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No 39 R$ 13,90 c 4,50
00039
ISSN 1807943-1
9 771807 943005
E
les estão sempre por perto. Às vezes Essa noção favorece outros aprendiza-
são vistos como meros pedaços de dos – ainda mais sutis – permeados pela
carne, outras vezes como objetos de valorização do cuidado, da generosidade e
amor, raiva ou desprezo. Alguns são surpre- da soberania dos ciclos impermanentes da
endentes, bonitos, exóticos, inteligentes e existência, que fazem cada instante único. A
curiosos. Há também os especialmente gra- proximidade com animais de estimação reve-
ciosos e fofos. O fato é que ainda bem peque- la muito sobre nós mesmos, já que encon-
nos nos familiarizamos com os animais – em tramos nessa relação um campo privilegiado
geral antropomorfizados – que aparecem nas para investimentos emocionais, possibilida-
histórias e, na escola, descobrimos o quanto de de testar limites, fantasiar interlocuções,
os bichos são úteis. Vindos de uma antiga li- cultivar afetos, depositar projeções e expecta-
nhagem, ao longo dos séculos cães e gatos, tivas. E quando paramos para observá-los pa-
por exemplo, foram domesticados para fazer rece impossível não nos perguntarmos como
companhia. Abelhas fornecem mel. Peixes e essas criaturas – tão diferentes e ao mesmo
aves representam importantes fontes de ali- tempo tão próximas de nós – estabelecem
mento. Países inteiros foram construídos gra- lógicas, se comunicam sem palavras, lidam
ças à força de equinos que transportaram toda com sentimentos, entendem o mundo e as
sorte de cargas. Vacas e outros mamíferos nos atitudes dos humanos.
“dão” desde o leite até a carne, o couro e até Esta edição especial de Mente e Cérebro,
mesmo os ossos. Das mais variadas formas, o apresenta esse surpreendente universo de
uso do animal para garantir diversão ou maior seres de patas, pelos, bicos e penas. Gosto
conforto (mesmo quando seu sacrifício seria de pensar que tomar contato com tantos es-
facilmente prescindível) está presente no co- tudos, observações e informações de espe-
tidiano de forma às vezes tão corriqueira que, cialistas talvez nos confira alguma humildade
não raro, as pessoas sequer se dão conta. Fe- diante de seres que por tanto tempo temos
mark herreid/shutterstock
lizmente, cada vez mais algumas escolas e subjugado. Adentrar esse espaço de gratidão
famílias têm se preocupado também em apre- talvez seja o mínimo que possamos fazer
sentar às crianças a ideia (óbvia, mas tantas diante de tantos benefícios que outras espé-
vezes deixada de lado) de que “bicho não é cies nos trazem.
brinquedo, sente dor, fome e medo”. Boa leitura.
6 Anjos da guarda
por Gláucia Leal
O olfato privilegiado dos cães é uma ferramenta importante
para a detecção precoce de vários tipos de câncer
20 Um jeito de sentir
por Klaus Wilhelm
Quem gosta de bichos não duvida que seus
companheiros de estimação expressam simpatia,
26 indignação e gratidão. Porém, os cientistas fazem
distinção entre respostas a estímulos e a interpretação
das próprias emoções
www.mentecerebro.com.br
COMITÊ EXECUTIVO
Jorge Carneiro, Luiz Fernando Pedroso, Lula Vieira
32 42 e Rogério Ventura
DIRETOR DE REDAÇÃO Janir Hollanda
janirhollanda@ediouro.com.br
OS ARTIGOS PUBLICADOS NESTA EDIÇÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DOS AUTORES E NÃO EXPRESSAM, NECESSARIAMENTE, A OPINIÃO DOS EDITORES.
4 l mentecérebro l Animais
32 Na companhia dos bichos 60 Objetos de afeto
por Scott O. Lilienfeld e Hal Arkowitz por Fernando Aparecido Delarissa e
Animais de estimação podem contribuir para Olga Ceciliato Mattioli
melhorar a saúde física e mental de seus donos, A relação subjetiva entre homens e bichos se
mas a duração desses efeitos causa divergências transformou; hoje o animal faz parte da família
entre pesquisadores
68 A ética do cachorro
38 Homossexualidade como por Marc Bekoff e Jessica Pierce
traço adaptativo Quando eles se comportam mal ou
por Joan Roughgarden acidentalmente machucam um companheiro,
Preferência por parceiros do mesmo sexo aparece logo se desculpam, exatamente como faria um
em muitas espécies; comportamento oferece pistas ser humano bem-educado
para contestação da teoria de Darwin
72 A cara do dono
42 Amor sem preconceito por Ana Marcondes
por Emily V. Driscoll Mesmo sem perceber, pessoas tendem a buscar
Sedução entre indivíduos do mesmo sexo pode ser forma companheiros com os quais se identificam
de dissipar tensões e proteger os filhotes
76 Entrevista – Alexandre Rossi
48 O louro sabe das coisas Para entender
por Christine Scholtyssek seu melhor amigo
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CIRCULAÇÃO E PLANEJAMENTO
COORDENADORA DE CIRCULAÇÃO Luciana Pereira
5
Anjos
da guarda
por Gláucia Leal
A
há bastante tempo cães o longo dos séculos, o cão aprendeu muito,
principalmente no campo da comunicação
treinados ajudam pessoas não verbal. Vários pesquisadores consideram
com deficiência visual, o contato visual entre o cachorro e o homem
determinante para a qualidade tão especial da relação entre
auxiliam policiais a localizar
as duas espécies. Mas é outro sentido que tem atraído a
drogas e são decisivos no atenção dos cientistas: o olfato, uma capacidade canina
salvamento de vítimas de muito desenvolvida que, bem usada, pode ser extremamente
útil. O conhecimento do fato de que cachorros vivem num
acidentes. mais recentemente, universo de cheiros que contam histórias complexas e
o olfato privilegiado passou são capazes de detectar odores “puros”, misturados e até
a ser reconhecido como uma residuais já há algum tempo tem sido revertido para usos
benéficos, como a localização de sobreviventes de tragédias
ferramenta importante para e de drogas em aeroportos.
a detecção precoce de vários Agora, partindo da constatação de que quadros patológi-
cos deflagram alterações de odor, nem sempre perceptíveis
tipos de câncer ao nariz humano – mas que dificilmente escapariam ao
focinho dos cães –, na última década vários cientistas rea-
lizaram experimentos nesse campo. Os tumores malignos,
por exemplo, exalam pequenas quantidades de substâncias
químicas chamadas alcanos e derivados de benzeno, não
presentes no tecido saudável. Se um cão pode identificar
bilhões de variações de cheiros, não seria estranho pensar
que poderiam detectar o câncer, antes mesmo de as pessoas
saberem que estão doentes.
Um experimento pioneiro nesse campo foi realizado em
2004 pelo psicólogo James C. Walker, na ocasião diretor do
Instituto de Pesquisa Sensorial da Universidade Estadual
da Flórida. Ele e seus colegas treinaram dois cães para
detectar amostras de tecido de melanoma escondidas na
pele de voluntários saudáveis. Os animais foram testados
com métodos normalmente utilizados para fazer com que
palmer kane llc/shutterstock
mer. Ela foi descrita pela primeira vez em 1892 pelo psiquiatra
PARA SABER MAIS e neurologista tcheco-austríaco Arnold Pick (1851-1924). Como
Cão senso: como a nova ciência do comportamento canino várias pessoas que têm Pick, os camundongos K3 apresentam
pode fazer de você um verdadeiro amigo do seu cachorro. John rigidez muscular, tremores e perda de movimentos. (por Jürgen
Bradshaw. Record, 2012.
O grande livro dos retratos de animais. Svjetlan Junakovic.´ Götz, doutor em bioquímica, professor de biologia molecular da Uni-
Positivo, 2010. versidade de Sydney)
Como os
animais pensam
diversas espécies podem inferir conceitos, formular planos e até
empregar a lógica na resolução de problemas
A
habilidade de pensar e planejar é considerada
por muitos como a marca registrada da mente
humana. A razão, que torna possível o pensa-
mento, é frequentemente descrita como traço
exclusivo ao homem e o que nos diferencia dos outros
animais. Nas duas últimas décadas, entretanto, esta con-
fortável suposição de superioridade intelectual tornou-se
alvo de um exame cada vez mais cético. Atualmente, a
maioria dos pesquisadores já considera a possibilidade de
que ao menos alguns animais sejam capazes de pensar.
Ao mesmo tempo, sabemos que muitos dos aparentes
triunfos mentais da espécie humana – a linguagem, por
exemplo – se devem tanto a programas comportamentais
inatos quanto à capacidade cognitiva em si.
O mais decisivo golpe contra a ideia da inteligência
animal derivou do incidente de 1904 que ficou conheci-
do como o caso do cavalo “Hans, o Inteligente”. Oskar
Pfungst, o pesquisador que decifrou o mistério envolvendo
esse animal aparentemente tão inteligente quanto huma-
nos, acreditava inicialmente que Hans tinha a capacidade
de ler e compreender a língua alemã, além de resolver
problemas de matemática.
Depois que peritos testaram o cavalo (inclusive na au-
kachalkina veronika/shutterstock
coleção particular
de que sabia aritmética
e entendia alemão
assombrou a comunidade
científica no início do
século 20
O fato de que um mero cavalo pudesse mento apropriado possam dar forma a “hábitos
ludibriar tão completamente os intelectuais da verbais” altamente racionais. Watson acreditava
época gerou um abandono completo da pesquisa que, na ausência de palavras, os animais não
sobre a inteligência animal. O psicólogo britâni- poderiam jamais chegar a raciocinar. Compor-
co George J. Romanes, em seu livro de 1888 A tamentos instintivos de cada espécie, como por
inteligência animal, definiu critérios tão pouco exemplo a construção de ninhos pelos pássaros,
exigentes que até mesmo os mariscos poderiam seriam exclusivamente o resultado da anatomia
ser considerados racionais, “na medida em que característica da espécie, do hábitat ocupado
uma ostra aprende com a experiência individual. pela população e das experiências individuais
Ele propunha que, se o instinto não explica o mais comuns.
comportamento, a razão deve explicar. Ao contrário do que pensava Romanes, o
Em consequência do incidente de “Hans”, a behaviorista acreditava que até mesmo o apren-
escola behaviorista de psicologia veio a dominar dizado de novos comportamentos poderia ser to-
os experimentos em comportamento animal no talmente automático, sem exigir do “aluno” uma
mundo anglo-saxão. Essa perspectiva reacionária real compreensão. O condicionamento clássico
negava a existência do instinto, da consciência, nada mais é que a associação entre um com-
do pensamento e do livre-arbítrio, não somente portamento reflexo inato e um novo estímulo.
nos animais mas também nos seres humanos. Assim, é possível ensinar a um cão que um sino
Conforme afirmação tipicamente radical do fun- ou uma luz acesa significam comida. A outra for-
dador do behaviorismo, o psicólogo americano ma de aprendizado segundo os behavioristas – o
John B. Watson, “o conceito de consciência condicionamento operante – requer apenas que
não é útil nem claro... a crença na existência da os animais descubram por tentativa e erro quais
consciência remonta aos tempos ancestrais da de seus movimentos resultam em recompensa,
superstição e da magia”. e que usem esses dados para construir novos
Para Watson, todo comportamento humano padrões comportamentais. Em ambos os casos,
e animal resulta de algum tipo de condiciona- nenhuma compreensão verdadeira é necessária.
mento – incluindo a respiração e a circulação Nem mesmo a descoberta subsequente de pro-
sanguínea. De seu ponto de vista, os humanos gramas de aprendizagem espécie-específicos
não chegam de fato a pensar, embora com treina- (iniciados e controlados pelo instinto) conseguiu
12 l mentecérebro l Animais
alterar essa visão dos animais como máquinas comportamento antes de tentar realizá-lo. Mas
de aprendizagem passiva. as observações de chimpanzés em laboratório
O tabu behaviorista foi persistente e só co- revelam que esses animais em geral são obce-
meçou a ser erodido com a publicação em 1976 cados com a inserção de objetos longos e finos
de The question of animal awareness (A questão em orifícios – lápis em tomadas elétricas, por
da consciência animal), o provocativo e con- exemplo. Assim como no caso dos chapins, o
troverso livro de Donald R. Griffin. De fato, nos comportamento parece ser inato, e somente o
espantamos inicialmente que alguém com as aprendizado do lugar apropriado para “pescar”
credenciais científicas de Griffin se arriscasse a precisa ser condicionado.
levantar essa questão academicamente perigosa. Para inferir que um animal consiga pensar é
Com Animal thinking, de 1984, e Animal minds, preciso conhecer a história natural e as tendên-
de 1992, o autor ampliou seus argumentos. Com cias comportamentais inatas da espécie, assim
o tempo, a reação ultrajada dos estudiosos mais como a história individual do animal. Só assim
conservadores deu lugar a ceticismo misturado pode-se chegar a excluir tanto o instinto quanto
com interesse. o condicionamento como fonte de um novo
Sabe-se hoje que as rotinas complexas de comportamento. Antes do renascimento do
construção de ninhos por pássaros e insetos são interesse sobre o pensamento animal, alguns
parcial ou inteiramente inatas: aves criadas em estudos controversos sugeriram que em certas
isolamento completo são perfeitamente capazes circunstâncias os animais podem planejar suas
de selecionar lugares e material apropriado para ações com boa antecedência.
a nidificação, construindo ninhos idênticos aos Em 1914, o psicólogo alemão Wolfgang
dos pássaros livres. Köhler trabalhava com primatas em cativeiro nas
E o aprendizado também pode ser automáti- Ilhas Canárias. Sua rotina consistia em apresentar
co. Na verdade, o condicionamento parece envol- problemas novos a seus chimpanzés; frequente-
ver uma capacidade complexa e inata de cálculo mente os resultados alcançados sugeriam racio-
de probabilidades que considera as chances de cínio em lugar de tentativa e erro. Por exemplo:
que um estímulo em particular determine ou não quando Köhler pendurou pela primeira vez um
o aparecimento de um sinal inato. cacho de bananas a uma altura inacessível, o
Muitos dos exemplos mais famosos de racio- chimpanzé que participava do estudo deu alguns
cínio animal, tais como o surto de roubo de nata pulos infrutíferos, e então recolheu-se amuado a
pelos chapins-azuis na Inglaterra na década de um canto da sala. Depois de algum tempo olhou
30, podem não ser o que parecem. Quando o leite novamente para as bananas, em seguida para
era entregue bem cedo pela manhã, uma camada uma grande área ao ar livre onde se encontra-
de creme formava-se no alto dos frascos. Os vam objetos com que normalmente brincava,
chapins-azuis removiam o tampão de papel lami- olhou para as frutas outra vez, então mirou um
nado e provavam a nata. A ideia atraente de que
algum pássaro meticuloso tenha desenvolvido
esse estratagema e ensinado aos amigos ignora
a história natural da espécie: os chapins ganham
ronald thompson/frank lane picture agency/corbis/latinstock
13
Testes bem controlados de planejamento em
animais, formulados para evitar tais problemas,
foram executados por Edward C. Tolman, nos
anos 40. Tolman permitia que um rato explorasse
um labirinto sem nenhum reforço diferencial –
uma galeria em forma de “T”, por exemplo, com a
mesma recompensa alimentar na extremidade de
cada corredor. No entanto, algo que o animal não
precisava aprender, nem havia sido previamente
treinado para aprender, era diferente em cada
extremidade. Em um caso, o corredor esquerdo
terminava em uma caixa escura e estreita – que
os ratos tendem a preferir –, enquanto o direito
acabava em outra larga e branca. Um dia depois
o animal era colocado em uma caixa distinta das
primeiras, porém escura e estreita, e submetido a
um choque elétrico. No dia seguinte, voltava ao
labirinto original. A teoria de condicionamento
prediz que o rato, não havendo sido treinado para
qualquer comportamento específico no labirinto,
deveria explorar o ambiente de forma aleatória.
biblioteca pública de nova york Alternativamente, o animal poderia ter aprendido
a localização do local preferido, a caixa escura e
estreita à esquerda. No entanto, Tolman verificou
que ele sempre se dirigia à caixa branca e larga
no final do corredor direito.
Tolman concluiu que o rato havia usado duas
experiências independentes e aparentemente não
relacionadas entre si para planejar suas ações
CHIMPANZÉS RESOLVEM PROBLEMA: neste caso, empilhando caixas para alcançar no terceiro dia. Ele denominou esse plano de
bananas: o comportamento foi documentado pela primeira vez por Wolfgang Köhler
durante a Primeira Guerra Mundial “mapa cognitivo”. No caso dos chimpanzés de
Köhler, essa perspectiva sugere que mesmo tendo
brinquedo específico (uma caixa), e finalmente experiência prévia com caixas, a capacidade de
arrastou a caixa para debaixo do cacho, subiu no empilhá-las para pegar as bananas sem nenhum
seu topo e com um pulo agarrou seu prêmio. processo aparente de tentativa e erro deve re-
Em variações do experimento as bananas fo- querer considerável dose de raciocínio, capaz de
ram posicionadas ainda mais alto, e os mesmos associar o conhecimento do que se pode fazer
lampejos de entendimento aparentemente re- com as caixas à informação sobre a palatabilidade
pentinos foram observados envolvendo soluções das bananas. Na ausência de condicionamento
distintas, como o empilhamento de várias caixas, por tentativa e erro, é necessário supor que os
a junção de múltiplos gravetos para formar uma chimpanzés conceberam e executaram um plano
vara longa o suficiente para derrubar as bananas, simples. Em seu nível mais básico, isso seria uma
ou uma combinação dessas estratégias. As evidência direta de raciocínio animal.
críticas ao trabalho de Köhler focalizaram dois Os mais céticos, porém, encontraram expli-
pontos importantes: a experiência prévia dos cações complexas para os resultados de Tolman.
animais capturados na natureza era desconhe- Um deles argumentou que os ratos têm medo
cida (e portanto eles poderiam simplesmente de labirintos; na verdade, a remoção do rato ao
estar se lembrando de soluções já aprendidas), alcançar uma das caixas nas extremidades do
e chimpanzés criados em laboratório esponta- labirinto funcionaria como recompensa capaz
neamente empilham caixas e constroem varas de provocar aprendizado. Quando devolvido ao
com gravetos menores. labirinto no terceiro dia, ele saberia que para sair
14 l mentecérebro l Animais
dali seria necessário dirigir-se à caixa de onde de formular. Não há nenhuma lista contendo to-
havia sido previamente removido. E esta, por dos os atributos necessários suficientes, porque
acaso, poderia ter sido a caixa branca. nós (assim como os pombos) somos capazes de
Embora existam boas evidências da exis- reconhecer árvores com e sem troncos centrais,
tência de mapas cognitivos em criaturas tão com e sem ramificações laterais, de perto ou
distintas filogeneticamente quanto abelhas de longe, isoladas ou em grupo, com o verde
domésticas e aranhas saltadoras, as pesquisas característico ou com o avermelhado outonal, e
sobre pensamento animal concentraram-se em assim por diante. Para humanos (e talvez para
aves e primatas. Vários especialistas estudam pássaros), um conceito inclui uma lista de pro-
a aparente capacidade de alguns animais de priedades que individualmente têm probabilida-
formar conceitos. As notáveis habilidades do de preditiva: folhas, por exemplo, são altamente
famoso papagaio Alex, estudadas por Irene M. correlacionadas com árvores, mas extensões
Pepperberg, fornecem um exemplo claro (veja finas e longas também se associam, ainda que
artigo na pág. 48). Outra vertente, envolvendo com menor probabilidade, ao mesmo conceito.
pombos, foi pioneiramente descrita por Richard Uma árvore é portanto todo objeto que tenha
J. Herrnstein, falecido 1994, mais conhecido uma “quantidade suficiente” dessas proprieda-
como coautor da curva de Bell. Sua técnica des individuais, alta o suficiente para postes de
consistia em expor pombos criados em labora- luz e antenas de televisão. Vários filósofos cos-
tório a imagens, parte delas de árvores, peixes, tumavam aceitar a formação de conceitos como
ou folhas. As aves eram recompensadas com um sinal inequívoco de raciocínio; confrontados
alimento sempre que bicassem a que contivesse com os resultados obtidos em pombos, alguns
essas figuras. O aprendizado era inicialmente estudiosos desistiram desse critério.
lento, até que por fim as aves pareciam compre-
ender o que havia em comum entre as imagens MAPAS MENTAIS
recompensadas. Em alguns casos, os pombos Muitos pássaros formulam e usam mapas
recorriam à memorização de conjuntos inteiros, mentais das áreas que habitam. A habilidade
revelando capacidade impressionante para re- de planejar uma nova rota rumo a uma localiza-
cordar. No entanto, na maioria das vezes, eles de ção familiar é frequentemente citada como um
fato aprendiam a buscar o objeto, demonstrando exemplo literal de mapa cognitivo. Ainda que
seu conhecimento ao responder corretamente muitos tenham mapas locais das áreas em que
a novas imagens. vivem, poucos são tão espetaculares quanto os
Devido à imensa variação entre possíveis do pássaro-de-mel africano, que se alimenta de
exemplos, um conceito tal como “árvore” é difícil cera e larvas de abelhas.
duas experiências independentes para dar forma a um plano para o terceiro dia.
15
bernd heinrich
NOVAS TÉCNICAS DE Esse pássaro estabeleceu um relacionamento desde piados simples, emitidos de pontos parti-
FORRAGEAMENTO simbiótico com o homem e com o texugo, um cularmente visíveis, até uma simulação complexa
podem se desenvolver em
animais. Em um estudo
animal inteligente e muito atraído pelo mel. Ele de pássaro com a asa quebrada. Há inclusive uma
controlado executado localiza um potencial agente para abrir a col- imitação de roedor altamente realística em que o
por Bernd Heinrich, da meia – texugo ou humano – e tenta “recrutá-lo” pássaro se arrasta vigorosamente pelos arbustos
Universidade de Vermont,
através de comportamentos altamente visíveis e realizando vocalizações semelhantes às de um
corvos tinham de descobrir
como recuperar um pedaço audíveis. Um dos sinais mais comuns emitidos camundongo. Cada espécie tem também um
de carne pendurado por é um piado onomatopaico semelhante ao som grupo separado de piados de alerta, utilizados
uma corda atada ao poleiro. da casca de uma árvore se rompendo. Tendo para impedir que animais inofensivos como os
A maioria desenvolveu
maneiras originais de puxá- atraído a atenção de um ajudante adequado, o cervos tropecem no ninho.
la para cima pássaro-de-mel faz voos curtos em direção ao seu Os relatos disponíveis sugerem que a de-
alvo, e novamente emite seu piado característico; cisão de se afastar do ninho para executar o
se o ajudante não o seguir, o pássaro retorna e comportamento, assim como a escolha da ro-
tenta novamente, desta vez com um voo mais tina específica a ser desempenhada, se adequa
curto e piados ainda mais fortes. Uma vez perto ao grau da ameaça representada pelo predator.
da colmeia – geralmente a cerca de 500 metros Carolyn Ristau, pesquisadora da Universidade
do local onde se iniciou o comportamento com- Columbia, testou esta suposta habilidade de
plexo – o pássaro-de-mel espera que o texugo ou calibrar os comportamentos de acordo com o
ser humano a encontrem e abram para retirar o tipo de ameaça, fazendo com que humanos vis-
mel. Quando o ajudante vai embora, o pássaro tosamente vestidos caminhassem em linha reta
finalmente dedica-se a devorar as larvas e a cera. perto dos ninhos de batuíra. Alguns deles eram
Numerosos experimentos demonstraram que instruídos a realizar uma varredura cuidadosa
os guias-de-mel conhecem a posição de diversas do terreno e outros recebiam instruções para
colmeias, mas normalmente guiam seus cúmpli- não prestar atenção ao chão. Com o tempo, as
ces para a mais próxima, por uma rota tão direta batuíras começaram a distinguir os caçadores
quanto possível. em potencial entre os humanos aparentemente
Flexibilidade no uso de comportamentos inofensivos: executavam suas elaboradas rotinas
inatos também pode ser evidência de raciocínio comportamentais para o primeiro grupo, mas já
simples. Dois grupos de pássaros que fazem não se incomodavam nem mesmo em sair do
ninhos na terra, da família das batuíras, usam ninho para o segundo. Diante da habilidade de
diversas “estratégias” para direcionar potenciais julgar qual resposta inata deve ser selecionada,
predadores para longe de seus ovos. Em uma parece evidente que ao menos algum grau de
delas, o pássaro deixa o ninho e move-se furti- compreensão deva existir neste caso.
vamente até uma posição afastada, para onde Dois casos bem conhecidos de forrageamen-
tenta com alvoroço atrair a atenção do predador. to (busca de alimentos) incomum em pássaros
O conjunto de comportamentos possíveis varia também sugerem habilidade de planejamento.
16 l mentecérebro l Animais
Um envolve as garças-verdes, aves que capturam com a corda em vez de uma pilha. A solução de
peixes usando estratégias distintas (suposta- um terceiro pássaro consistiu em dar laços da
mente inatas). Ocasionalmente, algumas garças corda ao redor da vara. E houve um corvo que
podem ser observadas realizando a pesca com nunca resolveu o problema; curiosamente, ele
isca. Lançam um pedaço de alimento ou um também não aprendeu que voar para longe com
graveto na água e, quando um peixe vem à tona a carne sempre levava a um súbito e desagradável
para investigar, a garça o agarra. A pesca com isca repelão ao esgotar-se a extensão da corda.
foi observada em pontos dispersos nos Estados À primeira vista, é surpreendente que os cor-
Unidos e no Japão. O comportamento surge vos não tenham se mostrado capazes de aprender
espontaneamente, não parece propagar-se para uns com os outros, tendo pelo contrário desen-
outras aves da espécie (exceto no Japão), e então volvido soluções independentes entre si. Na ver-
desaparece. Dado o contraste entre a elevada dade, existem poucas evidências de aprendizado
taxa de sucesso da técnica e a extrema raridade observacional em animais não primatas. A grande
de seu uso, é improvável que a pesca com isca parte (mas não tudo) do que os investigadores
seja geneticamente programada; ao contrário, o inicialmente supuseram ser aquisição observacio-
truque parece ser inventado independentemente nal de uma técnica revelou-se, afinal, apenas um
por muitas garças diferentes. “realce local”: em lugar de aprender como outros
Um estudo mais controlado sobre a onto-
gênese de novas técnicas de forrageamento foi
executado por Bernd Heinrich, da Universidade
de Vermont. Ele manteve em um viveiro cinco Baleias inteligentes
corvos nascidos no laboratório onde pôde
controlar quais oportunidades de aprendizado Os cétaceos, grupo de mamíferos marinhos do qual fazem parte as
estiveram disponíveis para os pássaros ao longo baleias e os golfinhos, já demonstraram incríveis habilidades au-
de sua vida. O teste utilizava pedaços de carne ditivas e de comunicação, além de comportamentos sociais muito
penduradas por cordas atadas aos poleiros dos complexos. Novo estudo publicado em The Anatomical Record com-
corvos. As cordas eram bastante longas, não parou o cérebro da baleia-corcunda (Mysticeti balaenopteridea) com
permitindo que pudessem alcançar a carne o de outras espécies de cetáceos e revelou que ela é a única dotada
simplesmente se abaixando. As aves tentaram de um tipo de neurônio até agora só encontrado em humanos e
capturar o alimento em pleno voo, mas a carne macacos antropoides. Trata-se dos neurônios em formato de fuso
estava fortemente presa às cordas e a estratégia (spindle neurons), presentes em locais específicos do cérebro hu-
invariavelmente falhava. Depois de repetidas mano. Eles parecem ter desempenhado papel essencial no desen-
tentativas fracassadas, os corvos passaram a volvimento da inteligência e do comportamento adaptativo e estão
ignorar o alimento. envolvidos em distúrbios como autismo, esquizofrenia e Alzheimer.
Encontrá-los nas baleias-corcundas significa uma surpreendente
REALCE LOCAL aproximação entre cetáceos e hominídeos na história da evolução
Seis horas depois do início do teste, um corvo das espécies.
repentinamente resolveu o problema: alcançou a
corda abaixo de si com o bico, puxou para cima o BALEIAS-CORCUNDAS
e seres humanos estão
pedaço da corda que podia controlar, prendeu-a mais próximos na
com suas garras, alcançou e prendeu novamente evolução cognitiva
a corda formando uma pilha, e repetiu a operação
até içar por completo a carne. Assim como no
caso dos chimpanzés de Köhler, não foi observa-
da nenhuma evidência de tentativa e erro.
Após vários dias, um segundo corvo tam-
dale walsh/istockphoto
19
Um jeito de sentir
quem gosta de bicho não duvida que seus companheiros de
estimação sentem simpatia, indignação, ou gratidão; cientistas,
porém, fazem distinção entre respostas a estímulos e a
interpretação das próprias emoções
por Klaus Wilhelm
N
o horizonte surgem duas manadas de elefantes,
andando uma ao encontro da outra. As colossais
criaturas fazem um barulho ensurdecedor, aba-
nam suas enormes orelhas e dão voltas em torno
de si. Elas parecem se conhecer – e o ritual todo lembra uma
verdadeira reunião de família.
Qualquer pessoa que tenha viajado pelas savanas africa-
nas pode ter testemunhado um desses eventos. Ao longo
de décadas de trabalho de campo, Joyce H. Poole, diretora
de pesquisas do Fundo Amboseli para Elefantes do Quê-
nia, presenciou encontros similares muitas e muitas vezes.
“Elefantes”, diz a bióloga, “ficam felizes por ver seus velhos
amigos e conhecidos.”
Pesquisadores já presenciaram manadas reunidas ao
redor de natimortos. Os elefantes tocam o corpo do filhote
repetidamente com a tromba, como se tentassem ressuscitá-
lo. Passam dias em vigília, derramando lágrimas. Quando um
membro da manada está doente ou foi ferido por um caçador,
eles acariciam a vítima, reconfortando-a, e cuidam dela até
que se recupere.
Outros animais também demonstram emoções. Chimpan-
zés quando brincam emitem sons característicos de alegria e
riem. Cachorros latem de maneira a convidar outros cães a
participar de brincadeiras, e pesquisadores que reproduziram
esses sons em canis e abrigos para animais abandonados
conseguiram provar que o som reduz o nível de estresse dos
animais. Especialistas dizem que ratos de laboratório, quando
acariciados, guincham alegremente em frequências sonoras
superiores às que os seres humanos conseguem ouvir.
Pessoas que acreditam nos sentimentos dos animais em
colombo nicola/shutterstock
cbpix/shutterstock
no caso dos seres humanos, quanto mais no dos
animais. No livro Em busca de Espinosa, publicado
em 2003, pesquisador António R. Damásio, da
Universidade do Sul da Califórnia, em Los Ange-
les, apresenta um esquema que tem aceitação
ALGUNS GESTOS Alguns cientistas exploraram corajosamente o crescente e que distingue emoções primárias,
parecem similares aos mistério das emoções dos animais. O naturalista quase instintivas; emoções sociais, que ajudam
dos humanos, mas não há
consenso sobre até que inglês Charles Darwin, pai da teoria da evolução, um indivíduo a conviver em grupo; e sentimentos,
ponto são feitos de forma escreveu A expressão das emoções no homem e que nascem da reflexão autoconsciente.
consciente nos animais (1872). Ninguém pode negar que as Emoções primárias incluem medo, raiva,
reações dos bichos têm um lado emocional, ele repulsa, surpresa, alegria e tristeza, e Damásio
concluiu, dadas as impressionantes similaridades as atribui a vários animais. Até mesmo a Aplysia,
entre o comportamento humano e o animal. No um molusco marinho, demonstra medo. Quando
século passado, porém, consagrou-se a visão suas guelras são tocadas, sua pressão sanguínea e
reducionista de que abelhas, sapos, vacas, cães, seus batimentos cardíacos aumentam e seu corpo
gatos, cobras e lagartos seriam organismos com se encolhe. Isso não é reflexo, diz Damásio, mas
padrões de comportamento instintivos e rígidos. elementos de uma resposta ao medo, que com-
Os bichos seriam desprovidos de sentimentos. preende reações complexas. Ele enfatiza, porém,
Recentemente, no entanto, uma visão mais que organismos tão primitivos não produzem sen-
flexível começou a ganhar credibilidade, à me- timentos. Para Damásio, as emoções são sinais
dida que se começou a questionar as vantagens físicos do corpo, em resposta a estímulos, e os
evolutivas que os seres humanos, ou os animais, sentimentos são sensações que surgem quando
tiram das emoções. Segundo o darwinismo, todo o cérebro interpreta essas emoções. Tanto em hu-
e qualquer organismo tem por objetivo supremo manos como nos moluscos marinhos a frequência
reproduzir-se o mais frequentemente e da melhor cardíaca aumenta e os músculos se contraem,
forma possível. No caso de minhocas, insetos ou mas um organismo só registra a sensação de
águas-vivas, seguir um padrão predeterminado de medo se o cérebro percebe as alterações físicas.
comportamento para atingir esse objetivo basta. Entre as emoções sociais, Damásio lista
Porém, entre peixes, répteis, aves e vertebrados, simpatia, constrangimento, vergonha, culpa,
o comportamento é menos previsível. Em última orgulho, inveja, admiração, ciúme, gratidão,
análise, o comportamento dos mamíferos é muito contentamento e indignação. Essas reações
maleável e às vezes até surpreendente, e por isso tampouco estão restritas à espécie humana.
sua atividade não pode resultar única e exclu- Gorilas adotam atitude arrogante para ganhar
sivamente de modelos já estabelecidos. Como o respeito de outros gorilas. Lobos em posições
ratos, bodes, símios, elefantes e seres humanos hierárquicas inferiores na alcateia demonstram
sabem quais ações favorecem a sobrevivência e resignação com “gestos” de humildade. Cães
a reprodução? Entre outras coisas, eles contam que levam broncas de seus donos dão sinais
com as emoções. evidentes de constrangimento (leia mais sobre
22 l mentecérebro l Animais
isso em “A ética do cachorro” pág. 68). Mesmo Outros especialistas, no entanto, estão Mamíferos
assim, como no caso das emoções primárias, dispostos a aceitar a ideia. Jaak Panksepp, es-
neurocientistas entendem que essas ações são pecialista em comportamento e pesquisador da
jovens
inatas, automáticas e as colocam entre os meca- Universidade Estadual de Bowling Green, Ohio, brincam para
nismos usuais de que os animais se valem para concorda que apenas seres humanos refletem aprender
a sobrevivência. sobre seus sentimentos, graças a seu neocórtex certas
Os sentimentos, ao contrário, surgem da altamente desenvolvido. E apenas humanos
mente analítica. Uma pessoa que se sente bem, podem controlar e fingir sentimentos, como habilidades;
que experimenta alegria, está consciente de que políticos e atores o fazem. o que os
seu corpo se encontra num humor específico. Panksepp não acredita, porém, que sentimen- estimula,
A percepção de tal sentimento requer processa- tos surjam apenas da reflexão. Ele afirma que a
mento de regiões somatossensoriais do córtex raiz das emoções se encontra em regiões do cére- nesse caso, é
cerebral, que mapeiam as partes do corpo e suas bro tais como o sistema límbico, muito antigo do a necessidade
condições além de, simultaneamente, controlar ponto de vista evolutivo e presente em todos os de diversão
a atividade cerebral que avalia o que essas con- mamíferos. Ele cita, a esse respeito, uma recente
dições significam. Esse processamento constitui pesquisa liderada por Naomi I. Eisenberger, da
o que se chama de autorreflexão, e pode ocorrer Universidade da Califórnia. Naomi usou ima-
devagar ou rápido. geamento por ressonância magnética funcional
É difícil provar que animais têm capacidade (fMRI, na sigla em inglês) para monitorar a ati-
de autorreflexão. Damásio aventa a possibilidade vidade cerebral de pessoas que se consideravam
de que chimpanzés-pigmeus, por exemplo, talvez socialmente excluídas. Pedia-se aos voluntários
sejam capazes de sentir pena (emoção social) de que participassem de um jogo de computador
outros animais, mas não teriam “consciência” em que eram informados de que havia dois outros
disso. Em face da impossibilidade de definir participantes ocultos. Na verdade, os “outros”
o que se passa na mente do animal, Damásio eram ícones controlados por um software. Os
reluta em afirmar que eles têm sentimentos. três participantes deveriam arremessar uma bola
Ansiedade e medo
Muitos pesquisadores partem do pres- um passo em falso, ele cai. A maioria dos
suposto de que animais sentem medo ratos escolhe sair do labirinto pelos braços
do mesmo modo que humanos. Não com paredes. No entanto, se recebem uma
fosse assim, jamais teriam sido gastos droga que reduz a ansiedade, saem deste-
milhões de dólares em experimentos midamente pelos braços abertos.
com ratos para desenvolver drogas con-
tra a ansiedade. Em animais, o medo
foi mais bem estudado do que qualquer
outra emoção.
O nível de medo em ratos pode ser
medido com o elevated plus maze test
(teste de labirinto elevado em cruz).
Usa-se uma haste de aproximadamente
1 metro de altura com quatro braços
que se estendem horizontalmente, cada
um formando um ângulo reto com o
outro. Dois dos braços têm paredes
para prevenir quedas, mas os outros
stock.xchng
23
O que os cachorros sentem
CIENTISTAS DA UNIVERSIDADE DA FLÓRIDA FOTOGRAFARAM DIFERENTES EXPRESSÕES DE UM CÃO E AS ASSOCIA-
RAM A EMOÇÕES; A MAIORIA DAS PESSOAS CONSEGUE ENTENDÊ-LAS
Basta olhar para o rosto de uma pessoa aquisição de cultura. E essa capacidade,
para presumir o que ela está sentindo ou segundo pesquisadores da Universidade
pensando. A empatia, como é chamada da Flórida, não se restringe a teorizar
a habilidade de distinguir e fazer supo- apenas sobre os membros da nossa es-
sições sobre o que se passa na mente pécie – em estudo publicado no European
alheia, demanda circuitos neurais sofisti- Journal of Social Psychology, eles mostram
cados e tem papel-chave, por exemplo, na que a maioria das pessoas é capaz de
socialização, na criação de vínculos e na interpretar o que os cães estão sentindo.
No experimento, os psicólogos des-
pertaram algumas emoções em Mal, um
pastor-belga adestrado pela polícia local.
Para isso, deram remédio de sabor de-
sagradável, brincaram com ele, fingiram
repreendê-lo e simularam um assalto. A
intenção era provocar no animal reações
de nojo, alegria, medo, agressividade,
enquanto filmavam e fotografavam suas
expressões. Em seguida, com a ajuda de
especialistas em comportamento canino,
os pesquisadores selecionaram fotos
para serem mostradas a 50 voluntários,
metade deles “inexperiente” com cães,
acima: sam strickler/shuterstock; abaixo: cortesia de keith reynolds of barnwood gallery, utica pennsylvania/tina bloom
isto é, não convivia diariamente com ao
menos um.
Ao contrário do esperado, a capa-
cidade de interpretar as expressões de
Mal diferiu pouco entre os dois grupos
de voluntários. Curiosamente, os menos
experientes com cães foram ligeiramente
mais hábeis em identificar agressividade.
Na média geral, mais de 80% das pes-
soas acertaram quando o animal estava
alegre (feição marcada pela língua de fora
e as orelhas em pé); quase metade distin-
guiu o medo; 37% e 13% identificaram,
respectivamente, tristeza e nojo.
ALGUNS DOS
MOMENTOS DO
PASTOR-BELGA
MAL captados
pelos psicólogos:
feliz, triste e com
medo (da esquerda
para a direita)
24 l mentecérebro l Animais
virtual uns para os outros, mas as duas “pessoas”
controladas pelo computador passavam a bola
apenas entre si, ignorando a pessoa real que as
observava na tela. Os voluntários sofriam com a
experiência por se sentirem excluídos.
Os resultados do fMRI obtidos durante o ex-
perimento mostraram atividade significativa em
várias regiões do cérebro, especialmente no córtex
cingular anterior. Estudos anteriores indicam que
pessoas que se veem em situações depressivas
apresentam atividade incomum no tálamo e no
tronco cerebral. Essas regiões desempenham
papéis importantes no sistema límbico – área
cerebral que produz e regula as emoções.
OUTRAS ALEGRIAS
É interessante notar que porquinhos-da-índia
dreamstime
25
Terapeutas de
quatro patas
tê-los por perto diminui o estresse,
favorece processos cognitivos,
concentração e criatividade, além de
ajudar pessoas doentes a enfrentar
tratamentos desconfortáveis
C
onviver com animais faz bem. É com base nessa
premissa que profissionais e voluntários apos-
tam na eficácia dos “atendimentos” feitos por
“animais terapeutas”. Em sua maioria cães – mas
também podem ser coelhos, chinchilas, gatos e até tartaru-
gas, por exemplo –, eles são treinados para conviver com
crianças, idosos, pessoas hospitalizadas e com deficiências
físicas e mentais em escolas, hospitais e casas de repouso.
É o caso de instituições como o Instituto de Tratamento do
Câncer Infantil (Itaci), Unidade Hemopediátrica da Unifesp,
Lar Escola São Francisco, Hospital Santa Casa de São Paulo,
Residencial Albert Einstein (onde vivem idosos), Hospital da
Criança e Hospital Nossa Senhora de Lourdes. Dóceis, não
costumam se esquivar ao toque, latir, saltar sobre visitantes
ou tentar lambê-los. Essas simpáticas criaturas aproximam-se
das pessoas com cuidado e, se forem bem acolhidas, logo se
oferecem ao afago.
Há dez anos, por exemplo, o adestrador de cães Hélio
Rovay, a pedagoga Adriana Maracinni e a cadela Nina, da raça
labrador, começaram a visitar uma instituição que cuidava de
crianças com síndrome de Down em Campinas, no interior de
São Paulo. Com medo no início, os pequenos foram pouco a
alexia khruscheva/shutterstock
Os exóticos
também têm vez
Mesmo animais menos convidativos ao
toque podem desempenhar papel terapêu-
tico e educativo. Na Faculdade de Zootec-
nia e Engenharia de Alimentos da Univer-
sidade de São Paulo em Pirassununga, são
usados moluscos no Projeto Dr. Escargot,
que atende crianças com deficiências físi- escolhem os animais mais “fofos”, ao passo
cas e problemas de aprendizagem. Segun- que os pequenos preferem os mais exóticos.
do especialistas, estudantes e pacientes se “Crianças hiperativas, psicóticas e autistas,
identificam psiquicamente com caracterís- por exemplo, têm verdadeira loucura por
ticas do molusco – hipotonia, “carapaça porquinhos-da-índia, ratinhos e coelhos, que
emocional” e necessidade de lidar, em são animais muito ágeis e oferecem cons-
algum nível, com a repulsa por parte de tantes desafios para elas”, diz. Liana permite
outras pessoas por sua condição física que seus pacientes façam essa opção, pois
e mental. Embora pareça estranho no “o grande objetivo é criar um elo terapêutico
primeiro momento, o escargot apresenta por meio do qual o animal se tornará o fiel
coelho: djem/shutterstock;lesma: stock.xchng
várias vantagens em relação a outros ani- depositário dos conflitos e das alegrias do
mais: é pacífico, não morde, não arranha, indivíduo”. Segundo ela, a escolha de deter-
não causa alergias e é indiferente ao som. minados bichos também revela um pouco da
Segundo a psicopedagoga Liana Pires personalidade de cada um. Suas observações
Santos, do Grupo de Abordagem Terapêu- mostram que as pessoas tendem a procurar
tica Integrada (Gati), crianças e adultos di- nos animais características − físicas ou com-
vergem quanto à preferência com relação portamentais – que lhes ofereçam comple-
ao bicho usado na terapia. Os mais velhos mentaridade psíquica ou identificação.
30 l mentecérebro l Animais
chinho de estimação que exigisse sua dedicação
diária, já que os cuidados, principalmente com
cães, motivam não só a troca afetiva, mas tam-
bém o exercício físico – em especial as caminha-
das. Por causa de constatações como essas, nos
últimos anos algumas companhias americanas
de seguro passaram a oferecer descontos para
donos de animais.
mika/corbis/latinstock
sugerida por médicos ainda é a equoterapia, na
qual cavalos são, em geral, utilizados em exercí-
cios de pacientes com paralisia cerebral, autismo
e síndrome de Down. Em 1997, o tratamento foi
reconhecido como “método terapêutico” pelo
Conselho Federal de Medicina (CFM). A prática também os projetos No Galope da Equoterapia, ALÉM DO AFETO: conviver
de equitação facilita a reconquista do equilíbrio que atende crianças, jovens e adultos com algum com cavalos e cavalgar
ativa o sistema neurológico
postural de pessoas que sofreram mutilações e tipo de deficiência. O objetivo é a estimulação e pode favorecer a
amputações. “Médicos do século 16 já observa- precoce e a inclusão social e escolar. Nas ins- capacidade imunológica
vam em feridos de guerra e pessoas com lesões tituições são feitos atendimentos cerca de 100
no sistema nervoso central que continuaram a crianças e adolescentes, entre 2 e 18 anos.
cavalgar a diminuição da espasticidade”, diz o As reações são provocadas pelos movimen-
fisioterapeuta Romeu Escolástico Filho, coorde- tos tridimensionais do dorso do cavalo em
nador técnico da Associação de Pais e Amigos movimento – vertical, horizontal e diagonal –
das Pessoas Portadoras de Necessidades Espe- comparados à ação da pelve humana ao andar. A
ciais (Apape) de Botucatu. experiência aprimora a propriocepção profunda e
“Também são observados benefícios como a proporciona estimulações vestibulares – melho-
tendência de o cavaleiro sintonizar sua respiração rando, assim, as noções de equilíbrio, distância e
com a do animal que cavalga, o que proporciona lateralidade. Os cavalos fazem, no mínimo, um
relaxamento muscular: o resultado é a diminui- movimento por segundo, e a cada um deles o
ção da ansiedade e o controle de problemas de cavaleiro deve “organizar” suas funções neuro-
insônia”, observa Escolástico Filho. Ele dirige lógicas e sensoriais. e
m c
31
Na companhia
dos bichos
animais de estimação podem contribuir para melhorar a
saúde física e mental de seus donos, mas a duração desses
efeitos causa divergências entre pesquisadores
E
m 1857, o escritor britânico George Eliot escreveu:
“Os animais são amigos muito agradáveis. Não
fazem perguntas nem manifestam desaprovação”.
A natureza afável de cães, gatos, peixes intriga pes-
quisadores que buscam descobrir quais seriam os poderes
terapêuticos ainda inexplorados desses e de outros bichos.
Uma das questões a serem esclarecidas é se os benefícios
que eles trazem para a saúde – segundo muitos garantem
– são obtidos apenas pela diversão que proporcionam ou se
a presença dos bichos pode, de fato, ser considerada tera-
pêutica – a ponto de ser indicada por médicos e psicólogos
para auxiliar no tratamento de seus pacientes.
O fato é que cada vez mais os bichinhos têm ocupado
lugar de destaque na vida das pessoas – e, não raro, re-
cebem a “responsabilidade” de suprir carências afetivas
profundas de seus donos. Basta dizer que o chamado “pet
business” – negócios envolvendo animais de estimação e
produtos destinados a eles – tem movimentado bilhões de
dólares e crescido a cada ano. Nos Estados Unidos, apro-
ximadamente 63% dos lares abrigam mascotes, segundo
dados da Associação Americana de Fabricantes de Pro-
david woods/corbis/latinstock
Aos seis meses os bebês já são capazes o som à imagem: enquanto ouviam os ros-
de perceber as emoções expressas tanto nados, direcionavam o olhar para a foto do
pelo latido como na postura de cães. A cão bravo; e ao escutar os latidos amistosos
conclusão é de um estudo realizado por procuravam a imagem do cãozinho com
pesquisadores da Brigham Young Uni- postura simpática. O experimento foi feito
versity, em Provo, no estado americano apenas uma vez, para evitar qualquer tipo
de Utah – os mesmos pesquisadores de aprendizado decorrente da repetição dos
que há alguns anos demonstraram que estímulos. Segundo os autores, esses resul-
crianças nessa idade podiam detectar tados mostram como o cérebro infantil está
variações emocionais em músicas de preparado, mesmo em idade precoce, para
Beethoven. Segundo artigo publicado reconhecer a carga emotiva de estímulos
na revista Developmental Psychology, auditivos emitidos não apenas por pessoas,
os cientistas primeiro mostraram aos mas originados de um espectro de sons
pequenos duas fotos do mesmo cachor- vindos do que os especialistas chamam de
ro – numa delas o animal estava em “mundo social”. De acordo com o psicólo-
postura agressiva, pronto para o ataque, go e coordenador da pesquisa Ross Flom,
e na outra mostrava-se simpático e brin- o reconhecimento emocional é uma das
calhão. Enquanto os bebês ainda tinham primeiras habilidades desenvolvidas pelos
as imagens diante deles, foram apresen- humanos, muito antes da linguagem. A pre-
tadas duas gravações, em ordem aleató- cocidade com que bebês demonstram essa
ria, uma com rosnados ameaçadores e capacidade sugere a existência de uma base
outra com latidos fanfarrões. neural inata, sobre a qual outras habilidades
Os bebês associaram, imediatamente, cognitivas se assentam.
34 l mentecérebro l Animais
taxas de sobrevida em um ano entre vítimas de comuns nos Estados Unidos: uma pesquisa Corretores
enfarte. Investigações como essa são de difícil de 1973 coordenada pela psicóloga Susan S. estressados e
interpretação, porque os donos de animais Rice, da Universidade Estadual de Oklahoma,
podem ter, eventualmente, menos fatores de revelou que 21% dos terapeutas da divisão
hipertensos
risco cardíaco, se alimentem com dietas mais de Psicoterapia da Associação Americana de da bolsa
saudáveis e experimentem níveis mais baixos Psicologia incorporavam de alguma forma de valores,
de hostilidade. animais em seus atendimentos. Não se sabe, escolhidos
Estudos feitos pelos psicólogos Karen porém, se essa porcentagem se modificou
Allen, da Universidade de Buffalo, e James em 40 anos. ao acaso
Blascovich, da Universidade da Califórnia em Porém, ainda persiste a questão: as AATs para adotar
Santa Barbara, demonstram que a proximi- funcionam? Para responder a essa pergunta, um cachorro
dade de um bichinho querido durante uma é preciso fazer a distinção entre dois usos
tarefa estressante – como resolver exercícios diferentes dos animais: recreação e psicote- ou um gato,
difíceis de aritmética, por exemplo – evita rapia. Alguns contatos são puramente recre- registraram
que aqueles que a executam tenham picos de ativos: o objetivo é permitir que as pessoas índices de
pressão arterial. O mesmo, porém, não ocorre se divirtam. Não há muita discussão sobre
na presença de um amigo. o alcance dessa interação amigável, porque
pressão
O levantamento feito por Karen mostra tam- atividades como essas em geral tornam os arterial mais
bém que corretores estressados e hipertensos participantes mais satisfeitos, pelo menos baixos
da bolsa de valores, escolhidos ao acaso para por algum tempo. Mas para comprovarem
adotar um cachorro ou um gato, registraram que as terapias assistidas por animais funcio-
índices de pressão arterial mais baixos do que nam, os pesquisadores precisam demonstrar
os de voluntários do grupo de controle que não
tinham animais. Os resultados sugerem que a TERAPIA COM GOLFINHOS é
presença de bichos pode reduzir os níveis de regulamentada em países como
Estados Unidos, México, Israel,
estresse, embora não apontem os motivos des- Rússia, Japão e China
se efeito. As conclusões também não informam
se seria possível obter resultados similares
com outros estímulos, como a presença de
amuletos da sorte ou de outro objeto no qual
fosse investido afeto, como uma planta ou um
boneco de pelúcia, por exemplo.
Poucas pessoas contestariam a afirmação
de que os animais de estimação são capazes
de nos dar conforto, em especial em épocas
de dificuldade ou solidão. Uma questão muito
mais controversa diz respeito à eficácia das te-
rapias assistidas por animais (AATs, na sigla em
inglês), usadas no tratamento em si ou como
complemento da psicoterapia. A escolha abran-
ge desde cavalos, cachorros, gatos, coelhos,
pássaros, peixes e porquinhos-da-índia até os
golfinhos. Os problemas psicológicos para os
quais se usa a AAT incluem esquizofrenia, de-
pressão, transtornos de ansiedade, transtornos
galina barskaya/shutterstock
outro estímulo bastante agradável. A litera- para instalações particulares não apenas se-
tura sobre pesquisas a respeito de AATs não para os animais de suas famílias como pode
parece ser definitiva. provocar a morte de muitos deles.
Por que deveríamos nos importar se as te- Portanto, voltamos ao ponto inicial: são
rapias com animais funcionam se as crianças necessários mais estudos para a avaliação
parecem se divertir com elas e os pais estão dos benefícios dos animais sobre a nossa
dispostos a pagar? Há ao menos três motivos. saúde física e psicológica. Sem dúvida, mui-
Primeiro, as AATs são capazes de produzir o tos podem ser companhias estimadas e for-
que os economistas chamam de “custos de necer apoio social. Eles também são capazes
oportunidade” – o dinheiro, o tempo e o esfor- de nos fazer sentir melhor em curto prazo,
ço são empregados em alternativas ineficazes. é incontestável. É possível que os bichos de
Ao fazerem essa escolha, pais e crianças po- estimação ajudem em especial pessoas com
dem ser privados da oportunidade de buscar depressão ou crianças que foram muito ne-
tratamentos realmente eficazes. gligenciadas – para quem solidão e ausência
Em segundo lugar, algumas AATs podem de apoio emocional são, em geral, problemas
apresentar algum tipo de risco. Por exemplo, frequentes. Ainda assim, é preciso ir mais a PARA SABER MAIS
a lei não exige que os golfinhos sejam testa- fundo nessa investigação. E outra questão Afeto que cura. Sabine Althau-
sen, em Mente e Cérebro 169,
dos para doenças infecciosas. Além do mais, é saber se os animais favorecem mudanças págs 48-55, fevereiro de 2007.
há alguns relatos de crianças feridas pelos de longo prazo e alívio dos sintomas psico- Handbook on animal-assisted
animais. Em terceiro lugar, algumas AATs lógicos de patologias como autismo, defici- therapy: theoretical founda-
tions and guidelines for prac-
resultam em custos para os próprios animais. ências do desenvolvimento ou transtornos tice. Editado por A.H. Fine.
Por exemplo, transferir os golfinhos do mar de ansiedade. e
m c Academic Press, 2006.
37
Homossexualidade
como traço adaptativo
a preferência de animais por parceiros do mesmo sexo aparece em
muitas espécies e, para vários pesquisadores, esse comportamento
oferece pistas para que a teoria de darwin seja contestada
E
m 1871, Charles Darwin (1809-1882) escreveu que
“fêmeas escolhem parceiros mais atraentes, vigorosos
e bem-dotados”. A cauda do pavão, exemplo frequen-
temente usado por defensores dessa teoria, refletiria
um gosto da pavoa pela aparência masculina, da mesma for-
ma que a atração de cervos fêmeas por galhadas amplas dos
companheiros demonstra preferência por espécimes fortes e
guerreiros. “Os machos de quase todos os animais têm paixões
mais fortes que as fêmeas”, escreveu o naturalista inglês. “Com
raríssimas exceções, elas são recatadas e menos impetuosas.”
Na visão de Darwin, quase que universalmente os seres se su-
jeitam aos papéis predestinados de belos guerreiros excitados
ou de donzelas discretamente exigentes.
Mas a diversidade no mundo real é muito maior. Em muitas
espécies, inclusive na nossa, as fêmeas não são necessariamen-
te menos impetuosas que os machos, nem todas as mulheres
suspiram por Tom Cruise. Inúmeras delas abordam os machos
e estes, muitas vezes, as rejeitam. Além do mais, em várias es-
pécies, os supostos papéis sexuais se invertem. Mesmo Darwin
reconheceu espécies de aves, como a jaçanã, cujas fêmeas são
fortemente ornamentadas e cujos machos são insípidos e sem
graça, invertendo a história do pavão.
De fato, muitos animais nem sequer são nitidamente classi-
ficados em dois sexos. Se você fizer um mergulho em um recife
de coral, cerca de um terço dos peixes que encontrará produz
óvulos e esperma, alguns ao mesmo tempo e outros em épocas
diferentes ao longo da vida. São os chamados hermafroditas
magdanatka/shutterstock
sistema social da espécie. A antropóloga Sarah clássicos como a cauda do pavão ou a galhada OUTRA HIPÓTESE: é
Hardy, da Universidade da Califórnia em Davis, de um cervo não são suficientes para atrair as possível que atributos
físicos, como a galhada
mostrou que macacas da Índia se acasalam com fêmeas por anunciar a virilidade. Pelo contrário: dos cervos, não sirvam
vários machos para que, na ocasião do nascimen- esses traços podem ter como alvo os membros apenas para atrair fêmeas,
to dos filhotes, nenhum deles ataque os bebês, do mesmo sexo. É possível que sejam insígnias como durante muito tempo
cientistas acreditaram,
já que qualquer um pode ser o pai. Além de de admissão no exclusivo clube dos detentores
mas também para chamar
controlar o poder masculino, essa prática impede do poder. Não tenho conhecimento de nenhum a atenção de machos
que os pais se tornem ociosos, o que diminui os experimento para testar se as características
conflitos nos grupos. sexuais secundárias são realmente insígnias ou
A teoria da seleção social explica também um ornamentos. Alguns estudos mostraram como
enigma que remonta a Aristóteles: o “pênis” da a modificação de características físicas, como
hiena-malhada fêmea. O clitóris da fêmea é maior as cores das penas, afeta a escolha do parceiro.
que o membro do macho, e os depósitos de gor- Acredito que essas investigações deveriam ques-
dura na bolsa cutânea vizinha lembram um saco tionar também como essas alterações influem
escrotal. Muitas vezes, nas interações com outras nas relações entre indivíduos do mesmo sexo –
fêmeas, as hienas ficam com o clitóris intumes- inclusive entre membros do exclusivo clube dos
cido, como se tivessem uma ereção. A teoria da detentores do poder
seleção sexual não tem explicação para tal caracte- Essa nova perspectiva do comportamento
rística extraordinária -– que não é usada na escolha social de animais – e a consequente rejeição da
do parceiro. Apresento, contudo, a sugestão de teoria da seleção sexual de Darwin – debilita a
que uma hiena-malhada fêmea que não tivesse linha condutora da psicologia evolutiva. Muitos
um pênis seria excluída dos grupos de fêmeas biólogos estão se sentindo cada vez mais inco-
que controlam o acesso à reprodução. Esse é um modados com a maneira como alguns psicólo-
exemplo daquilo que chamo de traço de inclusão gos reorganizaram a teoria da seleção sexual e a
social: uma característica que garante a admissão transformaram em uma teoria da personalidade
do indivíduo no grupo social, independentemente humana, apoiando-se em bases aparentemente PARA SABER MAIS
Evolução do gênero e da
de ter qualquer outro uso. A poderosa capacidade lógicas para explicar a evolução de tudo – desde os sexualidade. Joan Roughgar-
humana para usar a linguagem e a habilidade para padrões de beleza até o estupro. Sermos francos den. Ed. Planta, 2004.
apreciar, compreender e criar arte e música podem e diretos a respeito de como a teoria da seleção Biological exuberance: ani-
mal homosexuality and natu-
ser exemplos desses traços em nossa espécie. sexual é problemática pode ajudar a reduzir o uso ral diversity, Bruce Bagemihl.
Podemos pensar que ornamentos sexuais equivocado da biologia. e
m c St. Martin’s Press, 2000.
41
Amor sem
preconceito
observados em todo o reino animal e mais
frequentes entre espécimes em cativeiro, os
vínculos entre indivíduos do mesmo sexo podem
ser uma forma de aliviar o estresse, dissipar tensões
sociais e obter ajuda para proteger os filhotes
R
oy e Silo, dois pinguins nativos da Antártida, se
encontraram, em 1998, num tanque do zoológico
Central Park, em Nova York. Tão logo se viram,
começaram a se exibir um para o outro. Primeiro
se empoleiraram numas pedras, de onde mergulhavam na
água. Depois se aproximaram, enroscaram os pescoços,
emitiram grunhidos e acasalaram. Por fim, construíram um
ninho e, juntos, esperaram pelo ovo que nunca viria: afinal,
ambos são machos.
O zelador do zoológico, Robert Gramzay, assistiu a tudo
com curiosidade. E resolveu ajudar a dupla, roubando um
ovo de um verdadeiro casal de pinguins heterossexual que
não estava conseguindo chocá-lo. Gramzay o colocou no
ninho de Roy e Silo, que se alternaram na tarefa de aquecer
a futura cria debaixo de seus ventres gordos, até que, depois
de 34 dias, o filhote rompeu a casca e enxergou pela primeira
vez o mundo. Era uma fêmea cinza e penugenta, que recebeu
aconchego e alimento com a mesma dedicação observada
em duplas formadas por machos e fêmeas.
Os pesquisadores estão descobrindo que esse tipo de
casal, constituído por indivíduos do mesmo sexo, é surpre-
pauline s mills/istockphoto
RELACIONAMENTO COM
PARCEIROS DO MESMO
SEXO podem ser motivados
por questões práticas ou
apenas por ser divertido
44 l mentecérebro l Animais
pauline s mills/istockphoto
TRIÂNGULO: entre
ostraceiros selvagens,
são comuns os triângulos
(com dois machos), o
que aumenta a chance de
sobrevivência dos filhotes
escreveu que as fêmeas de babuíno ofereciam homossexual, mais pacífica é a espécie”, afir-
sexo às líderes do grupo. “O comportamento ma o biólogo Petter Bockman, do Museu de
homossexual é relativamente frequente nas História Natural da Universidade de Oslo, No-
fêmeas quando ameaçadas por outras fêmeas, ruega. “Os bonobos, por exemplo, são muito
e raramente se manifesta como resposta ao pacíficos”, sustenta. Tais atos parecem ser tão
apetite sexual.” Quanto aos machos, afirmou: essenciais para a socialização dos bonobos que
“As alianças entre machos jovens e maduros constituem um rito de passagem das jovens
podem ter valor de proteção para os últimos, fêmeas para a idade adulta. Esses animais
pois garantem o auxílio de um defensor adulto vivem em grupos de cerca de 60 indivíduos,
em caso de ataque”. num sistema matriarcal. As fêmeas deixam
Mais recentemente, alguns pesquisadores o clã durante a adolescência e são admitidas
chegaram a conclusões semelhantes ao estudar em outro, onde são cuidadas por fêmeas com
bonobos. Pelo menos metade das relações se- quem têm encontros sexuais. Esses compor-
xuais desses primatas (muito promíscuos, por tamentos criam laços sociais e dão às novatas
sinal) são com parceiros do mesmo sexo. As benefícios como proteção e comida.
fêmeas costumam esfregar os órgãos genitais
umas nas outras com tanta frequência que CASOS DE POLIGAMIA
alguns cientistas sugeriram que sua genitália Em algumas espécie de aves, as uniões do
deve ter evoluído para facilitar esse contato. mesmo sexo, em particular entre machos,
“O clitóris delas localiza-se frontalmente, podem ter evoluído como uma estratégia de
talvez porque a seleção tenha favorecido uma cuidado dos filhotes para aumentar sua taxa
posição que tornasse mais intensa a estimula- de sobrevivência. “Entre os cisnes-negros, se
ção durante a fricção”, escreveu a ecologista dois machos se encontram e fazem um ninho,
comportamental Marlene Zuk, da Universidade eles podem ser mais bem-sucedidos para criar
da Califórnia em Riverside, no livro Sexual se- um órfão porque são maiores e mais fortes do
lections – What we can and can’t learn about sex que um macho e uma fêmea com uma cria
from animals, de 2002. Já os machos bonobos biológica”, diz Bockman.
foram observados montando e acariciando uns Em outras situações, as uniões homos-
aos outros, bem como fazendo sexo oral. sexuais entre fêmeas aumentam a chance de
No livro Bonobo – The forgotten ape, o pri- sobrevivência da cria quando pares macho-
matólogo Frans de Waal conta que quando uma -fêmea não são possíveis. Nos ostraceiros,
fêmea ataca uma jovem e a mãe desta última aves que habitam zonas costeiras e rochosas, a
vem em sua defesa, o problema pode ser resol- intensa competição por companheiros machos
vido por intenso esfregamento de genitais entre deixaria muitas fêmeas sozinhas se não fosse
as duas adultas. De Waal observou centenas de a existência de trios polígamos. Em um artigo
casos como esse, o que sugere que relações publicado na revista Nature em 1998, o zoólogo
homossexuais sejam uma estratégia geral para Dik Heg e o geneticista Rob van Treuren, da
manter a paz. “Quanto mais comum a prática Universidade de Groningen, Holanda, obser-
45
Moscas- varam que aproximadamente 2% dos grupos mas eles também têm preferências, e reagem
selvagens de procriação dos ostraceiros eram formados de acordo com elas.”
por duas fêmeas e um macho. Os pesquisa- Um estudo recente indica que o compor-
apresentam dores descobriram que, em alguns deles, elas tamento homossexual pode ser tão comum
tendências cuidavam de ninhos separados e brigavam pelo porque tem sua raiz no cérebro do animal. Bem,
tanto para o macho; mas, em outros, as três aves zelavam pelo menos no caso das moscas-das-frutas. Em
comportamento por um único ninho. No último caso, as fêmeas artigo publicado na Nature Neuroscience, o neu-
criavam laços montando tanto no macho como rocientista David E. Featherstone, da Universi-
heterossexual em outra fêmea. Os triângulos cooperativos dade de Illinois, Chicago, descobriu que podia
como para o produziam mais filhotes que os tradicionais, manipular a orientação sexual desses insetos
homossexual; porque seus ninhos eram mais bem cuidados por meio do gene responsável por uma proteí-
e protegidos de predadores. na que regula a comunicação entre neurônios
arquitetura Tais arranjos apontam para a vantagem que secretam o neurotransmissor glutamato.
cerebral adaptativa dos relacionamentos sociais estáveis, Os machos que carregavam determinada
permite que a qualquer que seja seu tipo. A pesquisadora Joan variante desse gene eram atraídos de maneira
E. Roughgarden, da Universidade Stanford, acre- atípica pelos sinais químicos exalados por ou-
atração pelo dita que os biólogos evolutivos costumam aderir tros machos. Como resultado, esses mutantes
mesmo sexo com excessivo entusiasmo à teoria da seleção cortejaram os machos e tentaram copular com
venha com sexual de Darwin, ignorando a importância de eles. A descoberta sugere que moscas-das-frutas
laços de amizades nas sociedades animais para podem ter tendências tanto para o comporta-
mais facilidade a sobrevivência dos filhotes. “Darwin igualava mento heterossexual como para o homossexual,
a reprodução a encontrar um companheiro, afirma Featherstone. Essa arquitetura cerebral
em vez de prestar atenção em como a prole é talvez permita que a atração pelo mesmo sexo
cuidada”, diz a bióloga. venha à tona com mais facilidade, o que apoia a
Proteger os filhotes, criar laços sociais e evi- noção de que é capaz de conferir uma vantagem
tar conflitos, porém, podem não ser os únicos evolutiva em determinadas circunstâncias.
motivos pelos quais os animais se envolvem Em algumas espécies menos sociais, o com-
em relações homossexuais. Talvez muitos deles portamento homossexual é quase desconhecido
façam isso apenas “porque querem”, diz Bock- na natureza, embora possa ser observado em
man. “As pessoas veem os animais como robôs cativeiro. Coalas selvagens, quase sempre soli-
que se comportam como os genes mandam, tários, parecem ser estritamente heterossexuais
quando estão em seu hábitat natural. No entanto,
um estudo de 2007 realizado pelo veterinário Cli-
ve J. C. Phillips, da Universidade de Queensland,
Sedutoras mas rejeitadas Austrália, mostrou 43 ocorrências de atividade
homossexual entre fêmeas que viviam numa área
Muitas vezes os profissionais que trabalham em zoológico não sa- cercada no Santuário de Coalas Lone Pine. Elas
bem como reagir ao observar o comportamento homossexual dos também emitiam chamados de acasalamento
animais. Há alguns anos, funcionários do Zoológico do Mar, em Bre- tipicamente masculinos e acasalavam umas
merhaven, Alemanha, descobriram que três de seus cinco casais de com as outras, algumas vezes participando de
pinguins Humboldt eram formados por indivíduos do mesmo sexo. múltiplos encontros com até cinco animais.
Por se tratar de uma espécie em extinção, apressaram-se em trazer Phillips acredita que as fêmeas agiam dessa
quatro fêmeas da Suécia, o que causou fúria em grupos de gays e lés- maneira em parte por causa do estresse. A falta
bicas de todo o mundo. Numa carta para o prefeito de Bremerhaven, de machos provavelmente é um dos principais
Jorg Schulz, ativistas europeus protestaram contra o que chamaram fatores estressantes, segundo o veterinário.
de “assédio organizado e forçado por meio de fêmeas sedutoras”. Quando as fêmeas de coala estão no cio, seus
Os machos, porém, ignoraram a chegada das jovens suecas. ovários liberam o hormônio sexual estrogênio,
“Eles nem sequer olharam para elas”, disse o diretor do zoológico, que ativa o comportamento de acasalamen-
Heike Kiick, à revista alemã Der Spiegel. A solução foi trazer outros to – quer os machos estejam presentes, quer
machos para fazer companhia às fêmeas solitárias. não. Esse ímpeto de copular, mesmo com uma
parceira, pode ser adaptativo. “Esse comporta-
46 l mentecérebro l Animais
mento preserva a função sexual, permitindo ao
animal manter seu preparo físico reprodutivo
e o interesse na atividade sexual”, diz Phillips.
Nos machos, esse benefício é ainda mais óbvio:
o comportamento homossexual estimula a
produção contínua de fluido seminal.
COESÃO DA EQUIPE
Acredita-se que a falta de parceiros do sexo
oposto também possa explicar a predominância
de homossexualidade em pinguins de zoológico.
Além de Roy e Silo nos Estados Unidos, 20 ou-
tras uniões homossexuais já foram observadas
no Japão. “Mas isso é bastante raro nos hábitats
naturais dos pinguins”, diz o ecologista Keisuke
Ueda, da Universidade Rikkyo, em Tóquio.
guilu/shutterstock
47
O louro sabe
das coisas
os papagaios estão se livrando do estigma
de imitadores. cientistas já reconhecem que
a inteligência dessas aves é comparável à
dos golfinhos e chimpanzés
A
campainha toca e Fernanda se apressa em aten-
der, pensando que é o entregador de pizza. Mas
ao abrir a porta e ver que não há ninguém do
outro lado, o som continua – trata-se de mais
uma das “brincadeiras” de Bóris, seu papagaio de estimação.
Cenas como essa mostram a fascinante capacidade dessas
aves de imitar sons comuns e vozes humanas. Para muitos
cientistas, porém, os papagaios são capazes de bem mais
que isso. Segundo eles, esses animais conseguem não ape-
nas entender e responder ao que dizemos, mas também
compreender conceitos abstratos simples. Há quem diga
que papagaios e algumas outras espécies de ave são tão
inteligentes quanto golfinhos e primatas.
Durante décadas, os biólogos pensaram que apenas o
instinto controlava o comportamento dos papagaios. Essa
visão se baseava nas características do cérebro das aves,
que é bem menor e aparentemente mais simples que o
mark wilson/the boston globe via getty images
WILLIAM MUÑOZ
ALÉM DA IMITAÇÃO
Há muito em comum entre a aquisição da
linguagem pelos seres humanos e o aprendi-
zado musical das aves. Ambos se baseiam na
PAPAGAIO ALEX, MORTO EM 2007, com a psicóloga
imitação do comportamento dos indivíduos Irene Pepperberg: animal interpretava perguntas
mais velhos e exigem muito treino e repetição.
Irene adaptou um método de treinamento de-
senvolvido pelo etologista alemão Dietmar Todt conforme as respostas que dá. Quando acerta,
conhecido como técnica modelo-rival. A sessão pode brincar com o objeto por algum tempo.
funciona da seguinte forma: numa pequena Nesse método, o segundo treinador é, para o pa-
mesa com vários objetos, há dois treinadores pagaio, tanto modelo como rival na disputa pela
sentados em lados opostos e no meio deles, um atenção do treinador no 1. Depois de aprender
papagaio. O treinador pega um objeto, mostra-o algumas palavras, a ave já pode assumir o papel
ao outro e pergunta: “O que é isto?”. O parceiro do treinador no 2 e ensinar outros papagaios.
responde: “Bola. É uma bola”. Então o treinador Depois de 30 anos de treinamento, um papa-
no 1 elogia o segundo e, como recompensa, lhe gaio-cinza chamado Alex, o primeiro estudado
dá a bola. Algumas vezes, porém, o treinador no por Irene, adquiriu um respeitável vocabulário.
2 responde deliberadamente de forma incorre- Morto em 2007, aos 31 anos, Alex sabia o nome
ta, dizendo, por exemplo, “é um prendedor de de 50 objetos, 7 cores, 5 formas geométricas, 7
roupa”. O primeiro o reprova e retira o objeto materiais, 6 números e até alguns verbos.
de seu campo de visão por alguns minutos. Vocabulário amplo, porém, não é evidência
Em pouco tempo o papagaio está de funções cognitivas superiores, apenas de
apto a participar do jogo. É recompen- boa memória. O que importa saber é se o bicho
sado ou repreendido pelos treinadores consegue entender o que está dizendo. Para isso
Uma equipe de pesquisadores da Univer- rem que essas aves são dotadas de processos
sidade de Cambridge, Reino Unido, coorde- cognitivos complexos capazes de abranger
nada pelo biólogo Nicola Clayton, investigou os conceitos de passado, presente e futuro”,
o comportamento do Aphelocoma californica afirma Clayton.
50 l mentecérebro l Animais
Irene submeteu Alex e três outros papagaios Também compreendiam categorias conceituais
treinados em laboratório a vários experimentos. como cor, forma e material. Ora, isso significa
Os resultados obtidos não deixam dúvida de que o entendimento de que vermelho, verde e azul,
essas aves compreendem o significado isolado por exemplo, são prováveis variantes do mesmo
de palavras individuais e são dotadas de algumas objeto. Alex e seus amigos mostraram que isso é
capacidades cognitivas superiores. possível. Além disso, aprenderam o significado
Os papagaios de Irene respondiam de for- de “igual” e “diferente”. Quando se colocavam
ma precisa a questões como “o que é isto?”. diante deles um círculo e um triângulo, ambos
Cerebelo
Cerebelo
cortesia de erich d. jarvis
Cerebelo
Tálamo
Tálamo Tronco cerebral
Medula Tronco cerebral Medula
espinhal espinhal
51
Para vermelhos, e se perguntava “o que é igual?”, A ideia de quantidade também foi assimilada.
sobreviver eles respondiam “cor”. Se a pergunta fosse “o Se mostravam a Alex quatro bolas vermelhas,
que é diferente?”, replicavam “forma”. São feitos três verdes e mais cinco blocos vermelhos e
e se adaptar notáveis, pois exigem que o animal primeiro seis verdes, todos dispostos aleatoriamente, ele
a novas interprete a questão corretamente, depois iden- respondia corretamente à pergunta “quantos
situações, é tifique a categoria correta e, por fim, responda blocos vermelhos?”. A hipótese é que Alex con-
necessário com um sinal acústico não utilizado por outros tava um a um os conjuntos maiores de objetos e
de sua espécie. Alex também dizia “nada” quan- reconhecia os números menores intuitivamente,
recordar do não havia característica alguma comum ou de uma tacada só, assim como nós fazemos.
experiências diferente, demonstrando que conhecia o con-
anteriores ceito de ausência. ESPERTOS E TEIMOSOS
Alex também sabia o que significa a partícula Os papagaios-cinza conseguem até mesmo
“e”. Quando lhe perguntaram “o que é triangular usar verbos e combiná-los com diferentes
e vermelho?”, selecionou, em meio a outros objetos. Podem dizer, por exemplo, “quero
itens, o objeto com as duas características. Seu maçã” ou “quero ir cadeira”. Se Irene entrega
desempenho ao comparar coisas era impres- outro objeto, a ave o rejeita dizendo “não”,
sionante. Ele conseguia resolver questões como repetindo o pedido original. Se levado ao lugar
“qual a cor maior?” (que significa “qual a cor errado, recusa-se a pular no braço do treinador
do objeto maior?”). Isso mostra que ele tinha e reitera seu desejo.
noção de relatividade, isto é, identificava qual o Outro exemplo de pensamento abstrato é o
item maior ou menor dentro de um conjunto. chamado problema da permanência do objeto,
Inteligência selvagem
As aves pesquisadas por Irene realizam façanhas mentais impressionantes, mas vi-
vem em cativeiro e recebem muitos estímulos. Que dizer dos papagaios silvestres? A
ordem dos psitaciformes, à qual pertencem, inclui diversas espécies de vida longa: os
periquitos-australianos vivem entre 10 e 15 anos e as araras podem passar dos 50.
Boa memória é essencial, pois as aves precisam se lembrar do local das diferentes
fontes de água e de alimento, bem como dos ninhos e dos companheiros. A longe-
vidade significa também que elas presenciam grandes mudanças ambientais, como
cheias e secas. Para sobreviver e se adaptar a novas situações, é necessário recordar
experiências anteriores.
Quase todos os papagaios vivem em bandos cuja estrutura se assemelha à dos
grupos de primatas, o que exige alto nível de inteligência social. As aves têm de ser
capazes de distinguir entre muitos indivíduos e interagir de forma apropriada, com
base em experiências prévias. Como os casais humanos, os de papagaios passam
bom tempo juntos mesmo quando não estão cuidando dos filhotes. Em algumas
espécies, o par pode até aprender a cantar junto, formando um dueto em que cada
indivíduo emite notas para o outro. O uso de ferramentas também foi observado em
várias espécies de aves. Para marcar território, os periquitos machos mordem galhos
e os batem no tronco das árvores.
Outras espécies usam ramos secos e pedras pequenas para afugentar aves pre-
dadoras. A manipulação de objetos, como pedaços de madeira e sementes, também
é usada pelos mais jovens para explorar o meio e aprender comportamentos sociais,
isto é, os pequenos papagaios também gostam de brincar. E é muito provável que
bmj/shutterstock
52 l mentecérebro l Animais
stanislav mikhalev/123rf
isto é, a compreensão de que o objeto continua a guém jamais saberá ao certo o que ocorreu em
existir mesmo quando muda de posição ou não seu cérebro quando ele cunhou o termo. Irene
pode mais ser visto. Esse conceito básico para o acha que ele combinou duas palavras conheci-
entendimento do meio não é tão óbvio quanto das, “banana” e “cereja”. Talvez as maçãs tives-
parece. Nos seres humanos essa capacidade se sem, para ele, sabor semelhante ao da banana e
desenvolve gradualmente ao longo do primeiro qualquer fruta com a casca vermelha se parecesse
ano de vida. Cães, gatos e pombos têm uma com uma grande cereja.
ideia rudimentar da permanência dos objetos, “Que cor?” foi a primeira coisa dita por Alex
mas muito mais fraca do que a observada em quando ele se viu no espelho pela primeira vez.
papagaios, macacos ou humanos. Eles fracas- Estava cansado de ouvir a mesma pergunta,
sam, por exemplo, no jogo do copo. Após ver o sempre relacionada a objetos coloridos. Isso dei-
treinador esconder a bola em um dos três copos xa claro que ele não só compreendia o conceito
e movê-los, o cachorro só acerta o local do objeto de cor como era capaz de usá-lo em situações
por acaso. Alguns primatas e papagaios adultos, novas. Surpresa, a psicóloga respondeu: “Cinza,
porém, têm desempenho tão bom quanto o dos você é um papagaio-cinza”. Alex repetiu a mesma
humanos. Estudos com papagaios mais jovens pergunta mais cinco vezes e recebeu a mesma
revelaram que a noção da permanência do obje- resposta. Desde então, “cinza” passou a fazer
to evolui de acordo com o desenvolvimento de parte de seu vocabulário.
regiões específicas de seu cérebro. Os exemplos mencionados são evidências
Os papagaios de Irene não se cansam de incontestáveis de que os papagaios – e prova-
surpreender a comunidade científica com suas velmente várias outras aves – não agem apenas
habilidades. Alex, ainda considerado o mais in- por instinto. Eles são dotados de extraordinária
teligente, inventou vários termos para descrever memória e entendem relações complexas. Além
objetos, como quando devia aprender a palavra de aprender um complicado sistema de comunica-
“maçã”. Nessa época, já havia aprendido o nome ção, têm vida social intensa e são muito curiosos. PARA SABER MAIS
de várias frutas, como banana, cereja e uva. Já A inteligência que demonstram é comparável à Avian brains and a new
havia experimentado maçãs, mas nada lhe fora dos primatas e golfinhos e, em algumas situações, understanding of vertebrate
brain evolution. E. D. Jarvis
ensinado sobre elas. Certo dia o treinador pe- até superior. Eles se saíram bem em testes mais et al., em Nature Reviews
gou uma maçã e perguntou “o que é isto?”. Ele exigentes que os aplicados aos mamíferos. Neuroscience, vol. 6, no 2,
respondeu: “baneja” e deu uma bicada na fruta. A expectativa de vida dos papagaios per- págs. 151-159, 2005.
The Alex studies: cognitive
Foi corrigido e ouviu “maçã” várias vezes, mas mite que estudos de longo prazo (80 anos). and communicative abilities
insistia em “baneja”, usando a mesma entonação Atualmente, Irene dirige a Fundação Alex, que of grey parrots. Irene Maxine
cuidadosa que o treinador costumava empregar ajuda a captar recursos para pesquisas sobre Pepperberg. Harvard Uni-
versity Press, 2002.
sempre que apresentava um termo novo. Para as habilidades cognitivas desses animais Fundação Alex.
Alex, as maçãs sempre foram “banejas”, e nin- (www.alexfoundation.org). e
m c www.alexfoundation.org.
53
Inusitadas
habilidades sociais
aves, cães, golfinhos e peixes interagem
de formas surpreendentemente
sofisticadas – sofrem com a morte de
parentes, “enganam” os colegas e são
capazes até de gestos de desprendimento
E
scondidos entre árvores do parque Thai Elephant
Conservation Center, perto de Chiang Mai, na Tailân-
dia, dois elefantes asiáticos observam duas tigelas de
milho do outro lado de uma rede. O alimento foi co-
locado por pesquisadores diante de uma plataforma deslizante
controlada por cordas presas. As extremidades dos fios vão até
o lado de dentro do ambiente onde estão os animais. A corda
desliza para fora da engenhoca caso seja puxada apenas por
um dos bichos. Para alcançar o pote de milho, eles precisariam
fazer algo que somente humanos e outros primatas (pelo me-
nos é o que se pensava) podem fazer: cooperar. Ao trabalhar
juntos, cada elefante agarra uma extremidade da corda para
puxar a plataforma e assim alcançar o alimento.
Seis pares de animais conseguiram resolver o “quebra-
cabeça” da corda dupla. Um dos que participavam do ex-
perimento esperou pelo parceiro por cerca de 45 segundos,
mostrando entender que precisava de um companheiro para
fazer o trabalho. O psicólogo Joshua M. Plotnik e seus colegas
da Universidade de Cambridge documentaram a pesquisa
em 2011. Eles também notaram que esse par de elefantes
A AUTORA utilizou estratégias específicas para obter o alimento, o que
KATHERINE HARMON é sugere o desenvolvimento de uma compreensão profunda da
jornalista ciêntífica. cooperação social.
54 l mentecérebro l Animais
Desde o século passado, cientistas têm se atentado em outros – por exemplo, de que maneira usar ferramentas. Alguns
como os animais vêm repetidamente superando as expec- podem até fingir, intuindo o que outro animal sabe e, assim,
tativas em relação ao intelecto. Koko, o gorila, aprendeu enganando-o para obter ganhos. Estudar como os bichos inte-
língua de sinais; Alex, o papagaio cinzento-africano chegou ragem permite aos cientistas ampliar o conhecimento sobre a
a ostentar um vocabulário de mais de 150 palavras (ver texto inteligência dos animais.
“O louro sabe das coisas”, na pág. 48) e até mesmo animais
invertebrados, como o polvo, mostraram ser capazes de CRIANDO LAÇOS
usar ferramentas. Até meados do século 20, estudiosos Com base em nossa própria vida, podemos dizer que a inte-
acreditavam que somente os seres humanos pudessem ligência social parece ficar em segundo plano em relação à
desenvolver técnicas mais apuradas para atingir objetivos e capacidade de fazer cálculos ou escrever um livro, por exemplo.
aprender palavras significativas de uma língua. Habilidades No entanto, pessoas conhecidas como gênios modernos –
sociais sofisticadas, como a cooperação, eram considera- como Stephen Hawking ou Steve Jobs – se destacam não só
das muito além do alcance cognitivo de animais. Apenas pelas habilidades analíticas excepcionais, mas também pela
recentemente, pesquisadores começaram a perceber a extraordinária capacidade de transmitir ideias a um público
extensão da inteligência social dos bichos e sua capacidade mais amplo. Esses recursos sociais são fundamentais para uma
de compreensão e aprendizagem. sociedade complexa como a nossa. Sem capacidade de formar
Descobertas recentes, porém, sugerem que alguns animais um grupo coeso, explicitar ideias ou resolver problemas de for-
digital zoo/riser/getty images
não só são capazes de criar ligações sociais, mas usá-las para ma coletiva, os seres humanos não poderiam ter construído as
sobreviver. Assim como acontece com as pessoas, alguns pirâmides ou supercomputadores. Habilidades sociais exigem,
bichos têm necessidade de convívio e socialização. Eles perce- antes de qualquer coisa, afinidade básica com os outros. “Você
bem quando outro membro de sua espécie fica distraído e são não pode desenvolver inteligência social se não se aproximar
capazes de descobrir maneiras eficazes para receber atenção. de outras pessoas”, diz o biólogo Louis Lefebvre, pesquisador
Os bichos podem até ensinar habilidades importantes uns aos da Universidade McGill. No entanto, nem todos os animais
55
têm essa característica – polvos, por exemplo, pradaria, por exemplo, o modo como criam laços
procuram companhia somente para procriar. se relaciona com os diferentes níveis de oxitocina
Já pássaros mandarins formam pares mono- e vasopressina, hormônios ligados ao comporta-
gâmicos e se reúnem em grupos. Em um estudo mento social e à união.
de 2009, o biólogo James Goodson e seus colegas
da Universidade Bloomington de Indiana investi- CONHEÇA A SI MESMO
garam a essência química desse instinto social: a Um relacionamento saudável requer clareza na
mesotocina, um hormônio encontrado em aves, diferenciação entre o eu e o outro. Este nível pri-
equivalente à oxitocina humana, relacionado à mitivo de autoconhecimento permite aos animais
ligação afetiva. Ao bloquearem a ação da meso- irem além da ação conjunta de comportamentos
tocina no cérebro dos pássaros, os pesquisadores programados para acasalar ou se defender.
notaram que as aves encolheram os ombros para Para testar a autoconsciência, pesquisadores
os parceiros. As fêmeas passaram menos de um colocam uma marca visível em um animal e em
terço do tempo com companheiros de gaiola do seguida posicionam um espelho a sua frente. O
mesmo sexo do que estavam acostumadas. Do- bicho “passa no teste” se reconhece o ponto em
ses extras do hormônio, no entanto, mostraram seu corpo (tentar tirar o símbolo de si é uma das
efeito oposto: os animais se tornaram ainda mais maneiras de demonstrar que compreendeu que
sociáveis do que eram normalmente. está vendo seu próprio reflexo) em vez de achar
Goodson e seus colegas também investiga- que a marca está em “outro” animal. Grandes
ram a ação do hormônio em outras espécies macacos, elefantes, golfinhos, orcas e algumas
de pássaros com diferentes graus de afinidade espécies de pássaros conseguem se sair bem no
social. A equipe encontrou menos receptores experimento, o que sugere maior habilidade so-
para mesotocina em pontos-chave do cérebro cial do que espécies que simplesmente migram
de animais mais territoriais (menos sociais) do em conjunto.
que os pássaros mandarins e mais receptores O segundo requisito para sustentar uma
em espécies acostumadas a viajar em bandos. boa rede social é entender que os outros têm
Os cientistas identificaram padrões similares de diferentes estados mentais, influenciados por
substâncias químicas cerebrais e preferências experiência, desejos, crenças ou intenções e
sociais em muitos mamíferos. Em ratazanas da que, a qualquer momento, uma pessoa pode ter
ELEFANTES PODEM
TRABALHAR EM PARES
para deslizar uma
plataforma e alcançar o
alimento
56 l mentecérebro l Animais
ideias completamente diferentes das suas. Esta
capacidade, chamada de teoria da mente, é fre-
quentemente testada por psicólogos em crianças
pequenas. Um pesquisador coloca um objeto em
um local específico, por exemplo, uma bolinha
em um copo, e observa como adulto e criança
reagem. O primeiro sai da sala e, depois disso,
o objeto é removido. Após o retorno do adulto,
o pequeno voluntário com maior maturidade
marrabbio2/wikipedia/creative commons
mental consegue entender que o participante
mais velho não sabe onde a bola se encontra,
portanto, é incapaz de buscá-la de volta. Não é
fácil repetir o experimento com animais devido
à dificuldade de comunicação direta com eles.
No entanto, é possível inferir o que acon-
tece por meio de “dicas” fisiológicas, como a
presença de neurônios-espelho. Essas células
são encontradas em macacos e aves e entram demonstram reagir diante de diferentes estados PEIXES-ZEBRA: cautelosos
em ação quando o animal observa outro em cognitivos alheios”, afirma Alexandra. Em um em seu hábitat, mostram-
se corajosos quando estão
movimento. A célula pode ser encontrada em artigo publicado em 2011, a psicóloga argumenta
perto de animais destemidos
várias regiões do cérebro de humanos, inclusive que cães conseguem desenvolver uma teoria da
na área motora suplementar, localizada em uma mente – ainda que de forma rudimentar.
pequena região do topo da cabeça, envolvida no Consistente com a pesquisa sobre neurônios-
controle de movimentos. As células trabalham no espelho, muitos macacos e algumas aves tam-
intuito de espelhar o comportamento dos outros bém demonstram por meio do comportamento
e, de certa maneira, refletem o objetivo do movi- certa capacidade relacionada à teoria da mente.
mento. Além disso, podem permitir que animais No entanto, esses animais são exceção. Os
entendam ações alheias e, talvez, até intenções. cientistas não conseguiram observar sequer
Esses neurônios podem estar relacionados à uma pequena evidência desta capacidade social
capacidade de aprender ações motoras por meio avançada na maioria das espécies.
da observação e ser a base da teoria da mente.
Neurônios-espelho ainda não foram desco- APRENDER E ENSINAR
bertos em cães, no entanto, há mais de uma dé- Entre seus muitos benefícios, a inteligência
cada, a psicóloga Alexandra Horowitz, da Barnard social confere a capacidade de se comunicar.
College, investigou dados comportamentais que Os cientistas observaram que animais de re-
apontam para um tipo de teoria da mente nesses banho podem dar sinais de alerta quando um
animais. Ao longo de 21 meses a pesquisadora predador se aproxima. Um cariacu acena com
registrou imagens aleatórias de cães durante um o rabo, apontando-o para cima em situações
jogo em um parque de San Diego. Ao analisar as de perigo, por exemplo. Nos últimos anos, pes-
gravações, ela notou alguns comportamentos quisadores têm observado que alguns animais
interessantes que sugerem capacidade de com- que vivem em grupos podem ensinar a seus
preender a perspectiva de outro bicho de sua companheiros regras de engajamento social
espécie. Os cães sinalizavam como gostariam de ou como criar uma ferramenta.
jogar de acordo com a posição dos companheiros Peixes-zebra, por exemplo, parecem transmi-
caninos. Se um parceiro em potencial estava a tir sinais sociais com sutileza. Essas pequenas
sua frente, o cão dava um sinal visual – abrindo criaturas podem se tornar uma fácil refeição de
amplamente a boca ou curvando-se. Mas se o peixes maiores, portanto, tendem a ser cautelo-
outro animal estivesse afastado, poderia rece- sos diante de novos objetos. Quando criados em
ber uma pequena mordida de seu amigo. “Eles cativeiro, no entanto, mostram pouca preocupa-
parecem perceber quando um cão quer brincar ção quando próximos a algo em movimento e
e está pronto para receber um sinal no jogo; e nadam sem medo.
57
Uma equipe de pesquisadores liderada pela comum. Em um artigo publicado em 2008, os
bióloga Sarah Zala, do Instituto de Etologia Kon- pesquisadores argumentaram que mães desse
rad Lorenz, em Viena, estudou o comportamento grupo específico eram capazes de ensinar esse
desses animais para descobrir se agiriam de comportamento complexo aos seus filhos.
forma diferente quando rodeados por outros. Os Mães chimpanzés também usam o apren-
pesquisadores misturaram alguns peixes-zebra tí- dizado social para transmitir conhecimento aos
midos e selvagens com outros domesticados. Os descendentes. Jovens fêmeas chimpanzés do Par-
primeiros aprenderam com seus companheiros que Nacional Gombe, na Tanzânia, por exemplo,
a ser mais ousados quando um objeto em movi- são muito mais habilidosas do que machos na
mento era posicionado próximo ao tanque. Em fabricação de ferramentas para capturar cupins.
vez de nadar para longe, juntaram-se aos novos e Elas usam galhos ou caules longos para pescar
destemidos amigos e se aventuraram em direção o inseto, enquanto machos são mais propensos
ao desconhecido. E, mesmo depois de separados a participar de disputas para conseguir uma
dos colegas corajosos, os animais selvagens refeição. Em um estudo publicado em 2004, a
continuaram a nadar próximos a objetos grandes. pesquisadora Elizabeth Lonsdorf, então diretora
Os resultados indicam que esses peixes não se- do Lincoln Park Zoo em Chicago, e seus colegas
guiram cegamente os companheiros, mas foram descobriram que fêmeas mais jovens passavam
capazes de aprender um novo comportamento. mais tempo com a mãe para aprender a técnica
Golfinhos podem ensinar comportamentos do que machos, que geralmente se concentravam
mais complicados para os outros. Um grupo de em treinar e aperfeiçoar habilidades para batalhas
cetáceos na Austrália usa uma técnica chamada posteriores no intuito de dominar companheiros
“esponja” para encontrar comida. A bióloga e conseguir alimento.
Janet Mann e seus colegas da Universidade
de Georgetown observaram fêmeas usar uma CAPAZES DE PLANEJAR
esponja-do-mar no focinho, uma técnica que A aprendizagem social pode ser uma grande
parece permitir a esses mamíferos nadar até o vantagem para um grupo ou uma espécie, per-
fundo do oceano para procurar peixes e outros mitindo a transmissão de estratégias importantes
MACACAS ESPERTAS: alimentos sem se ferir. Os cientistas retiraram para favorecer a sobrevivência. Alguns animais,
jovens fêmeas do Parque amostra de DNA desses animais e o compa- no entanto, usam a consciência social para obter
Nacional Gombe, na raram com o de golfinhos de outra região, que ganhos pessoais e podem esconder informações
Tanzânia, transmitem
regras de convívio social não usavam a tática. Eles descobriram que os de concorrentes potenciais. Um grupo liderado
aos filhotes “golfinhos-esponja” tinham uma linha materna pela psicóloga Federica Amici, da Universidade
John Moores de Liverpool, na Inglaterra, treinou
macacos-prego, macacos de cauda longa e
macacos-aranha para abrir caixas e ganhar um
alimento como recompensa. Quando sozinhos,
os bichos abriam o recipiente para saciar a fome.
Mas, na presença de um macaco dominante,
os animais experientes – principalmente os da
espécie de cauda longa – renunciavam ao deleite
escondido, ignorando a caixa para não revelar o
alimento ao adversário.
Outras espécies podem enganar os compa-
nheiros, o que reforça o argumento de que esses
animais têm um tipo de teoria da mente. Seja
michel gunther/biosphoto/afp
transfere ou apenas finge mover de lugar um um grupo de chimpanzés que viviam próximos ao
verme recém-capturado se achar que outro safári Blair Drummond e Adventure Park. O vídeo
pássaro percebeu onde o alimento foi enterrado. mostrava a reação de uma fêmea adulta, Rosie,
O comportamento sugere alguma consciência e de seus companheiros à morte da mãe idosa.
do conhecimento alheio e sobre como proteger Rosie comia pouco, não dormia profundamente
seus próprios interesses. “É surpreendente que nem mostrava muita energia como de costume
espécies não primatas, de alguma maneira, sejam durante algumas semanas depois da morte da
capazes de pensar dessa forma”, diz a psicóloga mãe, sugerindo que passava por um período de
Laurie Santos, da Universidade Yale. luto. Outros primatas, como gorilas do Virunga
Pelo menos um dos cooperativos elefantes National Park da República Democrática do Con-
asiáticos do experimento feito por Plotnik tam- go, exibiram padrões similares depois da morte
bém aprendeu como jogar no sistema social. A do pai ou do parceiro.
fêmea, chamada Neua Un, descobriu que, em Sofrimento não é a única emoção complexa
vez de puxar seu lado da corda, poderia simples- observada em animais. O psicólogo Frans B. M.
mente permanecer em cima dela para que não de Waal e seus colegas da Universidade Emory
deslizasse, deixando o outro elefante com todo mostraram que chimpanzés preferem ações que
o trabalho pesado. De vez em quando, ela movi- também favorecem seus companheiros àquelas PARA SABER MAIS
mentava a tromba para convencer seu parceiro que trazem apenas benefícios próprios, o que Theory of mind in dogs?
de que estava se esforçando. indica altruísmo – uma qualidade social que se Examining method and con-
cept. Alexandra Horowitz
Obviamente, inteligência social envolve mais acreditava exclusiva de seres humanos. em Learning and Behavior,
do que saber como chamar a atenção de outro A inteligência social, distinta e intrincada vol. 39, no 4, págs. 314-317,
dezembro de 2011.
indivíduo ou ensinar habilidades e transmitir como é, não pode ser facilmente separada de
Monkeys represent others’
informações aos mais novos. Trata-se de algo outras formas de inteligência, como a capa- knowledge but not their
mais profundo, que permite sentir empatia e tris- cidade de resolver problemas ou de conhecer beliefs. Drew C. W. Martico-
rena e outros em Develop-
teza – sem dúvida, é esta fibra quase indescritível o mundo. Por exemplo, a espécie de pássaro mental Science, vol. 14, no 6,
que nos entrelaça. Ela está ligada ao bem-estar Aphelocoma californica, conhecida por transferir págs. 1406-1416, novembro
emocional e, como mostram novos estudos seu estoque de alimentos de lugar, pratica atos de 2011.
Elephants know when they
sobre longevidade, essas ricas conexões sociais sociais e antissociais. “Além disso, a ave utiliza need a helping trunk in a
também são importantes para a saúde física. mecanismos sofisticados da memória para cooperative task. Joshua M.
Apesar de não ser possível perguntar diretamente calcular a necessidade de alimentos no futu- Plotnik e outros em Procee-
dings of the National Academy
aos animais o que pensam e como se sentem em ro”, observa Lefebvre. Embora seja necessário of Sciences USA, vol. 108,
relação aos outros, podemos compreendê-los considerar diversos aspectos em relação à inte- no12, págs. 5116-5121, 22 de
março de 2011.
melhor por meio de “pistas”. ligência coletiva, as habilidades sociais – muitas Pan thanatology. James R.
Em um artigo publicado em 2010, o psicólogo vezes desvalorizadas – fazem toda a diferença. Anderson, Alasdair Gillies e
James Anderson e seus colegas da Universidade De fato, quanto mais conhecemos os animais, Louise C. Lock em Current
Biology, vol. 20, no 8, págs.
de Stirling, na Escócia, descreveram imagens de mais próximos deles parecemos. e
m c R349R351, 27 de abril de 2010.
59
Objetos de afeto
a relação subjetiva entre homens e bichos se
transformou: diferentemente de seus ancestrais,
o animal contemporâneo não é uma simples
companhia ou protetor, mas um membro da
família humana
A
nimais de estimação – sejam eles cães, gatos,
iguanas, aves, roedores, peixes, serpentes – têm
ocupado espaços cada vez mais privilegiados
como integrantes das famílias contemporâneas.
Muitas pessoas se desvelam por seus mascotes com muito
mais empenho que por qualquer membro da própria espécie.
Segundo etólogos, os bichos reconhecem esse empenho – e
assumem seu lugar como parte do grupo. Mas o que faz com
que alguém opte por trazer um animal para conviver sob o
OS AUTORES mesmo teto, prover seu sustento, manter sua saúde, retirar
FERNANDO APARECIDO DELARISSA é psicólogo, mestre em psicologia fezes espalhadas pelo quintal ou pela casa e, ainda, ter os
pela Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista móveis e cantos marcados por urina, unhas ou dentinhos
Júlio de Mesquita Filho (Unesp) de Assis. OLGA CECILIATO MATTIOLI
é psicóloga, doutora em educação e professora de pós-graduação em
afiados do novo morador? Certamente há compensações
psicologia da mesma universidade. emocionais e psíquicas para esses contratempos.
60 l mentecérebro l Animais
terrie l. zeller/shutterstock
PAPEL DO ANIMAL O self do homem contemporâneo, bem que fazem referência direta aos sons feitos por
mudou no decorrer da distinto do de caçadores-coletores remanes- eles: “au-au”, “miau”, “pocotó”.
evolução; hoje, o homem
reclama parcerias mais
centes – como os aborígenes australianos e
interativas alguns índios da Amazônia –, estruturou-se RAZÕES HISTÓRICAS
pela interação com o meio. A existência dos Herdamos de nossos antepassados a proximi-
objetos reais do mundo é percebida por nós dade afetiva com os bichos. Hoje, entretanto,
de maneira única, variando conforme o estágio lançamos sobre os animais novas solicitações,
da nossa subjetivação. Em relação aos animais reclamando uma coadjuvação mais complexa,
não poderia ser diferente. É comum que prin- atribuindo sentidos aos seus comportamen-
cipalmente gatos e cães vivam próximo das tos, tal qual a mãe faz com o bebê – não raro,
pessoas, muitas vezes dentro de casa. Crian- o dono “conhece” os diferentes latidos de seu
ças os encontram disponíveis e fazem “uso cão ou a expressão corporal de seu gato. Sem
psíquico” deles, conferindo-lhes uma função perceber, as pessoas optam por estabelecer
muito próxima daquela ocupada pelo objeto relações estreitas com seres tão diversos como
transicional – um aliado que as ajuda a superar maneira de aliviar angústias. Por conseguinte,
a ansiedade provocada pela ideia de separação surge o animal contemporâneo, tão diferente
da mãe (ver quadro na pág. 64). Sua presença de seus ancestrais: mais que como companhia
está tão incorporada à herança cultural humana eles funcionam como provedores de afeto,
que entre as primeiras palavras pronunciadas ajudando a resgatar ou estimular aspectos
pelo bebê estão os vocábulos onomatopaicos lúdicos e cognitivos.
62 l mentecérebro l Animais
da esquerda para direita: inna astakhova/shutterstock; anna karwowska/shutterstock; blend images/shutterstock
O fenômeno contemporâneo da proximi- viviam cercados por pequenos animais,
dade entre homens e animais está vinculado especialmente para entretenimento. Para ex-
a uma sequência de significações que vem se planar parcialmente o mistério dessa relação,
configurando ao longo da evolução humana. recorremos à etologia. Os autores P. Bernard
Afinal, objetos reais componentes de nosso e A. Demaret fazem referências às motivações
mundo têm sentidos alterados sempre que individuais, bem como a razões próprias da
há transformações e conquistas psíquicas. espécie humana, comuns a todos, para que
Também ocorre esse processo na relação se mantenha um animal de estimação junto
entre pessoas e animais. O lugar ocupado por de si. Uma das motivações comuns dos seres
eles no universo subjetivo, os papéis e os sig- humanos, transmitida pelo processo filoge-
nificados atribuídos a eles se transformaram nético (referente à evolução da espécie), está
em decorrência das mudanças do processo vinculada ao nosso passado tribal: o compor-
de subjetivação – as formas como vemos e tamento do homem contemporâneo guarda
sentimos o mundo, o que pensamos e dese- traços herdados dos caçadores-coletores.
jamos com base no que vivemos e como nos É possível destacar, por exemplo, a inclina-
apropriamos dessas experiências. ção humana para alimentar o outro, a dispo-
Por meio da observação de povos con- sição para compartilhar e buscar companhia
temporâneos que se dedicam às atividades – traços presentes em crianças pequenas das
de caça e coleta, podemos aferir que seres mais diversas culturas. Outra característica
humanos, antes do advento da agricultura, é a necessidade de contato físico direto. Os
63
Mais que um ursinho
Para falar das relações objetais – a diferenciação entre o muitas vezes inconsciente. O “relacionamento” entre a
eu e o outro, o mundo interno e o externo –, Winnicott criança e o objeto transicional tem características peculia-
se refere à gênese dos espaços potenciais, conceito bá- res: o pequeno proprietário assume seus direitos sobre o
sico de sua teoria. O autor introduz a ideia de fenômeno objeto, e este, por sua vez, deve sobreviver ao amor e ao
transicional que pode ser ocupado por gestos – como ódio infantil (em diversas ocasiões, o eleito é acariciado
sugar os punhos e dedos ou a ponta do cobertor – e pela e, em outras, mutilado); é importante que tenha textura e
escolha de objetos, denominados na obra winnicottiana temperatura agradáveis ao bebê. Muitas crianças fazem
objetos transicionais – como bichinhos de pelúcia, bone- questão de mantê-lo junto de si – principalmente nos mo-
cas, cobertores ou até os próprios dedos. O investimen- mentos de tristeza ou insegurança – e recorrem a ele na
to afetivo no objeto permite a passagem psíquica entre hora de dormir, incluindo-o num ritual para aplacar a an-
o mundo imaginário e a realidade. O fenômeno transi- siedade de enfrentar a experiência solitária de adormecer.
cional representa um modelo evolutivo estruturante, que Durante o sono, quando há suspensão da consciência e os
propicia a vivência da primeira relação simbólica: a crian- sentidos estão como que desativados, a criança não tem a
ça, que experimentava nos primeiros meses um estado certeza de que a mãe continuará próxima quando fechar os
de fusão com a mãe, vive com o objeto transicional “a olhos – ou que a reencontrará no dia seguinte. O brinque-
primeira posse não-eu”. do macio, entretanto, está ao alcance das mãos: pode ser
Ao falar de “eu” e “não-eu” o psicanalista inglês se abraçado e acariciado.
refere à área intermediária entre a subjetividade e a per- Winnicott lembra que, mesmo passados os pri-
cepção objetiva. Para ele, o objeto transicional se configu- meiros anos, meninos e meninas podem voltar a ter a
ra como um símbolo da união do bebê e da mãe (vista de necessidade de buscar objetos transicionais em situ-
forma total ou parcial) e, na mente da criança, se localiza ações nas quais se sentirem ameaçados. O esperado,
no espaço e no tempo – na fase em que, na ilusão infan- porém, é que o objeto transicional seja gradualmente
til, os dois estavam fundidos numa relação simbiótica. descatexizado, isto é, deixe de receber o investimento
Nos casos em que parece impossível separar-se do emocional que a criança lhe destina. Como o espaço
ursinho querido – ou do paninho de dormir – subjaz o transicional se amplia à medida que a criança cresce, a
temor muito intenso da separação da figura materna. O tendência é que se desenvolva em relação a outros rela-
apego ao objeto pode revelar a negação dessa ameaça, cionamentos, à arte e às experiências culturais.
vasaleks/shutterstock
CÃES PARTICIPAM
CRIATIVAMENTE dos jogos
lúdicos com seu dono
eldad carin/shutterstock
primatas nos legaram a tendência de cuidar da cuidar dos pequenos. Nos dias atuais, em
aparência e de acariciar os membros do gru- que o número de filhos tem diminuído con-
po – evidente no comportamento de limpar- sideravelmente e tantas pessoas vivem sós,
-se mutuamente e retirar piolhos. Embora o sobretudo nos grandes centros, animais de
contato físico entre pessoas nem sempre seja estimação, em particular os cachorros, po-
bem-aceito socialmente e muitas vezes amar- dem servir como substitutos das crianças. Já
ras psíquicas tornem difícil buscá-lo, o animal os gatos são considerados substitutos para
doméstico costuma oferecer-se ao afago. uma companhia tribal no “acampamento”:
Para o cachorro, o grupo humano ao qual são autônomos, asseados, e em geral não
pertence se torna sua matilha, e nela ele iden- exigem muita atenção.
tifica um líder. A parceria formada desde mui- O objeto
to cedo entre cães e humanos provavelmente INVEJA E IDENTIDADE transicional
tem sido favorecida por essa predisposição Para o sociólogo polonês Zygmunt Bauman,
comum para viver num “ambiente tribal”. a sociedade privilegia valores como beleza, propicia a
Por meio da observação de outras socie- higiene e organização. Apesar de considerada vivência da
dades de caçadores-coletores e reconstitui- fundamental para a civilização pela óptica do primeira
ções sugeridas por antropólogos, é possível positivismo, a ordem em excesso contribui
estudar dois aspectos da vida tribal relevantes para o mal-estar, implica a falta de liberdade,
relação
para compreender as relações entre homens especialmente no que diz respeito à busca simbólica:
e animais: a importância dada às crianças do prazer. Para o autor, a autonomia con- o estado de
e os traços específicos da psicologia tribal. quistada não fez com que a espécie humana
Quanto ao primeiro fator, inúmeros abandonasse os ideais valorizados pela mo-
fusão com
autores consideram que a seleção natural dernidade. Segundo ele, em nossos tempos, a mãe – a
provavelmente privilegiou nas mulheres as- mais que nunca, o ser humano os persegue. criança vive
pectos psicofisiológicos que as motivassem Comparando a modernidade – época em
com o objeto a
a alimentar cada filho durante seus primeiros que a atitude de busca do prazer era consi-
três ou quatro anos. Isso nos faz compre- derada como autodestrutiva – com o período primeira posse
ender de onde vem nossa atual tendência a contemporâneo, denominado por Bauman do não-eu
65
Enquanto pós-modernidade, o sociólogo sublinha que incerteza, instabilidade e insegurança. Os
o contato o mal-estar do homem moderno derivava do bens são descartáveis e é propagada a ideia
sacrifício de sua liberdade, situação tolerada de que tudo pode ser substituído. Imaginemos
físico entre uma vez que era a maneira de sentir-se de que esse homem se defronte com um cão que
humanos certa forma seguro. Já para o homem pós- dorme tranquilamente, para quem não existem
nem sempre moderno o desconforto psíquico decorre de preocupações de sobrevivência, realização de
é bem-aceito sua tênue segurança, tolerada graças à liber- sonhos e manutenção de um papel na socie-
dade de procura de prazer. dade; ou com um gato, para quem o alimento
socialmente Pensemos então no homem contempo- “cai do céu” – basta espreitar um passarinho
e muitas râneo, que sobrevive em sociedades em que incauto e sua refeição está garantida. E, ainda
vezes amarras as relações são marcadas por efemeridade, que por alguns segundos, é muito provável
psíquicas
tornam difícil
buscá-lo, Para afastar a ansiedade
o animal Segundo Freud, durante o brincar a criança Pode também projetar neles sentimentos
doméstico cria um mundo próprio, reajusta elementos por pessoas próximas – como Freud relata
se oferece ao e considera essa a sua realidade – a brin- no caso do pequeno Hans, no texto Análise
cadeira, portanto, é levada a sério. Para o de uma fobia em um menino de 5 anos, de
afago autor, brincar pode também ser um meio de 1909. Para o garoto era mais aceitável odiar
desenvolver o psiquismo e aliviar a ansie- e temer cavalos que lidar com as emoções
dade da separação da mãe, como salienta direcionadas a seu pai.
em Além do princípio do prazer, de 1920, Alguns autores acreditam que a razão
após observar o neto brincar com o carretel pela qual a maioria das crianças tão pron-
amarrado a uma linha, fazendo-o “sumir” e tamente aceita um animal como uma com-
“reaparecer” conforme sua vontade. panhia origina-se da necessidade infantil
O psicólogo Donald Winnicott afirma de estar perto de um substituto das figuras
que as crianças brincam para controlar a parentais, a quem possa controlar e dar
ansiedade, organizar ideias e impulsos. ordens segundo sua vontade.
Os pequenos também brincam para ob-
ter prazer, liberar a agressividade,
adquirir experiência, estabelecer
contatos sociais, promover a
integração da própria perso-
nalidade e comunicar-se –
já que alguns conteúdos
inconscientes podem
ser revelados pela ativi-
dade lúdica.
Um fato curioso
apontado por Freud
é que a criança não
encontra diferença
entre a sua própria
natureza e a dos
animais. Considera
tompet /shutterstock
66 l mentecérebro l Animais
que a pessoa, tomada pelas demandas inter-
nas e externas, considere quão tranquila deve
ser a vida do bicho – com uma pontinha de
inveja da aparente segurança e da liberdade
com que o animal vive seus instintos sexuais.
De fato, bichos parecem seguros quanto
à própria “identidade” e não se preocupam
com o julgamento de seus pares. Já o homem
preocupa-se com seu lugar na sociedade,
atravessado por desejos que nem sempre
compreende, e precisa “agregar valores” a si
mesmo e a quem representa ou acredita ser.
Conforme salienta o psicólogo Erich Fromm,
na sociedade contemporânea é dado enorme
valor ao verbo ter: status, bens, qualificações,
competências, opiniões etc. Com o advento
da tecnologia, a cultura é invadida e revestida
pela ideia de obsoleto, mesmo em relação a
julia smith/stone/getty images
67
A ética
por Marc Bekoff e Jessica Pierce
T
odos que convivem com cães sabem: eles
aprendem as regras da casa que os acolhe e
quando quebram alguma norma expressam
fisicamente o arrependimento – alguns se
escondem e cobrem os olhos, outros se abaixam ou
arrastam-se pelo chão, num gesto geralmente gracioso o
bastante para garantir o rápido perdão dos donos. Porém,
poucas pessoas param para se perguntar por que esses
OS AUTORES animais têm um senso tão aguçado de certo e errado.
javier brosch/shutterstock
MARC BEKOFF é professor emérito de ecologia e biologia Estudos recentes mostram que canídeos (animais da
evolutiva da Universidade do Colorado em Boulder e
acadêmico residente no Instituto de Conexão Humano- família dos cachorros, como raposas e lobos) seguem
Animal da Universidade de Denver. JESSICA PIERCE é um código estrito de conduta ao brincar, ensinando aos
especialista em estudos sobre ética, professora-associada
do Centro de Ciências da Saúde do Centro de Bioética e
filhotes as regras de engajamento social que permitem a
Humanidades da Universidade do Colorado. manutenção de sociedades bem-sucedidas.
68 l mentecérebro l Animais
do cachorro
quando eles se comportam mal ou acidentalmente machucam
um companheiro de brincadeiras, logo procuram se desculpar,
exatamente como faria um ser humano bem-educado
Os chimpanzés e os outros primatas que não o ser tolerância, disponibilidade para o perdão e a empatia,
humano são notícia nos jornais quando os pesquisado- bem como a noção de justiça, ficam evidenciadas ra-
res, usando a lógica, procuram nesses parentes mais pidamente na forma igualitária com que os animais da
próximos do homem traços semelhantes aos nossos – e família dos cachorros brincam entre si. Nessas situações,
descobrem evidências de seu senso de justiça. Nosso os lobos e os coiotes adultos, por exemplo, seguem um
trabalho, entretanto, sugere que as sociedades canídeas código estrito de conduta. A brincadeira também tem a
selvagens podem ser as melhores análogas aos grupos de função de ajudar a construir a relação de confiança entre
hominídeos primitivos: ao estudarmos cachorros, lobos e os membros da matilha, permitindo divisões de trabalho,
coiotes descobrimos comportamentos que nos remetem hierarquias de domínio e cooperação na caça, na criação
às raízes dos valores éticos humanos. dos mais novos e na defesa de comida e de território.
Podemos definir a moralidade como um conjunto de Essa estrutura lembra muito a dos homens primitivos, e
comportamentos inter-relacionados em deferência aos a observação de suas brincadeiras pode oferecer um vis-
outros que tem por finalidade desenvolver e regular as lumbre do código moral que permitiu o desenvolvimento
interações entre os indivíduos. Atitudes como altruísmo, das sociedades ancestrais.
69
Quando os canídeos e os outros animais 15% dos casos, sugerindo que eles confiam
se divertem juntos adotam comportamentos no recado de que qualquer coisa que se siga
como morder com força, montar em cima não será arriscada. A confiança na comunica-
do outro, chocar os corpos – ações que po- ção honesta do outro é essencial para o bom
dem ser facilmente interpretadas de forma funcionamento do grupo.
equivocada pelos participantes. Porém, anos
de análises feitas por um de nós (Bekoff ) 2. Cuidado com os modos.
mostraram que esses indivíduos negociam Os animais tendem a considerar as ap-
cuidadosamente a brincadeira, seguindo qua- tidões lúdicas de seus companheiros e se
tro regras gerais para impedir que a atividade engajam na tarefa de dar vantagens ao mais
lúdica se transforme em briga. fraco e na troca de papéis para criar e manter
igualdade de condições durante a interação.
1. A comunicação deve ser clara. Por exemplo, um coiote talvez não morda seu
Os animais anunciam que querem brin- companheiro de brincadeira tão forte quanto
car – e não lutar ou acasalar. Os canídeos seria capaz, na tentativa de equilibrar a situ-
abaixam a cabeça para indicar essa inten- ação para manter o jogo justo. Um membro
ção, engatinham sobre as patas dianteiras, dominante da matilha pode desempenhar
apoiando-se nelas, enquanto as pernas uma troca de lugar, deitando-se de costas
traseiras continuam eretas. Os acenos são (sinal de submissão que nunca seria ofereci-
usados quase que exclusivamente durante a da durante uma agressão efetiva) para deixar
brincadeira e são altamente estereotipados, seu companheiro de status inferior ter a sua
ou seja, sempre parecem os mesmos (para vez de “vencer”. As crianças também se com-
que o recado “Venha brincar comigo” ou portam dessa forma ao brincar, por exemplo,
“Ainda quero brincar” fiquem bem claros). intercalando os papéis de vencedores numa
Mesmo quando um animal sinaliza a pre- simulação de luta. Ao manterem as coisas
disposição para brincar com uma inclinação justas dessa forma, todos os membros do
da cabeça e prossegue com ações aparen- grupo se aproximam uns dos outros, par-
temente agressivas, como mostrar os den- ticipam de atividades descontraídas e, ao
tes, rosnar ou morder, seus companheiros mesmo tempo, constroem laços – o que faz
demonstram submissão ou fuga apenas em com que o grupo permaneça coeso e forte.
LOBOS ADULTOS
REFREIAM A FORÇA ao
brincar com os filhotes,
mantendo o jogo divertido
e equilibrado para todos
70 l mentecérebro l Animais
martin valigursky/shutterstock
COMUNICAÇÃO DIRETA E SEM SUBTERFÚGIOS: princípio central da sociedade canídea
3. Admita quando estiver errado. jovens que não brincam de forma adequada
Mesmo quando todos querem manter as com frequência acabam deixando sua matilha
coisas certas, a brincadeira às vezes desanda. e têm probabilidade quatro vezes maior de
Quando um animal se comporta mal, exagera morrer que os indivíduos que permanecem
na animação e acidentalmente machuca seu com os outros.
companheiro, ele se desculpa, exatamente Do ponto de vista evolutivo, a violação de
da mesma forma como a maioria dos seres regras sociais estabelecidas durante as brin-
humanos faria em situação similar. Após uma cadeiras não faz bem para a perpetuação dos
mordida mais forte, um aceno de cabeça envia genes. O jogo honesto e divertido para todos
o “recado”, como se afirmasse: “Desculpe pela pode ser entendido como uma adaptação
minha atitude, mas ainda é uma brincadeira, evoluída que permite aos indivíduos formar
apesar do que fiz. Não vá embora; vou brincar e manter os vínculos sociais. Assim como
de forma mais respeitosa”. Para a brincadeira acontece com os humanos, os canídeos for-
continuar o indivíduo que sofre a ofensa deve mam intrincadas redes de relacionamentos,
aceitar as desculpas – e isso de fato ocorre na desenvolvem normas básicas da justiça que
maioria das vezes. A compreensão e a tolerância guiam o jogo social entre semelhantes e se
surgem durante o “jogo”, assim como em outras apoiam em regras de conduta capazes de
situações da vida rotineira da matilha, como no manter a sociedade estável. Em última ins-
momento da caça ou da divisão de alimentos. tância, o objetivo é garantir a sobrevivência
de cada indivíduo. Essa inteligência moral é
4. Seja honesto. evidente tanto em animais selvagens quanto
Tanto um pedido de desculpa como um em cães domesticados. É bem possível que
convite para brincar devem ser sinceros; os tal noção de certo e errado tenha permitido às
indivíduos que continuam a brincar de forma sociedades humanas florescer e se espalhar
desleal ou a enviar sinais desonestos rapi- pelo mundo. Pena que o homem moderno às
damente serão excluídos pelo grupo. E isso vezes se esqueça de procedimentos simples e PARA SABER MAIS
O animal em casa – Um
traz consequências bem mais graves que a eficazes, como ser claro, cuidadoso, humilde estudo no sentido de desve-
simples redução do tempo de diversão. A ex- e sincero. Talvez seja hora de voltarmos a lar o significado psicológico
tensa pesquisa de campo de um dos autores aprender algumas lições com nossos amigos do animal de estimação. H.
Fuchs. Tese (doutorado). Uni-
(Bekoff) mostra, por exemplo, que os coiotes de estimação. e
m c versidade de São Paulo, 1988.
71
A cara do dono
por Ana Marcondes
O
não é por acaso que s opostos se atraem, diz o senso comum.
Quando se trata de escolher a raça do animal
tantas pessoas que de estimação, porém, parece que a “sabedoria”
têm animais partilham popular se engana. Um estudo desenvolvido
traços físicos – e, pelos psicólogos americanos Michael M. Roy e Nicholas J.
S. Christenfeld, da Universidade da Califórnia em San Diego,
em muitos casos, até mostrou que, muitas vezes, o que conta mesmo é a seme-
psicológicos – com seus lhança – e não a diferença. Os pesquisadores analisaram
vários pares cão-dono. Interessados em saber se realmente
bichos de estimação; as pessoas partilham traços físicos ou psicológicos com seus
de fato, na hora de bichos, eles fotografaram, em um parque público, 45 donos
escolhermos uma raça e seus respectivos cães – 25 de raça e 20 vira-latas. Depois,
mostraram a voluntários que não tinham acompanhado a
tendemos a buscar pesquisa as fotos dos proprietários, de seu animal e a de
companheiros com os outro cão. Em 16 dos 25 casos apresentados os observadores
escolheram o par correto. Isso, porém, só ocorreu quando os
quais nos identificamos cães eram de raça.
Roy e Christenfeld constataram que, de forma mais ou
menos consciente, as pessoas tendem a preferir um cachorro
que se assemelha a elas, ao menos quando se trata de animais
com características bem definidas e previsíveis. As possibili-
dades de semelhança com o vira-lata são mais imprecisas
vedros & associates/iconica/getty images
animais de estimação remontam à linha evolutiva “A proximidade afetiva com bichos é uma
da espécie. Há 10 mil anos, nossos ancestrais, necessidade profunda e autêntica dos seres
caçadores e coletores, já conviviam com bichos humanos; sem exagero, poderíamos até falar
e, não por acaso, a domesticação foi um dos de ‘pulsão zoófila’, uma antiga inclinação para
eventos mais significativos da história humana, estabelecer relações com outras espécies”, afirma
a ponto de hoje, para muita gente, ser quase a psicóloga e psicanalista Barbara Alessio. “Pode
impensável passar sem a companhia dos pets. ocorrer, é claro, que o vínculo com um animal
Um aspecto a ser considerado quando se esteja suprindo outras carências, mas trata-se
pensa no aumento de pessoas interessadas de uma distorção que pode ocorrer em outras
em levar um bichinho para casa é a vida muitas áreas e atividades.”
vezes solitária nas grandes cidades, que impele A relação entre espécies, no entanto, muitas
as pessoas a buscar objetos de afeto que não vezes é ambígua, já que mescla dominação
demandem grandes investimentos – que seriam e afeto. E a proximidade com o homem nem
necessários na relação com outro ser humano, sempre é benéfica para os bichos, que terminam
por exemplo. Afinal, embora exija cuidados como se tornando vítimas. Todos os anos, milhares de
alimentação, companhia e um pouco de carinho, animais são abandonados ou até mortos porque
o bicho não fala nem faz cobranças. Outro fator apresentam transtornos de comportamento que,
contemporâneo que parece explicar a presença na realidade, são ocasionados pelas atitudes e
crescente de animais em nossa vida é a mudança condutas equivocadas dos donos.
na estrutura familiar. Os grupos amplos, com Pesquisas indicam que a crueldade contra
vários filhos, avós, parentes agregados e em- os animais está, frequentemente, associada a
pregados, deram lugar ao núcleo restrito, com o transtornos psicológicos e a comportamentos PARA SABER MAIS
Terapia assistida por animais:
casal (ou apenas uma das figuras parentais) e um agressivos também em relação a pessoas. A vio- aplicação no desenvolvimen-
ou dois filhos. E há ainda um grande número de lência pode ser indicador de situações familiares to psicomotor da criança com
deficiência intelectual. Patrícia
pessoas que vivem sozinhas nos grandes centros e ambientais problemáticas, caracterizadas por Sidorenko de Oliveira Capote
urbanos. Porém, a ideia simplista de que o víncu- violência física, psicológica ou abuso sexual. e Maria da Piedade Resende
lo com animais substitui outras relações, muitas Compreender o porquê dessa deterioração pode da Costa. EdUFSCar, 2011.
Animais terapeutas. Mente
vezes disseminada pelos meios de comunicação, ajudar os envolvidos, sobretudo os animais – que, e Cérebro no 169. Fevereiro
pode ser contestada. por si sós, não conseguem se defender. e
m c de 2007.
75
entrevista – Alexandre Rossi
Para entender
seu melhor amigo
gostamos de dizer que nosso cachorro é inteligente e
“entende tudo”, mas pesquisas mostram que não é bem assim.
sem perceber, atribuímos aos bichos com os quais convivemos
ações, intenções, compreensões – e nos esquecemos de
recompensar os bons comportamentos
Q
uem observa de longe a interação entre o espe-
cialista em comportamento animal Alexandre
Rossi e sua simpática cadela Estopinha, sem
raça definida, pode imaginar que ela tenha
inteligência especialmente privilegiada. Afinal, ela responde
prontamente a dezenas de comandos, escolhe os brinquedos
pelo nome de cada um, “pede” o que quer e oferece “beijos”
lambidos à pessoa apresentada por seu dono. Aprendeu até
mesmo a apertar as teclas de um computador, por meio do
qual Rossi se comunica com ela quando está fora de casa e
envia comandos. Um dispositivo acionado por ele a distân-
cia permite que a cadelinha ganhe petiscos (que caem num
recipiente e são rapidamente devorados por ela). Quando
Rossi adotou Estopinha ela tinha menos de 1 ano, vivia em
um abrigo para animais e já havia sido devolvida duas vezes
por “mau comportamento”. Difícil de acreditar para quem
a viu brincando, alegre e entretida, na sala de casa por mais
de uma hora com seus brinquedos, enquanto seu dono
concedia esta entrevista ou mesmo para quem assiste a
A AUTORA suas participações em programas de televisão no SBT, aos
GLÁUCIA LEAL é jornalista, psicóloga, domingos, e no canal fechado National Geographic, onde
psicanalista, editora de Mente e Cérebro Rossi é protagonista de Missão pet, uma série na qual ensina
76 l mentecérebro l Animais
donos em apuros a lidar com seus bichos. Fiel companheira, primeira vez, algumas competências do cão. Uma delas é a
muitas vezes Estopinha ajuda na socialização de seus colegas capacidade de entender frases com dois componentes. Por
de quatro patas. exemplo: “Busque o palito” tem indicação de uma ação e a
Formado em zootecnia, com especialização em com- designação de um objeto, o que permite várias combinações.
portamento animal na Universidade de Queensland, na “Recorremos a frases inéditas e improvisações para mostrar
Austrália, Rossi estuda, agora, medicina veterinária. “Adoro que o animal extrai as duas mensagens com o objetivo de
tentar entender como os animais pensam, entender como ganhar recompensas”, explica Rossi. E, curiosamente, a
veem o mundo”, diz. Durante seu mestrado no Instituto de comunicação também partia de Sofia, que foi treinada para
Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) teve a ajuda apertar com o focinho ou uma das patas um painel com
de outra vira-lata, Sofia, encontrada na rua. “Não queríamos símbolos que correspondiam a conceitos como “brincar”,
um animal especialmente inteligente, a proposta era justa- “carinho”, “comida”, “cama” etc. Ela aprendeu, por exemplo,
mente não selecionar raça”, conta. As pesquisas desenvol- a pedir ao mesmo tempo comida e para ir dormir. Ou seja:
vidas em conjunto com a doutora em veterinária Daniela queria que o alimento fosse colocado em sua cama. Algu-
Ramos, sob a orientação do professor César Ades, doutor mas sutilezas eram surpreendentes. “Osso de couro novo
em psicologia experimental, falecido em março de 2012, o ela pedia como brinquedo, mas se já estivesse mastigado e
ajudaram a entender melhor a relação entre o cão e o dono. mole, era solicitado como alimento”, lembra Rossi. No caso
“Como as pessoas tendem a ficar meio bobas com o “filho”, de Estopinha, o pesquisador preferiu usar, em vez do painel
regina motta/divulgação
querem a todo custo provar o quanto seu animal é inteli- que acendia ao toque do símbolo escolhido, o próprio corpo.
gente, o estudo foi filmado e documentado para que outros Esses experimentos seriam usados no doutorado, mas com
especialistas, isentos, pudessem avaliar o desempenho. O a morte de Ades ele resolveu adiar os planos. Na entrevista a
estudo, divulgado em artigo publicados por periódicos cien- seguir, Rossi fala sobre o universo canino e formas práticas
tíficos como Animal Cognition e a PLOSOne, mostrou, pela de compreender o que se passa na cabeça dos cães.
77
entrevista – Alexandre Rossi
regina motta/divulgação
f Mente e Cérebro: A maioria das pessoas está ções e ao que ele acha que vai acontecer. Se o
convicta de que entende bem as mensagens de dono o olha bravo, em seguida desvia o olhar
seu animal. Isso ocorre de fato? para um objeto que ele estragou, por exemplo,
Alexandre Rossi: Os cientistas costumam e na sequência retorna o rosto para o animal,
recorrer ao efeito de Clever Hans ou (Hans, o ele pode simplesmente prever que vai se dar
inteligente) para dizer que tanto pesquisadores mal, pois percebe que a pessoa está irritada,
quanto o dono costuma oferecer, sem perceber, ainda que não entenda o motivo.
muito mais informações do que imagina quando Sua capacidade de seguir o olhar é ainda
interage com o animal. Hans era um cavalo extre- mais desenvolvida que a dos chimpanzés.
mamente inteligente e na época, início do século Cães prestam enorme atenção ao rosto do ser
passado, na Europa, causou grande espanto pois humano. No caso do painel usado com Sofia,
todos acreditavam que ele seria capaz de fazer durante a pesquisa, tive a preocupação de não
Quando cálculos complexos (veja artigo “Como os animais oferecer nenhuma indicação para ela, nem com
apenas pensam”, na pág. 10). Tendemos a acreditar que o o olhar, nem com o corpo.
animal entendeu exatamente aquilo que quería-
os “erros” mos dizer, mas isso nem sempre está correto. f MeC: Qual o melhor momento de começar
atraem nossa a treinar um cão?
atenção, f MeC: O que de fato ocorre nessa comunicação? Alexandre Rossi: Eles estão sempre apren-
ele pode Alexandre Rossi: Gostamos de dizer que dendo, mesmo os mais velhos, embora de
nosso cachorro é inteligente, que “entende forma às vezes mais lenta. Por isso não há um
aprender que tudo”, mas quando estudamos os casos cienti- momento específico para iniciar o treinamento.
travessuras ficamente fica muito claro o quanto atribuímos Na verdade, animais são parecidos com as
são formas comportamentos, intenções e compreensões pessoas em muitos aspectos, têm mais predis-
a eles. Ouço muito as pessoas comentarem: posição para alguns comportamentos do que
eficientes de “Quando dou uma bronca ele faz cara de coi- a outros e até pela própria seleção artificial de
conseguir o tado, abaixa a cabeça. Mas nessas situações, raças, feita pelo homem, pode ter habilidades
que querem quase sempre, o animal está reagindo a emo- muito variadas. Além disso, há as competências
78 l mentecérebro l Animais
específicas de cada raça. O border collie, por Se houver terra ou grama será melhor ainda. Se o animal
exemplo, presta muita, muita atenção ao ser Um jeito simples de facilitar o acerto é tirar não esta
humano porque ele é originalmente um pastor, os tapetes da casa. Elogio verbal e petisco fazendo
e estar atento aos movimentos de pessoas é são recompensas muito eficazes. Um dos
superimportante. O animal também aprende a equívocos mais comuns dos donos é elogiar nada de
aprender, ele desenvolve determinadas capaci- pouco o que seus bichos fazem de bom. errado parta
dades de acordo com os estímulos que recebe. do princípio
Portanto, se tomamos um cachorrinho que f MeC: Como saber que não é uma mudança
tem uma vida rica socialmente, com desafios e só momentânea de comportamento, que o ca-
de que está
adestramento, com incentivo para se comunicar, chorro realmente entendeu o que queremos? fazendo algo
seu desenvolvimento cerebral será muito mais Alexandre Rossi: A gente tem certeza de certo e o
avançado que o de outro cachorro, até da mesma que ele entendeu o que está acontecendo
raça, que ficou numa gaiola ou num canil. quando começa a ir para o lugar certo e forçar
estimule com
o xixi. E aí foi muito interessante termos estu- petiscos e
f MeC: Quando as pessoas adotam um ani- dado os sinais que eles emitem porque ajuda a elogios
mal, uma das primeiras preocupações costuma perceber que começam a fazer xixi e já lambem
ser ensiná-lo a usar o “banheiro”, mas o treino os beiços, claramente se preparando para a
pode causar estresse para o dono e sofrimento recompensa que vai chegar. E é importante
para o cão. Como resolver isso? que a recompensa chegue mesmo. Só aí pode
Alexandre Rossi: A primeira coisa que ser a hora de entrar com broncas quando ele
tentamos explicar aos donos é como o ca- erra, mas não antes disso.
chorro recebe as broncas. A pessoa, em geral,
está louca para que o bicho acerte, e se ele f MeC: O que é fundamental saber a respeito
erra ela fica muito brava, principalmente se da educação?
o “erro” for num sofá ou num tapete caro. Alexandre Rossi: Há um ponto fundamental.
Nesses casos a pessoa repreende o animal A gente ensina basicamente fazendo com que
e explica qual é o lugar certo para ele fazer ele associe determinados comportamentos
xixi e cocô, mas isso não basta. É importante a coisas que ele considera legais. Claro que
saber que no começo o animal vai errar muito preferências podem variar de cachorro para
mais do que acertar e será repreendido tanto cachorro, mas algumas coisas em geral são
na hora quanto fora de hora. Nesse último unânimes: cachorros gostam de atenção, de
caso, já sabemos que ele não vai entender ouvir o próprio nome enquanto recebem festa
o que aconteceu: a chance de relacionar a e agrados; a maior parte adora ganhar petiscos
irritação da pessoa com o que ele fez fora da e brincar. Ele também pode ser recompensado
situação em que o comportamento ocorreu com algo que a pessoa percebe que o animal
é praticamente nula. Por outro lado, quando quer naquele momento, às vezes é eficiente
a repreensão é feita no mesmo momento, apenas abrir uma porta para ele. Podem até
em geral o cachorro entende que não pode ser usadas como recompensa coisas
fazer xixi, por exemplo, na presença do dono. específicas de determinado momento:
Então ele se segura, espera a pessoa dar uma se ele quiser fazer xixi numa árvore,
bobeada ou se esconde para urinar. Quando a pessoa que o conduz deve deixar
isso acontece, um treinamento que seria rela- e não puxar a guia, por exemplo. É
tivamente simples se torna mais complicado. muito eficiente recompensar o ca-
chorro quando ele tem bom com-
andy dean photography/shutterstock
annette shaff/shutterstock
de percepção: eles são capazes de detectar, por
exemplo, alguns tipos de câncer, fazem isso
pelo olfato (veja artigo “Anjos da guarda”, na
pág. 6). Também há na literatura registros de
cachorros que conseguem detectar e antecipar
crises de epilepsia.
f MeC: Que comportamentos valem prêmio? f MeC: Mesmo cachorros pequenos podem
Alexandre Rossi: Os adequados. Mesmo ser bastante agressivos. É possível mudar
que pareçam banais. Por exemplo, quando o esse comportamento?
bichinho está deitado na cama dele roendo um Alexandre Rossi: Sim. Recentemente acom-
osso e você esta assistindo à televisão ou lendo panhei um cachorrinho que sofreu maus-tratos
um livro. Mas nesses casos a pessoa dificilmente ou foi atropelado, não se sabe ao certo, mas
para o que está fazendo e o recompensa. Prin- por isso anda numa cadeirinha de rodas. Ele
cipalmente quando o cão é agitado, ela apenas atacava os outros animais da casa e as pessoas,
pensa: “Ufa, vou poder fazer minhas coisas!”. avançava até mesmo na dona quando ela ia cui-
Mas não dá atenção ao animal. O que ele enten- dar dele, trocar a fralda. Fizemos um trabalho
de com isso? Que quando fica com os próprios intensivo de dez dias, usando a recompensa
brinquedos é ignorado pelo dono, mas se pega pelo bom comportamento e ele descobriu que
algo proibido alguém corre atrás. Cachorros são as pessoas não são fonte de perigo e sim de
tão loucos por atenção que preferem correr o biscoitinhos caninos.
risco de tomar bronca. É muito frequente que eles
se comportem assim quando temos visita e há f MeC: Como foi esse trabalho?
competição por atenção, parece que aí mesmo Alexandre Rossi: Ele já sabia, antes do
é que fazem mais coisas que nos incomodam. treinamento, que as pessoas que ele tentava
morder geralmente pulavam, gritavam. Ou
f MeC: Há pessoas que ficam muito tempo fora seja: ele via o ser humano como algo que pula,
de casa, mas ainda assim querem ter um cachor- grita, pode atacá-lo e, portanto, era preciso
ro. É possível conciliar a limitação e o desejo? que atacasse antes. Ele era desconfiado, e
Alexandre Rossi: De fato cachorros têm nosso desafio era mostrar que as pessoas só
sérios problemas em ficar muito tempo so- queriam se aproximar e fazer carinho, mas
zinhos. A saída seria ter dois cães para que sem a ajuda de um petisco isso era compli-
fizessem companhia um para o outro, embora cado. Enquanto ele estava completamente
a presença humana seja indispensável e eles focado no petisco a gente começava a fazer
precisem de atenção. Também é possível optar carinho e aos poucos ele foi se acostumando
por algum animal menos sociável, como o com a situação. Ele se tornou mais propenso
Na melhor gato. Muitos acham que não gostam de gato, a se deixar ser acariciado e a receber o contato
mas o convívio mais próximo costuma fazer de forma prazerosa. Assim, o próprio carinho
das intenções, com que mudem de opinião. termina virando a recompensa.
muitas vezes
ensinamos f MeC: Alguns animais parecem especialmen- f MeC: Cães recompensados com petiscos
te atentos e sensíveis aos estados emocionais vão sempre precisar desse estímulo para ter
nossos cães
das pessoas com quem convivem... o comportamento desejado?
a chamar a Alexandre Rossi: Eles sentem muita coisa, Alexandre Rossi: Às vezes determinado
atenção de notam alteração de humor das pessoas, o comportamento vira um hábito e para mudá-lo
forma errada, movimento na casa, as dinâmicas de relação. é preciso reforçar outro comportamento com
Cientistas não gostam de falar em sexto senti- algo que seja compensador para o animal. E
fazendo aquilo do, até porque quanto mais estudamos os ani- isso deve ser bastante frequente no começo
que nos irrita mais mais entendemos seus mecanismos de do treino. Depois de algum tempo, quando já
80 l mentecérebro l Animais
houve a mudança, o reforço pode ser menos um risco para uma criança que se aproxima É preciso
constante. Mas de fato os cachorros só con- para abraçá-lo, por exemplo. O que me faz repreender
tinuam a agir de determinada forma porque ser mais contra ainda a agressão é o fato de
são recompensados. Ele só continua a beber conhecer técnicas seguras para punir quando
do jeito certo,
água porque isso aplaca sua sede, o alivia de – e apenas quando – isso for necessário. Um na hora certa,
um desconforto. Portanto, se queremos que exemplo de mau habito é roubar comida de com firmeza,
o animal faça algo, é preciso mantê-lo recom- cima da mesa. Um dia ele pega um alimento mas sem
pensado por isso, ainda que não o tempo todo que pode até mesmo matá-lo ou um objeto
depois que já houve o aprendizado. como qual se machuque, como uma faca, ou ferir, sem
até algo que pareça inofensivo mas faça mal, traumatizar o
f MeC: Essa perspectiva facilita o convívio... como chocolate que é venenoso para cães. animal. Não
Alexandre Rossi: Com certeza. Entender Há casos em que por causa desse comporta-
quais são os elementos reforçadores de mento o animal termina preso. Mas para ele, repreender
comportamentos desejáveis ou não muda o roubar em si é muito bom. nunca também
até as expectativas que temos em relação aos machuca,
animais. A psicologia comportamental mostra f MeC: Nessa situação não adianta recom-
que assim como os seres humanos os bichos pensar? É necessário punir?
seja bicho
estabelecem trocas o tempo todo. Alexandre Rossi: Não adianta recompensar ou gente. É
o bom comportamento com ração ou petisco fundamental
f MeC: Alguns donos acham que um tapinha quando sobre a mesa está um suculento frango
pode ser “educativo”. Como você vê isso? assado. Nesse caso o cachorro deve associar seu
buscar o
Alexandre Rossi: É importante lembrar que comportamento a algo desagradável. equilíbrio
cuidar de um animal significa assumir certas
responsabilidades, como saber que às vezes f MeC: O que pode ser usado nesse caso?
determinado caminho é muito prazeroso para Alexandre Rossi: O spray de água é uma
ele, mas aquilo trará sofrimento, ele não é ca- opção, mas é preciso ter a sensibilidade por-
paz de perceber isso, então podemos nos an- que para alguns cachorros pode ser excessivo,
tecipar e ajudá-lo a tomar decisões melhores. principalmente se a água for borrifada com
milsiart/shutterstock
Mas sou contra bater. Esse comportamento força. Para outros, que já têm medo das pes-
está ligado a uma reação impulsiva, típica de soas, falar bravo é muito forte. Nesses casos,
quando estamos nervosos, que além de ma- é possível fazer um borrifo sem bronca, sem
chucar o animal pode deixá-lo com medo de grito, para que o animal sinta que o dono não
gestos bruscos, o que se transforma em está bravo, apenas algo desagradável acontece
quando ele faz determinada coisa.
81
Bichos e gente:
quem cuida de quem?
Personagens
como Tarzan
P elo número de pet shops que hoje existem
nas cidades de todo o mundo pode-se con-
cluir que nossa época nutre um especial carinho
do filho de um aristocrático casal. Pai e mãe
morrem, e o menino, com um ano, é adotado
por grandes macacos. Passa então a viver na
e os irmãos pelos animais de estimação. As razões para selva, junto com os animais, que, como os de
Rômulo e Remo isso são várias, e muito complexas, mas não Kipling, têm nome: Kerchak, Kala. Adulto jovem,
simbolizam a há dúvida de que cães, gatos, pássaros e outros Tarzan encontra Jane (“Me Tarzan, you Jane”)
bichos conseguem mobilizar o afeto e a ternura com quem casa e tem um filho.
ternura entre das pessoas. São cuidados com um desvelo que Tarzan é um herói sem jaça, belo, corajoso,
homens e chega a despertar admiração. E a inversa, será leal, inteligente. Um herdeiro de Jean-Jacques
animais e nos verdadeira? Será que animais também podem Rousseau: assim como este, acredita que a vida
remetem à cuidar de seres humanos, de bebês? em sociedade corrompe o ser humano que é,
Não são poucas as histórias e as lendas a intrinsecamente, bom. Por isso, a certa altura ele
rejeição da vida respeito, e muitas vêm da mais remota Antigui- rejeita a civilização e volta para a África.
civilizada dade. É o caso de Rômulo e Remo, filhos de Existem também os relatos sobre “crian-
Rhea Silvia, uma sacerdotisa, com o deus Marte. ças-feras”, criadas por animais. Um desses
O rei Amulius ordenou que ela fosse morta, casos teria sido o do “menino selvagem de
bem como os bebês. Estes foram, contudo, co- Aveyron”: nos arredores dessa pequena cida-
locados por uma escrava numa cestinha posta de do sul da França foi capturado, em 1800,
a flutuar no rio Tibre (a analogia com a história um menino de cerca de 11 ou 12 anos de
de Moisés é evidente). As crianças foram então idade, que corria nu pela floresta. Levaram-
criadas (amamentadas, inclusive) por uma loba, no para Paris, onde o estudante de medicina
até serem encontradas por um pastor, que, junto Jean-Marc Itard tomou conta dele, uma his-
com a mulher, adotou-os como filhos. Mais tar- tória popularizada no filme L’Enfant sauvage
de eles desempenhariam um importante papel (1970), no qual o diretor François Truffaut faz
na fundação da cidade de Roma. o papel de Itard. Dizia-se que Victor, este foi
Histórias semelhantes inspiraram muitos o nome que Itard deu ao garoto, teria sido
escritores. Dois deles são particularmente criado por lobos, mas tal nunca foi provado.
famosos. Em primeiro lugar Rudyard Kipling, Aliás, de acordo com o médico francês Serge
que, no final do século dezenove, publicou um Aroles, autor de uma vasta obra sobre o as- vitaly titov & maria sidelnikova/shutterstock
conto no qual aparecia um personagem cha- sunto, L’énigme des enfants-loups (O enigma
mado Mowgli, o menino-lobo. Perdido pelos dos meninos-lobos) quase todos os casos
pais na floresta, o menino é adotado por um desse gênero são resultado de imaginação
casal de lobos e passa a viver com a matilha. ou de empulhação. Animais podem fazer
O AUTOR
Outros animais entram na história, como o muito por seres humanos, tanto do ponto
MOACYR SCLIAR, médico,
escritor e membro da tigre Shere Khan, a pantera Bagheera, o urso de vista físico (é só lembrar os cães-guia)
Academia Brasileira de Letras, Baloo, a serpente Kaa. São várias histórias, todas como emocional. Mas daí a criar um bebê
foi colaborador de Mente e
Cérebro desde que a revista imensamente populares. O colonialismo inglês humano vai uma distância tão grande que
foi criada. Seu último artigo foi estava então no auge, e havia, entre o público, só a imaginação pode preencher. e
m c
publicado semanas antes de
sua morte, em 27 de fevereiro uma enorme curiosidade por regiões exóticas e
de 2011. O artigo nesta página pelas histórias nelas ambientadas.
foi, originalmente, escrito para
a edição no 190,
Poucos anos depois (1912) surgiria Tarzan,
de novembro de 2008. de Edgar Rice Burroughs. De novo, trata-se
82 l mentecérebro | Animais
Depressão, tristeza, luto
e melancolia
Um olhar psicanalítico
A química da depressão
Estilo de vida e prevenção
As depressões
Diagnósticos,
acompanhamentos
e perspectivas