem do termo “conto de
fadas” em d’Aulnoy e ratifica o status de L’Île de la félicité como o primeiro
conto de fadas literário. Em Nelly Novaes Coelho temos a informação de que
Na mesma época em que Charles Perrault começa-
va a publicar seus Contos, também em Paris, a jovem
baronesa Marie d’Aulnoy (de vida extremamente aven-
turosa e cheia de escândalos) põe em moda os ‘contos
de fadas’. Mantendo um Salão mundano, bastante fa-
moso, ela estreia em 1690 com um romance ‘precioso’,
aventuresco, bem ao estilo patético em moda, História de
Hipólito, conde de Douglas [...]. Cinco anos depois, inicia
a publicação de oito volumes de contos maravilhosos
que, desafiando o racionalismo clássico e o ‘modelo dos
antigos grecolatinos’ lançavam a ‘moda das fadas’ entre
os adultos. Moda que vai durar anos. É entre 1696 e 1698
que Mme. d’Aulnoy publica: Contos de fadas; Novos contos
de fadas ou As fadas em moda; Ilustres fadas; etc., livros
que lançam estórias hoje célebres: ‘O Pássaro Azul’, ‘A
Princesa dos cabelos de ouro’, ‘O Ramo de Ouro’, etc. Há
centenas de outros que não se divulgaram com o mesmo
sucesso e que são narrativas em estilo ‘precioso’ (rebus-

544
cado e extravagante) que imperava nos Salões da moda.
(COELHO, 1985, p. 75-76, grifos nossos)

Cabe ressaltar, a respeito das considerações acima, que um dos títulos


mencionados, Ilustres fadas, não faz parte do rol de obras de Marie-Catherine
d’Aulnoy. Por muito tempo a coletânea foi erroneamente a ela atribuída, mas
no prefácio de O Conde de Warwick (Le Comte de Warwick), de 1704, Mme.
d’Aulnoy lista as obras que são de sua autoria, desde já preocupada com as
atribuições enganosas que poderiam vir a fazer.
Parte dos enganos se deve pelo fato dessas mulheres serem conhecidas
sobretudo pelos títulos que carregavam; em algumas publicações, por exem-
plo, vê-se somente a inscrição “M. A***” e derivados na indicação da autoria
dos livros, o que certamente abre margem para muitos equívocos.
David J. Adams aponta que durante o século XVIII, a popularidade das
obras de Marie-Catherine d’Aulnoy excedeu a de Charles Perrault. Conside-
rando apenas o referido século, o professor da área de estudos franceses da
Universidade de Manchester indica que o livro Contes de fées, originalmente
impresso entre 1696 e 1698, recebeu reimpressões em 1708, 1710, 1725, 1731,
1742, 1749, 1757, 1774, 1782 e 1785. Já o segundo livro de contos da autora,
Contos novos ou a moda das fadas (Contes nouveaux ou les fées à la mode),
de 1698, foi reimpresso em 1711, 1715, 1719, 1725, 1735, 1742 e 1754. Segundo o
pesquisador, “as traduções dos contos de fadas de Mme. d’Aulnoy foram mais
populares na Inglaterra durante o século XVIII do que os de qualquer outro
autor francês, inclusive Perrault” (ADAMS, 1994, p. 5).
Adams também postula que, assim como muitos outros literatos da épo-
ca, Marie-Catherine d’Aulnoy não se limitou a um único gênero. Escreveu,
além dos contos de fadas, romances de viagem e romances históricos, como
Memórias da corte de Espanha (Mémoires de la cour d’Espagne), de 1690, e
novelas como História de Jean de Bourbon, Príncipe de Carency (Histoire de
Jean de Bourbon, Prince de Carency), de 1691. O estudioso lamenta, porém,
que apesar das evidências bibliográficas atestarem a popularidade de suas
obras e a manutenção de um público leitor, foram poucas as análises crí-
ticas que fizeram boas recomendações das obras da autora, as quais foram
praticamente ignoradas tanto pela crítica quanto pela historiografia literária

545
francesa de então (ADAMS, 1994, p. 7). Finalmente, o professor sugere que
parte do desdém pelas obras de Mme. d’Aulnoy pode ser explicado pelo inte-
resse exclusivo da autora em histórias de príncipes, reis e rainhas, bem como
pela presença altamente recorrente de descrições do modo de vida cortesão.
Além disso, declara que a fantasia inventiva de caráter atemporal típica do
conto de fadas encontrava resistência no que diz respeito à noção clássica
e racional de “tempo” narrativo cultuada pela teoria literária vigente, res-
saltando que o prestígio do conto de fadas entre os críticos e historiógrafos
franceses do século XVIII é inversamente proporcional ao seu êxito edito-
rial. Nas palavras do acadêmico, “durante o Iluminismo, os contos de fadas
foram tratados com um desdém intelectual que contrastou fortemente com
seu sucesso comercial” (ADAMS, 1994, p. 6).
Em termos de pesquisa nacional, temos em Nelly Novaes Coelho o pionei-
rismo na abordagem dessa produção. A partir das considerações da profes-
sora e pesquisadora brasileira destacaremos a pertinência dos qualificativos
por ela utilizados para descrever essa literatura, tendo por base a obra de
Marie-Catherine d’Aulnoy.
As ‘preciosas’ eram as grandes damas cultas, em cujos
salões se discutia ou se divulgava a produção literária da
época. O triunfo do Preciosismo na França correspondeu
a um fenômeno europeu. Na Inglaterra, com Euphues
(1579), John Lily lança o Euphuismo, caracterizado pelo
maneirismo da forma, engenhosidade e erudição. Na Itá-
lia é o Marinismo, iniciado pela poesia de Adone (1623)
de Marini, cavalheiro que vivia na corte de Luis XII, —
obra vazia de pensamento, mas com grande artifício ver-
bal, imagens, antíteses ou conceitos complexíssimos. Na
Espanha surge um poeta autêntico, Gôngora, que com
sua Ode sobre a conquista de Larache (1610) divulga o
Gongorismo ou Cultismo que se define pela manipulação
das formas e pela obscuridade voluntária do estilo. O
Cultismo acaba se expandindo em Conceptismo, quando
a densidade aristocrática da forma se une à pesquisa e à
sutileza do pensamento. De qualquer forma, na França, o
Preciosismo, mais do que uma tendência literária, é um
fenômeno social (COELHO, 1985, p. 84)

546
Sobre o panorama literário da França de Luís XIV, Nelly destaca que
“instaura-se na primeira metade do século, em toda sua plenitude, o racio-
nalismo na literatura”, ao passo em que no vetor oposto, o de resistência ao
racionalismo, duas formas literárias se manifestaram, o romance libertino e
o romance precioso, sendo que esse último teve “muito mais difusão” (COE-
LHO, 1985, p. 57). Ao descrever as características típicas do romance precio-
so, a pesquisadora afirma que se tratava de “uma prosa narrativa caudalosa,
exuberante, fantasista que, em tudo, contrastava com a alta disciplina que
presidia aos dois gêneros ‘nobres’ da época: o teatro e a poesia”, arrematan-
do com a informação de que o romance precioso representaria o avesso da
alta literatura encontrada na poesia e no teatro. No romance precioso não
haveria “nenhum ‘espírito de ordem’, nenhuma ‘objetividade’, nenhum ‘racio-
nalismo’ organizador”, e sim o extremo oposto, “o excessivo, o tumultuado, o
inverossímil, a fantasia mais exuberante” (COELHO, 1985, p. 57, grifos nossos).
Por se tratar de um tipo de efabulação em que o enredo está calcado na
descrição de aventuras sentimentais e atos heroicos da paixão, nos romances
preciosos, “verdadeiros contos de fadas para adultos”, o amor “suporta mil
provas para dar testemunho de sua verdade” (COELHO, 1991, p. 87), num
contexto em que “a valentia cavaleiresca cede lugar ao romanesco” e “a fan-
tasia desafia a lógica” (COELHO, 1991, p. 65).
Essa rápida, mas substancial revisitação dos apontamentos de Nelly
Novaes Coelho, nos oferece uma oportuna ferramenta metodológica para
analisar parte dos contos de fadas de Marie-Catherine d’Aulnoy em termos de
efabulação, cotejando-os com os adjetivos grifados, quais sejam, “aventuresco”,
“patético”, “extravagante”, “fantasista”, e “inverossímil”. Serão apresentados
trechos dos contos já traduzidos pelo autor do presente artigo. Destaca-se de
antemão que todos os qualificativos supracitados se mostram perfeitamente
adequados ao teor do corpus em questão. No entanto, para cada um deles será
atribuído apenas um trecho representativo a fim de regular a extensão deste
estudo. Quanto à referência bibliográfica, será citada a obra em que o conto
foi publicado pela primeira vez. Como o processo de tradução envolveu mais
de uma fonte escrita, visto que algumas delas contêm gralhas e lacunas, bem
como a ausência completa das moralidades e páginas perdidas, a indicação
das páginas se torna inviável.

547
(1) Aventuresco: Lançar-se ao risco e ao acaso, ou seja, ficar à mercê
da “ventura”, da sorte ou destino, é, sem dúvida, uma atitude tipicamente
tomada pelos protagonistas de contos de fadas, que se lançam despreocu-
padamente em jornadas repletas de percalços na tentativa de alcançar um
êxito sobretudo amoroso. A respeito da temática matrimonial, Nelly Novaes
Coelho ressalta algumas constantes que serviriam para delinear o que seria
um conto de fadas em termos estilísticos:
Com ou sem a presença de fadas (mas sempre com
o maravilhoso), seus argumentos desenvolvem-se den-
tro da magia feérica (reis, rainhas, príncipes, princesas,
fadas, gênios, bruxas, gigantes, anões, objetos mágicos,
metamorfoses, tempo e espaço fora da realidade conhe-
cida etc.) e têm como eixo gerador uma problemática
existencial. Ou melhor, têm como núcleo problemático
a realização essencial do herói ou da heroína, realiza-
ção que, via de regra, está visceralmente ligada à união
homem-mulher. A efabulação básica do conto de fadas
expressa os obstáculos ou provas que precisavam ser
vencidas, como um verdadeiro ritual iniciático, para
que o herói alcance sua auto-realização existencial, seja
pelo encontro de seu verdadeiro eu, seja pelo encontro
da princesa, que encarna o ideal a ser alcançado. [...]
Via de regra, um encantamento, uma metamorfose é o
ponto de partida para a aventura da busca.” (COELHO,
1991, p. 12-13)

Em A Ilha da Felicidade (L’Île de la Félicité), primeiro conto de fadas lite-


rário de que se tem notícia, o jovem príncipe russo Adolfo decide enfrentar
os perigos de uma viagem aérea sobre as asas do deus-vento Zéfiro para co-
nhecer Felicidade, uma princesa por quem se apaixonara somente de ouvir
falar, a qual habitava em uma ilha mítica, inacessível para os homens, na
qual ele só poderia chegar com vida com um auxílio divino.
— O quanto eu adoraria vê-la! — dizia Adolfo. — É
algo tão absolutamente impossível que nem com o vosso
auxílio eu seria capaz de conseguir?

548
Zéfiro afirmou-lhe que a jornada seria muito peri-
gosa, mas que se ele tivesse coragem o bastante para
obedecer aos seu comandos, poderia haver uma maneira:
colocá-lo-ia sobre suas asas e o carregaria pelos vastos
espaços etéreos.

— Possuo um manto mágico que doarei a vós — ele


prosseguiu. — Quando vesti-lo do lado verde, sereis invi-
sível. Pessoa alguma vos enxergará e essa é uma medida
indispensável para a conservação da vossa vida, pois, não
importa o quão bravo sejais, caso os guardiões da ilha,
que são monstros terríveis, virem-vos, logo sucumbireis,
e penosos males vos acometerão. (AULNOY, 1690)

(2) Patético: a aplicação do termo “patético” para qualificar o estilo dos


contos de fadas de Marie-Catherine d’Aulnoy tem sua validade garantida
tanto se entendido positivamente, como “aquilo que comove”, que suscita
sentimentos, paixões, afetos (pathos), quanto negativamente, como “aquilo
que nos parece ridículo” ou deveras irracional. As drásticas atitudes dos
amigos da princesa Maravilhosa em O Carneiro (Le Mouton) demonstram
bem a pertinência desse adjetivo. A pequena moura Patypata e o macaquinho
Travesso entregaram suas vidas espontaneamente na tentativa de salvar a
soberana. Os horrendos suicídios, porém, não resultaram em nada.
Por fim, Travesso, mais audacioso que os outros, su-
biu no topo de uma árvore e se jogou de cabeça, suici-
dando-se. Por mais que lamentasse, a princesa consentiu
que o capitão dos guardas arrancasse sua língua, afinal
ele já estava morto. Mas ela era tão pequena (pois tudo
nele não era maior que um punho) que eles julgaram com
grande tristeza que o rei não seria ludibriado.

— Céus! Meu querido macaquinho, eis que estás


morto sem que a tua morte coloque minha vida em se-
gurança — lamentou a princesa.

— É para mim que essa honra está reservada! —


Interrompeu a moura.

549
E no mesmo instante ela pegou a faca usada em Tra-
vesso e enfiou na própria garganta. O capitão dos guar-
das quis pegar a sua língua, mas ela era muito escura
e ele não se atreveria a tentar ludibriar o rei com ela.
(AULNOY, 1698[1])

(3) Extravagante: tal qual o que ocorre com o adjetivo “patético”, as de-
finições de extravagância podem ser divididas em duas categorias: a literal
e a pejorativa. O sentido primeiro do qualificativo “extravagante” denota o
que é incomum, singular, fora da regra. Pejorativamente, no entanto, pode-
mos compreender o sentido de “extravagância” como sendo o de frivolidade,
excessividade despropositada, capricho e disparate. Seja como for, todos os
pretensos sinônimos levantados se adequam à adjetivação do corpus em
análise, visto que a singularidade de inúmeras passagens se dá, em alguns
casos, pelas vias do excesso, do exagero. Em Graciosa e Percinê (Gracieuse et
Percinet), a duquesa Rabuja mostra-se transtornada com o suposto desapa-
recimento de seu vinho, isso porque, no lugar da bebida, ela encontra jóias
preciosas nos tonéis.
Passou para o terceiro barril e o golpeou com o mar-
telinho, toc-toc, ao que verteu uma enxurrada de pérolas
e diamantes que cobriram o chão.

— Ah! — ela bradou. — Não compreendo; meu se-


nhor, alguém deve ter roubado meu bom vinho e colo-
cado essas bagatelas no lugar.

—Bagatelas? — disse o rei, muito atônito. — Céus,


madame Rabuja! Chamais isso de bagatelas? É o su-
ficiente para comprar dez grandes reinos como Paris!
(AULNOY, 1698[1])

(4) Fantasista: Denomina-se fantasia tudo aquilo que está de algum modo
desconexo do que se entende por “mundo real”, ou seja, aquilo que só exis-
te nos domínios da imaginação. Esse qualificativo, usado por Nelly Novaes
Coelho para descrever o romance precioso (ou conto de fadas para adultos),
difere do termo “fantasioso” na medida em que este denota qualquer formu-

550
lação imaginativa, enquanto “fantasista” pressupõe a qualidade de algo ou
de alguém deliberadamente utopista, uma espécie de adicto pelo onírico,
que se deixa contaminar pelos arroubos mais desenfreados da imaginação.
No supracitado conto O Carneiro (Le Mouton), a fissura entre o real e o ima-
ginário se mostra conflituosa até mesmo no interior da ficção. A princesa
Maravilhosa, dona do cachorrinho e do macaco falante que se suicidaram,
mostra-se surpresa com o fato do Rei Carneiro falar, ao que é repreendida
pelo próprio:
Maravilhosa ficou tão espantada que permaneceu
praticamente imóvel. Tentava avistar o pastor daquele
rebanho tão extraordinário quando o mais belo carneiro
foi até ela, pulando e saltitando.

— Aproximai-vos, divina princesa — disse-lhe ele.


— Não temais animais tão doces e pacíficos como nós.
— Que prodígio! Carneiros que falam!
— Ah, madame — retorquiu ele. — Vosso macaco e
vosso cãozinho falavam muito bem. Haveria, pois, motivo
para tanta surpresa? (AULNOY, 1698[1])

(5) Inverossímil: no cruzamento entre causa e consequência, real e imagi-


nário e sobretudo entre passado, presente e futuro, nem sempre se estabelece
uma relação que se assemelha à verdade, ou que corresponda integralmente
ao que se espera de uma verdade empírica que tem como prova real aquilo
que pode ser atestado pela experiência no mundo sensível. Chama-se de inve-
rossímil o inacreditável, aquilo que não parece verdadeiro ou que é difícil de
acreditar. O emprego desse adjetivo para qualificar os contos de fadas precio-
sos é acertado e deveras categórico, visto que o enredo de inúmeras narrativas
pode parecer potencialmente desmoderado até mesmo no algures atemporal
onde se encontra o mundo encantado das fadas, onde tudo pode acontecer.
Em A Rã Benevolente (La Grenouille Benfaisant), duas ocorrências chamam a
atenção nesse quesito: a presença de uma rã meio-fada cujos poderes se con-
centram em um chapeuzinho de rosas e o tempo gasto pelo rei para resgatar
provisoriamente sua filha e sua esposa que estavam cativas em um castelo de
cristal localizado no centro de um lago de mercúrio nas entranhas da terra.

551
— Entendo que vários malfeitores juntos não se aju-
dam a melhorar — afirmou a rainha. — Mas no vosso
caso, minha comadre Rã, que fazeis aqui?

— A curiosidade me obrigou a vir — ela retorquiu.


— Sou meio-fada, meu poder é limitado em certas coi-
sas e fortemente eficaz em outras. Se a fada Leona me
reconhecesse nessa forma, ela me mataria.

— Como é possível que sendo fada ou meio-fada um


corvo estivesse prestes a vos devorar? — disse a rainha.
— Em duas palavras compreendereis — respondeu
a Rã. — Quando estou com meu chapeuzinho de rosas
na cabeça, no qual meus maiores poderes residem, nada
tenho a temer. Infelizmente, porém, eu o deixei cair no
pântano, foi quando aquele maldito corvo precipitou-se
sobre mim.

[...] O rei correu ao longo das margens do lago; po-


rém, quando pensava estar prestes a adentrar o palá-
cio transparente, ele se afastava com uma velocidade
espantosa, de modo que suas esperanças sempre eram
frustradas [...] Foi preciso revestir-se de uma grande
perseverança. Ele passou mais tempo ali do que como rei
no mundo comum. [...] Três anos se passaram sem que
o rei obtivesse avanço algum. (AULNOY, 1698[2], p. 151)

As aventuras disparatadas, extravagantes, patéticas, fantasistas e inveros-


símeis dos protagonistas dos contos de fadas preciosos de Marie-Catherine Le
Jumel de Barneville, a madame d’Aulnoy, estão em consonância com o que
foi apregoado por Nelly Novaes Coelho em todas as suas menções ao movi-
mento do preciosismo no contexto dos salões literários franceses liderados
por mulheres. As narrativas exageradas e burlescas de matéria feérica que
compõem o romance precioso são apontadas por Nelly e pela crítica em ge-
ral como “ponto de partida do gênero ‘romance’, a ser criado pela civilização
burguesa a partir do século XVIII” (COELHO, 1986, p. 149-150), visto que,
diferentemente do conto de fadas popular, os contos de fadas literários de

552
autoria feminina não costumam ser lineares do ponto de vista do progresso
do enredo, da introdução ao clímax; pelo contrário, muitos deles apresen-
tam inúmeras reviravoltas (plot twists) e mais de um ponto alto de tensão.
Localizados em uma posição intersticial entre a estrutura do conto tra-
dicional e a estrutura canônica do romance do século XIX, o conto de fadas
precioso (termo cunhado pelo autor deste estudo para fazer referência a
esse tipo peculiar de narrativa) certamente encantará cada vez mais leitores
afeitos às desinibições da fantasia, já que o processo de redescoberta desse
rol de autoras esquecidas se encontra em pleno curso.

553
Notas

1 No original: “La belle Antiquité fut toujours venerable, mais je ne crus jamais
qu’elle fust adorable. Je voy les Anciens sans ployer les genoux, ils sont grands,
il est vray, mais hommes comme nous; […] Platon qui fut divin du temps de nos
ayeux, commence à devenir quelquefois ennuyeux”.

554
Referências

ADAMS, D. J. The ‘Contes de Fées’ of Madame d’Aulnoy: Reputation and Re-


-evaluation. Bulletin of the John Rylands University Library of Man-
chester 76, no. 3 (autumn 1994): 5-22.
AULNOY, Marie-Catherine Le Jumel de Barneville. Contes de fées. 4 vol.
Paris: Barbin, 1698[1].
AULNOY, Marie-Catherine Le Jumel de Barneville. Histoire d’Hypolite, Comte
de Duglas. Paris: Sevestre, 1690.
AULNOY, Marie-Catherine Le Jumel de Barneville. Nouveaux Contes de fées
ou Les fées à la mode. 4 vol. Paris: Vve. de T. Girard, 1698[2].
BACKSCHEIDER, Paula R. Elizabeth Singer Rowe and the Development of the
English Novel. Baltimore: Johns Hopkins University, 2013.
COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da literatura infantil-juvenil: das
origens indoeuropéias ao Brasil contemporâneo. 3ª ed. ref. e amp. São
Paulo: Quíron, 1985.
COELHO, Nelly Novaes. O Conto de Fadas. 2ª ed. São Paulo: Editora Ática, 1991.
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São Paulo: Paulinas, 2016.
HAASE, Donald. The Greenwood Encyclopedia of Folktales and Fairy Tales:
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PERRAULT, Charles. Le Siecle de Louis le Grande. Paris: 1687. Disponível em:
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08 maio 2020.
SCHACKER, Jennifer. Feathers, Paws, Fins, and Claws: Fairy-Tale Beasts.
Detroit: Wayne State University Press, 2015.
VENTURA, Susana; LESLIE, Cassia. Na Companhia de Bela: Contos de fadas
por autoras dos séculos XVII e XVIII. Londrina: Florear Livros, 2019.
ZIPES, Jack. The Irresistible Fairy Tale: The Cultural and Social History of a
Genre. Princeton: Princeton University Press, 2012.

555
q
Matrix, uma guerra de tempos
Felipe Leonardo Ferreira
Bruno Anselmi Matangrano

Introdução: História e cinema

Qualquer produção artística se dá em determinado contexto histórico que,


dentro de certos limites, serve-lhe de substrato influenciador em algum grau,
ao passo que também é um agente ativo nessa mesma realidade. Inversamen-
te, as obras literárias e artísticas sempre foram utilizadas como fontes para
se entender determinada época, obrigando o pesquisador a aplicar as devidas
ferramentas críticas ao analisá-las. Muito do que se sabe, por exemplo, dos cos-
tumes do século XIX ou da vida de corte do período medieval foi depreendido
de obras literárias, dramatúrgicas e pictóricas, onde a vida de cada período
transparece, para além das metáforas, sugestões, invenções e poeticidade. Por
isso, com o advento da sétima arte no século XX, o cinema enquanto produto da
criação humana também resguarda vestígios do contexto em que se produziu e
pode traduzir demandas sociais de seu tempo, como o defende Mônica Kornis:
Não é possível ignorar o impacto causado pela cria-
ção e difusão do cinema e outros meios de comunica-
ção de massa na sociedade do século XX. Como objeto
industrial, essencialmente, reprodutível e destinado às
massas, o cinema revolucionou o sistema de arte, da
produção à difusão (1992, p. 237).

556
Kornis (idem, pp. 239-241) demonstra ainda em seu artigo, no qual dialoga
com vários outros estudiosos, que há diferentes visões sobre como trabalhar
um filme enquanto fonte histórica. Segundo ela, Michel Vovelle, por exemplo,
defende que a obra cinematográfica pode ser usada como documento, pois
articula os ambientes histórico e social em que foi produzida com elementos
específicos desse tipo de expressão artística, como a alteração da realidade
por meio da imagem, palavra, som e movimento. Já José Werneck da Silva
alerta sobre a manipulação ideológica prévia da imagem a ser exibida, situa-
ção que deve ser levada em conta pelos críticos e historiadores. Jean-Claude
Bernadet, por sua vez, enfatiza a importância da análise do filme enquanto
linguagem, do papel do cinema enquanto agente social e dos aspectos inter-
nos e externos à sua produção, uma vez que se trata de uma das mídias de
maior alcance e popularidade.
Outra fonte de Kornis (idem, pp. 242-244) é Marc Ferro que recusa a
ideia de o cinema ser um reflexo absoluto do real, mas afirma que, ainda
assim, todo filme pode ser objeto de análise do historiador, pois mesmo sem
retratar o real, ainda é capaz de ecoá-lo ou de propor uma reflexão sobre
ele. Nesse sentido, a ficção ainda poderia abrir caminho para uma história
psicossocial, uma vez que evoca o imaginário, uma das forças dirigentes da
atividade humana. Kornis salienta, ainda a partir de Ferro, que a obra cine-
matográfica é agente e produto histórico, não politicamente neutro e poderia
ajudar a entender crenças, intenções e a dimensão do imaginário das pessoas.
Ao historiador atento seria possível olhar o não visível, o que ultrapassa os
objetivos específicos do idealizador, mesmo que de forma não consciente.
Aquilo mostrado em um filme não reproduz fielmente a realidade, mas
a reconstrói a partir de uma linguagem própria, produzida em um contexto
histórico singular. Como quaisquer documentos, não são meros reflexos de
sua época. Assim a obra cinematográfica, à sua maneira, também cria uma
forma de conceber o tempo; o filme tem uma duração limitada, o enredo
pode conter temporalidades narrativas diferentes e mesmo conflitantes, nem
sempre estabelecendo uma relação de predominância, o que não precisa ser
um problema para a apreciação e o entendimento do filme.
Assim como a literatura, o cinema apresenta a possibilidade de registro
da mensagem (OLIVEIRA, 2006, p. 32), além de demandar um esforço para

557
convencer sobre uma dada realidade como possível dentro dos limites da
própria obra; o espectador precisa sentir que a narrativa é verossimilhante
com o universo e as regras que estabelece, ao mesmo tempo em que consegue
se ligar a elementos comuns do mundo externo. O rompimento dessa rela-
ção poderia resultar no fracasso do trabalho. Tendo em vista esse promissor
diálogo entre o cinema e a história, propomos a seguir uma análise do filme
Matrix, detendo-nos nos conflitos e nas angústias do conturbado fim do sé-
culo XX, bem como na forma como a obra audiovisual os reinterpretou e os
traduziu para o contexto metafórico de uma realidade cyberpunk.

Matrix e seu contexto

Matrix1 foi produzido no final do século XX, lançado em 1999, escrito e


dirigido por Andy e Larry Wachowski, hoje Lilly e Lana Wachowski. A obra
renovou o gênero de ficção científica no cinema, reunindo elementos de li-
teratura fantástica, realidade virtual, filosofia pós-moderna e artes marciais,
em diálogo com a literatura cyberpunk produzida nos anos 1980 e 1990, no-
tadamente, com os livros do escritor norte-americano William Gibson, cujo
romance Neuromancer (1984) prenuncia a ideia de realidade(s) artificial(is)
e introduz na linguagem corrente o termo “ciberespaço”2.
De forma sucinta, Matrix é uma narrativa sobre o conflito entre pessoas
e máquinas com inteligência artificial e consciência própria, pelo direito dos
primeiros se libertarem do jugo dos segundos e viverem suas existências fora
da realidade virtual criada para mantê-los estáticos servindo como baterias.
Nesse contexto, o espectador é apresentado a Thomas A. Anderson, mais
conhecido como Neo, um programador de uma respeitável empresa de TI
que também atua clandestinamente como hacker. Neo começa então a ques-
tionar sua própria realidade – na verdade, uma simulação computadorizada
–, ao perceber falhas no sistema e tentar entender o que é a Matrix, termo
com o qual se depara em rede, mas nunca consegue decodificar. Aos pou-
cos, no entanto, aquela se revela, ao longo da narrativa, um mundo virtual,
um ciberespaço nos termos gibsonianos, uma “ilusão digital metadiegética,

558
embora muito aperfeiçoada; cópia quase perfeita do mundo diegético”, nos
termos de Guy Thillier. A “real natureza desse meta-universo, reduzido aqui
à arquitetura invisível que subentende a ilusão”, captamos apenas através de
“uma série de linhas de código informático” (2011, p. 8) em tons de verde,
usada como recurso para advertir o espectador da mudança de realidades.
Percebendo o potencial de Thomas Anderson, Trinity e Morpheus (que,
a princípio, Neo pensa serem apenas outros hackers) o desconectam da Ma-
trix, isto é, o desligam do aparelho de realidade virtual programado por seres
tecnológicos sencientes, apresentando-o ao mundo decrépito e distópico de
cerca de 2199, época em que as máquinas dominam o mundo e os humanos
sobreviventes se escondem numa cidade subterrânea. Ele descobre que há
uma contenda secular entre homens e máquinas traduzida pela diferença
na percepção do tempo, visto de forma cíclica pelas máquinas, e linear pelos
humanos, quando estes, dentro de seu limite orgânico, escolhem viver fora
dos casulos tecnológicos que parasitam suas energias, rebelando-se ante à
imposta responsabilidade de manutenção da eternidade dos robôs.
Em meio a isso, Morpheus revela a Neo que uma profecia o apontava
como o salvador da humanidade, o “Escolhido”, aquele que finalmente os
conseguiria libertar do jugo das máquinas. Então, apresenta-se como parte
de uma coalisão rebelde que tenta minar o poder das máquinas, encontran-
do humanos com potencial intelectivo o bastante para os desconectar da
Matrix e somar forças à resistência. De sua nave, ele e sua tripulação, con-
seguem acessar a Matrix por um sinal pirata e, assim, tentar interceptá-la3.
A partir desse ponto, a trama se desenvolve em uma grande guerra entre
seres biológicos e tecnológicos (estes, divididos em pelo menos três grupos:
as máquinas criadoras da Matrix, o vírus nomeado Sr. Smith que se rebela
tanto contra humanos quanto contra a própria Matrix e, ainda, programas
solidários à raça humana). Essa contenda interespécies se estende de forma
transmidiática pelas continuações Matrix Reloaded e Matrix Revolutions,
ambos de 2003, bem como em outros produtos derivados, como histórias
em quadrinhos, curtas de animação e jogos eletrônicos.
Nesse contexto, há muitos elementos do chamado “cinema pós-moderno”
que podemos perceber em Matrix, como a aceitação fetichista da tecnologia,
o virtuosismo e a utilização de todos os recursos técnicos ou estilísticos dis-

559
poníveis. Pucci Junior (1996, pp. 214-217) ainda menciona a falta de esperan-
ças num futuro melhor após a queda ou a fragilização das grandes utopias,
tanto do socialismo, como do progresso tecnocientífico positivista, ou ainda
das propostas modernizadoras, para citar apenas alguns exemplos. Essa des-
crença e desconfiança também pode ser notada na forma como a inteligência
artificial e as máquinas aparecem em Matrix, não como redentoras ou inau-
guradoras de uma nova época marcada pela libertação da humanidade de
diversas tarefas extenuantes, facilitação e melhoras nas condições de vida,
mas, sim, exatamente pelo seu contrário, pela submissão, pela depreciação
da vivência e pelo aprisionamento físico e mental.
A respeito do contexto cyberpunk, em sua obra, A Condição Pós-Moderna,
David Harvey (1992, pp. 46-49) percebe em romances contemporâneos uma
dissolução da fronteira entre a literatura dita “realista” e àquela das obras de
ficção científica, pois em ambas passamos a ver como questão central a con-
fusão das personagens em relação ao mundo que as cerca – numa substituição
da trama aventuresca pela existencialista, focada nas questões ontológicas
do eu e não nas peripécias de uma ou mais personagens4. Do mesmo modo,
altera-se a noção de espaço onde as histórias se passam, o qual se torna
cada vez mais “impossível” e “fragmentário”, segundo expressão recuperada
de Michel Foucault a respeito do sujeito pós-moderno. Em tal contexto, as
“personagens já não contemplam como desmascarar um mistério central,
sendo em vez disso forçadas a perguntar ‘Que mundo é este? Que se deve
fazer nele? Qual dos meus eus deve fazê-lo?’” (idem, 1992, p.52).
Neo é um exemplo desse tipo de personagem, enquanto preso na Matrix.
Subordinado àquela ilusão virtual e a uma temporalidade específica, revela
que muitas vezes sente um certo desconforto, uma dúvida que ele traduz
no diálogo com um cliente quando entrega um trabalho, logo no início da
narrativa: “Você já se sentiu como... se não soubesse se está acordado ou so-
nhando?” (8’55”-9’02”)5. Ele não se percebe plenamente integrado nas malhas
daquela realidade, mesmo nos contextos teoricamente de menor tensão, como
em uma cena passada em uma boate, onde a sensação de estranhamento e
deslocamento, ao contrário do que se esperaria numa tal circunstância, é
notória. Além disso, Neo sequer dorme direito, pois sua mente, na prática,
nunca se desconecta do simulador digital onde ele vive.

560
Diante desse contexto, todos esses questionamentos e mal-estar experi-
mentados por Neo podem ser lidos como um possível eco da angústia das
pessoas no fim do segundo milênio, quando um sentimento de incerteza de
ordem variada se alastrava (medo de profecias apocalípticas, do dito “bug
do milênio”, da instabilidade política e econômica do mundo etc.), revelan-
do, por sua vez, o filme Matrix, ao mesmo tempo, como uma metáfora que
explica sua época e um produto derivado de seu próprio tempo.
Tudo isso pode ser ilustrado, por exemplo, pelo diálogo entre as
personagens Trinity e Neo sobre a noção de “identidade”, uma vez que este
adquire a consciência de que tudo aquilo supostamente vivido por ele não se
passava de uma simulação virtual em um programa de computador ao qual sua
mente estava conectada, sem seu consentimento:
Neo: Tenho essas lembranças da minha vida. Nenhu-
ma delas aconteceu. O que isso significa?
Trinity: A Matrix não pode lhe dizer quem você é.
Neo: Mas um oráculo pode?
Trinity: Isso é diferente (1°08’35” – 1°08’49”).

Esse trecho talvez evoque uma cena bem mais recente do último livro da
saga Harry Potter, de J. K. Rowling, que pode auxiliar como chave interpre-
tativa para toda a trama de Matrix. Trata-se de uma das cenas finais do livro,
quando Harry pergunta a Dumbledore: “Isso é real? Ou esteve acontecendo
apenas em minha mente?”. Ao que o sábio professor responde: “Claro que
está acontecendo em sua mente, Harry, mas por que isto significaria que não
é real?” (2007, pp. 561-562). Ora, esse trecho não traduz o mesmo sentimen-
to de Neo ante a aparente inutilidade de tudo aquilo que viveu? Contudo, a
resposta de Dumbledore explica que aquilo passado no espírito não deixa
de ter impacto e validade na dita realidade.
No caso de Matrix, as experiências de Neo no ciberespaço o formaram
como pessoa, todos os seus gostos, ideais e opiniões se formaram naquela
falsa realidade. Sua personalidade se criou ali. É graças às experiências vir-
tuais que conseguiu ver para além da ilusão criada pelo programa e começou
a questionar os limites do “real”. Ao mesmo tempo, é sabido que, quando
uma pessoa se fere na Matrix, o ferimento de alguma forma se manifesta no

561
corpo físico e, quando alguém morre, o mesmo acontece na vida real, o que
dá mais ênfase na validade das experiências vividas no programa e atenua
os limites entre o virtual e o analógico.
A validade das experiências no mundo virtual também pode ser vista na
cena em que Neo aprende as diversas artes marciais e as pratica com Mor-
pheus, ou seja, elas o modificaram enquanto indivíduo e o ensinaram novas
habilidades. Esse artifício é recorrente e outros personagens fazem uso dele
para suprirem as demandas extraordinárias de suas missões, como quando
Trinity requisita a perícia em pilotagem de helicóptero no resgate de Morpheus.
Vale lembrar, nesse sentido, que o treinamento de verdadeiros pilotos
de aeronaves também utiliza simuladores de realidade virtual para forma-
ção e aquisição de conhecimento e nem por isso deixa de ser visto como
eficientes. Mais do que isso, pode-se ainda lembrar que a própria apreensão
de estímulos no corpo humano é mediada pelos sentidos – olfato, audição,
visão, gustação, tato – depois traduzidos em impulsos elétricos que o cére-
bro humano traduz na sensação de cheiros, cores e mesmo em dor e prazer.
Ou seja, a própria percepção do mundo externo não se dá de forma direta e
varia muito de uma pessoa para outra, mas nem por isso cada experiência
diversa é depreciada, tampouco se revela menos legítima ou menos real.
Por que, então, uma simulação virtual – mas entendida pelo cérebro como
verdadeira, mesmo se acontece apenas na mente e não no corpo – deveria
ser desprezada ou desconsiderada?
Não por acaso, a personagem Cypher tentará voltar a se reconectar à
realidade virtual, pois, de seu ponto de vista, a vida que poderia ter estando
conectado é tão válida quanto àquela fora da Matrix, com a diferença de
que, na virtual, ele poderia escolher não ter problemas, o que lhe parece
bem mais confortável. Obviamente, sua postura incomoda o espectador pelo
viés moral e, sobretudo, por ele não medir meios para alcançar seus objeti-
vos, mesmo quando precisa, para tanto, sacrificar seus amigos. No entanto,
é interessante como contraponto, pois, afinal, se ele nunca vier a saber que
tudo aquilo que está vivendo está acontecendo apenas em sua mente fará
alguma diferença? Isso invalidará todas aquelas experiências e sensações?
Esses questionamentos mostram o quanto nada é simples quando a própria
noção de verdade se torna fluida.

562
O tema do questionamento ontológico de Neo volta alguns minutos de-
pois, na cena que antecede o encontro com a personagem conhecida como
“O Oráculo”, mencionada na citação anterior. Nesse momento, contudo, a
noção de identidade antes posta em xeque é confrontada com o princípio
da liberdade, pois se o Oráculo é capaz de fazer previsões do futuro, o livre-
-arbítrio pode ser questionado. Dentro da Matrix, fica claro que a liberdade
nem sempre é uma opção. A programação possui alternativas pelas quais
cada ser humano pode conduzir sua vida, dentro de determinados padrões,
reforçando a ideia de tempo cíclico conforme concebido pelas máquinas;
porém, o que Morpheus apresenta a Neo é uma criatura senciente (revelada
nos filmes subsequentes como um programa solidário aos humanos) capaz
de não apenas prever o futuro na Matrix, mas, igualmente, na dita realidade,
introduzindo questionamentos acerca de uma força sobrenatural que regeria
a realidade como um todo. Neo indaga então sobre a extensão dos conheci-
mentos do Oráculo no diálogo que se segue:
Neo: Então este é o mesmo oráculo que fez a... pro-
fecia?
Morpheus: Sim. Ela é muito velha. Está conosco des-
de o início.
Neo: O início?
Morpheus: Da resistência.
Neo: E o que ela sabe? Tudo?
Morpheus: Eu diria que sabe o suficiente.
Neo: Então ela nunca erra?
Morpheus: Tente não pensar em termos de certo ou
errado. Ela é um guia, Neo. Pode ajudá-lo a achar o ca-
minho.

Neo: Ela o ajudou?


Morpheus: Sim.
Neo: O que ela disse a você?
Morpheus: Que eu encontraria o Escolhido (1°09’35”
– 1°10’17”).

563
Nos filmes seguintes, ficamos sabendo que o Oráculo, afinal, não é dotado
de um poder sobrenatural, mas dado o caráter cíclico do tempo das máquinas,
ela consegue antecipar padrões e tentar ajudar os humanos a se libertarem
deles. No entanto, sem entender como essa capacidade de projeção funcio-
na, após sua primeira visita ao Oráculo, Anderson continua questionando
o mundo e seu papel nele; afinal, mesmo depois de ter saído da Matrix, sua
missão não estava clara; a crença no poder do Oráculo foi colocada em xeque
quando confrontada com a própria noção de realidade e seu destino como o
Escolhido não lhe parece inevitável. A aceitação da alcunha de salvador se
dará paulatinamente ao longo da narrativa, embora a desconfiança de Neo
sobre os eventos a sua volta jamais cesse de todo6.
A ideia de um “Escolhido” parece evocar a postura milenarista, isto é, a
crença de fundamentação bíblica no retorno de Jesus Cristo, que, por extensão
de sentido, pode ser lida como a fé em qualquer tipo de salvação sobrenatural
e posterior período de paz. Na virada do milênio, contexto no qual o filme foi
idealizado, produzido e difundido, curiosamente instaurou-se um sentimento
ambíguo, a um só tempo catastrofista e redentor, derivado, sem dúvida, da
instabilidade política e econômica, após o fim ainda muito recente da guerra
fria. A respeito dessa época, Frederic Jameson comenta:
Os últimos anos têm sido marcados por um milena-
rismo invertido segundo o qual os prognósticos, catas-
tróficos ou redencionistas, a respeito do futuro foram
substituídos por decretos sobre o fim disto ou daquilo
(o fim da ideologia, da arte, ou das classes sociais; a
“crise” do leninismo, da social democracia, ou do Esta-
do do bem-estar etc.); em conjunto, é possível que tudo
isso configure o que se denomina, cada vez mais fre-
quentemente, pós-modernismo (apud PINHO; SANTOS
JÚNIOR; LIMA, 2012, p. 6).

Embora se articule ao contexto pós-moderno, a virada do século XX para


o XXI, o fim de um milênio e o começo de outro, também resguarda carac-
terísticas singulares desse tipo de evento, que em si, carrega um misto de
temor e esperança frente a uma mudança numérica em um calendário pré-
-estabelecido e amplamente aceito.

564
Franco Júnior (1999) ao tratar do ano mil e de suas repercussões na so-
ciedade de então, mostrou que cada um de seus estratos sociais foi atingido
de uma maneira diferente. A cultura clerical, por exemplo, aceitava o fim
do mundo, todavia em um tempo indeterminado. A produção textual do fim
do século X e início do XI pouco mencionava o assunto. Já a visão vulgar,
leiga e marcada pela oralidade acreditava que o encerramento do universo
estava próximo e proliferaram seitas messiânicas e catastrofistas em torno
de 1000 d. C. que bebiam dessa ideia. Essa perspectiva se relacionava com as
expectativas e demandas sociais por mudanças. Na época, havia ainda uma
terceira postura, onde as duas primeiras se confundiam, convergindo para
a visão do cristianismo; essa fração aceitava um término do mundo e pos-
suía uma visão milenarista da história. Defendiam que antes do Juízo Final
a Terra teria mil anos de paz e prosperidade junto a Cristo.
Como se refletindo o milênio anterior, na virada para o século XXI, tam-
bém vimos posturas diferentes em grupos distintos. A classe intelectual, por
exemplo, obviamente não viu qualquer traço de um possível fim do mundo,
embora houvesse uma preocupação tecnológica a respeito de como as máqui-
nas se comportariam ante a alteração de data, o chamado “bug do milênio”.
No entanto, em alguns contextos populares, o temor do fim dos tempos na
virada do milênio era uma realidade.
Um dia antes do eclipse de 11 de agosto de 1999, por exemplo, três pessoas
se mataram no estado do Piauí. Na Albânia, segundo Franco Júnior (1999,
pp. 81-82), muitos camponeses esconderam seus animais, pois temiam que a
escuridão pudesse perdurar para sempre. Ainda segundo ele, um delegado na
Paraíba soltou os presos sob sua jurisdição por acreditar que no dia seguinte
o mundo já não existiria mais. Por sua vez, para não nos estendermos nos
muitos exemplos, podemos lembrar ainda que no ano 2000, mais de duzentas
pessoas morreram em Uganda num ritual de suicídio coletivo de uma seita
apocalíptica, apesar de em setembro do ano anterior a polícia ugandesa já
ter desmantelado uma seita similar com mais de mil membros chamada de
“Última Advertência da Mensagem para o Mundo” (cf. UOL, 2000).
Ou seja, se por volta do ano mil a expectativa de apocalipse se articulava
com uma crítica à realidade em transformação, no caso, o feudalismo, o fim
do século XX, segundo defendido por Franco Júnior (1999), também assistiu

565
mudanças profundas, com a expansão da globalização, ascensão da Internet
e da tecnologia na vida cotidiana. Tudo isso parece traduzir o sentimento
subjacente bem como o momento de produção de Matrix, ambientado em
um mundo pós-apocalíptico, onde não só os temores da tecnologia e das
modificações globais se confirmaram como também dominaram o planeta
e a humanidade de forma extremamente negativa.
Nesse contexto, as máquinas atuariam como deuses opressores – vistos
como monstros pelos humanos7 –, seres capazes de observar através dos
ciclos de vida de cada ser vivo ligado a elas, mas também agentes centrais
no controle e desenrolar do tempo na realidade artificial que criaram. Elas
dominam o tempo humano, não apenas o período de uma vida, mas a pró-
pria forma como a noção de temporalidade é percebida dentro da Matrix.
Curiosamente, relacionando o que vinha sendo dito até então, com essa per-
cepção do poder das máquinas sobre a compreensão humana da realidade,
tanto a questão do milenarismo quanto a dos conflitos entre seres biológicos
e tecnológicos parecem se dar através de uma espécie de colapso/conflito da
noção de tempo, linear para os primeiros, cíclico para os segundos.

Temporalidades cíclicas e lineares:


a guerra dos tempos em Matrix

As concepções de tempo cíclica e linear não estão tão separadas quanto


pode parecer à primeira vista, e a prevalência de uma não implica, neces-
sariamente, na exclusão da outra. Para Platão, o tempo era produzido pelo
movimento da esfera celeste e era uma característica do próprio universo.
Aristóteles, no século IV a.C., colocava-o articulado às mudanças climáticas
sensíveis do mundo e rejeitava qualquer tipo de evolução da realidade, afinal
a natureza se revela através de inúmeros fenômenos de ordem cíclica, desde
o dia e a noite até as estações do ano. Heráclito, por sua vez, afirmava que
o mundo começara e terminaria em fogo (cf. WITHROW, 1993, pp. 56-63).
Já os estoicos eram deterministas estritos, aconselhavam uma resignação

566
diante das dificuldades, pois seria inútil resistir a elas. Conjecturavam que
aconteceria uma renovação total do universo de tempos em tempos, com um
recomeço e uma repetição dos eventos que só poderiam ser acompanhados
pelos deuses imortais (idem, p.58).
Essa concepção temporal clássica, sobretudo a visão determinista dos
estoicos, aplica-se às máquinas do filme da dupla Wachowski, uma vez que
encaram a realidade a partir de uma noção de eterna repetição. Dentro da
Matrix, isso se aplica ao fato de, já há quase 200 anos, a humanidade reviver
sempre a mesma época, presa na década de 1990, revisitando e revivendo
aquelas mesmas situações enquanto são acompanhadas por imortais dei-
dades maquinárias. Disso deriva, por exemplo, o fato de que, de tempos em
tempos, surja um Escolhido, como previsto pelo Oráculo, cujas próprias
profecias, aliás, são depreendidas pelo padrão repetitivo de ações dentro
do ciberespaço. Por consequência, a vida daqueles conectados à realidade
virtual mantém seu ciclo. Neo, por exemplo, quando ainda está preso no
tempo das máquinas e conectado à Matrix, não pode escapar de sua rotina
de programador, que não lhe desperta o menor interesse. Depois de um
interrogatório com os agentes, ele sofre um implante de monitoramento,
acorda em seu quarto com a percepção de que tudo fora um sonho e não
percebe o intervalo que transcorreu entre os eventos, ainda preso no ciclo
imposto pela Matrix.
Com relação ao tempo linear, Withrow (1993) aponta os judeus como um
dos principais grupos difusores dessa forma de pensar. Segundo essa visão
de mundo, os acontecimentos transcorreriam de forma teleológica com a
revelação gradual dos desígnios de seu deus ao povo eleito, com a crença em
um Messias que restauraria a nação e salvaria Israel. O tempo seria, portanto,
inclinado e ascendente, rejeitando a recorrência eterna, o que já havia sido
anunciado no zoroastrismo. Ainda de acordo com Withrow (idem, pp. 66-72),
os hebreus tiveram alguma influência dos sumérios e dos babilônicos em
suas concepções temporais. Por sua vez, o cristianismo herdou do judaísmo
a relação com o tempo, tornando-a universal e não mais vinculada ao destino
de Israel. Para os cristãos, o tempo começaria com a criação e terminaria
com a segunda vinda de Cristo, o Juízo final, uma eternidade próspera para
os justos e a danação para os pecadores. Nesse sentido, a concepção linear

567
se encontra com a cíclica enquanto retorno às condições idílicas do paraíso,
resultando em uma trajetória espiralada8.
Essa segunda visão, de fundamentação judaico-cristã, parece reger a vida
das personagens humanas rebeldes de Matrix. No entanto, o confronto entre
as duas visões possíveis revela-se desde começo. Em uma das primeiras cenas
do filme, por exemplo, Neo – então ainda Thomas Anderson – não passa de
um cidadão comum que trabalha numa empresa impessoal de softwares de
uma cidade ocidental indefinida9, atuando como um empregado medíocre e
relapso com a pontualidade, sempre se atrasando ao horário de entrada, o que
fica expresso na fala do gerente da empresa: “Escolha estar na sua mesa, no
horário, a partir de hoje... ou escolha outro emprego. Eu fui claro?” (12’36”-
12’48”). Aqui percebemos um ruído questionador ao tempo do trabalho.
À noite, Thomas torna-se Neo, o hacker, responsável por vários
crimes na rede. Uma questão o perturba, como já dito: o que é Matrix? Para
descobrir, ele procura por outros hackers misteriosos, liderados por Morpheus,
uma referência ao deus grego dos sonhos de mesmo nome. Quando consegue
contato com ele, Neo descobre a verdade sobre a palavra que o assombra,
pondo sua noção de realidade em xeque e levando o espectador a buscar
entender junto com ele, como afirma Adriano Oliveira:
Em Matrix, o leitor-modelo é encorajado, através de
referências intertextuais ao cinema de gênero, a acredi-
tar estar assistindo a um filme de espionagem até o mo-
mento em que Neo, o protagonista, atravessa o espelho
para fora do ventre cibernético. [...] Matrix deseja que
o leitor-modelo experimente a revelação de forma tão
vertiginosa quanto Neo (2006, p.44).

De fato, é o que acontece, o espectador acredita que a história está se pas-


sando em 1999, com aquela temporalidade rotineira das grandes cidades até
que Neo desperta em seu casulo, observa aquele outro mundo, apresentado
como o “verdadeiro”, e percebe que tudo o que pensou ter vivido tratava-se de
uma ilusão. É uma espécie de renascimento; não à toa o casulo se assemelha
a um útero, repleto de uma espécie de líquido amniótico e o ser vivo ali per-
manece ligado ao sistema por inúmeros tubos como cordões umbilicais. Não

568
obstante, uma vez integrado à sua nova e verdadeira realidade, Neo precisa
voltar à Matrix, ou seja, ao ciberespaço onde “cresceu” para combater às
máquinas, em uma espécie de viagem no tempo, de volta a um passado que,
na prática, nunca existiu da forma como ele o conheceu. Segundo Gregory
Katzarov, nesse paradigma temporal, ressalta-se o principal objetivo do filme:
O propósito do filme é legível, ao mesmo tempo,
como uma profecia (eis o que vai acontecer) e como
uma cosmogonia (a revolução tecnologia já aconteceu).
O que nós chamamos de “mundo” é um lugar virtual,
criado, mantido e dominado pelas Máquinas, no qual
nossos corpos e nossas consciências vivem alienadas
em seus clones digitais. Essa coincidência ou essa inde-
cisão entre profecia e cosmogonia brinca com a ideia de
temporalidade: o futuro e o passado dão no mesmo. O
que o espectador percebe como antecipação (do futuro),
o filme o narra como a origem (passado). A ascensão
tecnológica contemporânea engendra, portanto, essa
ideia, à primeira vista aberrante: nosso futuro já aconte-
ceu. O que nos espera é nosso passado... Essa aberração
é talvez o próprio virtual... mas, de um ponto de vista
analítico, esse paradoxo aparente é uma consequência
da existência do inconsciente, cujas manifestações são,
de maneira paradigmática, pode-se dizer, retornos ao
passado a partir do futuro. É do futuro que nosso passa-
do faz retorno. Lógica do sintoma. Astúcias do prazer...
(KATZAROV, 2011, p. 180, tradução nossa).

Nessa “brincadeira” de temporalidades que refletem múltiplas realidades


e que ecoam na frase de J. K. Rowling mencionada no início deste artigo,
abundam referências às obras de Charles Lutwidge Dodgson, publicadas
sob o pseudônimo de “Lewis Carrol”, a saber: Alice no país das maravilhas,
de 1865, e Alice do outro lado do espelho, de 1872. Logo no início, vê-se, por
exemplo, Trinity pedir para Neo seguir um coelho branco, como acontece
no início do primeiro livro; em seguida, Neo precisa atravessar um espelho
para ser desplugado da Matrix, tal como acontece no segundo livro. A refe-
rência torna-se explícita quando Morpheus diz antes de Anderson escolher

569
a pílula: “Eu imagino... que você esteja se sentindo um pouco como a Alice.
Entrando pela toca do coelho” (26’19”-26’28”).
No primeiro livro de Alice, o universo maravilhoso onírico também pos-
sui uma temporalidade bem diferente do mundo da garota, estando, de certa
forma, fora do tempo real, convergindo fatos e elementos de épocas diver-
sas. Porém, a realidade de Matrix não opera como a do País das Maravilhas.
Nesta, o tempo não é cíclico tampouco linear, o tempo inexiste, bem como
suas consequentes noções de causalidade e efeito. No ciberespaço wachows-
kiano, no entanto, a temporalidade se faz presente “o tempo todo”, causando
conflitos de acordo com a diferença em sua percepção.
De um lado, encontram-se as máquinas que, basicamente, operam por
ciclos, maiores ou menores, com diferentes graus de complexidade de tarefas,
e que redundam em um recomeço, teoricamente até o fim de suas energias,
depreciação das peças ou objetivo do operador. Em Matrix, elas mesmas regem
suas ações através da inteligência artificial, renovam suas estruturas e usam
a energia dos seres humanos como forma de alimentação; dessa maneira,
não há limites para o seu funcionamento. As ações continuarão a acontecer
de forma praticamente ininterrupta e imutável. A morte natural não é um
horizonte, o que as tornam eternas em seu tempo cíclico.
A humanidade, por outro lado, devido a seu aspecto material e biológico –
logo não renovável – tem um final previsto que independe da maneira como
consegue energia e, até onde o conhecimento medicinal consegue prever, não
há meios de renovação de um corpo velho e doente para um outro jovem e
saudável. A natureza dita que o tempo de vida do ser humano seja linear, com
nascimento, crescimento e morte. Existe um fim programado, até que se prove
o contrário, irrevogável do ponto de vista material. Resguardando os limites
de cada contexto histórico, as pessoas têm a seu dispor a liberdade de fazer
escolhas – questão-chave no filme –, o que dota de complexidade sua existên-
cia e contrasta com a programação prévia das máquinas. O humano, por sua
natureza orgânica limitada, atua como representante por excelência do tempo
linear e finito; todavia, no universo de Matrix, ele é forçado a integrar o tempo
cíclico das máquinas, como demonstra o diálogo a seguir entre Neo e Morpheus:
Morpheus: É o mundo que foi colocado diante dos
seus olhos... para que você não veja a verdade.

570
Neo: Que verdade?
Morpheus: Como todo mundo, você nasceu num cati-
veiro... nasceu numa prisão que você não consegue sentir
ou tocar. Uma prisão... para sua mente. Infelizmente, é
impossível... dizer o que é a Matrix. Você tem de ver por
si mesmo. Esta é sua última chance. Depois não há como
voltar. Se tomar a pílula azul... a história acaba, e acorda-
rá na sua cama acreditando... no que quiser acreditar. Se
tomar a pílula vermelha, ficará no País das Maravilhas...
e lhe mostrarei até onde vai a toca do coelho. Lembre-
-se... tudo que ofereço é a verdade. Nada mais. Siga-me.
[Os dois mudam de sala]. Apoc, estamos conectados?

Cypher: Quase.
Morpheus: O tempo está sempre contra nós (28’06”-
29’58”).

Nesse diálogo, o capitão da nave explica para o protagonista e, por ta-


bela, para nós, espectadores, o que é a Matrix, bem como qual é a condição
dos humanos em relação às máquinas. A temporalidade que todos os seres
humanos plugados pensam vivenciar é uma construção de linearidade den-
tro dos grandes ciclos de funcionamento das inteligências artificiais que
controlam os dois mundos. Assim como o tempo é um conceito complexo
de se explicar, Matrix também o é e, por isso, demandaria a visão do todo
e apenas faria sentido a partir de uma visão de fora do sistema. Também é
difícil imaginarmos a existência de outros regimes temporais, como os de
grupos indígenas de diversas partes do mundo, fora daquele imposto pela
racionalidade iluminista, concebida no seio do imaginário judaico-cristão e
combinada com a imposição metódica das fábricas no período pós-Revolução
Industrial. Não raro o ócio improdutivo é taxado como perda de tempo, por
exemplo, o que não é um padrão universal.
O fato é que o tempo sempre está contra os seres vivos. Esta é uma verdade
absoluta frente à realidade da medicina, e até mesmo no filme, o que não é
verídico para as máquinas, pois bastaria uma reposição de peças e energia
para poderem funcionar indefinidamente. Por esse viés, assim como somente
os deuses podiam ver a renovação dos ciclos de existência no pensamento

571
estoico da Grécia antiga (WITHROW, 1993, p.58), apenas as máquinas têm a
noção desses ciclios e da real mensuração das datas em relação ao calendário
que rege o mundo de Matrix.
Nesse contexto, a humanidade se perdeu no tempo – e perdeu tempo –,
literalmente. Morpheus revela isso a Neo, quando diz: “Você acredita que
está no ano de 1999. Na verdade, é perto de 2199. Não posso dizer exatamente
que ano é esse... porque, sinceramente, não sabemos” (37’30”-37”42”). Ou
seja, nem mesmos os libertos da Matrix têm uma noção clara do ano em que
estão. Contudo, não só os antagonistas têm esse conhecimento, o Oráculo –
como dito, um programa solidário aos humanos e contrário à escravidão que
lhes foi imposta pelas máquinas – também o detém, daí seu nome e poderes.
O Oráculo poderia, pois, ser visto como uma forma de se vencer o tem-
po, antecipando-se lhe, como o tentavam os gregos, para os quais a noção
de destino freava qualquer tentativa de sabotagem ao tempo. No entanto, há
outras formas de se tentar, de algum modo, vencê-lo. O registro, a história,
a arte, enfim, as manifestações culturais humanas em suas diversas moda-
lidades podem, de alguma maneira, “captar” o tempo, alterá-lo, guardá-lo.
Segundo Rüsen, a “constituição de sentido da consciência humana, aplicada
ao tempo, não se esgota na memória“ (2010, pp.136-137). Através da arte, é
possível conceber saltos para o futuro, superando os eventos do passado, evi-
denciando a esperança – e, paradoxalmente, por vezes, também a nostalgia
– no potencial humano de transformar o mundo em algo inteiramente novo,
ou seja, por certo aspecto ao pensarmos o futuro ou reconstruirmos o passado
sempre o fazemos a partir de um veio utópico latente. Ainda segundo Rüsen,
nesse sentido, o “pensamento utópico define-se pela negação da realidade
das circunstâncias dadas da vida. Ele articula carências, na expectativa de
circunstâncias de vida nas quais desaparecessem as restrições à satisfação
dessas carências” (idem).
No caso de Matrix, o pensamento utópico citado acima– como a crença
de Morpheus em um “Escolhido” que salvará a humanidade, por exemplo
– nasce da adversidade, afinal, a realidade do filme é, para usar o conceito
de Rüsen, uma “utopia negativa”, ou, melhor dizendo, uma “distopia”, modo
narrativo que, não por acaso, é um dos mais difundidos na enlutada socie-
dade contemporânea. Uma distopia nada mais é do que “a descrição de um

572
mundo futuro onde as coisas correram mal a partir da exacerbação nociva
de um traço da nossa sociedade” (KLEIN, 2009, p. 126), ao mesmo tempo em
que se revela uma espécie de “denúncia” ante uma perspectiva aterradora.
Ou seja, é uma narrativa de protesto, engajada, que visa apontar perigos
ante determinadas atitudes, sejam elas políticas, econômicas, ambientais
ou sociais, como defende Hilário:
As distopias problematizam os danos prováveis caso
determinadas tendências do presente vençam. É por
isso que elas enfatizam os processos de indiferenciação
subjetiva, massificação cultural, vigilância total dos indi-
víduos, controle da subjetividade a partir de dispositivos
de saber etc. A narrativa distópica é antiautoritária, in-
submissa e radicalmente crítica. As distopias continuam
sendo utopias, no sentido que Jacoby (2001, p. 141) lhe
deu, isto é, não apenas como a visão de uma sociedade
futura, mas como uma capacidade analítica ou mesmo
uma disposição reflexiva para usar conceitos com a fi-
nalidade de visualizar criticamente a realidade e suas
possibilidades (2013, p. 206).

Matrix, por conseguinte, concebido dentro da estética cyberpunk que, por


padrão, pressupõe o aspecto distópico, expõe essas carências contemporâneas
da época de sua produção, revelando, dentre outras, a crítica ao tempo do tra-
balho, associado ao rotineiro e restritivo das máquinas, e à globalização, vista
com desconfiança, além de, claro, alertar para o perigo do desenvolvimento
tecnológico desenfreado e a leviandade na busca pela inteligência artificial.
É um alerta contra a desmedida, como a hýbris grega, de uma sociedade que
se considera indestrutível, e, ao mesmo tempo, destrói o mundo ao redor.
Tal retrato soa, no mínimo, irônico, vinte anos depois, quando vivemos sob o
terror imposto pelo coronavírus causador da Covid-19, que nos obriga a ficar
em prisão domiciliar enquanto a natureza busca se regenerar, recuperando-se
da poluição e reocupando espaços urbanos. Em suma, é um alerta ao nosso
próprio desconhecimento, já evocado pelo aforismo socrático, que ecoa nas
palavras de Morpheus: “Temos apenas pequenas partes de informação. Mas
o que sabemos, por certo, é que no começo do século 21 a humanidade intei-

573
ra celebrava unida. Estávamos encantados com nossa própria grandeza por
criar a IA” (41’18” – 41’33”).
Esse trecho critica a fé cega na ciência que, mesmo tendo trazido conforto
a alguns poucos e enriquecido um grupo ainda menor, não trouxe felicidade
a todos, tampouco saúde e bem-estar social para a maioria. Frente ao consu-
mismo capitalista desenfreado, às relações sociais desenraizadas e descar-
táveis, ele demonstra também nossa relação ambígua com a tecnologia, da
qual se depreende tanto a fascinação com o que pode ser criado, quanto a
angústia diante do desconhecido e o temor da humanidade ser controlada ou
substituída por ela (cf. COSTA, 2013, p.42). Curiosamente, o filme demonstra
que essa antiga fé na tecnologia, pode ser combatida com uma nova forma
de crença: na própria humanidade, representada metonimicamente por Neo.
Nesse sentido, Morpheus é o único personagem que não titubeia nem por
um momento em crer no salvador:
Morpheus: Não vou mentir, Neo. Todos os homens e
mulheres que lutaram com os agentes morreram. Mas,
onde eles falharam você vencerá.

Neo: Por quê?


Morpheus: Já vi um agente abrir o concreto com um
soco. Já descarregamos o pente neles, e não conseguimos
acertar. A força e a velocidade deles se baseiam num
mundo de regras. Por causa disso, eles nunca serão tão
fortes ou rápidos quanto você.

Neo: O que está dizendo? Que posso desviar de balas?


Morpheus: Não, Neo. Estou dizendo que, quando você
estiver pronto... isso não será necessário (58’08”–58’52”).

Neo – nome cujo significado é “novo” em grego e que designa justamente


o “novato” na tripulação de Morpheus – é apresentado o tempo todo como
“o escolhido” (The One, no original)10, imbuído de uma missão salvadora da
humanidade. Franco Junior falara, como antes citado, sobre os movimentos
messiânicos e milenaristas comuns por volta do ano mil e fins do século XX,
nesse sentido Matrix constrói na personagem de Neo uma espécie de Messias
pós-moderno, quase numa releitura pós-moderna e cyberpunk da segunda vida

574
de Cristo ou de um sebastianismo realocado. Esse novo herói responderia às
mazelas desse contexto histórico, rompendo o tempo cíclico das máquinas,
já que poderia subverter as possibilidades da realidade virtual e enfrentar
os terríveis agentes do sistema (cf. COSTA, 2013, pp. 41-42).
Quando Cypher toma o controle da nave e começa a assassinar os tripu-
lantes valendo-se do fato de estarem plugados à Matrix, ele desafia a profecia
dizendo que, se Neo for de fato o aguardado herói, alguma coisa aconteceria
o impedindo de matá-lo. De repente, Tank, um dos tripulantes que não estava
conectado, mesmo gravemente ferido por Cypher, reaparece e mata o traidor.
Esse evento reforça para o telespectador e até para os personagens a tese da
importância de Anderson, cuja presença teria fortuitamente auxiliado na apa-
rição ex machina de Tank. Por esse viés messiânico, o vilão poderia muito bem
espelhar o apostolo Judas da Bíblia cristã, que por moedas de prata entregou seu
mestre e amigo aos algozes. No caso de Cypher, a promessa era de reinserção
à realidade virtual, antes mencionada, ao tempo cíclico das máquinas, porém
com inúmeros benefícios de uma vida luxuosa, de fama e poder.
Vale lembrar que há diferenças entre o messias do cristianismo e o de
Matrix. Neo tem uma série de caminhos diante de si que o conduzem a ser o
escolhido. No interrogatório com os agentes, o hacker se recusa a cooperar.
Quando questionado sobre o desejo de saber a verdade ou de se manter na
ilusão, opta pela pílula vermelha (isto é, pela verdade) e pelas informações
que Morpheus tem a oferecer. Na mitologia judaico-cristã, Cristo aceita seu
destino como salvador, é filho do Deus, integrando a Santíssima Trindade,
não precisou de treinamento e fazia uso de suas habilidades divinas antes
da ressurreição. Já Neo não nasceu de um deus, precisou receber os ensi-
namentos – o carregamento de programas em seu cérebro –, necessitou da
elucidação do que era Matrix e só teve acesso a plenitude de seus poderes
após sua morte e retorno triunfante (cf. COSTA, 2013, pp. 40-41). Ou seja, tal
como o Cristo bíblico, ele também ressuscita. Porém, enquanto Jesus revivido
aparece apenas a seus seguidores e depois acende aos céus para não mais
voltar em carne e osso à Terra, o Neo renascido busca justiça e vingança,
como atesta o monólogo final do filme:
Neo: Sei que você está aí. Eu sinto você agora. Sei
que está com medo. Está com medo de nós. Está com

575
medo das mudanças. [Na tela aparece escrito “FALHA
NO SISTEMA”]. Não conheço o futuro. Eu não vim aqui
dizer como isso vai acabar. Eu vim aqui para dizer como
vai começar. Vou desligar este telefone... e mostrar a
essas pessoas o que você não quer que elas vejam. Vou
mostrar a elas um mundo sem você. Um mundo sem re-
gras e controle, sem limites e fronteiras. Um mundo onde
tudo é possível. O que acontecerá agora, é uma escolha
que deixo para você (2º07’57” – 2º08’39”).

Essa é ultima fala do filme, onde Neo dá seu ultimato às máquinas e, de


certa forma, ao espectador, a quem parece que ele está se dirigindo em um
primeiro momento, como se a reforçar a ideia de que uma distopia deve
nos alertar dos perigos de nossas decisões. No que concerne à relação entre
humanidade e maquinidade, Morpheus já havia revelado que o escolhido
traria paz e liberdade aos humanos, ou seja, ele superaria o tempo cíclico
das máquinas e iniciaria um novo tempo, uma espécie de Parúsia – isto é, o
momento da segunda vinda de Cristo profetizado na Bíblia –, um retorno a
uma suposta época idílica da humanidade, agora vivendo com seu salvador;
uma estrutura temporal espiralada semelhante àquela que as seitas milena-
ristas do ano mil propunham.
As críticas dos personagens à Matrix, taxada de falsa, ilusória, opressora,
verdadeira prisão, refletem questionamentos do próprio período de produção
da obra, uma vez que a realidade virtual emula o mundo por volta de 1999.
O rompimento dos limites, fronteiras e cerceamentos ecoam desejos e sen-
timentos que o público facilmente reconhece como seus, inclusive o “O que
acontecerá agora, é uma escolha que deixo para você” soa muito agradável
ao individualismo contemporâneo (cf. COSTA, 2013, p.40). Neo já havia
admitido que declinava da concepção de destino, pois não gostava da ideia
de não poder controlar a própria vida; por isso, ao final, quando assume as
rédeas da situação e se coloca de fato como o Escolhido, projeta, para além
de uma mensagem às máquinas, um discurso motivacional de esperança aos
espectadores, o que se reflete nos demais volumes da trilogia.

576
Notas

1 Quando nós nos referirmos ao filme, usaremos o termo em itálico Matrix; já


em relação à realidade virtual que dá nome à obra utilizaremos o termo sem
itálico, “Matrix”.
2 Segundo Henri Desbois, o “ciberespaço da ficção científica é um mundo virtual
acessível através de diferentes redes eletrônicas. Dispositivos técnicos diretamente
conectados sobre o sistema nervoso projetam os usuários nesse mundo e lhes per-
mitem interagir com seu ambiente e uns com os outros. O termo aparece em 1984
no romance Neuromancer de William Gibson, mas a noção é anterior. Considera-se
com frequência que a primeira descrição do ciberespaço se encontra ao longo da
novela de Vemor Vinge, True names (1979). O autor explicou mais tarde que a ideia
de um espaço virtual tinha nascido de sua experiência em comunicação eletrônica
em rede, apesar de bastante rudimentar na época” (2007, p. 2, tradução nossa).
3 Em um contexto de hackers, de controle da realidade pelas máquinas e de ten-
tativa de interceptação como o proposto na trilogia Matrix é interessante pensar
no aspecto negativo e, mesmo opressor, do mundo digital. Nesse sentido, Desbois
defende que as “técnicas das redes de comunicação eletrônica são propícias, ao
mesmo tempo, à dissimulação e à vigilância. Elas permitem o anonimato, a usur-
pação de identidade, as múltiplas identidades e qualquer relação interpessoal
fica nelas mais ou menos maculada pela desconfiança da impostura. Ao mesmo
tempo, essas técnicas autorizam a vigilância generalizada e automatizada, as
escutas furtivas, os registros de traços, etc. Assim, o ciberespaço é fundamen-
talmente um espaço entregue à paranoia” (2007, p. 7, tradução nossa).
4 Em um contexto de hackers, de controle da realidade pelas máquinas e de ten-
tativa de interceptação como o proposto na trilogia Matrix é interessante pensar
no aspecto negativo e, mesmo opressor, do mundo digital. Nesse sentido, Desbois
defende que as “técnicas das redes de comunicação eletrônica são propícias, ao
mesmo tempo, à dissimulação e à vigilância. Elas permitem o anonimato, a usur-
pação de identidade, as múltiplas identidades e qualquer relação interpessoal
fica nelas mais ou menos maculada pela desconfiança da impostura. Ao mesmo
tempo, essas técnicas autorizam a vigilância generalizada e automatizada, as
escutas furtivas, os registros de traços, etc. Assim, o ciberespaço é fundamen-
talmente um espaço entregue à paranoia” (2007, p. 7, tradução nossa).

577
5 Todas as citações do filme foram retiradas da edição digital disponível na pla-
taforma streaming HBOGo. Infelizmente, a plataforma não credita o nome do(s)
tradutor(es) das legendas que aqui transcrevemos.
6 Sob esse prisma, vale lembrar, como defendido por Desbois, que o “tema da
ilusão, do falso e do engano [...] é um elemento fundamental do imaginário di-
gital [...]. Praticamente todas as representações do ciberespaço são em alguma
medida ligadas a um imaginário da conspiração onde guerras secretas são con-
duzidas por massas manipuladas” (2007, p. 6, tradução nossa).
7 Não por acaso, no filme as máquinas que controlam os corpos humanos aprisio-
nados na Matrix, bem como aquelas que caçam os homens e mulheres rebeldes
possuem formas de animais, como aracnídeos, insetos e moluscos, que suscitam
um maior estranhamento, quando não medo ou repulsa, nos seres humanos
ocidentais contemporâneos. É sintomático que em um mundo onde parece não
haver mais nenhuma criatura biológica para além dos humanos, as máquinas
tenham adquirido a forma dos animais que, antes, mais intrigavam e assombra-
vam o imaginário humano, como se dando forma aos nossos maiores pesadelos.
Se assumissem formas neutras – e muito mais prováveis para máquinas – o efeito
não seria o mesmo e teríamos mais dificuldade em entendê-las como “vilãs”.
8 Claro está que estas duas concepções temporais não são as únicas possíveis.
Existem inúmeras formas de se pensar e de se viver o tempo. Segundo o estudo
de Jorge Machado (2012, p.17), por exemplo, os indígenas hopi sequer possuem
uma palavra para designá-lo. Para eles, os eventos do passado estariam de algu-
ma forma imersos ou ocultos na atualidade momentânea. Já para os indígenas
do grupo guarani, o tempo se apresenta como ciclos, porém existe o tempo do
não-ser, para os mortos. O plano em que viviam estaria entre o espaço-tempo
originário e o novo de renascimento, como um futuro adiado.
9 A escolha desse espaço não é fortuita, mas deliberada, enquadrando o filme
na própria estética cyberpunk. Henri Desbois comenta a respeito disso, que as
“representações do ciberespaço quase sempre assumem uma forma urbana. O
ciberespaço é, com efeito, uma das figuras do imaginário urbano contemporâ-
neo. Ele é, ao mesmo tempo, a tradução mais ou menos metafórica das mudan-
ças urbanas executadas nas megalópoles globalizadas, e um comentário crítico
dessas mudanças” (2007, p. 2).
10 Georgy Katzarov chama a atenção para o fato de que o pseudônimo “Neo”,

578
escolhido pelo Sr. Anderson, como seu “nome de guerra” enquanto hacker é
um “anagrama perfeito” de “one”, que “se traduz ao mesmo tempo como ‘o um’
e como ‘aquele que...’ – ‘aquele que é um’. Atributo principal do Deus do Antigo
Testamento...” (2011, p. 177, tradução nossa).

579
Referências

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Filmografia

WACHOWSKI, Andy e Larry. Matrix. Warner Brox Pictures, 1999.

581
n
O poema na formação
do leitor literário
Norma Seltzer Goldstein
Luciana Taraborelli

Muitos alunos do Ensino Fundamental - anos finais da rede pública de


ensino-, apresentam insuficiência na formação leitora, principalmente na do
texto literário. Para a maioria deles, o contato com obras literárias é quase
exclusivamente limitado ao ambiente escolar porque a prática da leitura é,
na maior parte das vezes, delegada pela sociedade à escola por ser uma das
principais agências de letramento. Quando essa prática é falha também na es-
cola, abre-se uma grande lacuna no desenvolvimento da competência leitora.
O propósito deste artigo é relatar um processo pedagógico desenvolvido
com alunos da escola pública estadual Felipe Cantúsio, na cidade de Cam-
pinas São Paulo. O trabalho foi desenvolvido no Ensino Fundamental - anos
finais, que corresponde ao segmento do 6º ao 9º ano-, com o objetivo de for-
mar leitores literários competentes, a saber, capazes de dialogar com o texto
lido, de modo cognitivo e sensível. O termo “sensível” encaminha o trabalho
na direção do texto literário e, particularmente, do texto poético. O ponto
inicial consiste em inserir os alunos no universo da poesia para fortalecer
o letramento literário e estimular o gosto pelo poema; o ponto de chegada
volta-se à produção de textos poéticos como meio de expressão, numa tran-
sição gradual da leitura para a escrita.
A leitura de poemas amplia o letramento literário pelo contato com dife-
rentes poetas, desenvolve a leitura atenta aos aspectos linguísticos e às esco-

582
lhas enunciativas, forma leitores críticos que utilizam a leitura como forma
de interpretar o mundo e os diferentes discursos sociais, desenvolve a cria-
tividade e a subjetividade e leva-nos, ainda, a refletir sobre as contribuições
que o gênero poético traz para a formação do leitor literário e o desenvolvi-
mento da leitura proficiente, além de favorecer também a escrita dos alunos,
seja a de poemas, seja a dos demais gêneros que circulam no seu cotidiano.
Para ilustrar as contribuições da leitura do gênero poético no desenvol-
vimento da competência escritora, fazemos um recorte em que analisamos
produções discentes de alunos do 8º ano B que dialogam com poemas de
Carlos Drummond de Andrade.

Primeiros passos para a


formação do leitor literário

Sabe-se que muitas escolas da rede pública estadual de ensino não pos-
suem bibliotecas funcionando devido à falta de funcionários, fato que difi-
culta o acesso aos livros em geral, e ao poema de forma específica, por se
tratar de um gênero que circula muito pouco nos espaços cotidianos sociais,
incluindo a escola. Para Jolibert (1994):
Trata-se, pois, para a escola [...] de fazer existir (em
primeiro lugar, de maneira concreta, como algo que está
ao alcance do ouvido, da mão e do olhar), de tornar fa-
miliares esses estranhos que são os poemas, de maneira
que eles acompanhem e alimentem a vida quotidiana de
todos (JOLIBERT, 1994, p.195).

Diante do exposto por Jolibert (1994) e da realidade de muitas bibliotecas


escolares, o primeiro passo tem de ser dado pelo professor de Língua Portu-
guesa que, ao compreender a importância do gênero poético, deve trazê-lo
para suas aulas.
Para formar leitores de poemas, é preciso haver professores sensíveis à
leitura de poemas, que sejam divulgadores dessa prática leitora e que estejam

583
dispostos a sensibilizar o aluno, pois ele só estará aberto a novas experiências
leitoras, se for incentivado. Segundo Petit (1998, p. 141), “(...) o que atrai a
atenção da criança é o interesse profundo que os adultos têm pelos livros”.
Portanto, consideramos um dos primeiros passos para a formação do leitor
literário, o exemplo do professor leitor.
Ler literatura se aprende, assim como se aprende a ler poemas e suas
camadas de significação. Quanto mais o gênero poético é explorado, mais
encantamentos e descobertas proporciona. Cabe ao professor fazer com que
essa aprendizagem seja bem ou mal sucedida.
Um segundo passo na caminhada em direção à formação de leitores
literários a partir do poema, é dedicar tempo para a leitura escolar e criar
espaços e rotinas nos procedimentos para leitura. O hábito da leitura não
se constrói rapidamente nem por imposição; é preciso motivar o gosto pela
leitura, encantar e conquistar o aluno; despertar-lhe o desejo. Para que a lei-
tura se torne uma prática prazerosa, o professor deve ser participante ativo
na formação dos futuros leitores, lendo com eles, lendo para eles, ouvindo
a leitura deles.
Afirmamos, a partir de uma experiência bem sucedida, que já está no seu
terceiro ano consecutivo, aplicada na escola estadual Felipe Cantúsio, locali-
zada na cidade de Campinas SP, em turma do 8º ano, que a leitura semanal é
uma das formas de motivar os alunos e, aos poucos, despertar-lhes o desejo
pela leitura, mesmo naqueles que se mostram resistentes a ler. Cada profes-
sor pode criar sua rotina de acordo com seu contexto escolar; o importante
é que haja uma rotina.
Mesmo diante das muitas “pedras no caminho” como a falta de livros
literários em quantidade suficiente para se desenvolver um bom trabalho
de leitura, a precariedade do funcionamento de algumas bibliotecas esco-
lares ou, até mesmo, falta de apoio de alguns gestores, o professor não deve
desistir, pois é ele quem vai defender o espaço da leitura literária; é por seu
intermédio que os alunos terão garantido o direito à Literatura conforme
postula Candido (2004):
[...] são bens incompressíveis não apenas os que as-
seguram a sobrevivência física em níveis decentes, mas
os que garantem a integridade espiritual. São incompres-

584
síveis certamente a alimentação, a moradia, o vestuário,
a instrução, a saúde, a liberdade individual, o amparo da
justiça pública, a resistência à opressão etc.; e também
o direito à crença, à opinião, ao lazer e, por que não, à
arte e à literatura (CANDIDO, 2004, p.174).

Muitos podem afirmar que esse direito já estaria garantido, uma vez que
os livros didáticos trazem textos literários. Mas, na sua maioria, trazem ex-
certos de obras, o que nos parece insuficiente quando se visa à formação do
leitor literário. É válido observar que o poema, na maioria dos livros didáticos,
apresenta-se como texto completo, apto a ser lido e interpretado. No entanto,
em muitos casos, serve de pretexto para o ensino de gramática; especifici-
dades como som, ritmo e imagem suscitados pela leitura atenta do poema
não são devidamente exploradas o que faz com que o aluno não aprenda a
fazer uma leitura exploratória e crítica nem desenvolva a habilidade para
descobrir as camadas de significação desse gênero.
Levar esse gênero a fazer parte das leituras dos alunos foi um desafio. Se
a leitura fora da escola já era escassa, a de poemas era ausente.
O relato que se segue apresenta uma estratégia para vencer esse desafio.

Oficinas de poemas: alternativa


para cativar e formar o leitor

Para realizar o trabalho de leitura e, posteriormente, de escrita de poemas,


inspiramo-nos em Dolz, Noverraz, Schnewly (2004), que discorrem acerca da
importância do ensino dos gêneros orais e escritos, por meio das sequências
didáticas visando a uma aprendizagem significativa e eficaz dos gêneros que
circulam socialmente e a um domínio das competências leitora e escritora.
Para desenvolver a escrita de poemas, como já mencionado, as atividades
foram pautadas em Jolibert (1994), numa série de atividades denominada
“Oficina de poemas”.
Consideramos que a apresentação do gênero poético no formato de ofici-

585
nas foi um ponto positivo que colaborou para que a aula se tornasse atraente,
pois em cada oficina era apresentado um poeta diferente; a novidade esti-
mulou a curiosidade e o interesse.
A motivação ocorreu pela abordagem, pela forma como os poemas foram
apresentados inicialmente: em caixas. Os alunos organizaram-se em grupos
e cada grupo recebeu uma caixa decorada cujo conteúdo eram poemas. Os
poemas chegaram aos alunos não em livros, nem em provas, mas em caixas
decoradas como se fossem presentes, impressos em papéis coloridos. Ver-
dadeiros “presentes”. A estratégia das caixas de poemas mostrou-se uma
solução prática para a falta de livros de poemas.
Como um dos objetivos era ampliar o letramento literário dos alunos e, ao
mesmo tempo, fazer a progressão leitora, optamos pela valorização da nossa
literatura privilegiando escritores brasileiros. Cada caixa continha poemas
de um criador modernista: Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Vinícius de
Moraes e Mario Quintana.
A princípio, o contato dos alunos com o conteúdo das caixas foi tímido.
Inicialmente, uma leitura silenciosa, depois compartilhada e mediada pela
professora. A cada oficina realizada, eles se familiarizavam com o gênero e
começavam a apreender suas características. Estavam diante de um texto
que exige uma leitura atenta aos vários aspectos: sonoros, rítmicos e lexicais,
além dos gramaticais, textuais e discursivos.
O ritmo, as rimas, as assonâncias e aliterações, as repetições e o poder
imagético dos poemas, assim como as figuras de linguagem, trabalhados em
cada uma das oficinas, despertaram nos alunos um olhar sensível e apurado:
eles pareciam saber que há um “mistério” a ser desvendado em cada poema.
Em textos não literários, as palavras são pensadas em função do referente
externo – situado fora do texto –, no mundo real; já no texto literário e, de
modo particular, no poema, há elementos de composição que sugerem ao
leitor a busca de referentes internos ao próprio texto, existentes apenas no
universo do poema. Do conjunto de todos os aspectos, resulta a plurissigni-
ficação (Guimarães, 1994).
Numa dinâmica diferente da utilizada com as caixas, os alunos tiveram
a oportunidade de conhecer aquele que, segundo Bosi (1975, p. 490), em sua
História Concisa da Literatura Brasileira foi “O primeiro grande poeta que se

586
afirmou depois das estreias modernistas”: Carlos Drummond de Andrade.
São palavras de Bosi (1975):
Na verdade, desde Alguma Poesia foi pelo prosaico,
pelo irônico, pelo anti-retórico que Drummond se afir-
mou como poeta congenialmente moderno. O rigor da
sua fala madura, lastreada na recusa e na contestação,
assim como o fizera homem de esperança no momento
participante de A Rosa do Povo, o faz agora homem de
um tempo reificado até à medula pela dificuldade de
transcender a crise de sentido e de valor que rói a nossa
época, apanhando indiscriminadamente as velhas elites,
a burguesia afluente, as massas. (BOSI, 1975, p. 495).

Na oficina de poemas dedicada aos poemas de Drummond, utilizamos


outra estratégia que não a das caixas. Os alunos sentaram-se no chão, for-
mando uma grande roda. No centro, foi montado um mosaico com imagens
de caricaturas do poeta Carlos Drummond de Andrade; no verso de cada
imagem, havia um poema dele. O aluno escolhia uma caricatura, virava-a
e lia para os colegas o poema que constava atrás. Cada aluno escolheu uma
caricatura e leu um poema. Na sequência, foi dada voz aos alunos, para se
expressarem sobre o que ouviram, levantarem dúvidas e formularem hipó-
teses. Alguns preferiram não se expressar, outros fizeram comentários sobre
o que haviam entendido. A professora mediava e fazia interferências para
chamar a atenção para recursos presentes no poema.
Essa oficina foi muito produtiva e serve de sugestão para professores que
pretendam trabalhar o poema. Seria possível pedir aos alunos que tragam
imagens ou caricaturas de determinado poeta e elaborem placas com ima-
gens na frente e poemas no verso, criando-se, em seguida, condições para
que todas as placas sejam lidas.
Conhecer os poemas foi uma experiência de descoberta, os alunos atri-
buíram sentido a essa leitura com a qual se comunicam de uma maneira
muito diferente das narrativas que estavam acostumados a ler.

587
Da leitura à escrita de poemas: aspectos
dialógicos das produções discentes

Das oficinas com foco na leitura de poemas passamos, de forma gradual, ao


foco na escrita de poemas. O processo iniciou-se com escritas de quadrinhas,
inicialmente coletivas, depois individuais. Os alunos consultaram os colegas
para que lessem seu poema, opinassem ou sugerissem alterações. Foi um mo-
mento de compartilhamento e prática efetiva de uso da Língua Portuguesa.
Trata-se de um processo que exige do aluno escolhas lexicais, tanto para a
adequação discursiva como para a adequação linguística no que se refere aos
aspectos sonoros próprios do gênero: ritmo, rimas, repetições de palavras ou
expressões, além de figuras de linguagem entre outros recursos. É em busca
do melhor substantivo, do adjetivo mais adequado ou da rima para finalizar
uma estrofe que a criatividade aflora e a competência escritora se amplia e
prepara aluno para a escrita de outros gêneros.
Todo o trabalho foi pautado na concepção de gênero e na teoria dialógica
da linguagem postulada por Bakhtin. Em relação à escrita de poemas, no
contexto escolar, a voz do aluno, seu ponto de vista, o que deseja comuni-
car pela escrita – tudo isso remete à ideia de dialogismo, uma vez que seus
enunciados emergem de outros, transformam-se e renascem na forma do
enunciado individual, como explica Bakhtin:

Pode-se colocar que a palavra existe para o locutor


sob três aspectos: como palavra neutra da língua e que
não pertence a ninguém; como palavra do outro perten-
cente aos outros e que preenche o eco dos enunciados
alheios; e, finalmente, como palavra minha, pois, na me-
dida em que uso essa palavra numa determinada situa-
ção, com uma intenção discursiva, ela já se impregnou de
minha expressividade, repetimos, não pertence à própria
palavra: nasce no ponto de contato entre a palavra e a
realidade efetiva, nas circunstâncias de uma situação
real, que se atualiza através do enunciado individual.
(BAKHTIN, 1997, p. 313).

588
Uma vez que este trabalho com a leitura e a escrita de poemas bebe na
fonte da teoria bakhtiniana, e que todo enunciado exige uma postura res-
ponsiva, é previsível que os alunos demonstrem em seus poemas uma atitude
dialógica, sem deixar de observar os esclarecimentos de Fiorin a respeito do
vocábulo “diálogo”:
O vocábulo “diálogo” significa, entre outras coisas,
“solução de conflitos”, “entendimento”, “promoção de
consenso”. “busca de acordo”, o que poderia levar a pensar
que Bakhtin é o filósofo da grande conciliação entre os
homens; não é nada disso. As relações dialógicas tanto
podem ser contratuais ou polêmicas, de divergência ou
de convergência, de aceitação ou de recusa, de acordo
ou de desacordo, de entendimento ou desinteligências,
de avença ou de desavença, de conciliação ou de luta,
de concerto ou de desconcerto.”(FIORIN, 2008, p.24).

Fiorin (2018) elucida o conceito de dialogismo da seguinte forma:


(...) o enunciador, para constituir um discurso, leva
em conta o discurso de outrem, que está presente no
seu. Por isso, todo discurso é inevitavelmente ocupado,
atravessado, pelo discurso alheio. O dialogismo são as
relações de sentido que se estabelecem entre dois enun-
ciados. (FIORIN, 2018, p. 22).

Com apoio nesse conceito de dialogismo, compreendemos melhor a pro-


dução discente e a forma como os alunos absorvem outros enunciados e
apresentam, na própria escrita, uma postura responsiva, mesmo que por
meio de indícios mínimos.
Esses indícios dialógicos, quando explícitos, podem ser considerados dis-
cursos reportados. Faraco (2009) apresenta o conceito de discurso reportado
como a presença explícita da palavra de outrem nos enunciados, conforme
textos de Bakhtin e Voloshinov.
Em Faraco (2009, p. 139) lemos: “(...) para Voloshinov, o discurso repor-
tado não se esgota na citação, mas deve ser considerado como um ato que
revela também uma apreciação valorada da palavra de outrem.” O discurso

589
reportado que veicula a valoração da palavra do outro é um fato importante
a ser observado nos poemas discentes, pois se mostrou recorrente.
Segue um recorte da produção discente nas quais comentamos os tra-
ços dialógicos referentes aos poemas Poesia e José, de Carlos Drummond de
Andrade, que foram notados nos poemas discentes. Passamos aos poemas
que dialogam com Poesia.

Poesia1
Gastei uma hora pensando em um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.

Transcrevemos a seguir o poema discente Pensamento e, na sequência,


a análise das relações dialógicas que ele apresenta.

Pensamentos
Um poema eu quero fazer
Mas ideias não consigo ter
Um chuva de letras quero receber
Para meu poema nascer.
(Aluno 1)

Note-se que o poema Pensamentos aproxima-se do aspecto formal de


Poesia. O aluno compõe um poema em estrofe única e adota uma temática
parecida com o poema canônico: o desejo de escrever um poema e a dificul-
dade de torná-lo concreto.
No poema drummondiano, há as ideias, Ele está cá dentro (verso 3) e
há a dificuldade de transformá-las em símbolos organizados e não quer sair
(verso 6); já no poema discente, há o desejo de escrever, mas não há ideias.

590
Consciente desse processo, o aluno-autor deseja receber um chuva de ideias
que se concretiza no poema como chuva de letras Uma chuva de letras quero
ter (verso 3) / para meu poema nascer (verso 4).
Os poemas se aproximam em relação à adequação discursiva que trata da
dificuldade de compor um poema, seja na questão de transformar a poesia
em signo concreto - o poema - seja na dificuldade de ter o que dizer em um
poema. Há, portanto, uma relação dialógica entre os dois poemas: tanto o
poema discente quanto o drummondiano retratam a consciência do autor
sobre o ato da escrita.
Fica evidente como o processo de leitura de poemas embasa a produção
escrita. Por meio das oficinas de leitura, o aluno desenvolveu o exercício
de escrita poética. Seja pelo exemplo estrutural seguido a partir do poema
“Poesia”, seja pela real consciência da dificuldade da escrita seguida da ar-
gumentação “Um poema quero fazer / mas ideias não consigo ter” o aluno
constrói seu poema, é autor e sabe que terá outros leitores além do professor.
Assume o sentido de agência (BAZERMAN, 2011) ao se apropriar, total ou
parcialmente, das características do gênero, e atua como agente consciente
de sua escrita e de sua função social.
O segundo poema discente apresenta traços dialógicos não só com o
poema Poesia, mas também com outras leituras feitas pelo aluno no decor-
rer da vida escolar, acompanhada pela mesma professora desde o sexto ano.

Imaginação
Queria viajar para um lugar
Jogar o pó de pirim-pimpim
E ir para um jardim
Onde as flores são para mim.
Lá as estrelas caem do céu
Aquele céu cor de mel
A pena parou de escrever
Pois chegou o fim do papel.
(Aluno 2)

591
Esse poema representa o potencial criativo que a escrita de poemas pode
despertar. Além de trabalhar na composição do gênero poético, o aluno de-
monstra habilidade em relacionar suas leituras anteriores, principalmente
de narrativas, ao mesmo tempo em que dialoga com o poema drummondiano
Poesia, formando uma rede dialógica.
Comecemos pelo título: Imaginação. Ele prepara o leitor para algo hipo-
tético, não real e até inusitado.
A adequação discursiva leva o leitor a entender o texto pela escolha do
verbo conjugado no pretérito imperfeito do indicativo, com valor de futuro
do pretérito, que sugere a hipótese de uma atmosfera imaginária, talvez oní-
rica, ao mesmo tempo em que apresenta o que é imaginado pelo eu-lírico.
O eu lírico quer sair da realidade, viajar para um lugar imaginário ao
qual se chega somente com o pó de pirim pimpim, fazendo referência ao pó
de pirlimpimpim2 que, segundo a narrativa de Monteiro Lobato, em Reinações
de Narizinho, fazia com que as pessoas, num passe de mágica, viajassem de
um lugar a outro.
O verso 3 Ir para um jardim remete à leitura do livro As aventuras de Alice
no país das maravilhas, de Lewis Carroll, lido no sexto ano. Nessa narrativa
Alice tenta passar por uma portinhola que dá acesso a um jardim.
A imaginação faz o eu lírico viajar; ir do Sítio do Pica Pau Amarelo ao
jardim de Alice no qual pode contemplar flores que nasceram para ele. A
descrição desse jardim continua no segundo quarteto quando menciona as
estrelas cadentes: Lá as estrelas caem do céu (verso 5); o céu tem uma cor
inusitada, e ao mesmo tempo remete à doçura do mel, reforçando que o lugar
é bom, mas no meio desse segundo quarteto, ocorre uma cisão. A descrição
imaginária é interrompida por um fato real, não imaginário, um dado do
cotidiano A pena parou de escrever / pois chegou o fim do papel (versos 7 e 8).
O poema faz um movimento circular realidade-imaginação-realidade.
Inicia contando ao leitor seu desejo (momento na realidade), em seguida,
leva-o a fazer a viagem (momento não real/ imaginação) e retorna à realida-
de marcada pela pena impossibilitada de continuar devido à falta de papel.
O dialogismo percorre todo o poema, de forma mais perceptível, nos
versos 7 e 8 que retomam os versos drummondianos. Trata-se, portanto, do
discurso reportado, ou seja, da presença explícita da palavra do outro no

592
enunciado. Lê-se em Poesia, de Drummond, que a pena não quer escrever
(verso 2) e , no poema discente, A pena parou de escrever ( verso 7). A apro-
ximação com o verso de Drummond indica valorização e reconhecimento da
palavra do outro, mas também a consciência do processo de escrita. Dessa
forma, usa o código para explicar o próprio código, e faz uso, sem conhecer
o conceito, da função metalinguística. Essa atitude demonstra certo controle
sobre a escrita.
Note-se que o aluno consegue, além de manter-se dialógico, explorar,
mesmo que timidamente, recursos estilísticos; há, por exemplo, a presença de
metáforas: estrelas que caem do céu/ céu cor de mel/ a pena parou de escrever,
preocupação com a sonoridade marcada a partir da palavra pirim-pimpim
e das palavras com sonoridade próxima à dela. Esses recursos conduzem o
leitor na viagem até o momento em que a pena para de escrever e há um
retorno à realidade.
Passemos ao diálogo com outro poema do mesmo autor, do qual trans-
crevermos um excerto. Trata-s de José3 também de Carlos Drummond de
Andrade.

José
E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, Jossé?
e agora , você?
você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta?
e agora, José?
(...)

Segue-se o poema discente:

593
E agora?
Me apaixonei, me apaixonei
Caí de paraquedas
No abismo do amor
Uma paixão tão intensa e profunda
E, infelizmente, mal correspondida.
O pior de tudo é que não sei
Porque me apaixonei
Foi pela minha amiga,
Minha melhor amiga!
E agora, o que fazer?
(Aluno 3)

A produção que acabamos de ler apresenta, já no título, a valorização do


discurso do outro. A pergunta que percorre o poema José, de Drummond, E
agora, José? torma-se, parcialmente, o título do poema discente, mantendo
com o outro um diálogo. O título antecipa ao leitor, por meio da pergunta,
que as linhas que ele irá ler apresentarão um problema.
A adequação ao gênero é cumprida tanto no que se refere à adequação
discursiva, quanto ao que se refere à adequação linguística. O poema trata de
um tema comum na adolescência: a descoberta do amor, porém apresenta um
problema: o eu lírico apaixona-se por quem não deveria, sua melhor amiga.
Essa paixão não é correspondida E, infelizmente, mal correspondida (verso
5), o que agrava o problema. O eu-lírico não vê solução e termina o poema
com um pedido de conselho: E agora, o que fazer? (verso 10).
Note-se que o dialogismo não ocorre apenas pela presença da expressão
E agora presente no título e no verso final; há um dialogismo no que se refere
a situações sem saída. No poema José são apresentadas várias situações sem
saída, nas quais José, interlocutor do eu-lírico, é questionado quer morrer
no mar,/ mas o mar secou;/quer ir para Minas,/Minas não há mais./José , e
agora? Também para o eu lírico do poema discente, a situação é sem saída.
Os dois poemas terminam sem solução, os últimos versos dos dois poemas
são finalizados com uma frase interrogativa.
Em relação à adequação linguística, o poema é construído em uma única

594
estrofe e trabalha com poucas rimas sei/apaixonei, mas garante o ritmo com
outros recursos como a repetição no primeiro verso Me apaixonei, me apaixonei
que além de colaborar com o ritmo, dá ênfase ao problema que vai ser descrito.
Outro recurso estilístico usado são as metáforas: Caí de paraquedas / No abismo
do amor (versos 2 e 3); nem todos os poemas discentes apresentaram metá-
fora, recurso ainda raro, pois exige domínio maior da competência escritora.
Para reforçar a complexidade do problema, o aluno seleciona bem o
léxico, a ponto de construir, pela escolha das palavras caí/abismo/intensa/
profunda, um campo semântico que mostre que seus sentimentos não são
superficiais, ou de pouca intensidade. O eu-lírico busca explicação para seus
sentimentos, mas não os encontra. Há um julgamento pessoal, muito mais
do que aquele imposto socialmente; a moral internalizada do eu-lírico não
aceita o fato de ele se apaixonar pela melhor amiga. Mas podemos escolher
por quem nos apaixonamos?
Para encerrar, apresentamos um poema que dialoga em sua estrutura
com o poema Cota Zero4. Reproduzimos o poema drummondiano e, na se-
quência, a produção discente.

Cota zero
1-Stop
2-A vida parou
3-Ou foi o automóvel?

A seguir, o poema discente,

Alerta
1-Está aberto ou fechado?
2-Tem pessoas que avançam
3-No sinal avermelhado.
(Aluno 4)

Note-se como o aluno explora a estrutura do poema anterior. As temáticas


não coincidem, mas a forma composicional. O poema discente, assim como
o drummondiano, apresenta título curto e estrofe com três versos.

595
Também está presente o questionamento, marcado pela presença da pon-
tuação. No poema Cota Zero o verso interrogativo Ou foi o automóvel (verso
3) encerra a estrofe já, no poema do aluno, o verso interrogativo Está aberto
ou fechado? (verso 1) abre a estrofe.
Outra observação é sobre o tamanho dos versos. Embora os versos não
possuam a mesma métrica, o aluno compôs versos curtos, assim como no
poema de Drummond. Destacamos a posição crítica do aluno agente, capaz
de expor seu ponto de vista sobre o cotidiano, ao chamar a atenção para as
pessoas que não respeitam as leis de trânsito e atravessam no sinal verme-
lho colocando em risco muitas vidas, além da própria. A princípio, o poema
discente questiona se o sinal está aberto ou fechado, pois se estiver fecha-
do não se deve avançar, porém não é o que ocorre. Há muitas pessoas que
atravessam o sinal vermelho no momento em que deveriam estar paradas.
Verbo e cor (parado/pare/avermelhado/vermelho) nos remetem ao verbo
stop, em inglês. Diante da iminência do perigo de se atravessar o sinal aver-
melhado, o aluno adverte, de forma criativa, logo no título: Alerta.
Além de relacionar a estrutura do poema com o poema drummondiano,
percebemos que o aluno teve cuidado com a rima entre o primeiro e o terceiro
versos: fechADO/ avermelhADO, recurso que colabora para o ritmo do poema.

Considerações Finais

Há ainda muito a avançar em relação às competências leitora e escritora,


à formação do leitor literário e à formação de leitores de poemas, mas, na
medida em que os alunos se apropriem das características do gênero poema
e de outros gêneros literários que venham a aprender durante seu percurso
escolar, a formação que desejamos e pela qual lutamos, tende a ampliar-se.
A proposta didática realizada por meio das Oficinas de poemas não cons-
titui algo acabado nem imutável, ela pode ser reformulada e adequada con-
forme o contexto da turma. No caso da turma em questão, no que se refere à
recepção do gênero, a maioria da sala recebeu e interagiu bem com os poemas.
Quase todos apreciaram as oficinas de leitura, participaram, conseguiram

596
fazer múltiplas leituras e, quando passaram da leitura à escrita, pediram
ajuda a colegas para compor as rimas. Proporcionou-se um momento de co-
laboração, compartilhamento e prática efetiva de uso da Língua Portuguesa.
Foi na interação e na produção escrita que a formação do leitor por meio
de poemas se mostrou efetiva, além de atingir o objetivo de formar leitores
literários, ampliando seu repertório. A estratégia contribuiu para que o aluno
se sentisse confiante ao compor seus poemas, expor seu ponto de vista, ma-
nifestar seus desejos, viajar por mundos encantados, denunciar realidades
cotidianas, ou seja, a leitura contribuiu para que os alunos organizassem seu
pensamento e conseguissem manifestá-lo num texto ordenado, não apenas
coerente e coeso, mas num texto que exige um trabalho especial com a lin-
guagem, como é o poema.
É fato que a formação de um leitor autônomo ocorre ao longo da vida e de
forma gradual e que as Oficinas de poemas representam uma pequena par-
cela na caminhada de leitor que esses e outros alunos trilharão. As oficinas
destinadas à leitura de poemas foram fundamentais para ampliar o letra-
mento literário, conhecer a forma composicional do gênero, desenvolver as
múltiplas possibilidades de leituras que um poema sugere, estimular a leitura
pelo prazer estético, tanto a de poemas, como também dos demais gêneros
textuais e contribuir para o dialogismo tão presente nas escritas discentes.
A cada leitura, uma surpresa, portando surpreendamo-nos com nossos
alunos, esses jovens poetas!

597
Notas

1 ANDRADE, 2013, p.45


2 Lobato, Monteiro. Reinações de Narizinho. São Paulo: Brasiliense, 2004. p.
154-155.
3 ANDRADE, 2010, p. 30
4 ANDRADE, 2015, p. 31

598
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600
Z
O universo verbovisual em José
Saramago: uma leitura de A maior
flor do mundo e O silêncio da água
Nefatalin Gonçalves Neto

A produção literária poderia ser pensada, em sua diversidade e pluralidade


de gêneros, como errante. Assim, a experiência errante da escrita lida com a
prolífera significação da linguagem no espaço literário promove um exercício
de deslocamento de sentidos, que apresenta o inusitado como possibilidade.
Sem querer tornar tal afirmativa uma conceituação do objeto literário,
gostaríamos de nos valer de sua proposição e condição propiciadora para
pensar a literatura saramaguiana – mais especificamente dois de seus livros
para crianças, A maior flor do mundo e O silêncio da água. A escrita de textos
cujo espaço de circulação prevê um público infantil inaugura, no universo
do escritor português, uma experiência da deriva, cuja consecução absorve
a ideia de acaso, de inesperado e de ação do leitor enquanto participante do
universo da criação. Destarte, nesse universo de choques linguísticos dire-
cionados, Saramago imprime sua criação a um contexto de errância conste-
lar, ou, dito de modo diferente, se vale desse caminhar detido sem aparente
direção para suspender a narrativa e transitar experiências. Pensemos essa
literatura primeiramente em sua inserção para, posteriormente, analisar de
forma detida essa errância.
Espaço de múltiplas linguagens e intenções, a literatura concorre, atualmen-
te, com uma variedade de objetos de informação e entretenimento, tais como
videogames, processos interativos via internet, filmes, séries, canais multimídia,

601
dentre outros instrumentos. Ao adentrar o universo infantil e escolar, muitas
vezes tais objetos tecnológicos acabam por assumir um espaço que anterior-
mente era ocupado principalmente pela literatura: o de instruir e deleitar. Essa
disposição não é, à primeira vista, algo ruim, afinal, todos os meios de promoção
do conhecimento são válidos. Entretanto, ao ocuparem por completo o espaço
no qual o literário também atuava, tais dispositivos criam uma espécie de ce-
gueira, pois não são capazes de suprir, qual a literatura, nossas necessidades
vitais de ficcionalização, fantasia e exotopia, conjugados com um processo de
reflexão e compreensão do real. Essa cegueira existencial, social, cultural e,
também, cognitiva será lida, ficcionalmente pelo mesmo Saramago em um
de seus romances mais famosos: Ensaio sobre a cegueira. Nele, a saturação do
visual, a inserção do simulacro e a projeção de falsas realidades tratadas como
verdade acabam por criar pessoas que, de tanto enxergarem, não veem mais
nada. Ao discutir, dentre outras coisas, a inserção do simulacro na realidade
cotidiana sem distanciamento crítico, Saramago acaba por questionar, mesmo
que indiretamente, tais problemáticas que estamos delineando.
Regressando à função literária e sua inserção no ambiente escolar, há uma
espécie de luta, em especial dos livros direcionados para crianças e jovens, em
se tornarem objetos de consumo, tanto quanto de ensino-aprendizagem e de
fruição estética. Junto com suas nuances, há, ainda, uma sobreposição entre
linguagem verbal e não verbal. Isso porque livros infantis são reconhecidos,
geralmente, por possuírem características de simplicidade e exuberância
juvenil. Essa sobreposição, que apela para a imagem como atrativo passou a
ser não um complemento, antes uma possibilidade de descortinar dimensões
novas aos leitores pois, ao aglomerar conteúdo estético, linguagem visual e
novas possibilidades de significação, o livro infantil promove um novo cami-
nho para sua existência, ou, dizendo de outro modo, “no universo infinito
da literatura sempre se abrem outros caminhos a explorar, novíssimos
ou bem antigos, estilos e formas que podem mudar nossa imagem de mundo
(...)” (CALVINO, 2001, p. 19). Ou seja, na perspectiva de angariar um vasto
público e em luta contra as tecnologias e atrativos de massa, o design do li-
vro infantil é uma forma de se tentar controlar a recepção do público leitor,
tendo em vista que esse processo realiza, também, uma mediação de leitura.
A postura descrita por Calvino é, sabe-o muito bem o leitor contumaz

602
de Saramago, comum aos textos do escritor português. A surpresa narrati-
va, cujos meandros abrem novos caminhos e apresenta formas diferentes
de se pensar o mundo se dá pela criação de não-lugares e não-tempos nos
quais se instaura uma zona intervalar que reaproxima de forma diferencial
linguagem e objeto. Dentro de tal realidade, as personagens saramaguianas
transitam e adquirem experiência por meio de seus deslocamentos, que aca-
bam, contiguamente, acontecendo não apenas pelo tempo-espaço criados,
mas também por novas ideias, pelas reflexões que o narrador intrometido
apresenta, pelos atalhos da própria literatura, através de vozes portuguesas
que já escreveram antes sobre o mesmo assunto. Há, em outros termos, a
experimentação do deslocamento absorvente, deglutidor e ruminante, ca-
paz de reinaugurar a memória leitora. Somada a tais técnicas, a ilustração,
enquanto objeto mediador de leitura, soma-se a tais elementos e se torna
promotora de significação também.
Semelhante ao universo de seus romances adultos, os livros infantis de
José Saramago trabalham com uma pluralidade de códigos e sentidos; va-
lem-se de diversos artifícios para adentrarem o mercado industrial enquanto
produto múltiplo e de qualidade sem deixar de lado seu aspecto artístico. Um
dos pontos de maior valoração dessa aglutinação de elementos é, qual a gran-
de maioria dos livros infantis qualitativos do mercado editorial, a contração
da imagem verbal com a visual. Esse processo gera, no universo cognitivo
da criança, diversas e constantes possibilidades de desautomatização. Papel
fundamental no desenvolvimento do objeto livro, a imagem visual (ilustra-
ção) aflora emoções e direciona significados, pois é o primeiro chamado do
livro. É para ela que todo leitor olha, antes mesmo de ler ou de dominar o
sentido criado pela junção de letras e palavras. Assim, acreditamos, como
Linden, que “(...) a imagem se afirmou a ponto de ‘contaminar’ o conjunto das
mensagens e fazer do livro ilustrado um objeto visual a priori” (2011, p. 21).
Cremos que a imagem, no livro infantil, alcança o mesmo poder de abs-
tração que as palavras no texto para adultos, pois a dimensão gráfica do livro
(em especial dos de Saramago) ultrapassa a neutralidade e faz-se signifi-
cativa por florescer práticas sociais plurais. Para Chartier, a materialidade
e o design tanto bidimensionais (gráfico) quanto tridimensionais (objeto)
do livro – bem como a forma pela qual ele é lido – influenciam fortemente

603
a sua recepção. Ou seja, reconhecemos, junto com o pesquisador francês,
que “(...) o texto possui dimensão gráfica (não é imaterial), e cada aplicação
(dispositivos de sua escrita e de sua comunicação) do mesmo texto altera
sua apreensão, pois também gera novos significados” (CHARTIER, 2002, p.
62). Destarte, a forma de se ler o livro infantil é fortemente relacionada a
aspectos visuais. Seu design influencia a atitude do leitor perante os eventos
descritos no livro linguisticamente. A imagem torna-se, também, expressão
e comunicação, quebrando convenções e estabelecendo ultrapassagem da
quantidade e elaboração e promoção da qualidade. Sua existência promove
um leque de interpretações possíveis. Desde a capa até o mínimo detalhe
que o ilustrador alocou de forma meticulosa e articulada, a riqueza da ima-
gem apenas soma ao poder da palavra. Ela ensina a olhar e, mais que isso, a
aperfeiçoar a capacidade leitora de constatar os diversos meandros e cons-
truções do signo verbal. Similar à melodia que acompanha a letra da canção
e carrega-a de possibilidades, a imagem cria uma harmonia entre letra e
sentido. A imagem faz o papel de cimento narrativo, pois sustenta a trama
sem denunciar o sentido final e angariando possibilidades interpretativas. Ao
pensarmos na realidade literária, ela deve produzir uma conversa interdis-
cursiva, emaranhar texto, imagem, sentido, ficcionalidade, direcionamento
e intenção; e tudo isso sendo livre: não precisa – e nem pode – dizer exata-
mente o que está no texto, mas também não o diz precisamente. Sua função
é suplementar, não direcionadora.
Ora, esse locus promotor de variabilidades e causador da desautomatiza-
ção rearticula o comum e faz com que o sonhar ultrapasse fronteiras. Assim,
é por meio do objeto livro que a criança produz seu primeiro campo de signi-
ficação, amplia seu repertório e aprende a realizar jogos metafóricos e com-
plementares aos demais sentidos. Ora, é justamente nesse processo formador
que encontramos o caráter dialógico do livro infantil e juvenil ilustrado: ao
somar-se de forma suplementar à palavra, a imagem abandona seu estatuto
de fonte suprema de entendimento; por seu turno, a palavra deixa de ser a
representante ideal e plena de tudo. As duas instâncias passam a ser uma
coisa só, fusão na qual cria-se um espaço interlocutivo aberto para o leitor
encontrar-se e atuar. Ao somarem-se as duas, não temos o predomínio de
uma linguagem sobre a outra, antes sua articulação para ampliar as possibi-

604
lidades de autorreflexão, caras a qualquer leitor, tenha ele a idade que tiver.
Sem esse espaço – cujas características são diferentes em outros gêneros
literários, mas não deixam de estar presentes – não haveria a possibilidade
de existência de um papel ativo de interpretação, pois o signo – verbal ou
visual – seria senhor e dono da interpretação. O poder da união entre palavra
e imagem se dá justamente pela criação desse espaço polifônico, dialógico,
criador de grandes lacunas que exigem continuamente um preenchimento
por parte do leitor. A ilustração agrega dados que não são narrados verbal-
mente, mas que podem se somar e ampliar aquilo que é narrado para somar
à atribuição de sentido. Ou seja, entre narração e ilustração existe uma uni-
dade estética nada gratuita. Um espaço novo e impossível de ser ignorado,
já que é ele um dos elementos que permitem à Literatura Infantil erigir-se
como objeto artístico de alta resolução.
Há que abrirmos um parêntese em nossa argumentação para discorrer
rapidamente e nos posicionarmos sobre uma problemática que circunda tais
questões: a de saber para qual faixa etária é destinada o livro infantil ilus-
trado. Sem delongas ou mesmo floreios, defendemos que os livros são para
todos. Não há texto com limite de idade. Apesar de sabermos ser impossível
a uma criança de oito anos ler Don Quijote em sua versão completa por falta
de competência cognitiva, o contrário não é correspondente. Textos ficcio-
nais dedicados a pessoas mais adultas vão, paulatinamente, perdendo cores e
imagens, até tornarem-se pura letra; há uma espécie de menosprezo à leitura
imagética. Ademais tal processo, os livros “infantis” são assim designados
não para restringir uma faixa etária, antes para pensar sua possibilidade
inicial. Em outros termos, o livro – inclusive o infantil – é para todos, a co-
meçar pelas crianças.
Em resposta à indústria cultural – que exige a criação de produtos de
captação da vontade via consumo – os livros infantil e juvenil ultrapassam
o mero atrativo. O aspecto visual destaca-se, mas abandona a prevalência
do consumo para produzir uma coesão entre narrativa e visualidade. Essa
coesão põe em evidência justamente o jogo entre fictum e factum, tão comum
à literatura. Há a exaltação da oscilação entre realidade e fantasia, fator que
assimila o jogo enquanto método de criação e captação do leitor. Destarte,
a sensibilidade é posta para agir, já que ela é a chave necessária para a exis-

605
tência do processo comunicativo da ficção.
Partindo da ideia da imagem como elemento dialógico necessário para
uma melhor interpretação textual do livro infantil, bem como seu papel en-
quanto espaço de interação e de interpretação, nossa proposta é a de perscru-
tar dois livros infantis do escritor português José Saramago para, por meio de
nossas investidas, identificar se esses escritos apontam para essa tendência
estética. Tomados por tal propósito, nos debruçaremos sobre A maior flor do
mundo – livro lançado em 2002 – e O silêncio da água – cuja 1ª edição é de
2011 – enquanto objetos artísticos que possuem um universo rico de sugestões
imaginativas e passíveis de analogias. Para a realização da tarefa proposta,
buscaremos elencar os caracteres de ordem metatextual presentes nos dois
textos, demonstrando analiticamente quais os processos que estimulam a
postura reflexiva, crítica, dialógica e argumentativa da criança.
Por utilizarem recursos técnico-expressivos que sobejam a questão dia-
lógica, os livros em questão apresentam uma produção a quatro mãos. Isso
porque os ilustradores – João Caetano em A maior flor do mundo e Manuel
Estrada em O silêncio da água – não se conformam em apenas reproduzir
o dito, mas avançam, juntamente com o escritor, a fronteira que separa a
mera descrição para a criação de um espaço múltiplo, plurissignificativo.
Somando-se à palavra, as ilustrações fazem valer o princípio básico previsto
por Calvino de que o livro muda nossa imagem de mundo por meio de suas
imagens – sejam elas verbais e/ou visuais.
Voltando-nos para a realidade material de A maior flor do mundo cons-
tatamos, logo de início, que seu maior investimento se dá, justamente, na
produção de um discurso destinado à criança que relaciona texto e ilustra-
ção para compor um sistema orgânico, dialógico e de qualidade predomi-
nantemente literária. Tais observações se fazem necessárias pois indicam
a responsabilidade do escritor para com o universo do texto infantil. Expli-
quemos: muitos poderiam julgar que, por ser um escritor de romances para
adultos, Saramago não teria tato para produzir produtos artísticos desti-
nados inicialmente para crianças. Outro argumento seria o de que, apesar
de uma roupagem infantil, o texto presente em A maior flor do mundo era,
inicialmente, um conto do livro A bagagem do viajante, uma coletânea que
faz a recolha de textos publicados por Saramago no Jornal do Fundão ao

606
longo da década de sessenta do século XX.
Em resposta a esses argumentos, podemos elencar alguns pontos básicos
que mostram o além da mudança de roupagem e que, em única resposta,
desarticulam tais questionamentos: se em A bagagem do viajante encon-
tramos um texto cujo desenvolvimento corresponde quase integralmente à
narrativa de A maior flor do mundo, essa proximidade apenas confirma que
não existem limites de idade para a literatura dita infantil. O mesmo conto
de funções literárias pode ser direcionado tanto para adultos quanto para
crianças, fato que poderia nos levar a questionar sobre a imposição do que
lemos e quais obrigações cumprimos na leitura quando somos direcionados
pela indústria cultural. Em segundo, como dissemos, o texto atual apresenta
certa variante em relação ao original. Neste ele saiu com o título de História
para crianças e apresentava dois parágrafos a menos, um no início e outro
no fim. Já aquele possui a inserção de uma voz que explicita e dialoga com
o suposto leitor criança e o direciona de forma didática, além de propor um
desafio pedagógico no final: recriar a história lida em novos motes. Tais pro-
cessos organizativos transformam o texto inicial e ampliam sua qualidade,
sem deixar de pensar na multiplicidade de leitores. Além disso, há que pen-
sarmos na autonomia da criança, seu protagonismo, a ação de emancipar o
leitor em ser escritor e a fuga de um uso linguístico corriqueiro (que trata
a criança como um ser sem linguagem, quase um balbuciador), qualidades
que apenas ampliam a expressividade e o tato do escritor.
Voltando-nos diretamente para o livro, A maior flor do mundo carrega
uma novidade interessante em sua página de rosto: o recurso ilustrativo de
João Caetano coaduna pintura e colagem às ilustrações. Qual uma tela cor
pastel, a primeira folha do livro apresenta folhas secas, recortes de desenhos
diversos e rabiscos. Operando no processo paráfrase-criação, Caetano, ao
valer-se de diversos materiais em sua composição, provoca uma sensação
de relevo e de movimento. Dessa forma tem-se um efeito que ultrapassa a
sensação visual, possibilitando também o uso do sentido tátil. Esse trançar
entre texto, cor e imagem amplia o universo significativo do livro, pois o uso
da cor também é um recurso expressivo e afetivo dentro da narrativa visual.
A cor pastel, mesclada com o desenho de algumas plantas secas e sem vida
que ilustram a epígrafe, sugere a aridez. Contudo, o verbo que se soma à cor

607
produz um espaço novo, diferenciado, produz nova perspectiva, indiciando o
nascimento da palavra que brota na esterilidade falseada simulada pela cor.
Tal função é comum em bons livros literários, pois “A primeira experiência
por que passa uma criança em seu processo de aprendizagem ocorre através
da consciência tátil” (DONDIS, 2003, p. 5).
Somada a essa postura que enlaça visual e tátil, temos a indicação meta-
textual explicitada na frase que abre o livro: “E se as histórias para crianças
passassem a ser de leitura obrigatória para os adultos? Seriam eles capazes
de aprender realmente o que há tanto tempo têm andado a ensinar? ” (SA-
RAMAGO, 2001). Há que pensarmos, ainda, que esse trecho é uma espécie
de leitmotiv comum a Saramago. Essa citação de abertura age tal qual as
epígrafes dos romances de adultos do escritor. Uma frase curta, direta, in-
cisiva e que procura, em sua concisão, imbricar tema e mote do texto que
se seguirá. Se nos livros adultos a epígrafe é um rebuscado enigma que se
desentranha e vai tomando significado com o decorrer da narrativa, em A
maior for do mundo ela se torna ideal daquilo que virá a ser escrito. Ainda
em relação à folha de rosto, notamos que ela possui um elemento inusitado
que desestabiliza seus leitores. Nesta, apesar de a capa trazer em seu título
uma referência à maior flor do mundo, a imagem que é escolhida para ser
o “centro de atenção” da segunda capa não oferece nenhum destaque para
a flor, mas sim, para o olhar e o dedo indicador daquele que, confirmar-se-á
posteriormente, é um menino. A gravura do olhar mesclado ao dedo que
acaricia sugere que, numa espécie de recuperação dos elementos rústicos
postos junto à epígrafe, para adentrar à narrativa, o leitor precisa deixar-se
guiar pelas sensações do olhar e do sentir (ou, de outro modo, ser conduzi-
do tanto pelo verbal quanto pelo visual), assumindo uma postura receptiva
semiótica, e não somente linguística.
Desse modo, podemos tirar uma primeira conclusão do que vimos até
aqui. Se os elementos separados são estéreis, juntos eles possibilitam novas
miradas. Essa ideia de união produtiva metaforiza, por outro lado, o percurso
do leitor ao iniciar seu processo de leitura/interpretação de um livro, que vai
do mais simples, árido e seco ao mais requintado, colorido e multifacetado.
No texto em análise a imagem torna-se parte da vida textual, de sua expres-
são e comunicabilidade. Fugindo das convenções, as ilustrações de Caetano

608
convocam imagem, cor e movimento para participarem de sua criação, tor-
nando-a objeto complexo, sem facilitações, recheado de pluralidades.
Passadas as primeiras impressões, o que nos chama atenção no livro é
sua abertura. O texto inicial, mais uma vez, desautomatiza o leitor via in-
quietação e fuga da normalidade:
As histórias para crianças devem ser escritas com
palavras muito simples, porque as crianças, sendo pe-
quenas, sabem poucas palavras e não gostam de usá-las
complicadas. Quem me dera saber escrever essas his-
tórias, mas nunca fui capaz de aprender, e tenho pena.
Além de ser preciso saber escolher as palavras, faz falta
certo jeito de contar, uma maneira muito certa e muito
explicada, uma paciência muito grande – e a mim fal-
ta-me pelo menos a paciência, do que peço desculpa.
(SARAMAGO, 2000, p. 1)

Ao enunciar que vai contar uma história para crianças, o narrador es-
tabelece, de forma imediata, um contato direto com o leitor. Essa forma
direta de dirigir-se ao enunciatário – marca dos romances saramaguiano e
de seu narrador em especial – faz com que questionemos sua figura e ações.
Em outros termos, é possível pensar se quem se dirige ao enunciatário é um
narrador extremamente perspicaz ou a voz autoral, tornando-se presente
por meio do enquadramento da folha de papel? Sem adentrar tais questio-
namentos sobre a função e figura do narrador, é possível constatarmos que
o entrecho denota certa preocupação para com os leitores e, mais ainda com
as dificuldades do fazer textual.
Essa construção complexa, de múltiplas perspectivas, apresenta um
produtor atento à recepção de sua obra. Mais que isso, sua forma e postura
começam por demandar uma competência leitora ampla, exigente, de pene-
tração dos mínimos detalhes textuais. Ou seja, há camadas de leitura. Uma
criança lerá o livro de maneira simples, mas conforme o leitor seja mais
competente, existem milhares de questões e detalhes capazes de ampliar o
universo literário do texto. Há, ainda, o descortinamento do livro e de suas
duas vias de construção: por um lado a questão da metalinguagem, cerne
de sua arquitetura e, por outro, a ação atenta do narrador em preparar seu

609
enunciatário para o mundo ficcional que há de vir. Esse jogo intertextual se
adensa com o trabalho do artista plástico, que se insere no jogo metacrítico
e apresenta ilustrações que ressignificam o texto linguístico. Uma das que
melhor ilustram essa confluência é a imagem que acompanha o fragmento
verbal da página 3. Neste, o narrador-ilustrador apresenta algumas histórias
que fazem parte da memória coletiva e que sugerem um intertexto comum,
como se todas elas fizessem parte de um grande patrimônio pessoal e, ao
mesmo tempo, para todos. Temos, nessa confluência, à Ilha do tesouro e à
Moby Dick, além da presença de duendes, gnomos e outras personagens
ficcionais do universo encantado dos contos de fadas que, frequentemente,
povoam o maravilhoso das histórias infantis. Há, nessa construção, a sobre-
posição de projeções intertextuais que indiciam esse processo como modus
operandi do texto.
Esse processo crescente de intertextualidade metacrítica tanto verbal
quanto visual encontra seu ápice à página 12, momento em que existe a união
entre geral e particular. Há, no grande plano da tela, a representação do
rosto de um menino (muito semelhante, inclusive, ao menino protagonista
do texto que Caetano elabora). Esse menino sorri e admira algo que não ve-
mos o que seja, qual um enigma a ser descoberto. Contudo, se observarmos
detalhadamente, o pequeno plano apresenta detalhes, elementos, coisas
comuns à realidade do menino na narrativa. Em sua condição mais forçada,
ele representa a paisagem por onde este menino passa. Assim, árvore, folha,
pedra e outros elementos da natureza se unem para compor o sujeito que
protagonizará a narrativa, colocando em evidência o amálgama entre este
e a natureza que o circunda. A imagem, altamente poética, ativa o uso dos
sentidos para igualmente dar-lhe sentido. O texto se forja semioticamente.
Há como que a construção de um projeto poético-visual por Caetano que
encontra no signo linguístico de Saramago sua outra face. Temos a constru-
ção de um espaço intervalar que une entropicamente os dois processos. A
imagem sugere, qual o texto, que o protagonismo de cada sujeito se faz não
apenas com a curiosidade, mas também por meio de sua leitura sensível e
atenta das paisagens – espaço que parecia definhado e morto mas, por ação
concreta da criança, nasce novo. Visual e tátil se encontram nas folhas do
livro, compondo o deleite do leitor. Audição, paladar e olfato são sugestio-

610
nados por meio da figuração, resgatando a necessidade de o enunciatário
ter de ativar seus vários sentidos em favor de uma interpretação coerente.
Esse jogo em que a necessidade de participação do enunciatário é exigida
para que a narrativa seja concretizada é recorrente em Saramago e, no pro-
jeto arquitetônico de A maior flor do mundo, conclui narrativamente o livro,
de forma a propor que a aventura literária até ali vivida não está completa,
mas tem continuidade nas mãos do enunciatário – que deve viver as expe-
riências e, posteriormente, escrevê-las para melhorar o já feito. Há, na pro-
posta do livro, o interesse de que o herói permaneça em ação pelas atitudes
do leitor. Essa obrigação passada às mãos de quem completa o texto produz
uma cumplicidade e instaura, mais uma vez, a metalinguagem. O narrador
propõe que seu parceiro reinvente/perdure a trama narrativa:
Este era o conto que eu queria contar. Tenho mui-
ta pena de não saber escrever histórias para crianças.
Mas ao menos ficarão sabendo como a história seria, e
poderão contá-la doutra maneira, com palavras mais
simples do que as minhas, e talvez mais tarde venham
a saber escrever histórias para as crianças... Quem sabe
se um dia virei a ler outra vez esta história, escrita por
ti que me lês, mas muito mais bonita? (SARAMAGO,
2000, p. 22-23)

Ao apresentar novamente essa voz implícita, o conto de Saramago inicia


e termina demonstrando sua preocupação compositiva, a sugestão de que
nada é terminado por completo no espaço da literatura e, ainda, expressa
uma tomada de posição, quase um grito de engajamento dado por aquele que
não consegue apenas narrar, mas que precisa “(...) se concentrar naquilo de
que não é possível dar conta por meio do relato” (ADORNO, 2003, p. 56).
Há, por ultrapasse dessa impossibilidade, inclusive a indicação daquilo que
se deva fazer posterior à leitura.
A esta preocupação verbal marcada no texto, soma-se a plasticidade da
ilustração consolidada pela intervenção de Caetano na urdidura da trama.
A ilustração apresenta um senhor idoso, cuja imagem é bem semelhante à
figura do escritor Saramago. Essa proximidade resgata, mais uma vez, o jogo
entre real e ficcional instalado na primeira página do livro. A imagem, tam-

611
bém, remete ao início do texto, já que lá havia a figura de um escritor idoso
e aqui, essa figura reaparece, posto que, desta vez, com o olhar levantado,
como que a esperar do futuro a repercussão/reescrita/ação de sua escritura.
Esse esquema circular característico de vários textos do autor, fortalecido
aqui pela imagem visual, permite que o leitor continue em sua imaginação
as atitudes que a narrativa tomará dali em diante.
Para além dessa possibilidade de leitura, é possível pensar que o narrador,
representado imagisticamente, se coloca em um plano superior, no qual ele
pode entrar em contato com o mundo das possibilidades, o universo literário
puro que fora representado artisticamente páginas antes. Tal proposta imbrica
o signo verbal e ao pictórico, além de instaurar certa circularidade no projeto.
Sísifo em sofrimento, a ação de contar a mesma história de modos diferentes
se perpetua, seja pelas palavras “Quem sabe se um dia virei a ler outra vez esta
história, escrita por ti que me lês, mas muito mais bonita?...”, seja por meio da
imagem do escritor em espera, semelhante ao início do livro mas em pé, como
quem pensa esperando por diversas possibilidades, qual O Pensador de Rodin.
Esse eterno pensar de modos diferentes a mesma situação introjetada de
vivências e experiências pessoais promove um locus em que, pelo simbóli-
co, o leitor pode fruir uma multiplicidade de novas sensações. Desta feita, o
surgimento de novas narrativas em velhas histórias há de conservar o vigor
literário, reinflamado e desenvolvido a cada reescrita e releitura. No jogo
metalinguístico encenado pela escrita de Saramago, a flor indicia ser, ainda,
a própria obra literária. A metáfora da vida do literário que toma forma de
flor representa também o (re)nascer de cada história que se inaugura pelas
mãos de cada produtor, seja este legente ou escrevente.
É justamente neste processo metalinguístico, reflexivo e de caráter exis-
tencial que A maior flor do mundo dialoga e aponta possibilidades de leitura
a O silêncio da água, livro desentranhado de certa parte do “romance” As
pequenas memórias. Passemos a questão genérica das memórias sarama-
guianas, constatamos o recorte que se tornou livro infantil também carrega,
em suas linhas mestras, uma proposta de construção da escrita enquanto
vida, da escrita como (re)solução. E tal projeto se dá, também, por meio das
imagens que ilustram o livro, desde a capa até a última página.
Se, como dissemos anteriormente, certas marcas se repetem nas narra-

612
tivas saramaguianas, não seria diferente com O silêncio da água. Nele, há
um dado interessante que o faz dialogar com A maior flor do mundo: o tema
das origens. Assim como este é um recorte, proveniente de um livro para
adultos, aquele também tem origem em um livro de Saramago. Ou seja, os
dois, além de tratarem de questões metacríticas, não são novos por completo,
mas tiveram seus germes plantados em livros anteriores.
Ora, apesar de banal, tal reflexão denota que, qual seus leitores, Saramago
não está atrás de algo pronto, acabado, formatado em convenções e de fácil
assimilação e identificação. A marca de suas narrativas é a da ousadia, da
reinvenção, da constante fuga da moralidade em favor do deleite estético.
Se parece, à primeira vista, que os dois textos são moralizantes, sua leitura
analítica deles demonstra que elas não moralizam, antes são histórias para
deleitar leitores estilisticamente – isso, claro, sem excluir as outras proprie-
dades literárias ou sociais dos textos. Apesar de certas convenções, os dois
livros são escritos para sujeitos em busca de sanar sua necessidade de ficção
e fantasia. Não há moralidades, mas objetos em que o deleite se põe em pri-
meira constante, valorizando uma literatura que seja também para crianças,
na qual importa mais significar e fruir do que ensinar.
Essa postura, marca primeva de A maior flor do mundo, está também
presente nas linhas de O silêncio da água. Nesse conto extraído, temos a nar-
ração de uma aprendizagem que o narrador-menino adquiriu ao retirar-se
para pescar na beira de um rio. Essa aprendizagem se resume a conhecer o
silêncio da água, ação que exige uma postura reflexiva e aponta para a ne-
cessidade de a personagem saber observar, tanto quanto agir, em favor de seu
conhecimento. Essa necessidade de se admitir o silêncio, tal qual a missão
de salvar a flor, é na verdade a motivação para algo maior, um momento de
deleite literário que, por não pretender ensinar nada, carrega em si elemen-
tos de alto cunho ontológico.
O texto, em seu recorte, se vincula ao Bildungsroman, ou seja, às narrati-
vas de aprendizagem. Ao inserir um projeto de formação na trama textual, o
livro de Saramago como que, novamente, exige uma postura do leitor. Há um
pedido quase explícito de que o enunciatário se aproprie do texto que toma
contato. Tal possibilidade de leitura se dá tanto pela narrativa quanto pela
ilustração, já que as páginas do livro, curiosamente, são repletas de letras,

613
que surgem dos mais variados lugares: chão, céu, nos pássaros, no vento etc.
Assim, O silêncio da água propõe, visualmente, que a leitura e, por conse-
guinte, a interpretação, não aconteça apenas por meio do verbal, mas, muitas
vezes, por meio do visual, do cotidiano, alumbramento proporcionado por
um momento de alta reflexão e interiorização. Há, como que a ressonância
de Freire quando afirma:
A leitura do mundo precede a leitura da palavra,
daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da
continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade
se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a
ser alcançada por sua leitura crítica implica a percep-
ção das relações entre o texto e o contexto. (1986, p. 11).

A aprendizagem não se dá apenas no contato entre sujeitos, mas também


desses com os objetos que os cercam e por meio de diversas situações em que
o imagético fala tanto quanto, e muitas vezes mais, que o verbal.
Retomando a ideia de texto que fala de si, para si e na espera do outro para
completar-se, O silêncio da água apresenta, explicitamente, o atravessar do
universo da linguagem que tece a literariedade – característica constituída a
partir do trabalho estético do autor – e se reescreve no traçado do ilustrador,
espaços complementares na atitude do leitor.
A descoberta de que ao silêncio produzido pela água – como um koan1 –
ilumina o narrador-menino, transforma-lhe a existência e faz com que ele
entreveja que é possível ao ser humano fruir, ou seja, vivenciar experiências
em que o estético é a tônica. Novamente a metáfora da vida do literário toma
forma, dessa vez como silêncio, alumbramento, renascendo a cada momento
de iluminação proporcionado pelo estético (no livro representado, repito, pelo
constante uso de letras surgindo a cada ilustração, se misturando ao cenário
composto pelas cores e transmitindo novas possibilidades interpretativas ao
texto). O silêncio representa, tal qual a flor, um (re)nascer, uma possibilidade
que pode ser realizada a cada nova incursão no texto/vida.
Assim, temos nas duas narrativas em questão um olhar centrado, princi-
palmente, na figura do menino herói. Um menino sem nome que, nas duas
narrativas, pode funcionar como sujeitos prototípicos, com valor de univer-

614
salidade e exigindo do enunciatário uma postura, um posicionamento. Essa
postura “ensina” que é preciso montar seu arsenal para enfrentar a vida e
suas possibilidades. Instaura-se, assim, um princípio de valor que coloca as
personagens em liberdade para enfrentar suas dificuldades e metaforizar a
problemática do sujeito leitor, dando-lhe opções para, também, tomar parte
da luta em favor de si. Assim, a personagem de O silêncio da água tem a ca-
pacidade de voar sobre os problemas sem preocupações. Ela vai e volta, sem
impedimentos do adulto, ao rio – espaço literário perigoso por conter monstros
e perigos inauditos – qual a viagem do protagonista de A maior flor do mundo.
Tais liberdades, que misturam as fronteiras entre real e imaginário, facul-
tam-nos motes para via fantasia, enfrentarmos problemas reais. São koans
ficcionais que, sem resposta pronta, são acessíveis para uma vivência capaz
de atuar sobre a realidade e modificá-la. Salvando a realidade da flor ou ou-
vindo-lhe o silêncio para lhe compreender melhor.
Dessa forma, como característica precípua do bildungsroman, os textos
saramaguianos exigem do leitor, ao final da narrativa, uma tomada de posi-
ção. Essa postura apresentada configura a noção de obra aberta proposta por
Eco e completa nossa incursão pelo universo dos livros “infantis” do escritor
português. O estudioso italiano afirma ser o texto aberto “uma máquina pre-
guiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte de seu trabalho” (ECO, 1999,
p. 9). Essa manutenção da narrativa enquanto espaço aberto exige de cada
leitor uma escolha de olhares e valores. Qualidades essas que apontam para
um caminho mágico, desvelador de um universo possível. Assim, as formas
de indeterminação da poética saramaguiana exigem a participação do outro
na construção final do objeto artístico.
Ora, o modelo teórico de Eco, ao prever a descentralização da obra e sua
ampliação dos horizontes imagináveis para a concepção da realidade descreve
perfeitamente a ação dos livros em questão. A pluralidade de sentidos do mundo
e seu caráter multifacetado exigem do autor uma linguagem artística capaz de
promover no intérprete esse sentimento de descentralização e pluralidade, alcan-
çado, em grande parte, por uma educação do olhar nas obras em questão. Elas
acabam por ensinar valores éticos e estéticos por meio de seus diversos códigos.
Enquanto obras abertas, os textos de Saramago aqui expostos exigem
daquele que com eles interage uma gama de conhecimentos, e sua interfe-

615
rência tanto para ler o signo quanto para ler as imagens. O texto penetra o
leitor e é penetrado por sua experiência de vida. Dessa forma, pela conjun-
ção linguístico e pictórico o autor/narrador sai de sua caverna e se expõe
ao outro, o que nos permite afirmar, em conclusão, que a ilustração, quando
feita para dizer junto com o texto infantil, ao ser explorada esteticamente,
promove uma formação ampla do leitor.

616
Notas

1 O koan é uma narrativa, diálogo ou questão que, no Zen-Budismo, contém as-
pectos inacessíveis à razão. Seu objetivo principal é o de propiciar a iluminação
do aspirante a zen-budista.

617
Referências Bibliográficas

ADORNO, Theodor. Posição do narrador no romance contemporâneo. In:


______. Notas de literatura I. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Duas
Cidades/Ed. 34, 2003, p. 55-63.
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Cardoso.
São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
CHARTIER, Roger. Os desafios da escrita. Trad. Fulvia M. L. Moretto. São
Paulo: Editora da UNESP, 2002.
DONDIS, A. Donis. Sintaxe da linguagem visual. Trad. Jefferson Luiz Ca-
margo. São
Paulo: Martins Fontes, 2003.
ECO, Umberto. Obra Aberta: forma e indeterminação nas poéticas contem-
porâneas. São
Paulo: Perspectiva, 2005.
FREIRE, Paulo Freire. A importância do ato de ler: em três textos que se com-
pletam. 3 ed. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1986.
LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. Trad. Dorothée de Bru-
chard. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
SARAMAGO, José. A bagagem do viajante. Lisboa: Caminho, 1973.
______. A maior flor do mundo. Ilustrações de João Caetano. São Paulo:
Companhia das Letrinhas, 2001.
______. O silêncio da água. Ilustrações de Manuel Estrada. Lisboa: Caminho,
2011.

618
O
O uso narrativo das cores em
Olavo e O Matador , de Odilon
Moraes
Luara Teixeira de Almeida
Diana Navas

1. Breves considerações sobre


o livro-objeto contemporâneo

O livro-objeto contemporâneo se consolidou como uma forma de ex-


pressão (LINDEN, 2011) que se constitui, principalmente, a partir do diálogo
entre três linguagens: a palavra, a imagem e o projeto gráfico. A articulação
entre essas categorias não redundantes desenvolve uma narrativa que não é
apenas uma ou outra, mas algo construído a partir do conjunto híbrido entre
texto verbal, visual e gráfico.
Uma possível definição acerca do livro-objeto pode ser encontrada, em
1976, nas reflexões da crítica americana Barbara Bader, na introdução de seu
livro American Picturebooks: From Noah’s Ark to the Beast Within:
A picture book is text, illustrations, total design; an
item of manufacture and a commercial product; a social,
cultural, historical document; and foremost an experien-
ce for a child. As an art form it hanges on the interde-
pendence of pictures and words, on the simultaneous
display of two facing pages, and on the drama of the
turning page1 (BADER, 1976, p. 1 apud KIEFER, 1995, p. 6).

619
Observamos nessa definição, que serviu como ponto de partida para várias
outras discussões teóricas acerca do livro ilustrado, que Bader aponta para,
ao menos, três elementos constitutivos do livro-objeto: a linguagem verbal,
a imagem e o design, aspecto este último ressaltado por meio da expressão
o “drama da virada de página”. O livro-objeto, portanto, apresenta-se como
uma construção multimodal, isto é, trata-se de um objeto constituído por
meio de diferentes linguagens que estabelecem sistemas de signos e produ-
zem significados.
Azevedo, de forma bastante didática, corrobora os elementos apontados
por Bader, reconhecendo que a multimodalidade no livro-objeto se constitui
a partir de três sistemas narrativos que se entrelaçam:
1. o texto propriamente dito (sua forma, seu estilo,
sua linguagem, seus temas); 2. as ilustrações (seu supor-
te: desenho? colagem? fotografia? pintura? e também,
em cada caso, sua linguagem, seu estilo e seu tom). 3. o
projeto gráfico (a capa, a diagramação do texto, a dispo-
sição das ilustrações, a tipografia escolhida, o formato e
o tipo de papel) (AZEVEDO, 2005, p. 15).

Pode-se entender o livro-objeto como um produto estético que se realiza


por meio de manipulação, visão essa que tende a enfatizar o livro-objeto
como material manual destinado às crianças (D’ANGELLO, 2013). Para Van
der Linden (2011), os livros-objeto são objetos híbridos, situados entre o li-
vro e o brinquedo. Uri Shulevitz (1997) enfatiza a figura do leitor como elo
entre imagens e palavras, sugerindo que o livro-objeto é, na realidade, um
álbum que precisa de um equilíbrio entre texto e imagem. Ana Paula Paiva,
por seu turno, complementa e completa as definições. De acordo com a pes-
quisadora, o livro-objeto é a intersecção de livro-jogo, picture book, pop-up
book e flip book.

O livro-objeto inclui todo objeto de transfiguração


da leitura que materialize o sensório, o plástico, a ori-
ginalidade na concepção, intervenções poéticas, jogos
gráficos e visuais. Objetos que estabeleçam uma nova

620
emoção ao leitor – informando, estimulando, intrigando,
comovendo e entretendo (PAIVA, 2010, p. 91).

Em comum, as definições acerca do livro-objeto compartilham da inter-


dependência entre a tríade palavra-imagem-design, aspecto esse que parece
ser desconsiderado em alguns estudos críticos, nos quais, talvez em virtude
das fronteiras entre os aspectos da ilustração e os aspectos do design serem
bastante imprecisas, o projeto gráfico acaba circunscrito à ilustração. O de-
signer, entretanto, desempenha papel bastante significativo na construção
do livro-objeto, sendo responsável por “the overall appearance of the book
and the care brought to the sensitive working together of story and picture
and typographic treatment”2 (SOLOMON apud MOURÃO, 2017, p. 161).
Enquanto objeto multimodal, é preciso reconhecer, portanto, no livro-ob-
jeto, a interdependência entre os múltiplos códigos envolvidos na constru-
ção de sentidos, valorizando, desta forma, além da relação palavra-imagem,
também o projeto gráfico como aspecto que, ao mesmo tempo em que pode
influir nesta relação, pode também sofrer sua influência. Em outras palavras,
faz-se necessário evidenciar que escolhas como diagramação, cor, tipografia,
enquadramento, montagem, dentre outros, revelam-se como elementos que
não apenas interferem nas relações palavra-imagem, como sofrem também
sua interferência na elaboração do livro-objeto.
Para que efetivamente haja esta interdependência entre as diferentes lin-
guagens que compõem o objeto-livro, é preciso, entretanto, que a integração
esteja presente em todo o processo de elaboração. Em significativa parte da
produção destinada ao público infantil e juvenil brasileiro, as tarefas do pro-
cesso editorial se desenvolvem de forma separada e sequencial. Ou seja, as
atividades são desenvolvidas individualmente por cada agente em momentos
distintos: o escritor escreve, o ilustrador ilustra, o designer une o material pro-
duzido e confere forma ao objeto, e o editor publica. Essa forma fragmentada
de criação é vista de forma negativa por muitos críticos, os quais defendem que
a fruição do conteúdo, seja textual ou icônico, encontra-se privilegiada em um
trabalho conjunto, integrado e interdisciplinar. Em outras produções, obser-
va-se que o trabalho de autor, ilustrador e designer são desempenhados pelo
mesmo indivíduo, o que parece favorecer a interrelação entre as linguagens.

621
Em razão da multimodalidade de que é constituído, o livro-objeto deman-
da um novo tipo de leitura – uma leitura sinérgica das diferentes linguagens
que o constitui – o que sugere um novo papel a ser exercido pelo leitor.
A alfabetização de texto verbal é incentivada e praticada ao longo de
nossas vidas, portanto, uma pessoa alfabetizada é capaz de ler e interpretar
as palavras dispostas na narrativa. Contudo, a imagem, que também é uma
linguagem, necessita ser lida tal qual a palavra, com isso, é necessária uma
alfabetização visual (DONDIS, 2015), para a compreensão de sua mensagem.
Dondis (2015) expõe que “ainda que uma descrição verbal possa ser uma ex-
plicação extremamente eficaz, o caráter dos meios visuais é muito diferente
do da linguagem [verbal]” (2015, p. 21), ou seja, a comunicação por meio da
imagem pode ser explorada para proporcionar uma narrativa que englobe
as potencialidades de cada meio, relacionando uns aos outros. Além disso,
o uso da imagem liberta o texto verbal da obrigação de contemplar tudo,
deixando-o livre para ser mais breve, uma vez que o texto visual também
oferecerá informações ao leitor, que deve ler seus códigos e interpretá-los
durante a narrativa. Da mesma forma, uma alfabetização concernente ao
projeto gráfico, em torno da materialidade do livro, também se faz necessária.
Para uma alfabetização visual é necessário compreender os elementos
básicos que podem compor essa comunicação. Segundo Dondis (2015) são
eles: o ponto, a linha, a forma, a direção, o tom, a textura, a proporção, o mo-
vimento e a cor. Para o presente artigo, em virtude de sua extensão, ainda que
pensemos o livro em termos multimodais, nos interessará refletir de forma
mais específica em um elemento: a cor, o elemento cromático que Dondis
(2015) assegura que é o mais expressivo e emocional dos componentes.

2. O elemento cromático
e a construção de sentidos

O elemento cromático é algo que nos é muito familiar, uma vez que nosso
entorno, sempre que tiver luz, terá cores também. Compreendemos o mundo,

622
muitas vezes, por essas cores. Podemos citar, por exemplo, saber que a fruta
ainda não está pronta para ser ingerida pois está verde; ou ainda saber que
alguém se machucou pelo roxo em sua pele. As cores nos comunicam deta-
lhes do cotidiano, nos ajudam a criar narrativas em determinados contextos.
Dentro das histórias as cores também são muito utilizadas, alguém pode estar
vermelho de raiva, ou ainda o dia pode estar lindo, todo azul.
A cor é um elemento imensamente utilizado nos livros-objeto, e, como
parte desse alfabetismo visual, propomos essa leitura cromática, de seu es-
paço e função dentro das narrativas. Para tal, selecionamos dois livros cujas
ilustrações foram desenvolvidas por Odilon Moraes, autor de livros ilustrados
amplamente premiado no Brasil, dentre os quais podemos destacar o Prê-
mio Jabuti de Ilustração de Livro Infantil e Prêmio FNLIJ. Os livros foram
selecionados pelo uso das cores dentro das narrativas, ou seja, o elemento
cromático se revela de grande importância para o desenvolvimento dessas
obras, de diferentes maneiras. As variadas estratégias em cada narrativa dialo-
gam diretamente com os outros elementos que as compõem. “O modo visual,
porém, não oferece sistemas estruturais definitivos e absolutos” (DONDIS,
2015, p. 29), ou seja, considerando a cor como um elemento abstrato cujos
significados variam entre culturas e indivíduos, a interpretação será sempre
subjetiva, uma vez que o elemento cromático está carregado de diferentes
significados simbólicos, “a cor está, de fato, impregnada de informação, e é
uma das mais penetrantes experiências visuais que temos todos em comum”
(DONDIS, 2015, p. 64).
Em ambas as obras apresentadas encontramos a cor como uma linguagem
que compõe a narrativa e não apenas as imagens, ou seja, é um elemento
que deve ser lido tal qual as ilustrações e o texto verbal – aqui a importân-
cia do alfabetismo visual. A potência narrativa da linguagem cromática se
amplia quando é trabalhada de forma não literal, em outras palavras, que
não reproduz as cores tal qual a realidade se mostra, mas que joga com as
possibilidades narrativas e metafóricas que seu uso é capaz de proporcionar.
Goethe descreve que o “fenômeno da cor se articula com a experiência da
cor” (GOETHE, 1993, p.19) e, a partir disso, podemos observar a presença
cromática e o uso desse elemento de forma estruturada na narrativa para
compor a experiência de leitura nas obras a seguir.

623
2.1 Olavo

Olavo (2011), de autoria verbal e visual de Odilon Moraes, publicado pela


Editora Jujuba e finalista do 61º Prêmio Jabuti, é um livro-objeto que narra a
história de um menino triste. Notamos, já na primeira dupla página da narra-
tiva, a escolha cromática que nos acompanhará na leitura: tons terrosos que
se aproximam do sépia. O suporte em que está impresso, ou seja, a folha de
papel, não é completamente branco, mas levemente acinzentada. A leitura do
que não está preenchido pela impressão, o espaço vazio, também é importante,
uma vez que está compondo a página e, portanto, também deve ser considera-
do. O acinzentado nos reforça o aspecto melancólico da narrativa, junto com
o tom sépia que nos foi apresentado junto com o texto verbal “menino triste”.
Em outras palavras, relacionamos essas primeiras cores apresentadas, para
além do nosso repertório cultural, com tristeza, pois o texto verbal e outros
aspectos visual (composição), nos deram essa informação.

Fig. 01. Página dupla inicial de Olavo (2011)


Fonte: imagem retirada do livro Olavo (2011)

624
Acompanhamos o personagem em seu cotidiano, que nos deixa claro
quanto ele é, simplesmente, triste. Isso é reforçado pela sequência de páginas
em que o esquema de cores empregado se repete, enfatizando o conteúdo sus-
citado pelo texto literário, e tornando indissociável a relação forma-conteúdo.

Fig. 02. Sequência de duplas com cores sépias em Olavo (2011)


Fonte: imagem retirada do livro Olavo (2011)

No entanto, Olavo certo dia recebe um presente deixado em sua porta.


Esse momento de surpresa o deixa feliz, pois imagina que alguém pensou
nele, ainda que não tivesse nem remetente ou destinatário no embrulho. A
página dupla, nesse momento, é tomada pela cor azul, enquanto vemos Olavo
voando nas nuvens com seu presente. O texto verbal nos indica que “Olavo
mal se continha de tão contente que estava” (MORAES, 2011, p. 20-21); a
partir disso, relacionamos a cor azul com felicidade, em contraponto com o
sépia que estava exclusivamente presente até então, enquanto Olavo ainda
era triste. No entanto, quando o personagem reflete sobre se o presente era
realmente para ele ou tinham deixado na porta errada, seu universo se torna
novamente sépia, escuro, o azul perde seu lugar.

625
Fig. 03. Página dupla tomada pelo azul em Olavo (2011)
Fonte: imagem retirada do livro Olavo (2011)

A partir do entendimento da cor azul enquanto manifestação visual da felici-


dade, notamos em diferentes momentos da narrativa, de forma sutil, a presença
dessa cor. Inicialmente na capa, temos apenas o título Olavo na cor azul, ou
seja, a alegria já estava dentro do protagonista, já fazia parte de quem ele era,
desde o começo. As guardas do livro também são compostas completamente
pela cor azul, expressando a alegria do início da narrativa, além de criar um
efeito específico no momento da leitura: pela encadernação do livro, conforme
vamos virando as páginas, uma fresta das guardas sempre está visível para
o leitor. Esse efeito se repete nas próprias ilustrações, compostas por muitas
janelas, mesmo dentro da casa de Olavo, uma fresta aberta da cortina sempre
aparece e, lá fora, o azul. Em outras palavras, temos a sensação de que, apesar
de Olavo ser um menino triste, a felicidade sempre está por perto, rondando,
esperando apenas que a deixe entrar. Isso acontece igualmente com o leitor,
que pela fresta azul das guardas, recebe sempre um fragmento de felicidade
enquanto acompanha a narrativa, além da sensação de felicidade ao abrirmos
o livro e nos depararmos com o azul total na página dupla das guardas.

626
2.2. O Matador

O Matador (2018), publicado primeiramente pela Cosac Naify e atual-


mente pela Sesi-SP Editora, é um livro cuja narrativa verbal é de autoria de
Wander Piroli e visual de Odilon Moraes. A história conta o cotidiano de
meninos que vivem no mesmo bairro e cuja atividade preferida é atirar em
passarinhos com seus bodoques. Acompanhamos a frustração do protago-
nista em não conseguir acertar os alvos e a raiva que sentia pela humilhação
dos amigos. Certo dia, em sua casa, o personagem vê um pequeno pardal
pousado no telhado. Com seu bodoque em mãos, ele atira no pássaro que cai
do outro lado do muro. O menino então corre para ver seu prêmio, o pardal
morto, mas, no entanto, o pássaro ainda respirava. Sem saber o que fazer, o
menino joga-o contra o muro para, finalmente, o pardal cair morto no chão.
A sensação de tê-lo matado, contudo, não foi tão boa quanto o que o menino
esperava, pois após um “batido surdo” do pássaro batendo no muro, ele “não
piou mais”, mas o menino finaliza afirmando que “aliás, piou, sim. E continua
piando dentro de mim até hoje” (PIROLI; MORAES, 2018)
A narrativa verbal nos conta de forma bastante clara os sentimentos do
menino e as situações por quais ele passa. A narrativa visual, por sua vez,
nos parece igualmente figurativa, apesar do uso de traços soltos, como es-
boços. O que observamos, no entanto, é a estratégia cromática da narrativa.
Não vemos cores figurativas, mas todas as páginas, cenários e personagens
constituídos por tons de verde. Essa tonalidade só é desconstruída nas últi-
mas páginas, no momento em que o garoto lança o pássaro no muro e ele,
sangrando, morre. O sangue do pardal ficou gravado na parede, na página,
no menino, em um tom vermelho vivo, que se destaca na página toda verde.

627
Fig. 04. Página dupla final de O Matador (2018)
Fonte: imagem retirada do livro O Matador (2018)

A cor vermelha se torna mais forte e potente por uma questão apresentada
por Goethe (1993), a de que “as cores antagônicas se exigem sucessivamente
umas às outras na retina” (1993, p. 67). Em outras palavras, a construção das
ilustrações em tons de verde, cor oposta do vermelho no círculo cromático,
faz com que nosso olhar fisicamente exija e busque a cor vermelha. Por essa
razão, quando o vermelho aparece, ele se se destaque tanto, por ser a cor
complementar, mas também por ser o que nosso olho estava buscando. Essa
potência faz o momento de choque do menino por ter matado o pardal, ser
do leitor também. A cor vermelha se mantém vibrando em nosso olhar, tal
qual o pássaro se mantém piando dentro do menino.

628
3. A cor no espaço da narrativa

Em ambas as obras, observamos o uso estratégico da cor para construção


da narrativa. O elemento cromático está presente agregando informações
visuais na obra, oferecendo mais uma camada de leitura.
Osman Lins (1976) descreve como espaço “tudo que, intencionalmente
disposto, enquadra a personagem e que, inventariado, tanto pode ser absor-
vido como acrescentado pela personagem, sucedendo, inclusive, ser consti-
tuído por figuras humanas” (1976, p. 72). Ou seja, os espaços nessas obras,
para além da ilustração, são construídos por uma única cor, em Olavo (2011)
pelo marrom e em O Matador (2018) pelo verde. Entendemos os espaços aqui
constituídos pelos cenários, rua, casas, janelas, entre outros. Os personagens,
em ambas as obras, absorvem a cor desse espaço. Em outras palavras, eles
são representados nas mesmas tonalidades cromáticas que o seu entorno.
Além de se apresentar no espaço da narrativa, a cor também está presente
como atmosfera que, segundo Osman Lins (1976), é como uma manifestação
abstrata do espaço, que consiste em algo que “envolve ou penetra de maneira
sutil as personagens” (LINS, 1976, p. 76) e que “surja com frequência como
emanação deste elemento [o espaço] (LINS, 1976, p.76). As obras apresenta-
das demonstram como a cor pode desempenhar esse papel. Em O Matador
(2018), a cor vermelha emana da dor do menino, como lembrança eterna do
momento em que matou o pássaro. Essa cor penetra no personagem, inclu-
sive de forma gráfica, quando colocada como mancha na região do coração.
Em Olavo (2011), a cor azul envolve o personagem, tomando conta de tudo o
seu redor, emanando desse espaço, do lado de fora da casa, do estar sempre
por perto até vir à tona.
O conceito de atmosfera como caráter abstrato dialoga fortemente com
a escolha da linguagem cromática como representação, uma vez que tam-
bém é abstrata, segundo Schopenhauer, uma sensação que não pode ser
exatamente descrita, mas sentida (SCHOUPENHAUER, 2003). As sensações
trazidas pela cor, obtidas através da leitura visual, são exploradas para além
do texto verbal ou traço da ilustração, constitui linguagem própria, abstrata,
mas carregada de significados quando dispostas na narrativa.
Nos dois livros apresentados as cores são trabalhadas de forma muito

629
simples no quesito quantidade de tons. Ou seja, se utilizam de uma paleta de
cor bastante restrita (três cores, se contarmos também a cor do papel) e, jus-
tamente por isso, o efeito de contraste se amplia, principalmente entre espaço
e personagens. “Se há o espaço que nos fala sobre a personagem, há também
o que lhe fala, o que a influencia” (LINS, 1976, p. 99) e a cor, nesses livros, se
apresenta nesse sentido, da leitura dos personagens, sentimentos e atmosfera.

4. Considerações Finais

Observamos, nas duas obras analisadas, como um elemento visual pode


contribuir para a construção de sentido da obra, inclusive ampliando suas
possíveis leituras. O alfabetismo visual, como defende Dondis (2015), se faz
necessário, uma vez que uma “maior inteligência visual significa compreensão
mais fácil de todos os significados assumidos pelas formas visuais” (DONDIS,
2015, p. 231). Este artigo, portanto, teve como foco olhar para um elemento
da construção visual: a cor.
O elemento cromático, no entanto, não está presente nessas narrativas
como algo figurativo, mas sim utilizado de forma não-literal, desautomati-
zando nosso olhar, sendo ainda mais expressiva sua forma de expressão nar-
rativa. Em outras palavras, as cores nas obras analisadas não se apresentam
com a função apenas de colorir imagens de forma equivalente ao mundo real,
mas de ser um elemento que deve ser lido e interpretado dentro da narrati-
va e que apoia as outras linguagens a favor de um resultado único. A cor se
apresenta como potência narrativa ao conter informações que acrescentam
sentidos à leitura da obra, ou seja, que ampliam as camadas de significados
possíveis de interpretações.
A cor, pela sua essência de luz, se relaciona com a concepção de espaço
de Osman Lins, uma vez que está presente em todo o redor dos personagens,
tanto como forma abstrata quanto como elementos de cenário. Essas cores
acabam por ressoar na leitura, atuando na nossa percepção da narrativa. A cor,
enquanto elemento narrativo, nos conduz pela obra e nos oferece novas cama-
das que, a partir de um alfabetismo visual, devem ser lidas e compreendidas.

630
Notas

1 Um livro-objeto é texto, ilustrações, todo o design; um item manufaturado e um


produto comercial; um documento social, cultural, histórico; e principalmente
uma experiência para a criança. Como forma de arte o livro ilustrado se articula
na interdependência de imagens e palavras, na disposição simultânea da página
dupla, e no drama da virada de páginas. (BADER, 1976, p.1 apud KIEFER, 1995,
p. 6, tradução nossa)
2 “aparência geral do livro e o sensível trabalho conjunto com a palavra e a
imagem e o tratamento tipográfico” (SOLOMON apud MOURÃO, 2017, p. 161,
tradução livre).

631
REFERÊNCIAS

CARRIÓN, Ulisses. A nova arte de fazer livros. Trad. Amir Brito Cadôr. Belo
Horizonte: C/Arte, 2011. [1975]
D’ANGELO, Biagio. Entre materialidade e imaginário: Atualidade do livro
objeto. IPOTESI, Juiz de Fora, v.17, n.2, p.33-44, jul./dez. 2013.
DONDIS, A. Donis. Sintaxe da Linguagem Visual. Tradução Jefferson Luiz
Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
GOETHE, J. W. Doutrina das Cores. São Paulo: Nova Alexandria, 1993.
KIEFER, Barbara Z. The potencial of picturebook: from visual literacy to aes-
thetic understanding. New Jersey: Prentice-Hall, 1995.
LINDEN, Sophie Van der. Para ler o livro ilustrado. Tradução Dorothée de
Bruchard. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976.
LOTUFO, Isabella. O livro ilustrado: palavra, imagem e objeto na visão de
Odilon Moraes. Literartes, n. 3, p. 26-32, 30 dez. 2014.
MORAES, Odilon. Olavo. São Paulo: Jujuba, 2011.
MOURÃO, Sandie. O livro como objeto – Bernardo Carvalho no papel de
ilustrador-designer. In: RAMOS, Ana Margarida (org.). Aproximações
ao livro-objeto: Das potencialidades criativas às propostas de leitura.
Porto: Tropelias & Companhia, 2017.
NIKOLAJEVA, Maria; SCOTT, Carole. Livro ilustrado: Palavras e Imagens.
Trad. Cid Knipel. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
PAIVA, Ana Paula Mathias de. A aventura do livro experimental. Belo Hori-
zonte. Autêntica, 2010.
PIROLI, Wander; ODILON, Moraes. O Matador. São Paulo: SESI-SP Editora,
2018.
RAMOS, Ana Margarida. Aproximações ao livro-objeto: Das potencialidades
criativas às propostas de leitura. Porto: Tropelias & Companhia, 2017.
SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre a Visão e as Cores. São Paulo: Nova Ale-
xandria, 2003.
SHULEVITZ, Uri. Writing with pictures: how to write and ilustrate children’s
books. New York: Watson-Guptill Publisher, 1997.

632
c
(Re)lendo os clássicos:
A multimodalidade em Era uma vez

Diana Navas

Breves considerações iniciais

A importância do suporte na construção dos sentidos tem sido um dos


elementos mais destacados desde o início dos estudos acerca do livro-objeto.
Bárbara Bader, em seus pioneiros estudos em torno do livro ilustrado, já nos
atentava para a relevância da materialidade do livro ao mencionar conceitos
como design, manufatura ou arte:
A picturebook is text, illustrations, total design; an
item of manufacture and a commercial product; a social,
cultural, historic document; and foremost, an experience
for a child.  As an art form it hinges on the interdepen-
dence of pictures and words, on the simultaneous display
of two facing pages, and on the drama of the turning
page.1 (BADER,1976, p.1)

Tal relevância é posteriormente reforçada, entre outros estudiosos, por


Sophie Van der Linden, a qual destaca o possível papel narrativo assumido
pelo suporte no livro-objeto:
A materialidade do objeto livro é importante em um
álbum já que a escolha de uma capa, papel ou guardas

633
exerce uma grande influência no projeto, dando-lhe uma
dimensão significativa, podendo até adquirir um papel
narrativo. (LINDEN, 2015, p.10)

Acreditamos, diante das produções com as quais nos deparamos na con-


temporaneidade, que a materialidade do livro-objeto não pode “até adquirir
um papel narrativo”. Em nossa leitura, ela contribui decisivamente para a
construção de sentidos, assumindo o projeto gráfico de um livro um papel
narrativo imprescindível.
Era uma vez (Il était une fois...) constitui-se em exemplo dessa afirmação.
Publicado na França em 2010, o livro com pop-ups criados e ilustrados por
Benjamin Lacombe tem posfácio de Jean Perrot e José Pons como respon-
sável pela arquitetura do papel – elemento esse de significativa importância
em um tipo de publicação deste cariz. No Brasil, a obra foi lançada em 2015,
pela Editora Positivo, com a tradução de Lavínia Fávero, versão esta de que
nos valeremos no presente estudo.
A leitura permite-nos compreender que a obra não é simplesmente com-
posta por camadas de papéis, mas por camadas de linguagens. Podemos
depreender, em sua arquitetura, a presença de quatro modos semióticos: o
texto verbal, as ilustrações, as dobraduras em 3D e os efeitos de movimento,
os quais, assumindo semelhante importância, contribuem decisivamente
para a composição dos múltiplos sentidos suscitados. São essas diferentes
linguagens que constituem Era uma vez, e a respectiva contribuição de cada
uma delas para a (re)construção de sentidos é o que nos interessa investigar
neste estudo. Almeja-se destacar as diferentes linguagens que constroem esse
livro-objeto, o qual demanda uma leitura multimodal e um novo tipo de leitor.

634
Um artista, os clássicos
e as múltiplas linguagens

Premiado escritor e ilustrador francês, Benjamin Lacombe nasceu em


Paris, em 1982. Sua educação para as artes desenvolveu-se na École Nationale
Supérieure des Arts Décoratifs, espaço em que, além de estudar, dedicou-se
a trabalhos artísticos de publicidade e à criação de filmes de animação, his-
tórias em quadrinhos e livros de imagens.
Seu primeiro livro infantil,  Cherry and Olive, do qual é autor e ilustra-
dor, foi publicado por Les Éditions du Seuil, em março de 2006. Lançado
nos Estados Unidos no ano seguinte pela Walker Books, o livro figurou na
lista de top 10 destinados ao público infantil da Revista Times. Desde então,
Benjamin Lacombe dedicou-se a escrever e ilustrar um grande número de
obras, entre as quais destacamos Le petit Chaperón Rouge (2003), Amants
papillons (2010), Ondine (2012), Alice au Pays des merveilles (2015), Alice de
l’autre côté du miroir (2016). Em parceria com outros autores e ilustradores,
diferentes títulos foram também publicados, como é o caso de Frida (2016),
Carmen (2017), Le magicien d’Oz (2019); além disso, o autor ilustrou clássicos
universais, como é o caso de Contes macabres (2010), de Edgard Allan Poe, e
Notre Dame de Paris (2013), de Victor Hugo. No Brasil, apenas Era uma vez
e O voo das borboletas receberam, até então, tradução pela editora Positivo.
As ilustrações de Lacombe são expressivas, poéticas, subliminares, apre-
sentando notável aproximação com a estética surrealista. Repletas de sensibi-
lidade e força, revelam um traço que lhe é bastante peculiar e que lhe permite
ser claramente identificado. O conjunto de sua produção possibilita-nos,
ainda, perceber uma preferência pela representação de figuras femininas –
com feições delicadas, testas altas, olhos grandes e um leve toque de tristeza
e drama – e, também, o gosto pela releitura de clássicos. Alice, O mágico de
Oz e Branca de Neve são apenas algumas personagens de contos clássicos
que figuram em sua galeria.
Se considerarmos, conforme sugere Ítalo Calvino em Por que ler os clás-
sicos? (1993), que um clássico é um livro que nunca esgota tudo o que tem a
dizer a seus leitores, entenderemos a complexidade das obras de Lacombe.

635
O autor não apenas propõe a (re)leitura dos clássicos, como o faz por meio
da pluralidade de linguagens que constituem o livro-objeto. Este é o caso de
Era uma vez, obra para a qual propomos uma possível leitura a partir de sua
múltipla composição semiótica.

Camadas de papéis e de linguagens:


uma leitura de Era uma vez

Apresentando um projeto gráfico ousado no tamanho, na forma, na qua-


lidade do papel e da impressão, Era uma vez mantém clara consonância com
a proposta contemporânea de construção dos livros-objeto, caracterizada
fortemente pela experimentação: “It is in the nature of post-modernism pic-
turebooks to continue to experiment: break boundaries, question the status
quo, challenge the readers/viewer, reflect technological advances, and appeal
to the Young2” (GOLDSTONE, 2008, p.117).
Conforme mencionado, a obra de Lacombe constitui-se a partir da con-
fluência de diferentes linguagens, as quais serão analisadas aqui, apenas para
fins didáticos, de forma compartimentada. Reconhecemos, entretanto, que a
pluralidade de sentidos suscitada pela obra demanda uma leitura multimodal,
isto é, uma leitura simultânea das diferentes linguagens que a constituem.
Considerando, inicialmente, a linguagem verbal, é possível, partindo-se
da capa, observar que o título nele presente sugere e, de certa forma, deli-
mita o que será (re)velado pelo e ao leitor. A famosa frase “Era uma vez”, de
imediato, remete-nos ao universo dos contos clássicos. Quando abrimos o
livro, depararemo-nos, no entanto, não com a releitura de um conto espe-
cífico, mas com um conjunto deles. Recorrendo aos contos que povoam o
imaginário coletivo de todas as idades, Lacombe propõe o entrelaçamento
das personagens de narrativas mais antigas – como é o caso de Polegarzinha,
Chapeuzinho Vermelho, Barba Azul, Bela Adormecida – e de outras mais
modernas – como Pinóquio, Alice, Peter Pan e Madame Butterfly. Interes-
sante é notar o jogo de intratextualidade estabelecido pelo autor ao incluir

636
essa última personagem, a qual é extraída de sua obra O voo das borboletas.
Naoko – personagem inspirada em uma ópera de Puccini – é aqui resgatada,
revelando um possível intento do autor de inserir o contemporâneo em meio
à tradição, ao clássico.
O adentrar-se nas páginas do livro, das quais saltam belíssimas e bem
arquitetadas dobraduras, revela-se, a cada virar de página, uma cena signi-
ficativa de cada um dos contos selecionados pelo autor. As pétalas da flor
em seu intenso vermelho se desdobram pela página e agasalham a pequena
Polegarzinha, de olhar inquieto. Pinóquio, sob a moldura dobrável do palco,
apresenta-se na boca de cena do circo, com seu nariz continuamente a cres-
cer. As asas de Madame Butterfly abrem-se diante de um olhar melancólico
e do segurar de uma foto do homem amado e ausente. Na bocarra do lobo
que se abre sobre a página, a menina Chapeuzinho Vermelho desaparece.
Entre cartas suspensas, como que enlaçadas por pequenos fios, Alice vive seu
sortilégio num país que não é tão maravilhoso. Sob um tenebroso cenário,
o leitor pode espiar pelas fendas no papel o suplício de uma das esposas de
Barba Azul, que a tudo espreita. Na representação do fuso, envolto de ve-
getações insólitas que figuram no centro da página, dormindo está A Bela
Adormecida. Ao final, na presença do olhar terno da lua arredondada e do
Big Ben, Peter Pan leva as crianças para a Terra do Nunca.
Constata-se, ao longo das páginas, a inexistência do texto verbal. O artis-
ta interpreta e reescreve, com suas imagens e pop-ups, conhecidas histórias
clássicas, convidando a leitor a passear pelos contos e, assim, (re)lembrar
e (re)contar com sua imaginação o enredo. Ou seja, diante da ausência de
palavras, o leitor é encarregado de fornecê-las pelo que depreende a partir
da explosão de imagens. Desta forma, ainda que possa haver um texto im-
plícito – conhecido pelos leitores dos contos clássicos –, torna-se possível a
verbalização, a (re)textualização e a (re)criação narrativa. Além disso, ainda
que se evidencie a seleção de uma cena significativa de cada conto, esta é
ampliada a partir do primoroso trabalho com o papel, sugerindo a construção
de múltiplos outros sentidos.
Recorrendo a uma estratégia pós-moderna, Lacombe estrutura a sua
narrativa na forma de fragmentos, de cenas, sem que haja uma lógica linear
entre elas. O emprego dessa técnica contribui para aguçar a capacidade do

637
leitor de estabelecer relações entre diferentes histórias e personagens de
forma mais livre, valendo-se, para isso, de sua criatividade e imaginação.
Diante da liberdade que lhe é conferida, possibilita-se ao leitor criar sua
própria história e interpretar as imagens como lhe fizerem pessoalmente
sentido. Assim, Era uma vez parece se constituir na materialização da “morte
do autor” proposta por Roland Barthes, haja vista que o leitor, efetivamente,
torna-se o autor da(s) história(s).
No tocante às ilustrações, é notável o papel assumido por este segundo
modo semiótico na construção de sentidos narrativos. Repletas de poetici-
dade, as ilustrações contribuem para a ampliação do universo imaginário do
leitor ao colocá-lo em contato com uma sintonia de referências dos contos
tradicionais, agora apresentadas, entretanto, de forma desautomatizada.
Isso porque, ainda que o leitor se depare com a representação de figuras (re)
conhecidas, graças a um trabalho com as cores, as formas e as dobraduras,
Lacombe oferece-nos um retrato diverso de cada uma delas, provocando o
estranhamento, a ruptura, assim como o faz o texto de caráter literário. Desta
forma, as imagens não se limitam a representar momentos específicos da
história, mas acrescentam sempre algo mais, com um toque de fantástico,
de fantasmagórico, de insólito e de improvável a moldar um novo cenário,
criando, destarte, diferença por entre o que é familiar para o leitor. Expan-
dem-se, com isso, as possibilidades interpretativas, já bastante alargadas em
virtude da riqueza e da poeticidade do texto visual que ocupa completamente
todas as páginas da obra.
Valendo-se de um estilo de pintura clássico, que não abre mão de um
bom trabalho de luz e sombra, suas figuras estão entre o real e o imaginário,
aproximando-se do onírico, do fantasmagórico. Com os matizes intensos das
cores, as ilustrações de Era uma vez provocam surpresas e atiçam os senti-
dos. Além disso, instauram o clima de mistério, de enigma, de sombra, que
percorre toda a narrativa.

638
Fig. 1 – Dupla página – Peter Pan

Observa-se, no conjunto da produção do autor e ilustrador, uma forte


influência surrealista. É notável como, por meio da presença do onírico, do
obscuro, das imagens inconscientes, Lacombe faz uso do potencial do sub-
consciente como fonte de figurações fantásticas e de sonhos. Em se tratan-
do da releitura dos clássicos, isso se faz ainda mais significativo, haja vista
que o procedimento tece relações com as versões mais feéricas dos contos
clássicos, bem como o diálogo que estas mantêm com nosso inconsciente.
As dobraduras em 3D, mais um dos componentes semióticos do livro,
constituem grande atrativo de Era uma vez. Deparamo-nos, ao virar de pá-
ginas, com dobraduras que fazem a cena delas sair e parecer ganhar vida,
como se diante de um espetáculo teatral estivéssemos.

639
Fig. 2 – Dupla página em que Pinocchio surge em um palco com o nariz a crescer

Esse investimento no aspecto material do livro busca um imbricamento


com o corpo do sujeito leitor. Isso porque, além de ser incitado à interação
visual, esse sujeito participa com seu corpo na virtualidade composta pela
cena enunciativa. O leitor é interpelado a montar, jogar, organizar as frágeis
arquiteturas do livro que transbordam o limite das páginas. Esse sujeito pas-
sa a ser cocriador da trama narrativa, uma vez que a cenografia, instaurada
pelo gesto de leitura do livro pop-up, convida o leitor, por meio de seu pró-
prio corpo, a movimentar as estruturas que se formam a partir de um virar
de páginas. Em outras palavras, demanda-se uma nova forma de leitura e,
também, um novo tipo de leitor. Uma forma de ler que ultrapassa o intelec-
tual e atinge também o físico, o sensorial.
É preciso destacar não apenas a beleza e a dimensão dessas dobraduras,
que ocupam todo o espaço da dupla, mas também a sua variedade. A cada
mover de página, encontramo-nos com um tipo diferente de dobradura, o que
contribui, decisivamente, para o efeito de surpresa provocado no leitor. Se ora
somos expostos a pétalas de uma grande flor que se abre, na virada seguinte
é um palco que se monta diante de nossos olhos, os quais são surpreendidos
pelo grande nariz de Pinóquio que, com o movimento da página, torna-se
maior ou menor. É com asas a se abrirem, com uma bocarra a se escancarar,
com cartas de baralhos que voam e recobrem a figura de Alice, com um fuso
a surgir em meio a uma vegetação que ocupa a dupla página – para citar ape-
nas algumas das dobraduras – que nos deparamos na leitura de Era uma vez.

640
É justamente devido a este primoroso trabalho feito com as ilustrações,
e também com a arquitetura do papel, que permite o movimento de abrir e
fechar dobraduras e do mover de partes do livro, que mesmo uma criança
muito jovem mostra-se capaz de perceber muito do enredo.
Ainda no que concerne às dobraduras, um outro aspecto merece menção.
Se o texto literário, conforme propõe a Estética da Recepção, é constituído
por lacunas que devem ser preenchidas pelo leitor a fim de (re)construir
os múltiplos sentidos suscitados pelo literário, assim também são construí-
das as dobraduras na obra em análise. Em cada uma delas, possibilita-se,
literalmente, observar frestas, fendas, a partir das quais o leitor consegue
espiar ou mesmo adentrar na narrativa, podendo, inclusive, ser apreendido
por essas frestas, a ponto de precisar ser, ao final, liberto pela figura de Peter
Pan. Em outras palavras, cada uma das frestas planejadas pela arquitetura
da obra pode representar, metaforicamente, as lacunas pelas quais o leitor
interage com o texto.

Fig. 3 – Dupla página em que, em meio as frestas, conseguimos observar Alice

As dobraduras em 3D são ainda responsáveis por promoverem o caráter


metaficcional assumido pela narrativa. De forma explícita, o jogo entre ficção
e realidade já se evidencia na própria capa de Era uma vez, na qual figuram,
além de Alice e o Gato Cheshire, também imagens da capa do próprio livro e

641
de algumas de suas dobraduras, conforme pode ser observado na figura 04, fa-
zendo com que o objeto físico ganhe ficcionalidade e que tenhamos a sensação
de que tais personagens estejam a ler o mesmo livro que nós temos em mãos.

Fig. 4 – Capa

Traços de metaficcionalidade, entretanto, também se revelam, ainda que


mais implicitamente, a partir do emprego das dobraduras 3D. Isso porque,
ao confeccionar uma obra em que a materialidade desempenha papel sig-
nificativo na construção de sentidos, o que se está a fazer é colocar em cena
um dos grandes paradoxos da metaficção:
(...) in all fiction, language is representational, but of
a fictional “other”world, a complete and coherent “hete-
roscosm”created by the fictive referents of the signs. In
metafiction, however, this fact is made explicit, and, while
he reads, the reader lives in a world which he is forced
to acknowledge as fictional. However, paradoxically, the
text also demands that he participate, that he engage
himself intellectually, imaginatively, and affectively in
its co-creation. This two-way pull is the paradox of the
reader. The text`s own paradox is that it is both narcis-
sistically and self-reflexive and yet focused outward,
oriented toward the reader.3 (HUTCHEON, 1984, p.7)

642
Em Era uma vez, o leitor reconhece que está construindo histórias, ficções,
as quais, entretanto, ganham materialidade por meio do próprio suporte, em
especial através da presença do elemento tridimensional. Isto é, o leitor sabe
que o “era uma vez” pertence ao plano da ficção; entretanto, a materialidade
do livro implica sua entrada, inclusive física, neste universo. Assim como ou-
tras narrativas contemporâneas, a obra de Benjamin Lacombe solicita a seus
leitores que conheçam e integrem o significado a partir da síntese criativa
da palavra (ainda que implícita), da imagem e do tato. Tais obras
demand that we create not only the imagined world
of the narrative in the mind’s eye, but also attend vi-
sually to the surface of the page itself. In doing so, they
are perceptually and ontologically challeging. It is this
challenge, their intense synaesthesic aesthethics, that
makes the books enjoyable and experimental4. (GIB-
BONS, 2012, p. 433)

O movimento constitui mais um dos modos semióticos de composição


narrativa, sendo responsável pelo efeito de surpresa que assalta o leitor a
cada virar de páginas. Graças ao meticuloso trabalho com a arquitetura do
papel, as imagens movem-se na página, surpreendendo-nos pelas possibili-
dades interativas. Conforme assegura Sabuda, “they [the readers] are really
affected by the magic of a pop-up and amazed that they have the power in
their hands to make it happen because they themselves are turning the pa-
ges5.” (SABUDA, s.d., s.p.).
Em estreita correlação com a construção da narrativa em cenas – o que,
conforme já afirmado, em termos narrativos, não implica necessariamen-
te a linearidade convencional de um enredo –, o movimento conferido às
imagens e dobraduras contribui para ampliar as possibilidades de escolhas
interpretativas. Caracterizada por maior liberdade, uma vez que a configura-
ção espacial dos livros pop-up permite menor rigidez estrutural no ato de ler,
sua forma de leitura e escrita aproxima-se mais do nosso próprio esquema
mental, marcado também pela não fixidez.
Estamos chegando à forma de leitura e escrita mais
próxima do nosso próprio esquema mental: assim como

643
pensamos [...] sem limites para a imaginação a cada
novo sentido dado a uma palavra, também navegamos
nas múltiplas vias que o novo texto nos abre, não mais
em páginas, mas em dimensões superpostas que se in-
terpenetram e que podemos compor e recompor a cada
leitura. (RAMAL, 2002, p. 84)

Em sentido lato, podemos dizer tratar-se de uma leitura hipertextual,


haja vista que o movimento de manipulação implica, muitas vezes, o fun-
cionamento do livro como hipertexto que rejeita uma leitura linear. Além
disso, há, nesta obra, um conjunto de hipotextos cujo conhecimento auxilia
o leitor a mover-se nos caminhos sugeridos pelos recursos visuais e pelo
projeto gráfico.
Era uma vez revela-se, assim, como uma obra construída a partir de di-
ferentes camadas de linguagem que, apenas quando lidas simultaneamente,
permitem-nos apreender os seus múltiplos sentidos, demandando, em razão
disso, um outro tipo de leitor. Ler torna-se, diante de um livro-objeto como
esse, um ato não apenas intelectual, mas performático, visto que o leitor é
desafiado não apenas em termos cognitivos, mas também físicos, sensoriais.
Trata-se de uma leitura multimodal que solicita um leitor mais interativo,
que é convidado a jogar, a ler, a interpretar, a manipular, a partir da retoma-
da dos textos clássicos. Um indivíduo capaz de explorar as propostas e as
potências do livro, que se torna verdadeiro coautor e que se percebe apto a
empreender uma leitura que ultrapassa a do texto escrito: uma leitura que
se inicia pelos sentidos, pelo contato com os elementos físicos constitutivos
da obra – o tipo de papel, a textura, o volume, as cores, as dobras. Em outras
palavras, uma leitura multimodal e multissensorial.

(In)Conclusões

Era uma vez é um livro que desperta a sensibilidade do leitor não apenas
em virtude da qualidade de sua arquitetura de papel, mas, em especial, pela
livre articulação entre os pop-ups e os elementos de cada conto clássico,

644
observada na fascinante representação de universos que explodem em mo-
vimentos, cores e formas. Trata-se, conforme afirma Jean Perrot no posfácio
da obra, de um “livro-vivo”, cuja materialidade mantém clara consonância
com as propostas de sentido suscitadas pelas demais linguagens que a cons-
tituem. Em outras palavras, sua configuração a partir de diferentes modos
semióticos confere – ao mesmo tempo em que materializa, graças à presen-
ça do movimento e de estratégias narrativas e da construção do suporte – a
liberdade criativa ao ato da leitura.
Dotado de significativa qualidade estética, o livro de Benjamin Lacombe
evidencia-nos a possibilidade sempre presente de releitura dos clássicos,
narrativas essas que mantêm algo a dizer ao leitor, independentemente de
sua faixa etária. No caso de Era uma vez, a (re)leitura proposta dos diferentes
clássicos se faz a partir de inserções de marcas do contemporâneo, seja por
meio das inovações em termos de suporte – um cuidadoso trabalho com as
imagens, que surgem por entre as dobras e recortes do papel –, seja a partir
do emprego de estratégias narrativas pós-modernas, como a fragmentação,
a descontinuidade, a construção de uma obra aberta, estratégias essas em
consonância com a proposta de mobilidade e liberdade sugeridas pelo livro
em termos de materialidade.
Longe de constituir-se como um mero exibicionismo das habilidades
artísticas de Benjamin Lacombe e de um simples jogo de manipulação, Era
uma vez constrói-se a partir de propostas criativas que desafiam constan-
temente o leitor – de diferentes idades e variadas competências leitoras –,
revelando-se como um objeto multissensorial, interativo, móvel e que, justa-
mente em razão disso, exige um novo tipo de leitor e de leitura. Uma leitura
intelectual e performática, que solicita um leitor cúmplice, colaborador com
a (re)construção de um texto plural. Uma obra aberta que, assim como os
clássicos que retoma, possibilita interpretações e reformulações diversas,
inserindo o leitor diante de um conjunto inesgotável de relações, ao qual
acrescenta seu próprio atributo.

645
Notas

1 “Um livro ilustrado é texto, ilustrações, design; um item de fabricação e um


produto comercial; um documento social, cultural e histórico; e acima de tudo,
uma experiência para uma criança. Como forma de arte, depende da interde-
pendência de figuras e palavras, na exibição simultânea de duas páginas opostas
e no drama da página virada”. (tradução nossa)
2 “É da natureza dos livros ilustrados pós-modernistas continuar a experimentar:
romper fronteiras, questionar o status quo, desafiar os leitores / espectadores,
refletir os avanços tecnológicos e apelar para os Jovens”. (tradução nossa)
3 (...) em toda ficção, a linguagem é representacional, mas de um “outro” mundo
ficcional, um “heteroscosmo” completo e coerente criado pelos referentes fictícios
dos signos. Na metaficção, no entanto, esse fato é explicitado e, enquanto ele
lê, o leitor vive em um mundo que ele é forçado a reconhecer como fictício. No
entanto, paradoxalmente, o texto também exige que ele participe, que se envol-
va intelectualmente, imaginativamente e afetivamente em sua co-criação. Essa
atração de mão dupla é o paradoxo do leitor. O próprio paradoxo do texto é que
ele é narcisista e auto-reflexivo e, ainda assim, focado para o exterior, orientado
para o leitor. (HUTCHEON, 1984, p.7) (tradução nossa)
4 “exigem que criemos não apenas o mundo imaginado da narrativa na mente,
mas também atendamos visualmente à superfície da própria página. Ao fazê-lo,
eles são desafiadores de maneira perceptiva e ontológica. É esse desafio, sua
intensa estética sinestésica, que torna os livros agradáveis ​​e experimentais.”
(tradução nossa)
5 “eles [os leitores] são realmente afetados pela magia de um pop-up e ficam
surpresos por terem o poder nas mãos para fazer isso acontecer porque eles
mesmos estão virando as páginas.” (tradução nossa)

646
REFERÊNCIAS

BADER, Barbara. American Picturebooks from Noah’s ark to the Beast within.
New York: Mcmillan Publishing Company, 1976.
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mental Literature. London; New York: Routledge, 2012.
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Sipe, L.; Pantaleo, S. (eds.). Postmodern Picturebooks: Play, Parody, and
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budaproject.blogspot.com/2009/10/robert-sabuda_15.html. Acesso
em 15/jan/2019.
TABERNERO-SALA, Rosa. O leitor no espaço do livro infantil. Para uma
poética da leitura a partir da materialidade. In: Ramos, Ana Margarida
(org.) Aproximações ao livro objeto: das potencialidades criativas às
propostas de leitura. Porto: Tropelias & Companhia, 2017.

647
T
Uma experiência narratológica
com o uso de vídeo em
dispositivos móveis
Roseli Gimenes
Cielo G. Festino

Introdução

Este trabalho propõe apresentar o hibridismo tecnológico na educação


pela perspectiva de J. Moran (2015) em uma experiência desenvolvida com
alunos do curso superior em Letras usando vídeos elaborados por meio do
aplicativo Noizz em dispositivos móveis e apresentados na JOVAED 2018.
Essa experiência uniu professores e alunos do curso de Letras presencial
e EAD partindo das experiências desenvolvidas a partir de um grupo de
pesquisa que procura uma maior integração entre alunos de um curso de
Letras a distância.

A EaD e a Inclusão Social

No momento presente em que as novas tecnologias estão mediando o


processo de letramento se faz importante discutir a efetividade e comple-
xidade da interação implícita na Educação a Distância (Doravante EaD)
para a inclusão social em um país geograficamente vasto e culturalmente
heterogêneo como o Brasil.

648
O nosso argumento principal é que, apesar de problemas como um apro-
priado sistema de letramento digital, acesso adequado à comunicação tec-
nológica, assim como a possibilidade de enfrentar os custos financeiros, a
EaD pode ainda ser efetiva no Brasil porque alcança lugares de difícil acesso,
longe dos centros universitários e, dessa maneira, coloca em contato áreas
distantes, umas das outras, no território nacional ao mesmo tempo em que
contribui para encurtar distâncias de classe, gênero e diferenças étnicas e ra-
ciais entre cidadãos brasileiros que pertencem a diferentes âmbitos da nação.
Nesse contexto, desenvolvemos o projeto “Encontros Interculturais na
EaD: Narrativas de Vida dos Diferentes Brasis”, desenhado para um Curso de
Letras a distância com polos em grande parte do território nacional. O projeto
tem como principal objetivo relacionar as comunidades dos estudantes dos
diferentes polos, conectados pela EaD, por meio de uma forma particular de
autobiografia, as narrativas de vida, definidas por Smith e Watson (2010, p.
4) nos seguintes termos:
Consideramos o termo “narrativas de vida” para atos
de auto-representação de todos os tipos e em diversas
mídias que consideram a vida do enunciante como seu
principal sujeito tanto em forma escrita, performativa,
visual, fílmica ou digital. Em outras palavras, emprega-
mos o termo “narrativas de vida” para nos referirmos a
atos autobiográficos de qualquer tipo (nossa tradução).

Esse estilo de autobiografia é profundamente amplo e democrático porque


considera narrativas de cidadãos que, historicamente, têm sido ignorados
como não tendo valor pelo gênero autobiografia que se foca, principalmente,
na vida de personagens destacadas da comunidade. Por sua vez, a EaD torna
o projeto possível porque, por meio da tecnologia, problematiza o conceito de
distância a nível geográfico, temporal e transacional e se centra no contexto
do aluno e sua comunidade.
Como aponta Tori (2010, p. 9) o significado da EaD é geralmente definido
como a “ausência do professor”. Porém, o conceito é bem mais complexo.
Centrando-se no aprendiz, há três relações possíveis no processo de ensi-
no-aprendizagem: professor-aluno, aluno-aluno e aluno-conteúdo. Por sua

649
vez, em cada uma dessas relações, há três tipos de distâncias que devem ser
consideradas: espacial, temporal e transacional. A distância espacial refere-se
à separação física entre o aluno e o professor, os outros estudantes e o estu-
dante e os conteúdos. A distância temporal refere-se às atividades síncronas
como chats e assíncronas, diferidas no tempo, como os fóruns de discussão.
Finalmente, as atividades transacionais consideram o fato de o aluno se sen-
tir afastado dos outros, por não compartilhar com colegas e professores a
tradicional sala de aula; contudo, esse sentimento de solidão pode acontecer
tanto na educação tradicional como no EaD. Da mesma maneira, o conceito
de distância está relacionado ao de presença; como acrescenta Tori(2010),
ambos estão relacionados na EaD por meio das ferramentas tecnológicas
que encurtam as distâncias entre as partes envolvidas independentemente
da separação geográfica.
É essa qualidade da EaD que contribui para o desenvolvimento do pro-
jeto das narrativas de vida porque ajuda a relacionar comunidades muito
distantes, desconstrói a dicotomia centro-periferia e multiplica o centro
nos inúmeros contextos dos alunos; oferece aos alunos a possibilidade de
compartilhar problemáticas próprias das suas comunidades e regiões, ou
conflitos que acontecem a nível nacional, mas que têm contornos diferentes
em cada localidade.
Assim, a EaD ajuda a criar, entre os estudantes, no primeiro momento,
um sentimento de auto-confiança, quando eles percebem que suas narrativas
atraem interesse além do seu próprio locus de enunciação e, em um segundo
momento, um renovado senso de cidadania quando ao enxergar suas narra-
tivas, entre muitas outras, tornam-se cientes de que devemos considerar as
nossas crenças como um possível conjunto de valores em vez de a maneira
como o mundo é ou, nesse caso, como um único e homogêneo Brasil é.
O projeto das narrativas, mediadas pela EaD, transforma-se assim em
um projeto de inclusão social porque seu objetivo não é somente instruir e
passar informações a partir de um centro educacional, mas porque foca nas
problemáticas dos alunos, levando-os a produzir conhecimento em vez de
somente reproduzir informações recebidas. Em outras palavras, o objetivo
é transformar a teoria em prática e a prática em novas teorias que sejam
eficazes e significativas para o entorno social e cultural do aluno.

650
Paulo Freire (1996, p. 43) estabelece uma diferença entre o que ele chama
de “conhecimento ingênuo” (adquirido não sistematicamente) e “conhecimen-
to rigoroso”, (adquirido de maneira sistemática). Ambos estão associados à
curiosidade epistemológica do sujeito. O primeiro é o tipo de conhecimento
que o aluno traz para a sala de aula de sua experiência cotidiana. O segun-
do é o conhecimento criado na sala de aula pela interação entre professores
e alunos. Enquanto o primeiro implica uma resposta subjetiva ao contexto
cultural, o segundo implica uma resposta informada que leva a uma parti-
cipação responsável no mundo multicultural de hoje.
Uma das tarefas dos tutores e professores, envolvidos nesse projeto, é a
de fazer os participantes cientes do valor contigente dos princípios da sua
própria cultura, no sentido de que sempre fazemos sentido no mundo em
termos de o nosso contexto de enunciação, o que sempre estará limitado pela
maneira com que outras culturas fazem sentido de seu mundo.
Há alguns conceitos que ajudam para que esse processo de criação de
significados seja plural. Um deles é o de Gianni Vattimo (2003) sobre que,
de alguma maneira, todos somos fundamentalistas. Ou seja, para poder fun-
cionar na nossa sociedade precisamos acreditar em determinados valores
que nos permitam agir. Nesse sentido, damos valor de fundamento a deter-
minadas crenças e valores. Porém, nunca devemos nos esquecer de que esse
processo acontece da mesma maneira em todas as culturas. Ou seja, nossos
“fundamentos” acabam onde começam os dos Outros e os fundamentos dos
Outros são tão válidos como os nossos próprios.
Em uma sociedade dividida pelo que aparecem como diferenças insu-
peráveis, o conhecimento sobre outros sujeitos, culturas e comunidades é
muitas vezes construído como clichês, estereótipos e mal entendidos, que
podem produzir diferentes tipos de discriminação. Essa maneira de enxergar
o Outro implica que nossos valores são verdadeiros, enquanto os dos Outros
são reduzidos a fanatismos. Por sua vez, essa ideia confirma os conceitos de
enfraquecimento (weakening) e secularização (Vattimo, 2003, p. 33) no sentido
de que necessitamos de verdades para poder funcionar, mas elas devem ser
entendidas como débeis porque são contingentes, não absolutas e seculares
porque não são sagradas ou eternas. Elas dependem das muitas interpretações,
que podem variar segundo o lugar e tempo. Ser ético, então, implica não se

651
prender por essas verdades como valores absolutos, mas compreender que
elas necessariamente mudam para se adequar a novas contingências históri-
cas e contextos culturais. Ao mesmo tempo, ser ético, nos termos propostos,
implica, como assinala Vattimo (2003, p. 35), entender a verdade como um
consenso, escutar, participar e estabelecer uma relação com o Outro diferente,
que sempre está mudando, e não com uma ordem fixa de valores.

A EaD e as Narrativas de Vida

A EaD tem sido repetidamente desacreditada porque se diz que os alunos


dessa modalidade não são verdadeiros membros da comunidade acadêmica
(GRANGER; BOWMAN, 2003, p. 177). Uma maneira possível de superar esse
obstáculo, segundo alegam os autores, é envolvendo os alunos em atividades
metacognitivas como as narrativas de vida que exploram as identidades, estilos
de vida e de aprendizagem e mostram o relacionamento dos alunos com seu
contexto por meio da análise crítica de sua comunidade e de seu lugar nela.
Esse tipo de atividades reflexivas, por meio das narrativas, é de grande valor
porque ajudam os alunos a achar suas vozes, dentro e fora de suas comunidades,
assim como se relacionar com seus pares de outras comunidades em geral, e
comunidades de aprendizado em particular que, nesse caso, são parte da uma
nação continental como o Brasil. Como explicam Smith e Watson (2010, p. 189):
Os arquivos de vida têm como objetivo educar, re-
construir a memória e curar. Eles ajudam a construir a
comunidade e memorializar o passado ao encurtar dife-
renças e identificar valores compartilhados. O esforço de
construir uma memória coletiva, uma história por vez,
se traduz em uma cidadania participativa.Esses projetos
de narrativas coletivas, tanto que sejam publicadas como
livros, filmes, documentários, gravações ou mídia digital,
situam a história do indivíduo na narrativa maior da
história nacional, como sendo uma “história de baixo”
que relaciona narradores e escutas à nação, entendida
como uma comunidade imaginada (nossa tradução).

652
Por sua vez, definindo as narrativas como cerimônias de crença, J. Ed-
ward Chamberlin (2007, p. 1) explica que “as histórias dão significação e
valor aos lugares que chamamos o nosso lar; elas nos relacionam com o
mundo que habitamos; nos mantém juntos e, ao mesmo tempo, nos sepa-
ram” (nossa tradução). As narrativas são, então, espaços onde podemos
refletir sobre quem nós somos, quanto a comunidade significa para nós e
como nos relacionamos com o mundo. Ainda mais importante, talvez, elas
são significativas não somente porque afirmam, mas também questionam as
nossas identidades a nos ajudar a desfamiliarizar a vida do nosso dia-a-dia
que, devido aos hábitos, torna-se invisível ou, pior ainda, naturalizada: as
histórias sempre têm algum elemento de estranheza e isso é o que primeiro
chama a nossa atenção fazendo com que acreditemos nelas. Reconhecer a
diferença nas histórias das outras pessoas faz com que as enxerguemos e as
escutemos nas nossas (CHAMBERLIN, 2007, p. 1; nossa tradução). No pro-
cesso de nos tornarmos críticos dos Outros, com quem nos relacionamos,
nos tornamos críticos de nós mesmos. Como as narrativas contam sobre as
nossas crenças e tradições, elas narram de onde viemos e por que somos o que
somos e estamos onde estamos; elas são “não somente crônicas de eventos,
mas cerimônias de crenças” porque “histórias e músicas nos fornecem uma
maneira de acreditar, e as cerimônias afirmam a nossa fé” (CHAMBERLIN,
2007, p. 2; nossa tradução).
É esse aspecto comunitário das narrativas, que tem como objetivo a in-
clusão social, que as narrativas de vida recuperam e as diferenciam da auto-
biografia tradicional. Como observam Smith e Watson (2010, p. 13), esse tipo
de narradores vai além das narrativas de seus próprios “Eus” ou de narrar
“crônicas de eventos”: eles “fazem História” porque suas narrativas contêm
“suas comunidades” o que “justifica suas percepções, afirma suas reputações,
discute com os Outros, articula informação cultural e inventa possíveis e
desejados futuros”.
Então, as narrativas de vida podem ser lidas como atos autobiográficos
porque o fato de estarem situadas em uma história com um enredo, como
argumentam as autoras, significa que estão situadas “em lugar e tempo” e
implicam em mudanças; então, podem ser lidas como “interações cruciais
com o mundo” no sentido de que “estão dirigidas a uma audiência/leitores e

653
estão envolvidas em uma discussão sobre a identidade” (SMITH; WATSON,
2010, p. 63; nossa tradução).
Assim, narrativas de vida implicam em algum tipo de agência que pode
dar lugar a novos e diferenciados tipos de comportamentos porque estão
inscritos na vida da comunidade. Claramente, a relação entre narrativas e
comunidade é um processo dinâmico que sempre está aberto a novas mu-
danças já que ambas se alimentam mutuamente. O escritor nigeriano Chinua
Achebe (1988, p. 48) disse que “as histórias criam pessoas que criam histórias
que criam pessoas” enquanto “as pessoas criam histórias que criam pessoas
que criam histórias” em uma relação sem fim. Isso porque as narrativas
sempre se originam na comunidade e a ela voltam. Nesse processo, elas não
permanecem a elas mesmas, porque são sujeitas a múltiplas interpretações
que ajudam a visualizar a experiência social de onde surgiram de maneira
diferenciada e, eventualmente, contribuem para introduzir mudanças.
Por sua vez, essa relação entre pessoas de diferentes âmbitos da vida na-
cional não significa, necessariamente, uma relação harmoniosa. Muitas vezes
essa aproximação produz conflito; contudo, o conflito pode ser bem produtivo.
Gerald Graff (1993, p. 108) fala que o que necessita ser narrado é o conflito
entre as diferentes comunidades focando, precisamente, em temas como
agência, gênero, etnicidade, identidade, localidade. Ele acrescenta que “o
contraste é fundamental porque as ideias não são ilhas; para se tornar inteli-
gíveis precisam ser entendidas em relação a outras ideias”. Para ele, a melhor
maneira de lidar com o conflito é fazer dele o nosso objeto de estudo em vez de
o apagar ou estabelecer uma falsa harmonia. Isso nos leva a reconsiderar os
nossos valores e os valores dos Outros, de maneira contingente e relacional,
porque ao estar em contato com narrativas de outros contextos culturais nos
familiarizamos com epistemologias diferentes e, por consequência, com as
necessidades e crenças de outras comunidades, o que nos ajuda a ser recepti-
vos e respeitosos de Outras formas de vida. A escrita e leitura das narrativas
de vida transformam-se assim em uma instância de ação e inclusão social
porque se fusionam em um lugar comum que, como aponta Chamberlin (2007,
p. 239), “não é nem um lugar nem um conjunto de histórias. É um estado da
mente em que aceitamos que as categorias da realidade e da imaginação são
como as categorias de ELES e NÓS” (nossa tradução).

654
Por sua vez, as narrativas nos ajudam a problematizar o conceito de lar
ou comunidade como sendo o lugar onde moramos ou ao qual pertencemos
e a partir do qual articulamos as nossas narrativas. Nem sempre gostamos
dele: “O lar pode ser todas essas coisas ou nenhuma delas. O que for e onde
for, o lar é sempre ‘uma fronteira’, um lugar que nos separa e que nos conecta,
um lugar de paz e de conflito” (CHAMBERLIN, 2007, p. 3; nossa tradução).
O conceito de lar, fala Chamberlin, é um ninho de contradições e conflitos
porque a população que o habita não é homogênea, mas profundamente
heterogênea. Ao mesmo tempo, Smith e Watson (2010, p. 69) observam que
o local das narrativas de vida significa tanto como as narrativas. Esses locais
da narrativa “realizam uma tarefa cultural” no sentido de que “organizam as
narrativas pessoais nas quais se apoiam”. Esses sites, alegam as autoras, são
de “múltiplas matrizes” e podem ser “pessoais, institucionais ou geográficas”
e, até certo ponto, as três se superpõem.
Nesse sentido, Brydon e Coleman (2008, p. 7) apontam que o termo comu-
nidade tem tradicionalmente sido utilizado para se referir a pequenos grupos
sociais que funcionam a nível local e implicam uma relação direta entre as
pessoas. Embora esse significado não tenha desaparecido, foi primeiramente
estendido e desenvolvido para se referir a formas imaginárias de relação entre
grandes estruturas sociais como a nação; hoje, na era da tecnologia, o termo
tem sido reinventado para se referir a grupos de pessoas que têm algum tipo
de filiação, mas não estão limitadas pelo espaço geográfico porque eles se
conectam por meio do espaço virtual.
Esse é o caso do nosso curso de EaD que conta com polos localizados nos
diferentes pontos geográficos e culturais do país. Então, os locais das narra-
tivas de vida que fazem parte do nosso projeto pertencem a diferentes tipos
de comunidades que cobrem desde as grandes metrópoles até as áreas rurais;
comunidades de baixa renda até comunidades de classe alta; em todas elas,
o indivíduo luta com temas relacionados com o meio ambiente, a política ou
a família. É por isso que Smith e Watson (2010, p. 71) afirmam que “... o local,
muito mais do que noções de lugar, fala do caráter situado das narrativas
de vida” que, como foi sugerido, está implícito nas entrelinhas da narrativa.
E é aqui, como já temos afirmado, que as narrativas de vida e a EaD se
unem e se complementam. Primeiramente, no âmbito das narrativas em que

655
podemos re-imaginar quem Nós somos e também quem são os Outros que
fazem parte da nossa cultura. Segundo, é no âmbito das narrativas, nesse
caso das narrativas de vida, que podemos transformar o Outro em alguém
bem mais familiar para Nós, ao mesmo tempo em que Nós nos tornamos
familiares para Eles.

As Narrativas de Vida
e o Hibridismo Tecnológico

Durante dois anos de pesquisa, o grupo partiu de várias possibilidades


de narrativas para que os discentes apresentassem propostas de histórias
pessoais, como fotografias em álbuns de família, histórias do entorno social
em que vivem, como imagens e descrições de praças, de ruas, de lugares,
narrativas de família e históricas, como origem da família, origem do bairro,
da cidade. Na maioria das vezes, os estudantes acabavam elaborando narra-
tivas verbais e escritas.
Para que pudéssemos apontar tecnologias digitais de informação e comu-
nicação, passamos a estudar textos que estavam nessa direção, assim como
iniciamos o processo de participar de eventos, congressos em que a discussão
fosse sobre as novas metodologias digitais de informação e comunicação.
Tomando como início a Jornada virtual de educação a distância - JOVAED,
em 2018, alguns professores e alunos se inscreveram para participar e então
decidimos que deveríamos criar narrativas de vida que permeassem o nosso
entorno, nosso e dos alunos. A participação de alunos foi além daqueles do
curso de Letras EAD, ou seja, muitos alunos do curso no presencial também
participaram com os docentes. O projeto de pesquisa, como já apontamos,
tem como foco o aluno EAD. No entanto, também percebemos que o alu-
no de cursos presenciais tem características semelhantes, principalmente
no que se refere a distâncias geográficas, já que muitos vivem em bairros
longínguos do campus em que estudam e convivem com Outros de regiões
bastante distintas.

656
Nesse sentido, a ideia se transformou no ensino de narrativas, narrativas
de vida, objetivando um ensino híbrido que partisse do EAD, mas que envol-
vesse a educação de ambos, presencial e EAD.
Em discussão com professores e alunos chegamos à conclusão de que
deveríamos narrar não apenas como estávamos fazendo até então. Envol-
veríamos tecnologia para que pudéssemos criar vídeos narrativos, mas que
estivessem à disposição em aplicativos para dispositivos móveis.
Os procedimentos metodológicos, então, foram se apresentando à me-
dida que discutíamos como fazer essa narrativa audiovisual. Evidente que
poderíamos fazer vídeos exatamente como fotografamos pelo celular, apenas
apertando a tecla vídeo da câmera do dispositivo móvel. No entanto, a criação
precisaria ir além usando um aplicativo que gravasse, permitisse narração
oral e colocação de música fundo ou tema e, mais ainda, permitisse a edição
de todo o processo.
Cada professor, cada aluno, poderia usar qualquer aplicativo. O primei-
ro a surgir, vieram outros, pela facilidade de uso foi o app Noizz. Esse é um
aplicativo poderoso da edição de vídeo curto. Nele é possível salvar automa-
ticamente seus vídeos no celular e assim publicá-los. É um aplicativo para
edição de vídeos que permite a inserção de elementos em vídeos já gravados,
além de utilizar a câmera do dispositivo para registrar momentos com filtros,
adicionar trilhas sonoras, legendas e desenhos com movimentação.
A criação da narrativa de vida foi audiovisual, relacionando-se à arte
contemporânea, cuja linguagem é múltipla; a narrativa oral e visualizada
e integrada à arquitetura, aos cortes do cineasta, aos ruídos de fundo, en-
tre outras linguagens, remetendo a noções de territórios e interterritórios
(Tema de nossos debates em grupo, como já apontamos anteriormente). A
indicação técnica de gravação da criação de uma narrativa de vida foi o uso
de aplicativos para filmar e editar no celular. Além desse uso, a indicação
técnica para a exibição da criação da narrativa de vida foi o uso do site de
compartilhamento de vídeo, o site YouTube.
Aceito o app, passamos a produzir as narrativas e publicá-las no youtube
para a facilidade de acesso a outros professores e estudantes. O material es-
tava pronto, mas para que pudéssemos trabalhar com ele de maneira teórica,
mas também didática, precisávamos ampliar o trabalho.

657
Nesse sentido, formamos um grupo de estudantes e professores com seus
vídeos e nos inscrevemos na jornada - JOVAED 2018.
O que é a jornada em questão?
A Jornada Virtual ABED de Educação a Distância é um evento online,
aberto e gratuito organizado pela ABED - Associação Brasileira de Educação
a Distância que, nessa nossa experiência, ocorreu entre 09 a 29 de junho de
2018, de maneira assíncrona exatamente como a ferramenta se apresentou
a nós porque não estaríamos ao mesmo tempo todos juntos nas postagens.
Cada professor, assim como cada aluno, fez suas participações com mais
liberdade do que se a experiência fosse síncrona. Embora a comunicação
síncrona resulte em mais eficiência justamente porque é presente, a ideia era
mesmo a distância e deixar livres todos os partícipes para que pudessem agir
cada um dentro de seu próprio tempo. No entanto, isso não significa, nem
significou, que não houvesse seriedade e responsabilidade das postagens,
assim como de comentários sobre as postagens.
A JOVAED 2018 envolveu diversas atividades síncronas e assíncronas
(nossa escolha pelos motivos apontados acima) em múltiplas plataformas,
como: ambientes virtuais de aprendizagem, redes sociais, blogs e microblogs,
dispositivos móveis e webconferências, dentre outras.
Nossa opção, como apontamos, foi usar os dispositivos móveis para ela-
boração de vídeo com narrativa de vida que mostrasse uma história local,
regional, de entorno e isso foi feito pelo aplicativo Noizz. Estipulamos que
nossa participação seria assíncrona e uma data foi marcada para que os
acessos fossem feitos à medida que comentários eram apontados.
Participamos com o tema “Narrativas de alteridade da ocupação urbana:
uso de aplicativos para criação audiovisual” e usamos como ferramenta o
Google Classroom que nos deu oportunidade para criar páginas e elaborar
comentários sobre os vídeos.
Com essa ferramenta cada um dos produtores de vídeos colocava também
uma pequena explicação do material feito como reproduzimos abaixo o de
uma de nós, autoras deste artigo:
Dentro da nossa proposta de exemplos de narrativas
audiovisuais, apresentamos o material produzido pela
Roseli Gimenes. Leia a descrição do conteúdo: ‘Dentro do

658
Projeto de Pesquisa do curso de Letras da Unip Interativa
“Encontros Interculturais na EAD: Narrativas de vida dos
diferentes brasis”, em segundo momento, trabalhamos
com Narrativas da Alteridade. Significa narrar tendo
como universo o olhar sobre o Outro na perspectiva do
espaço, do território. Narrar com dispositivos móveis, eis
o objetivo. Uma narrativa audiovisual. A ideia do vídeo
é exatamente narrar o espaço em que me encontro com
o Outro que também o habita. Esse Outro é o espaço em
si, mas também objetos e pessoas que circundam o olhar.
Escolhi a metonímia dos pés das pessoas exatamente
porque marcam passos no espaço ocupado. Cães porque
são companheiros da jornada das pessoas e a vegetação
porque é nossa máxima preocupação. No caso, a escolha
de uma praça significativa à comunidade do bairro em
que vivo mostra que a topologia que acalma é também
o que almejamos em nossas vidas’. (GIMENES, 2019).

Cada passante da página, alunos e professores, assiste ao vídeo e deixa


comentários como se vê na figura 1:

659
FIGURA 1. Comentários sobre o vídeo produzido pela Roseli Gimenes.
Fonte: JOVAED, 2018.

A sequência que se vê acima na Figura 1 mostra como a atividade, de


fato, foi assíncrona, ou seja, cada participante aparece em dias e horários
diferentes, assim como se vê também nos comentários.
A possibilidade de criação desse trabalho só aconteceu porque nossas
leituras prévias, nossos referenciais teóricos, além dos temas sobre narra-
tivas e interterritórios, foram os que trabalharam a questão do Hibridismo
na educação.

660
Hibridismo na educação

O material conforme apresentamos representa uma possibilidade de


mesclar ensino presencial e EAD dos dois lados. Assim, o estudante do EAD,
mesmo já colocado a distância, aproxima-se da construção da narrativa pelo
vídeo feito pelo aplicativo, vai em busca de material para sua história. Vê
lugares, entrevista pessoas, participa presencialmente do processo. E o alu-
no do presencial toma contato com a distância dos aplicativos que não são
considerados apenas objetos frios, mudam pelo olhar criativo do narrador.
Muito mais, ambos partilham da tecnologia pela disseminação das TDI-
Cs (Tecnologias digitais da informação e comunicação). Nesse sentido, os
estudantes e professores fazem uso da tecnologia com um fim educacional.
Exatamente, criar narrativas de vida, não ficar apenas no discurso teórico
convencional em que estudantes ouvem conceitos e não praticam; melhor,
às vezes praticam, mas apenas aquelas também narrativas convencionais,
escritas e no papel ou na tela do computador.
Aproveitamo-nos da definição que envolve a tecnologia da educação, em
função do hibridismo, de Struchiner e Giannella (2018, p. 319):
Hibridismo tecnológico na educação (HTE) é uma
expressão polissêmica que identifica e qualifica deter-
minadas características relacionadas à sinergia de tec-
nologias digitais de informação e comunicação (TDICs)
na sociedade contemporânea, partindo da perspectiva
de que já não é mais possível diferenciar ou tratar se-
paradamente as diversas linguagens e suas mídias, bem
como as relações espaço-tempo e físico-virtual em pro-
cessos educativos.

Segundo J. Moran (2015), o caráter híbrido sempre esteve presente na


educação. A aproximação com os processos de conectividade, evidentemen-
te, deixaram isso mais claro. Ou seja, a aprendizagem não é tão somente
individual ou coletiva. Aprende-se na escola, mas também na comunidade.
Com intenção ou não de aprendizagem. Ainda que possamos prever e ter
um cronograma de aprendizagem, ela se torna aberta, informal sempre que
contamos com as experiências dessa jornada.

661
Considerando que o MEC já aprovara 20% de estudos a distância e agora
caminhamos de acordo com 40% (PORTARIA 1428, de 2018), é preciso pensar
e repensar como será esse ensino. Híbrido, portanto, já que quase a metade
de um curso presencial poderá ser exercitado a distância.
A aprendizagem híbrida contém ensinamentos do Letramento Digital
já que, como vimos no caso apresentado, ler implica mais do que um ato
de leitura verbal, mas ler é também uma leitura de imagens (SANTAELLA,
2012); no caso, de um vídeo que seja uma narrativa de vida. Postado um
vídeo na página da JOVAED percebemos que (exemplos apontados) mui-
tas pessoas (professores e alunos) colocavam questões, faziam uso crítico
do que seja narrativa para exercitarem suas próprias narrativas. Para além
dessa percepção, um vídeo narrativo é também dependente de um contexto
de realização, o como e em que contexto foi elaborado. Ler essa imagem au-
diovisual em movimento precisa e requer análise. Por isso, não se trata de
um vídeo qualquer feito para um momento de lazer, mas um vídeo-narrativa
que implica em conhecimentos prévios do que seja uma narrativa, do que
seja, neste caso, uma narrativa de vida. Esse vídeo precisa corresponder aos
objetivos propostos pelo grupo de pesquisa para essa atividade.
Esse projeto, além de unir professores e alunos, já que a tarefa é confe-
rida a ambos, contém um átimo da função conativa do ‘faça você mesmo’,
conforme nos apontam Nolasco-Silva, Lo Bianco e Faria (2018, p. 77):
Por sua natureza híbrida, as audiovisualidades nos
falam das possibilidades de fabricar com, de misturar
conhecimentos e produzir um outro a partir de uns tan-
tos. Por sua abertura ao compartilhamento, as audiovi-
sualidades inspiram a troca e produzem laços em redes
sociais distintas. Por borrar as fronteiras entre os códi-
gos estabelecidos, autorizando linhas de improviso, as
audiovisualidades indicam que hierarquias podem ser
dispensadas, dando lugar a diálogos mais livres.

Essa natureza híbrida educacional e tecnológica está presente no traba-


lho que apontamos porque envolve o tecnológico com o uso dos dispositivos
móveis e com eles o uso de uma mídia prazerosa que é o vídeo, audiovisual,
conforme nos aponta Mattar (2009, p. 118):

662
O grau das interações também varia em função das
mídias utilizadas, como texto, áudio, vídeo, teleconfe-
rência, entre outras. A combinação planejada dessas
diferentes formas de interação é um desafio da EAD.
Todos esses tipos de interação podem ocorrer síncrona
e assincronamente, por meio de diversos gêneros de co-
municação. Interações síncronas envolvem um grau de
espontaneidade que não é fácil de encontrar nas inte-
rações assíncronas, as quais, entretanto, oferecem mais
flexibilidade para o aluno, já que podem ocorrer em qual-
quer lugar e horário.

Um desafio, diríamos, também para o ensino presencial. E no presen-


cial os alunos estão mais acostumados às atividades síncronas: o professor
está a sua frente, pode tirar-lhe dúvidas a todo momento, o material está
a seu alcance na lousa seja o quadro negro ou o digital. Na presença tudo
está síncrono. Justamente a atividade que fizemos, por ser assíncrona, liga
o estudante do ensino presencial a atividades que ele pouco usa. Os cursos
presenciais contam com a presença de alunos. De certa forma, toda a tecno-
logia à disposição de estudantes e professores enriquecem os cursos. A sala
de aula e o ambiente virtual confluem, convergem. Quebra-se “a dicotomia
da distância na educação” (TORI, 2009, p. 128).
Quais resultados pudemos obter dessa experiência?
O primeiro foi o da interação e convergência de interesses tanto de pro-
fessores como de alunos; e de alunos do presencial assim como os de EAD.
O segundo, importantíssimo, foi o da aprendizagem prazerosa. Prazer aqui
não significa facilidade já que para muitos foi uma experiência única acessar
o app, aprender como manuseá-lo e, enfim, fazer o vídeo, colocar narração
oral, música e efeitos de edição. Além de tudo, ainda praticar o como inse-
rir esse material no YouTube. Dificuldades maiores ficaram por vir quando
tivemos que criar o material para participar da JOVAED. Criar a página no
Google Classroom. Embora já muito conhecida, essa plataforma junta algumas
ideias simples para facilitar a comunicação entre professores e seus alunos.
Com ela, os professores podem criar e receber tarefas, se organizar com a
criação de pastas no Google Drive para cada uma das tarefas e conversar

663
em tempo real com seus estudantes, seja dentro ou fora da sala de aula. Esse
‘tempo real’ existe, mas em nosso caso, o tempo era o depois das postagens,
o tempo de cada um para entrar e deixar comentários. O Google Classroom
é ideal para quem tem projeto educacional e quer reunir seus alunos em
uma plataforma digital. Bastante simples, a ferramenta permite que você
crie uma sala de aula, adicione seus alunos por e-mail e elabore tarefas para
compartilhar na agenda da sala. É possível conversar ainda em tempo real
com os alunos, dentro ou fora da sala de aula. Em nosso caso, além de alu-
nos, como apontamos, os professores também criaram contas para acesso à
plataforma e isso possibilitou diálogos sem nível de desigualdade. Ali todos
eram aprendizes em um projeto: não apenas criar a narrativa de vida em um
dispositivo móvel, mas também aprender o como criar, o como trabalhar com
as novas tecnologias digitais da informação e comunicação.
Dito assim, a um leitor ubíquo, tudo parece facílimo. Lembramos, no en-
tanto, que tudo pode ser fácil e tão somente uma atividade de lazer. Não era
esse o nosso objetivo. Queríamos que fosse uma aprendizagem educativa.
Os resultados, apesar de todas as dificuldades, foi um trabalho prazeroso e
bonito e, melhor, sabermos não só o que é uma narrativa de vida, mas como
fazê-la em audiovisual e com um aplicativo em dispositivo móvel. E fora, para
fora, com o preconceito. Fora no sentido de deixar a tecnologia entrar em
nosso trabalho. Para além dos resultados, um objetivo importante e muito
mais aparentemente abstrato é o de olhar para o Outro como apontamos
logo no início deste artigo. Exercer uma posição crítica para poder criticar
um vídeo feito por esse Outro e esperar também uma crítica. Leia-se aqui a
palavra crítica naquele sentido enriquecedor da aprendizagem, aquele que
nos leva ao crescimento.

Considerações Finais

Apresentamos uma experiência inovadora com o uso de aplicativo em


dispositivo móvel, levando em consideração o hibridismo tecnológico na
educação e partindo de um grupo de trabalho heterogêneo com alunos do

664
presencial e do EAD, mas também com professores, muitos com imensos
preconceitos em relação ao uso da tecnologia com fins educacionais. Ven-
cemos preconceitos. Fizemos um trabalho bem feito e bonito que pode ser
apreciado nos links que deixamos à disposição.
A base teórica no que se trata de narrativas, como estudiosos de Letras,
nós a tínhamos. Narrativas de vida e interterritório, tema atualíssimo, refez
pensamentos fechados sobre o espaço urbano. Sobretudo aprendemos muito
com os autores aqui apontados que veem no hibridismo (também uma questão
cultural) e na blended learning uma resposta criativa para a aprendizagem.
Mistura e articulação entre o ensino presencial e o ensino a distância, uma
estratégia dinâmica que envolve diversos recursos tecnológicos, diferentes
abordagens pedagógicas e diferentes espaços. Enfim, o uso das TDICs para o
ensino aprendizagem. Os benefícios da aprendizagem híbrida. O uso de narra-
tivas de vida para a inclusão não só de alunos de diversas partes do Brasil ou
de diversos bairros de uma cidade, mas também entre alunos e professores.

665
Referências

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don: Heinemann, 1988.
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de Professoras/es. Gênero, Sexualidade, Orientação Sexual e Relações
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cuver, Toronto, UBC Press, 2008.
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pação urbana! [s.i.], 2018. 1 vídeo (2:45min). Disponível em: https://
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GIMENES, Roseli. Narrativas de Alteridade da ocupação urbana! EINAVIB
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para a formação de professores. Revista Brasileira de Aprendizagem
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VATTIMO, Gianni. Ethics, Politics and Law. Columbia U. Press, 2003.

667
Sobre as autoras e os autores

ORGANIZADORAS

Maria Zilda da Cunha


Pós-doutorado em Estudos Portugueses e Lusófonos no Instituto de Letras
e Ciências Humanas da Universidade do Minho, Portugal (2018) e Pós-Dou-
torado em Ciências, Educação e Humanidades pela UER (2016); Doutora em
Letras - Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa (USP-
2002); Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP (1997); docente
no programa (de graduação e pós-graduação) de Estudos Comparados de
Literaturas de Língua Portuguesa e coordenadora da Área de Literatura
Infantil e Juvenil (USP); líder do Grupo de Pesquisa Produções Literárias e
Culturais para crianças e jovens (USP/CNPQ). Autora do livro Na Tessitura
dos Signos Contemporâneos. Editora Humanitas, USP/ Paulinas, 2009. Pes-
quisadora do CNPq. Contato: mariazildacunha@hotmail.com

Lígia Regina Máximo Cavalari Menna


Pós-doutorado em Letras pela FFLCH-USP. Doutora em Letras na área de
Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade
de São Paulo (USP). Mestrado na mesma área. É docente do Curso de Letras
da Universidade Paulista (UNIP) e professora colaboradora do PPGECLLP-F-
FLCH-USP. Autora de A carnavalização na literatura Infantil (Giostri, 2017) e A
literatura infantil além do livro (Bonecker, 2019). Participa dos seguintes Grupos
de Pesquisa (CNPQ/CAPES): “Encontros interculturais na EAD: Narrativas de
Vida dos diferentes brasis”, à frente da linha de pesquisa Diferentes gêneros auto-
biográficos: sua relevância histórica, social e literária (UNIP Interativa) e “Pro-
duções literárias e culturais para crianças e jovens” (FFLCH/USP), na linha de
pesquisa “Literaturas e outras formas de saber.” E. mail: mennaligia@gmail.com

668
AUTORES

Avani Souza Silva


Graduada e licenciada em Letras pela Universidade de São Paulo (USP/
SP), Mestre e Doutora pelo Programa de Estudos Comparados de Literatu-
ras de Língua Portuguesa da mesma universidade. Membro dos Grupos de
Pesquisa “Produções Literárias e Culturais para Crianças e Jovens” e “Ti-
mor-Leste: Literatura, Política e Sociedade”. E-mail: avanissilva@gmail.com

Bruno Anselmi Matangrano


Bacharel, mestre e doutor em Letras pela Universidade de São Paulo
(USP), concentrando suas pesquisas sobre as literaturas simbolista e deca-
dentista, escritas em português e francês, assim como sobre as vertentes do
insólito ficcional. Dedica-se também às teorias sobre a representação dos
animais e dos monstros em obras literárias e em produções audiovisuais. É
membro dos grupos de pesquisa POEM (Poéticas e Escritas da Modernida-
de), da USP, e “Nós do Insólito: vertentes da ficção, da teoria e da crítica”,
da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), assim como do LÉA
(Lire en Europe Aujourd’hui), rede de pesquisa internacional da Universi-
dade de Lisboa (FLUL). Já publicou vários artigos, traduções e contos em
revistas, jornais e obras coletivas e é autor dos livros Contos para uma noite
fria (2014) e Fantástico Brasileiro: o insólito literário do romantismo ao fan-
tasismo (2018), com Enéias Tavares. E-mail para contato: bamatangrano@
yahoo.com.br. Currículo Lattes disponível através do endereço: http://lattes.
cnpq.br/2139289828609663

Cielo G Festino
Doutora em literaturas de língua inglesa pela USP. Fez um programa
de pós-doutorado sobre ensino de literatura na Universidade de São Paulo
(2007-2009/ FAPESP), um segundo pós-doutorado sobre o conto nas línguas
vernáculas da Índia, de autoria feminina, na Universidade Federal de Minas
Gerais (2010-2012) e atualmente um pós-doutorado sobre a Literatura de Goa
na área de Literatura Comparada (2014-) no DLCV/USP. É professora de li-

669
teraturas de língua inglesa na Universidade Paulista, São Paulo, e professora
colaboradora do programa de Mestrado da Universidade Federal de Tocantins.
É membro do projeto temático “Pensando Goa. Uma Biblioteca Singular em
Língua Portuguesa” (USP/FAPESP). Tem várias publicações sobre literatura
indiana, entre elas foi co-editora do volume da revista literária Muse India
(vol. 70, 2016),dedicado à literatura de Goa de língua portuguesa, e do livro
A House of Many Mansions: Goan Literature in the Portuguese Language. An
Anthology of Original Essays, Short Stories and Poems (Margão, Goa: Under
the Peepal Tree, 2017). E-mail: cielofestino@gmail.com

Cristiano Camilo Lopes


Doutor (2012) e mestre (2009) em Letras pela Universidade de São Pau-
lo-USP (Área de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa).
Professor-pesquisador no Ensino Superior. Possui pós-doutorado no Pro-
grama de Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária (2020),
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e também em
Literatura Infantil e Juvenil na área de Estudos Comparados de Literaturas
de Língua Portuguesa da FFLCH/USP (2016). É doutorando e mestre em
Teologia - intracorpus (2017) pelo Centro Presbiteriano de Pós-Graduação
Andrew Jumper (Instituto Presbiteriano Mackenzie), é bacharel em Teologia
pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2005) e pelo Seminário Teológico
Betel Brasileiro - intracorpus (1998). É membro do Grupo de Pesquisa Pro-
duções Literárias e Culturais para crianças e jovens da FFLCH/USP. E-mail:
cristianoclopes@hotmail.com

Cristina Casagrande
Autora do livro A amizade em “O Senhor dos Anéis” (Martin Claret, 2019)
e presta serviços editoriais para a HarperCollins Brasil nas publicações de
J.R.R. Tolkien no país. Formada em Jornalismo (Cásper Líbero) e Letras
(USP), atua hoje como revisora, tradutora, redatora e pesquisadora. Defen-
deu, em 2017, um mestrado em literatura tolkieniana pela USP e prossegue
sua pesquisa no doutorado, ainda sobre Tolkien e a filosofia. Estuda fantasia,
mito e contos de fadas no Grupo de Pesquisas sobre Literatura e Produções
Culturais para Crianças e Jovens (USP–CNPq), coordenado pela Profª. Drª.

670
Maria Zilda da Cunha. Organizou a exposição “De Volta Outra Vez — 80
anos de O Hobbit” (2017), e o curso, com a colaboração do Prof. Dr. Diego
Klautau, “A subcriação de mundos — estudos sobre a literatura de J.R.R.
Tolkien” (2018), ambos na USP. Gerencia a conta Tolkienista no Instagram
e outros projetos inspirados no autor. E-mail: cristina.cf@gmail.com

Dayse Oliveira Barbosa


Doutoranda em Letras (Estudos Comparados de Literaturas de Língua
Portuguesa), na Universidade de São Paulo. Professora de Língua Portugue-
sa na rede pública do Estado de São Paulo, desde 2011. Integra o Grupo de
Pesquisa Produções Literárias e Culturais para Crianças e Jovens 2. Realiza
pesquisas na área de Literatura Infantil e Juvenil, dedicando-se com maior
ênfase à relação intermidiática entre literatura e cinema. E-mail: olivei-
rab2010@gmail.com

Diana Navas
Diana Navas é doutora pela USP e atua como professora do Programa de
Estudos Pós-Graduados em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP. Dentre
suas principais publicações em livro destacam-se: Literatura juvenil dos dois
lados do Atlântico (2016); Produção literária infantil e juvenil contemporâ-
nea: reflexões acerca da pós-modernidade (org.) (2018); Educação, Culturas,
Artes e Tecnologias (org.) (2019). É vice-líder do Grupo de Pesquisa “Crítica
literária: tendências e perspectivas” (PUC-SP), membro do Grupo de Pes-
quisa “Literatura Infantil e Juvenil: Teorias e Práticas Leitoras” (UERJ), e
integrante do GT da Anpoll “Literatura Infantil e Juvenil”. Suas pesquisas
recentes concentram-se nas tendências da literatura juvenil contemporânea
brasileira e portuguesa, especialmente na relação interartes e no livro-objeto
juvenil contemporâneo. CV: http://lattes.cnpq.br/9770050223986051. E-mail:
diana.navas@hotmail.com; dnavas@pucsp.br.

Eliane Ap. Galvão Ribeiro Ferreira


Eliane Ap. Galvão Ribeiro Ferreira é professora na graduação e pós-gra-
duação da UNESP – Faculdade de Ciências e Letras de Assis. Membro dos
Grupos de Pesquisa: Leitura e Literatura na Escola (UNESP); Literatura

671
Infantil e Juvenil: análise literária e formação do leitor (UTFPR-Curitiba);
RELER – Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Leitura (PUC-Rio). In-
tegra o Grupo de Trabalho “Leitura e Literatura Infantil e Juvenil”, junto a
ANPOLL, e a “Red Temática de Investigación Literaturas Infantiles y Juve-
niles em el Marco Ibérico”, vinculado à Universidade de Santiago de Com-
postela, Espanha.

Felipe Leonardo Ferreira


Graduado em História e em Física, pela Universidade de São Paulo – USP.
Atualmente, faz mestrado em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Et-
nologia (MAE) da mesma instituição, desenvolvendo o projeto A distribuição
espacial dos santuários de Atena e Deméter em sítios gregos da Sicília antiga
(sécs. VIII - V a.C.), sob orientação de Elaine Farias Veloso Hirata. Seus in-
teresses incluem tópicos de mitologia e civilização clássicas bem como lite-
ratura e cinema fantásticos. É membro do LABECA (Laboratório de Estudos
sobre a cidade antiga, do MAE-USP) e colaborador do LECA (Laboratório de
Estudos sobre a Cerâmica Antiga) na análise da cerâmica grega do acervo do
MAE. Além disso, sob o nome de Felipe Leonard, publicou contos em várias
antologias e mantém um canal no YouTube para difusão do conhecimento.
Tem sua pesquisa apoiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior (CAPES). E-mail para contato: felipe.leonardo.ferreira@
usp.br. Currículo Lattes disponível através do endereço: http://lattes.cnpq.
br/6017799699124334

Fernanda Marques Granato


Doutoranda em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universi-
dade Católica de São Paulo, com a pesquisa O caminho do meio: às margens
do sentido paradoxal construído na encruzilhada entre a produção nonsense
de Edward Lear (1812-1888) e Qorpo Santo (1829-1883), realizada na PUC-SP,
sob orientação da Profa. Dra. Vera Bastazin, cujo projeto atual de pesquisa é
Afeto, Razão e Constituição do Sujeito na Literatura, e com período sanduíche
como Doutoranda visitante na Universidade de Sheffield (Inglaterra, Reino
Unido, sob orientação da Prof. Dra. Anna Barton). Graduate e ALUMNI da
University of Sheffield, Inglaterra, Reino Unido. Mestre em Literatura e Crítica

672
Literária da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), tendo
Especialização em Docência no Ensino Superior pela Pontifícia Universidade
do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e sendo graduada em Comunicação e Mul-
timeios pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e em
Letras - Tradução: inglês-português pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP). Possui o Certificado CELTA de Ensino do inglês como
segunda língua emitido pela Universidade de Cambridge.E-mail: femarques-
granato@gmail.com

Graziele Maria Valim


Doutoranda do PEPG em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, sob orientação da Professora Dra. Diana
Navas, com bolsa CAPES. Mestre em Literatura pela mesma Universidade
(2016). Possui especialização em Literatura e Teoria Literária pela PUC-SP
(2014), e graduação em Letras com licenciatura em Português/Inglês pela
Universidade Estadual de Goiás (2006). Tem experiência acadêmica nas
áreas: Estudos Literários, com ênfase em Teoria Literária, Poéticas da Moder-
nidade, Literatura Juvenil, Literatura Portuguesa. Possui experiência como
professora de língua inglesa e mais de dez anos de experiência profissional
em treinamento, desenvolvimento (coaching) e gestão de pessoas e serviços
em ambientes corporativos. E-mail: gravalim@gmail.com

Gabriela Trevizo Gamboni Patrocinio 


Doutoranda e Mestre (2014) pelo Programa de Estudos de Pós-Gradua-
ção em Literatura e Crítica literária pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo. Especialista em Literatura pela COGEAE/PUC-SP (2012).
Possuo Graduação em Letras pela Unifafibe (2008), além de Pedagoga pela
Uninove (2017). Atuo como professora de Literatura para o Ensino Médio, e
professora de Leitura e Escrita Criativa para Ensino Fundamental II. E-mail:
gabi_gamboni@hotmail.com

João Luís Ceccantini


João Luís Ceccantini é professor de Literatura Brasileira na UNESP – Fa-
culdade de Ciências e Letras de Assis. Coordena o Grupo de Pesquisa CNPq

673
“Leitura e Literatura na Escola”. É votante da FNLIJ – Fundação Nacional do
Livro Infantil e Juvenil. Integra a “Red Temática de Investigación Literatu-
ras Infantiles y Juveniles em el Marco Ibérico”, vinculado à Universidade de
Santiago de Compostela, Espanha. Foi coordenador do Grupo de Trabalho
“Leitura e Literatura Infantil e Juvenil” da ANPOLL.

Juliana Pádua Silva Medeiros


Juliana Pádua Silva Medeiros é membro dos grupos de pesquisas “Pro-
duções Literárias e Culturais para Crianças e Jovens” (USP), “O discurso
pedagógico de Paulo Freire: confluências” (UPM) e “Literatura Infantil
e Juvenil” (GEPLIJ-UNIFESSPA), doutoranda bolsista em Letras pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), mestre em Letras pelo
programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa
(USP), especialista em Literatura e Artes Visuais (UNIFEV) e graduada
em Letras (FEF). 
Já atuou como resenhadora, arte-educadora e professora no Ensino Su-
perior e na Educação Básica. Atualmente, é consultora/assessora, formadora
e produtora de conteúdo na área de literatura para infância e juventude e
seus diálogos com as artes, as mídias e as tecnologias, bem como com ateliê
de linguagens. 
É coautora de 20 livros, entre eles Literatura infantil e juvenil: do literário
a outras manifestações estéticas, premiado, em 2017, pela Fundação Nacional
do Livro Infantil e Juvenil FNLIJ - como Melhor Livro Teórico do Ano, além
de receber o Selo Altamente Recomendável e fazer parte do catálogo da Feira
de Bologna de 2018. E-mail: julianapadua81@gmail.com

Karin Volobuef
Possui graduação em Letras pela Universidade Estadual de Campinas
(1984), mestrado em Letras (Língua e Literatura Alemã) pela Universidade
de São Paulo (1991) e doutorado em Letras (Língua e Literatura Alemã)
pela Universidade de São Paulo (1996). Atualmente é professora assisten-
te doutora da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, no
Campus de Araraquara. Tem experiência na área de Letras, com ênfase
em Literatura Alemã, atuando principalmente nos seguintes temas: Ro-

674
mantismo, conto de fadas, fantástico, ficção científica e romance fantasia
(Fantasy Novel).

Klaus Eggensperger
Possui mestrado em Letras pela Universidade Hamburg, Alemanha e
doutorado em Linguística pela Universidade Osnabrück, Alemanha. Leitor
do DAAD na UFPR entre 1995 e 2002 e professor visitante na Universidade
de Dortmund, Alemanha, em 2003. Pós-Doutorado concluído na USP, FFL-
CH, 2013/2014. Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal do
Paraná, atuando na Graduação no Departamento de Letras Estrangeiras Mo-
dernas (Área de Inglês) e na Pós-Graduação em Letras como orientador de
mestrado e doutorado. Fundador do Grupo de Estudos Ecocríticos GECO na
UFPR. Áreas: Ecocrítica, Teoria Estética (Estética ecocrítica, Teoria Crítica;
Freud), Estudos Culturais, Letras Estrangeiras Modernas.

Lica Hashimoto
Doutora em Literatura Brasileira, docente do curso de Letras Japonês do
Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo. Docente, palestrante, consultora,
tradutora e autora de livros e artigos relacionados à Língua e Literaturas
Japonesa e Brasileira. Ministra aulas de Literatura Japonesa na Graduação
(Letras - Japonês) e na Pós-graduação (Programa de Língua, Literatura e
Cultura Japonesa), pesquisadora do Centro de Estudos Japoneses (Cejap-
-USP) e membro da Associação Brasileira de Estudos Japoneses (ABEJap). Foi
Bolsista do Ministério da Educação do Japão (atual MEXT) - especializou-se
em Língua e Cultura Japonesas pela Universidade de Waseda (Tóquio) - e do
Programa de Treinamento de Professores estrangeiros de Língua Japonesa
da Fundação Japão, organização vinculada ao Ministério das Relações Ex-
teriores. Contato lica.hashimoto@usp.br

Luara Teixeira de Almeida


Mestranda em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP com bolsa CA-
PES. Possui pós-graduação em Direção de Arte em Comunicação pelo Centro
Universitário Belas Artes de São Paulo, especialização em Ilustración para

675
Publicaciones Infantiles y Juveniles no EINA - Centre Universitari de Dis-
seny i Art de Barcelona e graduação em Design Gráfico pela Universidade
Presbiteriana Mackenzie. Realiza pesquisas com foco em livros ilustrados e
no uso das cores nas narrativas.

Luciana de Paula
Mestra pelo programa Mestrado Profissional em Letras - PROFLETRAS
da Universidade de São Paulo e Bacharel em língua portuguesa pela Uni-
versidade de São Paulo - USP (2010), licenciada em língua portuguesa pela
Universidade de São Paulo - USP (2011), especialista em psicopedagogia pela
Universidade de Mogi das Cruzes - UMC (2012), licenciada em pedagogia pela
Universidade Metropolitana de Santos - UNIMES (2015), pesquisadora do
Grupo de Pesquisa Produções Literárias e Culturais Para Crianças e Jovens –
FFLCH-USP. Tem experiência na área da educação no ensino fundamental I e
II, além da educação infantil. Quanto à pesquisa, atua nos campos do ensino
de língua portuguesa e literatura pelo vértice do uso de narrativas como uma
via para a humanização. É professora efetiva de língua portuguesa na Escola
Estadual Professora Maria Isabel dos Santos Mello desde 2014.E-mail: abor-
boletaverde@yahoo.com.br Lattes: http://lattes.cnpq.br/4955469519140482

Luciana Taraborelli
Mestranda no programa de Mestrado Profissional em Letras pela Univer-
sidade de São Paulo, na área de linguagem literária e ensino de língua ma-
terna: práticas escolares voltadas ao texto literário, em particular do gênero
poético, explorando seus vários aspectos: gramatical, textual e discursivos
- e os efeitos de sentido que produzem. Possui especialização em Estudos
Literários pela Faculdade Anhanguera e graduação em Letras pelo Centro
Universitário Nossa Senhora do Patrocínio da cidade de Itu- SP. 
E-mail: taraborellilu@gmail.com
Link Currículo Lattes:  http://lattes.cnpq.br/1247551192848919

Luciane Bonace Lopes Fernandes.


Doutorado em Educação pela Universidade de São Paulo, Brasil. (2015).
Pós-doutorado em Metodologia do Ensino e Educação Comparada pela Facul-

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dade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP) e Pós-doutorado
em Letras Orientais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). E-mail: lucianebonace@usp.br

Marana Borges
Formada em Jornalismo pela Universidade de São Paulo (2010), com mes-
trado em Teoria da Literatura pela Universidade de Lisboa (2013) e doutorado
em curso pela mesma instituição. Suas principais áreas de interesses são a
Teoria da Literatura, a Literatura Brasileira, as Artes Visuais e a Filosofia da
Arte. Desenvolveu estágio doutoral no prestigioso CNRS (Centre National
de la Recherche Scientifique), em Paris. Recebeu financiamento para pes-
quisa da Comissão Europeia, da Fundação para a Ciência e a Tecnologia em
Portugal e do Ministério da Educação no Brasil. Tem artigos e resenhas pu-
blicados no Brasil, Portugal e França. Seu último artigo, “O predomínio das
memórias frente ao romance nas narrativas a respeito da ditadura militar
brasileira”, apareceu na revista Estudos de Literatura Brasileira Contemporâ-
nea em 2019 (UnB - Qualis A1). Como escritora, ganhou diversas distinções,
entre as quais se destacam o Prêmio Governo de Minas Gerais (romance), o
Prêmio Humberto de Campos da União Brasileira dos Escritores (contos) e
uma bolsa de criação literária da Biblioteca Nacional (romance). Participou
da antologia Histórias da Pandemia (ed. Alameda, 2020). Contato: marana-
borges@gmail.com

Maria Auxiliadora Fontana Baseio


Pós-doutorado pela Universidade do Minho, Portugal; Doutora em Estudos
Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa (USP-2007); Mestre em Estu-
dos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa (USP-2000); Professora
do Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas na Universidade Santo
Amaro (UNISA) e da Faculdade Rudolf Steiner; líder do grupo de pesquisa
Arte Cultura e Imaginário (Unisa) e pesquisadora do grupo Produções Lite-
rárias e culturais para crianças e jovens(USP). Contato: mbaseio@uol.com.br

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Maria José Palo
Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Ca-
tólica de São Paulo (1994).Possui graduação em Língua e Literatura Verná-
culas pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1970), mestrado
em Comunicação e Teoria Literária pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (1977). Atualmente Leciona Literatura Brasileira no Curso de
Pós-Graduação em Literatura e Crítica Literária, atuando principalmen-
te nos seguintes temas: literatura brasileira, literatura infantil, ilustração,
ficção moderna e contemporânea. Pesquisa os Impasses da Narrativa e do
Narrador na Modernidade, com Projeto atual denominado: A fragmentação
do dito nos eventos de linguagem escrita: a fabulação do século XX e XXI
(Projeto CAPES). Autora/organizadora, entre outros, de Agamben, Glissant,
Zumthor: Voz. Pensamento. Linguagem (São Paulo: EDUC-SP, 2013) e Im-
passes do narrador e da narrativa na contemporaneidade (São Paulo. 2017)

Maria Rosa Duarte de Oliveira


Professora titular em Teoria Literária do Programa de Estudos Pós-Gra-
duados em Literatura e Crítica Literária da PUC-SP. Além de muitos trabalhos
publicados em livros e periódicos especializados, nacionais e internacionais,
é organizadora de várias coletâneas, nas quais também possui ensaios de sua
autoria, como: Agamben, Glissant, Zumthor: Voz. Pensamento. Linguagem
(2013); Machado de Assis – contos para muitas vozes (2015, edição bilíngue
português-espanhol); Impasses do narrador e da narrativa na contempora-
neidade (2016). É líder do Grupo de Pesquisa “O narrador e as fronteiras do
relato” e editora científica da revista digital FronteiraZ . http://lattes.cnpq.
br/7301535243235896

Michaella Pivetti
Designer e editora de arte, é formada em comunicação visual, trabalha
com design gráfico e especializa-se em projetos editoriais e jornalismo im-
presso. Pesquisa e atua na área da comunicação visual, jornalismo gráfico,
produção editorial e literatura para a infância. É Mestre em Ciências da Co-
municação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo,
ECA USP, Departamento de Jornalismo, onde começou sua atividade docente

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na função de professora conferencista. “Planejamento e representação gráfica
no jornalismo impresso. A linguagem jornalística e a experiência nacional”
é o título do estudo desenvolvido para dissertação de mestrado. Trabalhou
para alguns dos principais jornais e revistas brasileiros e desenvolve proje-
tos como colaboradora e consultora para editoras jornalísticas, de livros e
escritórios de comunicação. Começa a projetar e ilustrar na literatura para
crianças e se interessa em estudar o campo. Em 2018, torna-se doutora em
Design e Arquitetura pela FAUUSP, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade de São Paulo, com a tese: “A fantasia, o design e a literatura
para a infância. Fundamentos para uma gramática contemporânea da fantasia
nos livros ilustrados”, uma proposta interdisciplinar, entre design e literatura,
para análise e leitura da criatividade. E-mail: micpivetti@gmail.com

Nefatalin Gonçalves Neto


Graduação em Letras/Latim pela Universidade Estadual Paulista Júlio
de Mesquita Filho (2006), Graduação em Pedagogia pela Universidade Nove
de Julho (2011), Mestrado (2011) e Doutorado (2019) em Letras (Literatura
Portuguesa) pela Universidade de São Paulo. Foi professor da rede pública
de ensino da cidade de Assis/SP; coordenador pedagógico durante um ano
na mesma cidade e professor de Latim da UEPB (Universidade Estadual da
Paraíba). Atualmente é professor de Latim e Língua Portuguesa da UFRPE
(Universidade Federal Rural de Pernambuco). Tem experiência na área de
Letras, com ênfase em Teoria literária e em Outras Literaturas Vernáculas,
atuando principalmente nos seguintes temas: literatura portuguesa contem-
porânea (leituras da obra dos escritores portugueses, em especial José Sara-
mago), poesia portuguesa, Literatura Clássica (escritores latinos, Plauto) e
a questão da duplicidade na literatura. E-mail: nefa.usp@gmail.com
Link para currículo Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/
visualizacv.do?id=K4744283T7

Nathália Xavier Thomaz


É doutoranda na área de Literatura Infantil e Juvenil na Universidade
de São Paulo. Sua pesquisa sobre os diálogos entre literatura e história em
quadrinhos é contemplada pela bolsa CAPES. É graduada em psicologia (UNI-

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MEP), pós-graduada em Literatura e Crítica literária (PUC-SP) e mestre em
Literatura Infantil e Juvenil (USP). É uma das editoras da Revista Literartes
e membro do Grupo Produções Literárias e Culturais para Crianças e Jovens.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7326418943635236 E-mail: nxthomaz@gmail.com

Norma Seltzer Goldstein


Licenciada, mestre e doutora pela Universidade de São Paulo onde tam-
bém atuou como docente. Atualmente é professora sênior do Programa de
Pós-Graduação em Filologia e Língua Portuguesa da mesma universidade.
Desenvolve e orienta pesquisas na área da Linguística Aplicada. Atua, ainda,
no projeto PROFLETRAS – USP, em rede nacional. Faz assessoria em escolas,
junto a professores de Português do Ensino Fundamental e Médio. E-mail:
ngolds@uol.com.br
Link Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1744226503174213

Oscar Nestarez
É escritor, tradutor e pesquisador da ficção literária de horror. No campo
acadêmico, tem mestrado em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, e
atualmente cursa doutorado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua
Portuguesa pela FFLCH-USP. Como ficcionista, publicou a coletânea Horror
adentro (Kazuá, 2016) e o romance Bile negra (Pyro, 2018) - que recebeu o
prêmio ABERST de melhor romance de horror em 2018 -, além de contos
em diversas antologias. Como tradutor, verteu para o português O Castelo de
Otranto, de Horace Walpole (Novo Século, 2019), entre outras importantes
obras da ficção gótica e de horror. Também é colunista da revista Galileu.
E-mail: oscar.nestarez@gmail.com

Paulo César Ribeiro Filho


Mestre em Literatura Portuguesa (2017) e bacharel em Letras-Português
(2014) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Univer-
sidade de São Paulo (FFLCH-USP). Licenciado em Letras-Português (2015)
pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP). Dou-
torando junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de
Literaturas de Língua Portuguesa (área de Literatura Infantil e Juvenil) da

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FFLCH-USP. Concentra seus estudos nas expressões literárias do imaginário,
investigando-as sob o viés da história cultural. Sua dissertação de mestrado
versou a respeito dos bons diabos da literatura tradicional portuguesa, com
destaque para o protagonista da novela anônima Obras do Diabinho da Mão
Furada. Em sua tese de doutorado, traduz e analisa a contística completa
de Marie-Catherine Le Jumel de Barneville, baronesa d’Aulnoy (1650-1705),
autora do primeiro conto de fadas literário francês. Realizou estágio de in-
vestigação junto à Universidade Nova de Lisboa (2016-2017) e junto à Uni-
versidade do Minho em 2020. E-mail: paulo.cesar.filho@usp.br. Link para o
currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9686211444786314 

Pedro Panhoca da Silva


Possui graduação em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho/Assis (2007), especialização em Ensino de Português, Lite-
ratura e Redação pelo Centro Educacional Claretiano (CEUCLAR) (2009),
mestrado pela UNESP/Assis e doutorado em curso no Programa de Pós-Gra-
duação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, com bolsa da
referida instituição. Atualmente é professor do Centro Universitário Herminio
Ometto de Araras (UNIARARAS). Tem experiência na área de Letras, com
ênfase em Literatura Infanto-juvenil, atuando principalmente nos seguintes
temas: produção textual, leitura, livros-jogos. É também membro dos grupos
de pesquisa “Poéticas da negatividade” - coordenado pelo Prof. Dr. Fabiano
Rodrigo da Silva Santos -, e “Literatura no contexto pós-moderno” - coorde-
nado pela Prof. Dra. Helena Bonito Couto Pereira, além de ser editor-colabo-
rador/colunista da revista Legendary Art Magazine, colaborador do fanzine/
revista Alarums & Excursions e editor do banco de dados gamebooks.org.
Link do currículo Lattes http://lattes.cnpq.br/0394488305474324; e-mail:
ppanhoca@yahoo.com.br.

Roseli Gimenes
Doutora em Tecnologias da Inteligência e Design Digital- Processos Cog-
nitivos e ambientes digitais - (TIDD PUC/SP). Pós-Doutorado em Comuni-
cação e Semiótica (COS PUC/SP) com a pesquisa “Inteligência Libidinal”.
Mestre em Comunicação e Semiótica - Literaturas - (COS PUC/SP). Especia-

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lista em Grande Serão Veredas, de Guimarães Rosa (USJT). Especialista em
Magistério no Ensino Superior (PUCSP). Bacharel e Licenciada em Letras.
Coordenadora do curso de Letras da Universidade Paulista-UNIP.. Professora
convidada no COGEAE da PUC-SP. Publica contos e poemas regularmente
pela Scortecci, Vivara e Patuá. Professora aposentada de Língua Portugue-
sa da Rede Pública de Ensino do Estado de S. Paulo. Publicou pela Hacker/
Pucsp (1996) e depois pela Scortecci (2006 2. ed.) a obra A menina de Lacan:
um conto Rosa; também pela Scortecci (2010) publicou Psicanálise e Cinema.
O cinema de Almodóvar sob um olhar lacaniamente perverso. Publicou a 2.
Ed. de Psicanálise e cinema, pela Scortecci, em 2012.Em 2017, pela Editora
Scortecci, publicou o livro: Literatura brasileira do átomo ao bit. Membro e
Líder do Grupo de Pesquisa: Encontros Interculturais na EAD Narrativas
de vidas dos diferentes Brasis. Membro do grupo de pesquisa Diversidade e
inclusão em práticas sociais. (ambos UNIP e CNPQ) Faz parte da Comissão
Editorial da Revista Scitis da UNIP Interativa de quem é também parecerista.
Coordenadora do Projeto Cultura em Foco e membro do grupo de pesquisa
NEPEL do Instituto Lego. E-mail: roseligi@icloud.com
http://lattes.cnpq.br/4055812149930289

Sandra Trabucco Valenzuela


Pós-Doutorado em Literatura Comparada pela FFLCH da Universidade
de São Paulo (USP), é Doutora e Mestre em Letras (Literatura Espanhola e
Hispano-Americana) pela USP; bacharel e licenciada em Letras e Especia-
lista em História da Arte; Especialista em Cinema e Linguagem Audiovisual;
Docente das áreas de Comunicação e Letras da Fatec e da FAM; é profes-
sora convidada de Literatura Comparada no curso de Pós-Graduação da
Universidade Presbiteriana Mackenzie; atua no Grupo Pesquisa Produções
Culturais para Crianças e Jovens, liderado pela Profa. Dra. Maria Zilda da
Cunha (FFLCH USP); é autora de artigos científicos na área de Literatura
Comparada, Literatura infantil e Juvenil, Audiovisuais e Artes Plásticas;
é tradutora juramentada e tradutora de mais de 30 títulos publicados por
Editoras renomadas; tem o blog Artebacana (artebacana.wordpress.com)
direcionado a história da arte e audiovisuais. Recebeu da Academia Paulis-
ta de História o Prêmio Literário “José Celestino Bourroul” 2014, pelo livro

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Imagens da hotelaria na cidade de São Paulo, e o Prêmio Agito Cultural 2016,
concedido pela Assembleia Legislativa de São Paulo. É autora do livro Once
Upon a Time: da Literatura para a Série de TV (São Paulo: Chiado, 2016); pro-
dutora e apresentadora do programa “Mega Séries”, pela Rádio Mega Brasil
Online, no qual analisa séries de TV. E-mail: sandratrabucco@uol.com.br

Sérgio Guimarães de Sousa


Professor no Instituto de Letras e Ciências Humanas da Universidade
do Minho. Foi professor visitante na Universidade de São Paulo, na Univer-
sidade Blaise Pascal (Clermont-Ferrand), FLAD/Michael Teague Visiting
Associate Professor na Brown University (EUA), titular da Cátedra Hélio
and Amélia Pedroso/Luso-American Endowed Chair in Portuguese Studies
na University of Massachusetts Dartmouth (EUA). Lecionou seminários nas
Universidades de Trieste, Bucareste, Copenhagen, Hamburgo, Paris Ouest –
La Défense, Masaryk. É membro da Comissão Diretiva do Centro de Estudos
Lusíadas desde 2016.

Vera Bastazin
Possui graduação em Língua e Literatura Francesas e Língua e Literatura
Portuguesas; Mestrado e Doutorado em Comunicação e Semiótica/ Literatu-
ra, pela PUC/SP, onde atualmente é Professora-Associada. Participou nessa
mesma Universidade, da fundação do Programa de Pós-Graduação em Lite-
ratura e Crítica Literária (Mestrado e Doutorado), do qual foi coordenadora
por quatro gestões. Ministra aulas nos cursos de Graduação em Letras e do
Programa de Pós-graduação em Literatura e Crítica Literária. Sua atuação
ocorre nas áreas de Teoria Literária, Literatura Comparada - destacadamente
Literatura Brasileira e Portuguesa. Realizou estágio Pós-Doutoral, com Bolsa
FAPESP, na Universidade do Minho, em Braga, sob a supervisão do Prof. Dr.
Vitor Manoel de Aguiar e Silva. Suas pesquisas estão centradas no romance
contemporâneo. Participou da Diretoria da ABRALIC (2007-08) e da Diretoria
da ANPOLL (2015-16). Publicou: Mito e Poética na Literatura Contemporânea
- um estudo sobre José Saramago. Ateliê Editorial, 2006, 2.ª edição/2019 (no
Prelo). Em 2007, como resultado de pesquisa desenvolvida com professores
de Filosofia, História e Literatura, lançou Literatura Infantil e Juvenil: uma

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proposta interdisciplinar. Editora Articulação Universidade/Escola; em 2011,
Poesia Contemporânea; Brasil/Portugal. São Paulo: EDUC/ CAPES; e, em 2017,
Literatura e Ensino: territórios em diálogo. São Paulo, EDUC/Capes. Possui,
também, vários ensaios, artigos e capítulos de livros publicados no Brasil e
no exterior. É líder do Grupo de Pesquisa “Categorias da Narrativa”, inscrito
no Diretório do Grupos de Pesquisa do Brasil/ CNPq.

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