Construir o mais amplo mapa do Universo a três dimensões, com o objectivo de estudar 95 por cento da sua constituição – as invisíveis matéria escura e energia escura – pode parecer uma missão impossível, mas o Consórcio Euclid está empenhado em derrubar qualquer obstáculo que impeça o cumprimento desta meta. 

Um dos primeiros feitos da missão espacial Euclid são as imagens astronómicas a cores que a Agência Espacial Europeia divulgou nesta semana. "São imagens representativas de várias escalas do Universo", desde regiões no interior da nossa galáxia Via Láctea até enxames de galáxias, passando por imagens de galáxias próximas, de acordo com a nota de imprensa do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço (IA), que integra este consórcio internacional cujo nome é partilhado com o do telescópio que foi lançado no passado dia 1 de Julho para o espaço.

UM TELESCÓPIO-DETECTIVE

Ismael Tereno, do IA e da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (Ciências ULisboa), é membro do Grupo de Coordenação do Consórcio Euclid e lidera a equipa de apoio às operações dos rastreios, que continuará a produzir o planeamento das cerca de 50.000 observações a serem efectuadas pelo telescópio durante os seis anos desta missão.

Tereno ressalva que estas cinco imagens "nunca vistas" – apesar de nos apresentarem "a qualidade das observações que será indispensável ao sucesso da missão" – não são ainda as "imagens típicas do rastreio Euclid do universo profundo". O investigador acrescenta que aquilo que podemos ver "são imagens do Universo mais local que foram escolhidas pela sua beleza e pelo seu potencial para os objectivos científicos secundários do Euclid, o chamado legado que o catálogo Euclid possibilitará para o estudo da astrofísica de estrelas e galáxias individuais." Esta série é, portanto, apenas "um vislumbre das imagens astronómicas mais nítidas e profundas algumas vez obtidas numa tão extensa área do céu, e que se esperam para 2024 quando a missão começar as operações científicas", assinala o IA em comunicado.

A missão Euclid está pronta a prosseguir para a fase de mapeamento do universo, onde irá produzir o mais extenso mapa 3D do Universo alguma vez criado de modo a descobrir os segredos do Universo. 

Porque nunca vimos imagens deste calibre antes? O investigador na área das lentes gravitacionais sublinha que estas cinco imagens conseguiram "capturar os objectos científicos extensos por inteiro, ao mesmo tempo que mostram um nível sem precedentes de detalhes".

As características únicas do telescópio Euclid, sublinha Tereno, são "necessárias à sua missão de detective do Universo escuro. No entanto podem também ser exploradas para outros fins". É o caso das cinco imagens divulgadas nesta semana, que foram obtidas na fase de verificação de desempenho, revelando "que toda a maquinaria para o processamento de imagens está operacional e que a missão está pronta a prosseguir para a fase de mapeamento do universo, onde irá produzir o mais extenso mapa 3D do Universo alguma vez criado de modo a descobrir os segredos do Universo", lembra o cientista.

Pedimos a três investigadores do IA envolvidos na Missão Euclid – António da Silva*, ao próprio Ismael Tereno** e a Jarle Brinchmann*** – para escolherem e comentarem as suas imagens predilectas. Eis as suas declarações:

1. O enxame de GALÁXIAS Perseu

Perseus Cluster
ESA / Euclid / Euclid Consortium / NASA. Imagem processada por J.-C. Cuillandre (CEA Paris-Saclay), G. Anselmi, CC BY-SA 3.0 IGO

As imagens contêm alguns artefactos devido à interacção da luz com o sistema óptico complexo do telescópio, como os seis picos de difracção à volta das estrelas e algumas pequenas regiões azuladas circulares, os chamados fantasmas ópticos. Estes elementos da imagem serão identificados e removidos na análise de dados. 

"Com estes dados o nosso grupo de investigação no IA vai poder ajudar a responder a perguntas simples, mas verdadeiramente enigmáticas."

(António da Silva)

"Nesta imagem do enxame Perseu, que se situa a mais de 240 milhões de anos-luz de distância da Terra, conseguimos observar mais de um milhar de galáxias que nos permitem estimar a sua massa, e estudar a relação entre a quantidade de matéria luminosa (ordinária) e a matéria escura (que se pensa ser composta por partículas ainda desconhecidas ao nível da física de partículas). O satélite Euclid vai permitir-nos observar mais de 50.000 destes enxames sobre todo o céu extra-galáctico, o que constituirá o maior levantamento deste tipo de estruturas a realizar a partir do espaço. 

Com estes dados o nosso grupo de investigação no IA vai poder ajudar a responder a perguntas simples mais verdadeiramente enigmáticas tais como: Qual a origem e evolução destas estruturas? Como se relacionam com os modelos de Física de Altas Energias que procuram descrever o Universo logo após o Big Bang? Qual é o papel da matéria escura e energia escura nessa evolução? Pode a teoria da Relatividade Geral e os modelos de física de partículas prever correctamente as propriedades individuais e estatísticas destes objectos?" (António da Silva)

"A distribuição detalhada da matéria visível no enxame vai permitir, através do método das lentes gravitacionais, determinar a distribuição detalhada de matéria escura no enxame."

(Ismael Tereno)

"A imagem do enxame de galáxias Perseu é em si mesmo uma revolução na astronomia. Perseu é uma das estruturas mais massivas conhecidas, contendo cerca de 1.000 galáxias envolvidas por uma nuvem gigantesca de gás quente. 

Com a sua resolução e nitidez, vêem-se em primeiro plano as grandes galáxias elípticas, mas também muitas outras galáxias espirais anãs. Olhando com mais detalhe notam-se também estruturas difusas de baixa intensidade e luz entre galáxias, indicando a presença de estrelas livres que resultaram da interacção entre galáxias. Além disso, devido ao seu grande campo de visão, o Euclid consegue capturar todo o enxame numa só imagem, mostrando nitidamente que as grandes concentrações de matéria estão alinhadas ao longo de um filamento disposto numa diagonal na imagem. Ou seja, a visão alargada permite vislumbrar a estrutura de grande escala do Universo. Porém, a imagem mostra muito mais do que isto. Sucessivos zooms na imagem vão revelando uma quantidade impressionante de objectos astrofísicos distantes, alguns ocupando pouco mais do que um pixel e de diversas cores. Estima-se que a imagem contenha mais de 100 mil objectos, incluindo 50 mil galáxias distantes que estão muito para lá do enxame. As cores dessas galáxias são indicativas da sua distância, pois a sua cor de emissão varia com a expansão do Universo, sendo as mais vermelhas as mais distantes. Esta imagem constitui assim um resumo numa só imagem da riqueza do Universo.

Os cientistas do consórcio estão principalmente interessados nos detalhes que são agora revelados. A descoberta de muitas galáxias anãs é importante para a reconciliação com as previsões de simulações que apontam para a existência de um número muito maior dessas galáxias do que o já conhecido. A distribuição detalhada da matéria visível no enxame vai permitir, através do método das lentes gravitacionais, determinar a distribuição detalhada de matéria escura no enxame. Ao longo dos próximos anos, o Euclid irá observar muitos outros enxames e a abundância de enxames será um método complementar de estudar o processo de formação de estrutura no Universo e determinar a quantidade de matéria escura e energia escura. Finalmente, as centenas de milhares de galáxias distantes que aparecem nesta imagem são apenas uma pequena amostra das mil milhões de galáxias distantes que constituem o alvo principal do rastreio Euclid que terá início nos próximos meses." (Ismael Tereno) 

2. NEBULOSA DA CABEÇA DE CAVALO

 

Euclid s view of the Horsehead Nebula article
ESA / Euclid / Euclid Consortium / NASA. Imagem processada por J.-C. Cuillandre (CEA Paris-Saclay), G. Anselmi, CC BY-SA 3.0 IGO

A imagem da Nebulosa da Cabeça de Cavalo foi processada, como as restantes, combinando imagens da banda visível e de dois filtros infravermelho. As cores azuis correspondem a observações no visível, enquanto que o vermelho indica observações no infravermelho. 

"O amplo campo e a alta sensibilidade dos detectores de infravermelho próximo do [telescópio] Euclid permitem-nos fazer esse tipo de busca numa área muito maior do que era possível anteriormente." 

(Jarle Brinchmann)

"Entre a beleza dessas novas e gloriosas imagens de Euclid, escolho começar na nossa Via Láctea. Euclid não estudará a Via Láctea em grande detalhe – na verdade, evitá-la-emos o máximo possível, porque é muito brilhante e há muita poeira pelo meio do caminho. Mas, por um breve dia, conseguimos espiar a Via Láctea e começamos com uma das imagens mais icónicas no céu: a Nebulosa da Cabeça de Cavalo.

Esta nebulosa é um alvo popular – podemos encontrá-la logo a Sul da estrela mais a Leste do cinturão de Orion. Trata-se uma pequena nebulosa escura na região de formação estelar de Orion, a cerca de 1.500 anos-luz de distância – o brilho na parte inferior esquerda é a nebulosa de reflexão NGC 2023, que também pertence à mesma região de formação estelar. O que talvez seja incomum é que nas imagens que estamos acostumados a ver, a luz acima da Cabeça de Cavalo é vermelha, enquanto aqui ela é azul. Isso ocorre porque a emissão que dá origem ao brilho vem do hidrogénio, uma linha que está na parte vermelha do espectro óptico, mas como o Euclid tem um filtro óptico e três filtros de infravermelho próximo, a linha do hidrogénio é usada para preencher o canal azul nesta imagem.

A Nebulosa da Cabeça de Cavalo está localizada num berçário estelar, e com o Euclid, poderemos identificar objectos recém-formados menos massivos que estrelas, algo que poderíamos chamar planetas interestelares. O amplo campo e a alta sensibilidade dos detectores de infravermelho próximo do Euclid permitem-nos fazer esse tipo de busca numa área muito maior do que era possível anteriormente. (Jarle Brinchmann)

 

3. Galáxia espiral IC 342

galáxia espiral
ESA / Euclid / Euclid Consortium / NASA. Imagem processada por J.-C. Cuillandre (CEA Paris-Saclay), G. Anselmi, CC BY-SA 3.0 IGO

No centro desta imagem astronómica é visível uma grande galáxia espiral, de cor branca/cor-de-rosa. A galáxia cobre quase toda a imagem e aparece mais branca no seu centro, onde se encontram mais estrelas. Os seus braços em espiral estendem-se ao longo da imagem e aparecem mais ténues nas extremidades. 

"Ao olhar com atenção, poderemos seguir as estrelas na galáxia até às bordas da imagem – na verdade, a galáxia tem quase o tamanho da Lua cheia no céu."

(Jarle Brinchmann)

"Escondida atrás da parte empoeirada da Via Láctea, encontramos uma impressionante galáxia espiral, a IC 342. Essa bela galáxia espiral é um objecto desafiador para astrónomos amadores. Não é por estar longe, pois a 11 milhões de anos-luz é considerada uma galáxia próxima, mas sim porque está localizada atrás do plano da Via Láctea, sendo apelidada de 'Galáxia Escondida'. Esta galáxia possui regiões proeminentes de formação estelar, vistas em azul nos braços da espiral, bem como faixas de poeira semelhantes às regiões escuras que a Nebulosa da Cabeça de Cavalo exemplifica – estas faixas são particularmente impressionantes perto do centro da galáxia. Ao olhar com atenção, poderemos seguir as estrelas na galáxia até às bordas da imagem – na verdade, a galáxia tem quase o tamanho da Lua cheia no céu. Estudaremos muitas galáxias desse tipo com o Euclid, embora a maioria esteja muito mais distante do plano da Via Láctea. Através do uso de imagens de infravermelho próximo com o Euclid, podemos olhar através da poeira e estudar a composição estelar dessas galáxias, quantas estrelas têm, se possuem galáxias companheiras e, em muitos casos, estudar a perturbação das galáxias companheiras devido à atracção gravitacional das galáxias maiores – essas galáxias companheiras podem ser esticadas em correntes estelares que contêm uma grande riqueza de informação sobre como as galáxias se formaram e a sua composição de matéria bariónica e matéria escura." (Jarle Brinchmann)

4. galáxia irregular anã NGC 6822

irregular
ESA / Euclid / Euclid Consortium / NASA. Imagem processada por image processing J.-C. Cuillandre (CEA Paris-Saclay), G. Anselmi, CC BY-SA 3.0 IGO

O centro desta galáxia parece mais branco e as margens mais amarelas. São visíveis várias bolhas cor-de-rosa espalhadas pela galáxia, que são regiões de formação de estrelas. 

"[Esta] imagem é impressionante: vemos pequenas bolhas roxas, especialmente nas bordas da galáxia. Essas bolhas são o que resta das supernovas, estrelas em explosão."

(Jarle Brinchmann)

Aproximamo-nos de novo da Via Láctea – da galáxia irregular anã NGC 6822 a 1,6 milhão de anos-luz de distância. Na verdade, esta é a galáxia isolada deste tipo mais próxima da Via Láctea e foi identificada por Edwin Hubble.

Essas galáxias anãs são objectos interessantes de estudar por si só: geralmente são ricas em matéria escura e são mais sensíveis a muitos processos que regem a evolução das galáxias do que as galáxias mais massivas, e são locais onde podemos estudar o que acontece com as estrelas quando possuem baixas quantidades de elementos pesados, semelhantes ao que as primeiras estrelas do Universo devem ter tido. Isso também nos leva ao outro motivo pelo qual esses objectos são interessantes: acredita-se que as primeiras galáxias do Universo também eram muito pequenas, como galáxias anãs, pelo que, ao estudar essas galáxias no Universo próximo, onde podemos estudá-las com muito mais detalhes do que no Universo mais distante, podemos ajudar a entender pelo menos parte da natureza das galáxias distantes e mais antigas. A própria imagem é impressionante: vemos pequenas bolhas roxas, especialmente nas bordas da galáxia. Essas bolhas são o que resta das supernovas, estrelas em explosão, designadas como remanescentes de supernovas. Ao mesmo tempo, podemos ampliar a imagem e ver a galáxia resolver-se numa infinidade de estrelas. Aqui, vemos a qualidade superior da imagem do Euclid, o que nos permite estudar cada estrela individualmente. Isso irá ajudar a entender a natureza dessa anã e em que medida essas galáxias podem ser blocos de construção de galáxias mais massivas." (Jarle Brinchmann)

5. ENXAME GLOBULAR NGC 6397

enxame globular
ESA / Euclid / Euclid Consortium / NASA. Imagem processada por J.-C. Cuillandre (CEA Paris-Saclay), G. Anselmi, CC BY-SA 3.0 IGO

Este enxame faz parte da nossa galáxia, a Via Láctea. Está em órbita do seu disco espiral e é o segundo enxame globular mais próximo da Terra. 

"A parte exterior do enxame é a mais interessante para a investigação científica, pois dá pistas para o processo de formação da galáxia que alberga o enxame. Esta é uma imagem pioneira"

(Ismael Tereno)

"Um enxame globular é um aglomerado de estrelas unido por interacção gravítica. É, portanto, um objecto muito distinto de um enxame de galáxias, como o Perseu, que tem uma escala muito maior. Este enxame em particular faz parte da nossa galáxia, a Via Láctea, estando em órbita do seu disco espiral, sendo o segundo enxame globular mais próximo da Terra, a uma distância de 7.800 anos-luz. Esta é também uma imagem pioneira, pois o Euclid é o único telescópio que consegue ver o enxame em toda a sua extensão numa única imagem e ao mesmo tempo ter resolução suficiente para resolver todas as suas centenas de milhares de estrelas individualmente.

No centro do enxame vemos uma grande concentração de estrelas que torna a imagem muito brilhante. Para esse brilho não saturar a imagem e ofuscar as regiões exteriores, a imagem combina um tempo de exposição curto no centro e longo no exterior. A parte exterior do enxame é a mais interessante para a investigação científica, pois dá pistas para o processo de formação da galáxia que alberga o enxame. Em particular, vão-se procurar alinhamentos, também chamados caudas, de estrelas nessas regiões. A sua presença permite-nos compreender o historial de interacções. Pelo contrário, a sua ausência indicaria um forte confinamento da matéria e uma prova indirecta da presença de matéria escura à volta do enxame visível. Enxames globulares são portanto indicadores da interacção gravítica à escala das galáxias e da distribuição da matéria escura, de forma complementar aos indicadores de gravidade e matéria escura à escala cosmológica que são o objectivo central do Euclid." (Ismael Tereno)

próximos passos da missão

O IA lembra que estas imagens foram produzidas com observações na fase de verificação do desempenho dos instrumentos e de calibração das várias componentes, que durará mais cerca de dois meses. Terminado este período, o Euclid poderá iniciar o rastreio sistemático do Universo. Os primeiros catálogos resultantes do rastreio e os correspondentes mapas de matéria escura e resultados científicos estão previstos para 2025. (Para mais informações sobre a Missão Euclid e para aceder a todas as imagens desta série, clique aqui.)

 

* António da Silva ( IA e Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa) é o representante nacional da Direcção do Consórcio Euclid e membro de vários grupos de trabalho do consórcio nos domínios científicos dos aglomerados de galáxias e cosmologia observacional. É também o ponto de contacto nacional da missão junto da agência nacional Portugal Space.

** Ismael Tereno ( IA e Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa) é membro da missão Euclid desde a entrada de Portugal no consórcio Euclid em 2012, liderando a equipa que fornece o apoio à ESA nas operações do rastreio (Survey Operations Support Team – SOST, equipa financiada pela agência nacional Portugal Space). Pertence ao Grupo de  Coordenação do Consórcio Euclid e é membro do grupo de lentes gravitacionais, o grupo responsável pela produção dos resultados científicos nessa área da ciência primária do Euclid.

*** Jarle Brinchmann (IA e Universidade do Porto) é membro do Grupo de Coordenação do Consórcio Euclid, co-coordenador do Legado Científico da missão Euclid. Supervisiona desde 2012 a ciência não-cosmológica a ser feita com Euclid e seus requisitos. Co-lidera também o grupo de evolução de galáxias da missão e o grupo que gere o plano de publicação dos resultados científicos.