MOSAICOS ROMANOS EM PORTUGAL
EXPRESSÃO DE UMA CULTURA UNIVERSAL NO
EXTREMO OCIDENTAL DO IMPÉRIO ROMANO
Maria J. Duran Kremer
(PhD, Instituto de História de Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,
Universidade Nova de Lisboa, mjesuskremer@hotmail.com)
RESUMO:
ABSTRACT:
Os mosaicos romanos representam um tesouro cultural e
The Roman mosaics represent a cultural and artistic treasure of
artístico
undeniable importance, product of a mixing of cultures from
de
importância
inegável,
produto
de
uma
miscigenação de culturas de diferentes partes do Império
different
Romano, expressão individualizada de uma visão muito
expression of a very particular vision of the Roman Society:
própria da Sociedade Romana: o seu estudo constitui uma
their study is a socio- cultural source of knowledge about the
fonte sócio-cultural de conhecimentos sobre a presença
Roman presence in the upmost western region of the Empire.
parts
of
the
Roman
Empire,
individualized
romana no extremo mais ocidental do Império.
PALAVRAS-CHAVE:
Mosaicos
romanos,
motivos,
programa
iconográfico,
influências estilísticas.
KEY WORDS:
Roman mosaics, motifs, iconographic program, stylistic
influences.
O estudo dos mosaicos romanos em Portugal
porque não materiais: as influências artísticas ligadas ao
constitui hoje, mais do que nunca, um repto lançado a
comércio, à acção de militares destacados de uma
todos aqueles que de uma forma ou de outra a ele se
província para outra, a livre circulação de artífices
dedicam. Um repto tanto mais complexo quanto, dia
mosaístas, o gosto e o grau de cultura pessoal do
após dia, surgem um pouco por toda a parte novas
mandatário da obra são apenas alguns dos muitos
descobertas,
contextos
factores que intervieram na concepção e execução de
cronologicamente bem definidos, obrigando a um rever
frequentemente
em
um programa iconográfico determinado. O mosaico
daquilo que, até então, era visto como
romano exprime melhor que qualquer outra forma de
um estudo
terminado deste ou daquele mosaico.
arte a miscigenação de Culturas característica do
Mais que na arquitectura ou na escultura, o mosaico
Mundo Romano e que foi dando origem a diferentes
está submetido a imponderáveis inerentes à sua própria
expressões de uma Cultura Universal um pouco por
génese: mosaicos de pavimento ou mosaicos parietais,
figurativos, geométricos ou vegetalistas, bícromos ou
polícromos,
a
palete
de
discursos
toda a parte.
Daí que cada mosaico exija um olhar se não
decorativos
permanente pelo menos renovado para a mensagem
ultrapassa os meros cadernos de motivos que terão
aberta à leitura nesse livro de pedra que são os
certamente existido, as tendências regionais que se
diferentes mosaicos ainda existentes. A descoberta
foram delineando ao longo dos séculos. Imponderáveis,
progressiva
de
novos
pavimentos
sobretudo
MOSAICOS ROMANOS EM PORTUGAL
EXPRESSÃO DE UMA CULTURA UNIVERSAL NO EXTREMO OCIDENTAL DO IMPÉRIO ROMANO | MARIA J. DURAN KREMER
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Fig. 1: Mosaico parietal de Uruk (Museu de Pérgamo, Berlin). © M.J. Duran Kremer
geométricos tanto na zona atlântica quanto no Mundo
importantes centros políticos sumérios do IV milénio
romano em geral, trouxe novos elementos não de
aC (3500 – 2800 a.C.) (Fig. 1).
comparação de motivos tomados individualmente, já
É precisamente aqui que, em finais do IV milénio, a
que muitos deles se propagaram através dos séculos1 –
actividade de construção no recinto sagrado de Eanna
mas de análise de combinações de todos os motivos
atingiu o seu auge, aperfeiçoando a técnica de
existentes
num
pavimento,
do
relacionamento
mosaicos de pregos ou tachas
como elemento de
estabelecido entre o pavimento no seu ordenamento de
decoração arquitectónica de fachadas de edifícios
superfície e o compartimento que decora e de
representativos ou de templos. Essa técnica consistia
alternativas para a interpretação sintática de diferentes
em enterrar pregos de barro cozido ou de estuque, de
discursos decorativos. E com cada mosaico descoberto
10 cm de comprimento, uns junto aos outros, na
esse olhar modifica-se, aprofunda-se, abre novos
camada de barro que revestia as paredes (Fig. 2).
horizontes permitindo um eventual reenquadramento
dos conhecimentos até aí existentes.
A cabeça dos pregos era pintada, na maior parte dos
casos, de preto, branco ou vermelho; por vezes eram
Quando analisamos a evolução do mosaico através
também utilizados pregos de pedra ou de barro não
dos séculos, somos forçados a constatar que estamos
pintado. Os motivos escolhidos inspiravam-se muito
perante uma arte nascida no Mediterrâneo Oriental,
provavelmente em entrançado de verga ou em tecidos,
muito antes dos primeiros mosaicos terem revestido e
e consistiam sobretudo em losangos, triângulos, faixas
decorado pavimentos e paredes da Grécia Antiga. É ali
paralelas ou em zigzag (Fig. 3)
que vamos encontrar pela primeira vez muitos dos
Uma técnica, aliás, que se espalhou a outras cidades
motivos utilizados durante séculos nas composições
do sul da Mesopotâmia, como Ur e Eridu e chegando
musivas sobretudo geométricas tanto gregas quanto
mesmo a Habuba Kabira. Motivos muito semelhantes
romanas.
vão, em finais do IV milénio a.C. ser utilizados também
Um dos primeiros exemplos de mosaico vem-nos
em Uruk, como decoração de caixas e outros objectos,
sem dúvida da cidade de Uruk, um dos mais
recorrendo a pequenos cubos de osso ou pedra, em
geral branco, preto ou vermelho.
1
(Duran Kremer, 2012).
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Fig. 2: Mosaico parietal de Uruk (Museu de Pérgamo, Berlin). © M.J. Duran Kremer
Ainda que não haja provas claras da evolução
modificando, dado lugar à criação de novos motivos
sofrida pelos diferentes motivos através dos séculos, é
surgidos seja da evolução dos já existentes, seja através
de crer que foram evoluindo a par e passo que as
da entrada do mundo vegetal, animal e místico no
exigências de decoração arquitectónica se foram
repertório dos artífices, motivos esses utilizados para a
Fig. 3: Mosaico parietal de Uruk (Museu de Pérgamo, Berlin). © M.J. Duran Kremer
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ultrapassando livremente as fronteiras do tempo e do
decoração das mais variadas superfícies.
Assim, da cidade de Gozan, residência real
espaço.
aramaica, primeiro, residência do governador assírio
No entanto, quando analisados integrados na
depois, centro cultural e económico sobretudo durante
composição musiva que determinam, estes motivos
o primeiro milénio aC., chegou-nos aquilo que se
permitem-nos olhar para o conceito que determinou a
poderia considerar um catálogo de motivos que, mais
sua escolha e reunião num programa iconográfico bem
tarde, viríamos a encontrar em composições musivas:
definido. Mais ainda: permite-nos palpar, por assim
entrançados, escamas, florões, losangos encontram-se
dizer, o espírito dominante quando dessa escolha,
perfeitamente delineados e ordenados em banda no
numa aceitação do koinë clássico ou num enveredar por
altar do pátio do templo de Guzana (Fig. 4). Datado de
novas
800 a.C.,
combinação de motivos, de ordenamento dos mesmos
foi
construído
com
tijolos
cozidos
e
esmaltados, provavelmente polícromos.
soluções
de
côr,
de
preenchimento
ou
na superfície a decorar. E, ao fazê-lo, permite
Fig. 4: Fronte do altar de Gozan (Museu de Pérgamo, Berlin). © M.J. Duran Kremer
Daí que, para uma análise estilística e iconográfica
frequentemente constatar influências estilísticas e
de um pavimento, não se possa recorrer exclusivamente
temáticas de diferentes zonas do Império e/ou
à comparação de motivos tomados individualmente
individualizar expressões regionais ou locais de um
com outros de sítios distintos: A difusão e evolução de
mesmo universo decorativo.
motivos fez-se através dos séculos e do Império,
Quando lançamos um olhar diferenciado sobre os
mosaicos
romanos
em
Portugal,
sobre
as
suas
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características mais marcantes e intrínsecas, sobre
dimensões das tesselas 4. Não era raro que, a partir
eventuais denominadores comuns com a paisagem
dessa análise e da cronologia assim conseguida se
mosaística de outros territórios, focando a evolução de
situasse todo o sítio arqueológico, pelo menos numa
motivos e estilos, de temas e ordenamento lógico da
última fase , no espaço e no tempo.
estrutura desses pavimentos, rapidamente se constata
Dessa abordagem motívica e estilística foi-se
que a grande maioria dos pavimentos em mosaico nesta
delineando através dos anos uma individualização
região do Império Romano foram construídos com base
clara das características mais marcantes dos pavimentos
em esquemas geométricos mais ou menos integrados de
de mosaico encontrados em território português. Os
elementos vegetalistas, animais, de objectos ou até de
peritos na matéria eram – e são-no ainda hoje -
figuras humanas. Os mosaicos figurativos, ainda que
unânimes em considerar que um elevado número de
pouco numerosos, sobressaíam pela sua beleza e
pavimentos musivos encontrados em Portugal mostram
expressividade e ornavam certamente seja pavimentos
uma influência clara da arte musiva norte africana,
de villae romanas sobretudo no Sul de Portugal2, seja
independentemente da localização da origem da oficina
mosaicos parietais que, pela beleza e originalidade da
que executara o pavimento. Mais recentemente, porém,
sua execução, não encontraram até este momento
esta influência foi claramente identificada no espaço e
paralelo em terras lusitanas .
no tempo, individualizando de uma forma geral as
3
Os mosaicos geométricos, veículo da tradição de
influências a que estariam sujeitas as oficinas locais e
motivos decorativos ancestrais, viram-se durante muito
atribuindo-se a realização de determinados pavimentos
tempo relegados para segundo plano, considerados
do Sul de Portugal a artífices itinerantes provenientes
quase como
aos mosaicos figurados ou
do Norte de África: se bem que não haja dúvidas de
mitológicos. E, no entanto, são precisamente estes
inferiores
que existiam oficinas locais, que seguiam a tradição
mosaicos que nos permitem analisar de mais perto o
itálica importada para Hispania pelos primeiros
significado e o impacto da intervenção de cada um dos
colonos romanos das capitais de província como
participantes na criação de um mosaico, tanto a nível
Mérida e Córdova, no sul de Espanha, em cada dia – ou
motívico quanto de ordenamento da superfície a
melhor dito, em cada nova escavação – surgem provas
decorar,
à
de outra realidade mais frequente: o exercício em vários
preparação prática da colocação do mosaico e à
sublinhar
pontos da Península Ibérica, e sobretudo nas villae que
identificação
de
alguns
diferentes
elementos
e,
se localizavam um pouco afastadas dos centros
as
urbanos, como é o caso de Milreu ou de Cerro da Vila,
características da ou das oficinas que realizaram os
de artesãos itinerantes provenientes dos centros mais
pavimentos como, e sobretudo, sublinhar o papel
activos neste aspecto do Império Romano. Cartago,
determinante que coube, desde o primeiro momento, ao
uma grande cidade de África romana, exportou os seus
proprietário/mandatário da obra.
melhores
consequentemente,
não
modelos
ligados
apenas
possíveis
identificar
mosaístas
para
vários
pontos
do
Quando no passado, de uma forma geral, se falava
Mediterrâneo, em particular para as famosas villae
do mosaico romano em Portugal, acrescentava-se quase
romanas de Piazza Armerina e de Tellaro, na Sicília.
imediatamente que infelizmente, as condições em que
Aconteceu algo parecido no sul da Bética e da
foi encontrado não permitem uma datação segura e
Lusitania: na civitas de Ossonoba, tal como nas villae de
propunha-se, regra geral, uma cronologia baseada
Cerro da Vila e de Milreu, é evidente a origem africana
numa
da oficina de mosaístas que realizou a decoração dos
análise
estilística,
conseguida
através
da
comparação com pavimentos cuja datação não oferecia
mosaicos
dúvidas, fossem eles da mesma região ou de outras
Com
5
.
esta
afirmação assistimos
pois
a
uma
partes do Império Romano. A tónica era colocada na
classificação geográfica e artística das oficinas de
execução técnica do mosaico: podia assim proceder-se à
mosaistas em determinado momento e em determinada
definição da qualidade da produção mosaística,
região: as oficinas locais, forçosamente conservadoras,
quando se analisavam aspectos cromáticos ou as
mantinham o repertório musivo clássico, itálico,
enquanto que caberia a oficinas de mosaistas itinerantes
provenientes do Norte de África representar a tradição
2
3
Referimo-nos sobretudo aos mosaicos de Torres Novas,
Torre da Palma, Santa Vitória do Ameixial, Alter do Chão,
Milreu, Faro (Mosaico do Oceano).
(Duran Kremer, 1999, pp. 509-519).
4
5
(Oliveira, 2010, p. 1).
(MOSUDHIS, pp. 19-20).
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No passado – diria mesmo até finais dos anos 50, o
mosaísta norte africana no território da Hispania. Uma
classificação feita, aliás, exclusivamente com base na
realização da decoração dos mosaicos – na execução
técnico-estilística de um acervo motívico existente.
31
estudo
dos
mosaicos
centrava-se
sobretudo
nos
mosaicos figurados e na interpretação das cenas
representadas,
na
sua
maior
parte
de
carácter
Independentemente das dúvidas que possam surgir
mitológico. Um exemplo clássico deste tipo de
quanto a esta atribuição, que não leva em conta nem o
abordagem é o estudo pioneiro dos mosaicos de
repertório musivo de outras villae como sejam a
Antióquia, de Doro Levi8: Apesar de chamar a atenção
Abicada, Boca do Rio, Luz, etc., e que apontam
para a necessidade de analisar os diferentes ornamentos
claramente para a existência – pelo menos em
de um pavimento, Doro Levi debruçou-se quase
determinado momento – de pelo menos uma oficina de
exclusivamente sobre os mosaicos figurados. Em finais
mosaistas que deixaram a sua marca não só naquelas
dos anos 50, o arqueólogo alemão Klaus Parlasca9
villae como também em cerro da Vila e em Milreu ,
analisa
analisar e atribuir um pavimento de mosaico a
introduzindo não só uma análise crítica da metodologia
determinada corrente artística apenas com base na sua
seguida neste campo como também uma primeira
decoração implicaria ignorar, entre outros factores, o
análise individualizada de dois ornamentos – a fita
papel fundamental assumido pelo dono da obra – em
denteada e o moinho de peltas. Termina esse trabalho
geral, o proprietário - e pelo artífice responsável e elo
com uma análise cronológica dos pavimentos de
de ligação entre a equipa e o proprietário, a quem, uma
mosaico dando especial relevo às oficinas de Trier.
6
os
mosaicos
romanos
na
Alemanha,
vez conhecidos os temas e tendências preferidas pelo
Em princípios dos anos 60, o primeiro colóquio da
primeiro, propunha o tipo de ordenamento para cada
AIEMA, em Paris10, mostra o interesse crescente do
sala, o tipo de composição e o conjunto de motivos a
mundo
utilizar na concretização dessa composição. Uma vez
ornamentos e pela possibilidade de datação estilística
acordado o programa iconográfico a seguir, cabia-lhe
por eles aberta. Von Gonzenbach11 identifica em 1961
provavelmente também a ele distribuir tarefas pelos
várias oficinas na Suíça, Stern alarga essa identificação
diferentes mosaistas e controlar o trabalho dos mesmos.
ao vale do Rhône (1964). O segundo congresso da
Influências, a haver, de outras regiões, ficariam
AIEMA, em 1971 em Vienne12, abre a porta a novos
imediatamente patentes quando da escolha da temática
métodos de análise da sintaxe compositiva em
a utilizar para cada sala. Por outro lado, uma análise
superfície, permitindo uma identificação de oficinas
mais pormenorizada dos mosaicos romanos existentes
com base nos esquemas geométricos seguidos. Fendri13,
no actual território de Portugal individualiza uma
Lancha14, Lassus15, Smith16, Prudhomme17 são etapas no
influência clara do Oriente Mediterrânico tanto na
caminho que vai conduzir em 1
concepção quanto na execução de alguns pavimentos .
géometrique dans la mosaique romaine
7
científico
pela
análise
específica
ao
dos
Décor
, uma obra
18
E é precisamente para fazer jus a esse papel
que, apesar das suas fraquezas, é ainda hoje o fio
fundamental de ambos os intervenientes que se torna
condutor para a identificação de esquemas mas
necessária uma abordagem diferente no estudo dos
sobretudo de motivos nos mosaicos geométricos em
mosaicos, uma abordagem que permita a identificação
pavimentos de todo o mundo romano e a sua
sempre que possível de oficinas mas que sublinhe
comparação a nível internacional.
Paralelamente
sobretudo tendências e influências recíprocas de
a
esta
evolução,
Gisela
diferentes áreas do Império, tanto a nível dos artesãos
Hellenkemper-Salies publica em 1
uma “nálise de
quanto e sobretudo a nível do proprietário da obra,
esquemas de ordenamento geométrico dos mosaicos
primeiro tomador de decisão a nível de registo
iconográfico e ordenamento estrutural e motívico da
obra a realizar.
O historial do estudo do mosaico romano nos
últimos 80 anos ilustra o caminho percorrido pela
investigação musiva neste sentido.
8
9
10
11
12
13
14
15
16
6
7
(Duran Kremer, 2009, p. 358).
(Duran Kremer, 2014).
17
18
(Levi, 1947).
(Parlasca, 1959).
(AIEMA I, 1963).
(Von Gonzenbach, 1961).
(AIEMA II, 1975).
(Fendri, 1965).
(Lancha, 1977).
(Lassus, 1970).
(Smith, 1975).
(Prudhomme, 1975).
(Décor, (1985).
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romanos , obra fundamental e que em nada perdeu da
completam numa análise pormenorizada e ao mesmo
sua importância, ainda hoje imprescindível e ponto de
tempo global do pavimento, permitindo recuperar o
partida
processo de criação que lhe está na base.
para
o
estudo
dos
mosaicos
romanos
independentemente da sua localização no Império
Assim, num primeiro momento, cabe individualizar
Romano. É ela quem, pela primeira vez, analisa os
a visão presente no espírito do proprietário da obra.
esquemas de ordenamento geométrico dos pavimentos
É ele a figura principal nesta fase da produção do
musivos de todas as províncias do Império e verifica a
mosaico: a sua visão da decoração do ou dos
importância
o
pavimentos de uma ou de todas as salas da
estabelecimento de uma cronologia e identificação
propriedade a decorar, seja ela uma domus ou uma villa
regional. Para ela, as especificidades regionais não se
é indubitavelmente o resultado da sua formação e
captam nos esquemas em si mas sim na sintaxe
experiências pessoais, daquilo que viu noutras partes
ornamental escolhida. Por outras palavras, e como tão
do império, da prioridade dada a distintos temas sejam
correctamente constatou Veronika Scheibelreiter19, para
eles ligados à mitologia, a cenas domésticas, à
uma correcta datação de um mosaico com base numa
actividade mais relevante para o proprietário ou para a
análise estilística tem forçosamente de analisar-se o
região onde vive, à sua posição social.
de
que
eles
se
revestem
para
conjunto de cada um dos motivos existentes nesse
É a ele igualmente que cabe a escolha do tema a
mosaico, assim como a relação existente entre os
utilizar para cada sala – figurado, geométrico, floral. Ao
motivos ornamentais e figurados dentro de um mesmo
fazê-lo, o proprietário estabelece uma relação clara
mosaico, entre a decoração e o pano de fundo - a base
entre o uso a que se destina cada sala e o tipo de
do mosaico - e a policromia do mesmo.
decoração desejado para ela, de forma a sublinhar a
Assim fazendo poderão individualizar-se princípios
estilísticos gerais que permitam uma classificação
cronológica do mosaico.
funcionalidade da mesma:
combinação de motivos afasta definitivamente uma
eventual
tipo
meramente
decorativa neutra?
Ou uma decoração tipo triclínio, em U invertido,
central, mais elaborado, acessível ao olhar de
todos os convivas?
substancialmente
séculos,
apenas
no
base
superfície,
função
diferentes mosaicos: o repertório motívico geométrico
durante
com
em
permitindo um chamar de atenção para o painel
inalterado
pavimento
uma
comparação de motivos isolados provenientes de
alargado
do
decoração
com
na
mantem-se
datação
uma
tapete ,
O facto de o critério básico da análise estilística do
pavimento estar vinculado estritamente à análise da
Quer
vendo-se
fim
da
cubiculum, onde a parte mais importante do
Antiguidade Clássica.
pavimento recebe uma decoração mais rica,
Um dos méritos mais relevantes desta evolução foi
precisamente o de chamar a atenção para a abordagem
diferenciada possível quando da análise de um
mosaico: um pavimento pode ser analisado como uma
peça única, terminada, numa abordagem tipo
frequentemente em superfície?
conjunto. Num outro tipo de abordagem, porém, o
Ou uma decoração, frequentemente concêntrica,
que coloca a tónica decorativa no quadro central,
olhar
para um quadro , observando a obra acabada no seu
Ou uma decoração em barra simples, tipo
tipo emblemata?
Ou uma decoração única que permita uma
ilusão óptica de grande espaço contínuo, como
pavimento é analisado individualizando as diferentes
fases de construção do mesmo até se chegar à obra
acontece no peristilo da Abicada e no corredor e
terminada. Enquanto a primeira metodologia permite
pátio/peristilo de Pisões?
ao observador manter-se, por assim dizer, fora do
processo produtivo, a segunda exige uma participação
activa na individualização dos diferentes processos de
concretização do pavimento.
Ainda que, à primeira vista, possa parecer tratar-se
de duas metodologias opostas, a verdade é que elas se
Ou,
finalmente,
uma
decoração/mensagem
programática, como é o caso na sala G de villa
cardilio e na sala da medusa em Pisões?
Face a estas escolhas e decisões forçoso é constatar
que a decoração musiva de um edifício obedece, regra
geral, a um programa iconográfico com directivas bem
19
(Scheibelreiter, 1999, pp. 1 – 5).
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claras, provenientes certamente do mandatário da obra.
E que, por si só, permitem uma primeira identificação
do
gosto ,
da
cultura
orientações/mensagem a transmitir
ou
das
desejadas pelo
proprietário para a execução da decoração.
Cabe, em seguida, ao artífice executar a decoração
idealizada pelo proprietário. Recorrendo ao conjunto de
esquemas e elementos decorativos que possui na sua
bagagem ,
propõe
provavelmente
diferentes
ordenamentos decorativos para cada uma das salas.
Feita a escolha final, os temas são executados pelos
operários da sua oficina. E é nesta fase que, na maior
parte dos casos, a especificidade de cada oficina se
traduz na obra realizada: enquanto que a solução
adoptada para a inclusão da decoração no espaço a
decorar e a sua execução no terreno podem permitir
identificar a maior ou menor regionalidade de uma
oficina, a combinação de motivos ornamentais dentro
Fig.
(p.(p.
53)
Fig.5:5:©©B-v.Felde
B-v. Felde
53)
de um mesmo esquema, a policromia escolhida, todos
eles são elementos que podem permitir a identificação
das influências a que essa mesma oficina está sujeita.
De Stabiae20 chegou-nos um exemplo muito claro do
tipo de preparação da base para a colocação da
composição escolhida para o mosaico: neste caso uma
composição em preto e branco, com o quadriculado
base ortogonal e o horizontal sobreposto, assim como a
estrutura básica delineada a ocre. Os motivos de
preenchimento – de quadrados e triângulos - são
executados pelos artífices a par e passo que avançam.
Um outro elemento que pode contribuir para a
identificação de uma oficina está intimamente ligado ao
princípio de ordenamento da superfície utilizado pelos
mosaistas e o relacionamento por eles estabelecido
entre a composição a executar e a arquitectura da sala,
Fig. 6: © B-v. Felde (p. 53)
vide o desenho do solo21.
Numa situação ideal, a sala a decorar tem a forma
seja de um quadrado (Fig. 5) seja de um rectângulo
regular (Fig. 6), o que permite o recurso ao princípio de
construção clássico, baseado no traçado de diagonais e,
caracterização de uma oficina: das várias soluções
existentes, qual a escolhida?
a partir delas, definir uma quadrícula regular básica.
A situação modifica-se quando as dimensões do
pavimento a decorar não são regulares. E é aqui que
podemos
encontrar
um
primeiro
elemento
de
Seguindo o princípio básico do traçado de
diagonais, determinar o centro da sala e
construir a partir dele um quadriculado que virá
a receber a decoração? Neste caso a distância
20
21
(Dunbabin 1999, Fig. 292).
Baseamo-nos, para esta análise, no estudo de Baum-vom
Felde (2003). Os esquemas geométricos foram
reproduzidos a partir desse estudo, com a amável
autorização da autora, a quem devemos os nossos mais
sinceros agradecimentos.
entre o tapete e as paredes seria desigual em
todos os lados da decoração, criando um forte
sentimento de desassossego (Fig. 7).
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Fig. 7: © B-v. Felde (p. 57)
Fig. 8: © B-v. Felde (p. 57)
Fig. 10: © B-v. Felde (p. 59)
Fig. 9: © B-v. Felde (p. 58)
Criando, a partir de uma paralela a uma das
espaço a decorar? Adapta as dimensões das estruturas
paredes, uma figura geométrica regular, na qual
geométricas às dimensões da sala? Se o não fizer, como
se inseriria em seguida um quadriculado
soluciona o remate da composição?
horizontal,
originando
assim
duas
faixas
irregulares e de maior dimensão (Fig. 8)?
Criando uma figura geométrica imaginária
regular que aproveite ao máximo o espaço
existente, e dando origem a faixas irregulares em
dois lados da sala mas de menores dimensões
(Fig. 9)?
34
Nos mosaicos portugueses temos vários exemplos
de soluções escolhidas: a título ilustrativo a sala G, em
Cardílio (Fig. 11).
Ainda que, por si só, estas características não
permitam
individualizar
quaisquer
influências
estilísticas, permitem certamente um primeiro situar da
oficina de mosaistas no espaço: de uma oficina local
vide provincial seria provavelmente de esperar uma
Cobrindo todo o espaço a decorar com uma
menor
quadrícula ortogonal a partir da qual se define o
tecnicamente mais avançadas para este tipo de
espaço a decorar (Fig. 10)?
questões.
Uma vez feita esta escolha – quer se trate de uma
sala de dimensões regulares ou irregulares – o
mosaicista passa à fase seguinte: como vai introduzir a
composição escolhida pelo mandatário da obra no
capacidade
para
a
escolha
de
soluções
Um outro aspecto da análise dos pavimentos de
mosaico, que, por sua vez, pode contribuir para uma
primeira
percepção
de
influências
estilísticas
e
motívicas está ligado ao seu carácter decorativo:
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Fig. 11: “ sala G, dita sala de cardilio , Torres Novas. © M.J. Duran Kremer
a nível de repertório: Trata-se de composições
Cós - mosaico de Apolo, Torre da Palma -
centradas, isotópicas, lineares, de opus sectile?
mosaico das musas, Santa Vitória do Ameixial mosaico
a nível de evolução motívica (peltas, nós de
Qual a forma escolhida?
etc.),
em
cenas
O estudo pormenorizado dos pavimentos de
a nível de inscrições no pavimento: assinaturas
determinada região que leve em conta estes aspectos
de mosaistas? Identificação de proprietários?
poderá não só identificar a mão de uma mesma oficina
Saudação?
em diferentes pavimentos como, e sobretudo, conseguir
a nível de iconografia: animais (retratos – vide
cavalos em Torre da Palma, peixes em Milreu pássaros – também como representantes das
estações do ano – em Pisões e em Torres Novas etc.); figuras humanas (caça – Conimbriga; cenas
ligadas à agricultura, estações do ano –
Conímbriga, Rabaçal, Torres Novas – etc.),
representações diversas (barcos – Milreu, vasos –
Abicada, Torres Novas, etc., frutos, plantas,
arquitectura, etc., etc.)?
Ulisses,
individualizadas (Torre da Palma, Conimbriga)?
Salomão) através dos séculos e das províncias:
de
a
nível
da
representação
uma melhor percepção do proprietário da domus ou da
villa, das suas prioridades e formas de estar no
quotidiano, e assim, finalmente – e porque estes
pavimentos não eram pensados para ser substituídos
por outros em seguida – individualizar e reconhecer a
mensagem que cada proprietário e a sua família
queriam transmitir, através dos anos, para os que os
rodeavam e para os seus descendentes.
É nesta linha de pensamento que devem analisar-se
dois exemplos lusitanos, em território português,
únicos até agora na Península Ibérica: Pisões e villa
mitológica:
em
cardilio – Torres Novas22.
composição narrativa (Alter do Chão, Póvoa de
22
(Duran Kremer 2005, pp. 189-202).
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Fig. 12: Sala da Medusa ou das Estações do Ano. © M.J. Duran Kremer
Apesar de raiz indubitavelmente africana tanto a
nível do tema – as estações do ano e, com elas, o eterno
renascer dos campos, no caso de Pisões (Fig. 12), onde,
a nível motívico, a alegoria à vida agrícola é muito clara
(encontramos
o
mesmo
repertório
quase
exclusivamente em mosaicos norte-africanos) quanto de
execução, a sintaxe estilístico-ornamental e compositiva
de ambos os pavimentos aponta para um programa
iconográfico bem definido por parte do proprietário e
para uma concretização desse programa por oficinas
provinciais, locais.
Um programa iconográfico que, em villa cardilio
(Fig. 13), vai para além de uma alegoria às estações do
ano: é uma mensagem de renovação, de confiança no
renascer eterno simbolizado pela eterna sucessão das
estações do ano, mensagem essa reforçada pela
inscrição com que era acolhido o visitante e que nos
Fig. 13: Sala G, Torres Novas. Inscrição. © M.J. Duran Kremer
chegou através da bruma dos séculos:
VIVENTES
CARDILIVM
ETAVITAM
FELIXTVRRE
Ao levar em conta a simbologia do ordenamento
escolhido para o pavimento de cada sala num conceito
iconográfico
identificado
conscientemente
pelo
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