Sertã, cidade: ser ou não ser, eis a questão

Façamos uma analogia com os automóveis. Se eu tiver um Mini muito gasto e lhe passar a chamar Mercedes, posso gabar-me de ter um Mercedes, mas na verdade continuo andar no mesmo velho Mini. Na prática, não muda nada.

Sertã, cidade: ser ou não ser, eis a questão
Carlos Miranda

Carlos Miranda

Vereador do PS na Câmara Municipal da Sertã e Presidente da Comissão Política Concelhia do PS Sertã

Na sua intervenção do dia 24 de junho, o senhor Presidente da Câmara, afirmou que “a Sertã está pronta para ser cidade.” Na Assembleia Municipal que se seguiu, alguns deputados do PSD elogiaram a “visão” e a “ambição” do Presidente da Câmara, como se tivesse acabado de inventar a roda. Mas nem a elevação a cidade é uma grande invenção, capaz de mudar a Sertã com um simples estalar de dedos, nem o Presidente da Câmara foi o único a pensar no assunto.
Eu próprio abordei publicamente este tema, por diversas vezes. Se fazer essa proposta é sinal de ambição para a Sertã, então eu mostro essa ambição pelo menos desde 2005 quando, numa intervenção sobre o plano estratégico para o concelho, na Assembleia Municipal, defendi aquilo que eu considerava, na altura, poderem ser as vantagens de elevar a Sertã a cidade. Porque é aqui que o debate se deve centrar. Há, ou não há, vantagens em ser cidade? Falei do assunto em 2005 na Assembleia Municipal, e falei noutras ocasiões, mas ao longo das últimas décadas, não fui o único a falar deste tema.
É preciso dizer que, do ponto de vista legal, a Sertã tem hoje tantas condições para ser cidade como tinha em 2005, quando me referi ao assunto, ou em 2009, quando o atual Presidente da Câmara tomou posse.
A Lei n.º 11/82, de 2 de Junho, determina, no seu artigo 13º que uma vila pode ser elevada a cidade quando conte com um número superior a 8000 habitantes, em aglomerado populacional contínuo, e possua, pelo menos, metade de um conjunto de equipamentos e serviços enunciados no referido artigo. Todavia, à boa maneira portuguesa, no artigo seguinte abre-se essa possibilidade a todas as vilas, dizendo que “Importantes razões de natureza histórica, cultural e arquitetónica poderão justificar uma ponderação diferente”. Ou seja, mesmo que uma vila não tenha os oito mil habitantes exigidos, haverá sempre “importantes razões de natureza histórica, cultural e arquitetónica” (subjetivas, claro) que justifiquem a elevação a cidade. E assim, desde que esta lei entrou em vigor, o número de cidades disparou em Portugal. Eram, nessa altura, 47. Hoje são 156. Surgiram cidades como Mêda, ou Sabugal, que têm cerca de 2000 habitantes… (O que mudou na realidade destas povoações com a elevação a cidade?)

Face a esta lei, a Sertã tem condições para ser cidade. Não tem 8000 habitantes, em aglomerado populacional contínuo, mas certamente poderá invocar as tais “razões de natureza histórica, cultural e arquitetónica”. Se Mêda ou Sabugal são cidade, porque não a Sertã?
Quanto aos equipamentos e serviços que a lei menciona (sendo necessário apenas metade dos mencionados), os que a Sertã pode apresentar, hoje, para ser cidade, já os podia apresentar em 2009 quando o atual Presidente tomou posse. Vou percorrer os equipamentos ou serviços que são referidos na lei: oito mil habitantes em espaço urbano contínuo: não tínhamos em 2009, e continuamos a não ter. (Agora, até temos menos habitantes do que em 2009). Instalações hospitalares com serviço de permanência: como em 2009, temos um centro de saúde com atendimento permanente, mas chamar-lhe “instalações hospitalares” parece-me algo exagerado. Farmácias: já tínhamos em 2009. Corporação de bombeiros: já tínhamos em 2009. Casa de espetáculos: já tínhamos em 2009. Centro cultural: não tínhamos em 2009, continuamos a não ter. Museu, não tínhamos em 2009, continuamos a não ter. Biblioteca: já tínhamos em 2009. Instalações de hotelaria: já tínhamos em 2009. Estabelecimento de ensino preparatório e secundário: já tínhamos em 2009; Estabelecimento de ensino pré-primário e infantários: já tínhamos em 2009; Transportes públicos, urbanos e suburbanos: não tínhamos em 2009, continuamos a não ter. Parques ou jardins públicos: já tínhamos em 2009.
Outros serviços não referidos na lei, como tribunal, centro de emprego, repartição de finanças ou segurança social, já tínhamos em 2009.
Portanto a Sertã pode ser cidade hoje, como podia ser em 2009. A questão é: vale a pena? Resolve algum problema? Vem mudar alguma coisa? Façamos uma analogia com os automóveis. Se eu tiver um Mini muito gasto e lhe passar a chamar Mercedes, posso gabar-me de ter um Mercedes, mas na verdade continuo andar no mesmo velho Mini. Na prática, não muda nada. A elevação a cidade não é uma varinha mágica capaz de transformar a realidade com um simples toque. O facto da Sertã ser cidade não vem, por si só, resolver nenhum problema. O concelho não criará automaticamente mais emprego, nem as pessoas terão mais dinheiro na carteira ao fim do mês.
A questão que devemos colocar é: a Sertã pode ganhar alguma coisa em ser cidade? Em 2005, estava convencido de que ser cidade poderia trazer vantagens no plano simbólico, gerando uma maior capacidade de atração de serviços do Estado, o que poderia ajudar a criar emprego. Entretanto, o Estado passou muitas das competências para as câmaras, e outras para as Comunidades Intermunicipais, pelo que a ideia de receber serviços estatais perdeu força. Pelo contrário, a Sertã até tem vindo a perder valências em vários serviços. (Na área da saúde, no tribunal ou no centro de emprego, por exemplo.)

E temos de estar conscientes de que o facto de ser cidade pode trazer desvantagens. Algumas vilas com todas as condições para serem cidades, como Ponte de Lima, Sintra ou Cascais, por exemplo, não querem ser cidades. Em 2010, o Presidente da Câmara de Cascais, António Capucho (do PSD) considerava, numa reportagem do jornal Público, que a imagem de Cascais sairia prejudicada com o estatuto de cidade, e considerava a passagem a cidade como uma “despromoção” para a sua vila. Dizia ainda que "[A elevação a cidade] Não adianta nada e só dá despesa com a alteração da simbologia a que obriga."
Temos de saber o que queremos. Que imagem da Sertã queremos “vender”? Se dizemos que a nossa aposta estratégica é o turismo, faz sentido passar a Sertã a cidade? Os turistas vêm em maior número para a Sertã, se a Sertã for cidade? É evidente que não. Os turistas que procuram os territórios do Interior estão fartos da cidade. Só a palavra os assusta. Por isso mesmo é que a vila de Sintra, que vive do turismo, se recusa a ser cidade. Não quer ser confundida com um centro urbano.
Portanto, quando se fala em elevação a cidade, é preciso pesar prós e contras. E, sobretudo, é preciso ter a capacidade de inserir esta medida dentro de um projeto abrangente e coerente para todo o concelho.
Sertã, cidade? Não digo que não. Já defendi essa ideia, e continuo a pensar que poderá fazer sentido. Todavia, a ideia de passar a Sertã a cidade não faz nenhum sentido enquanto objetivo em si. A elevação a cidade deve ser vista como um meio e nunca como um fim. Pode fazer sentido se for uma de entre várias medidas, no âmbito de um projeto de desenvolvimento mais vasto.
A Sertã pode ser cidade. Mas digam-me para quê. Porque querer ser cidade só por que sim, não é ambição: é apenas um pretensiosismo provinciano de alguém que quer aparentar ser aquilo que não é.

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