Às nove horas do dia 5 de Outubro de 1910, o político José Relvas assomou à varanda da Câmara Municipal de Lisboa para proclamar a implementação da República. A notícia espalhou-se pelo país via telégrafo e não se verificaram incidentes de maior. Começava então a Primeira República, que duraria até 1926, o ano do golpe militar de pendor iliberal que abriu portas à Segunda República e mais tarde, em 1933, ao Estado Novo.

O novo regime adoptou novos símbolos nacionais, nomeadamente a bandeira que ainda hoje representa o país dentro e fora de portas. Porém, é bom lembrar que imediatamente a seguir a este acontecimento, Portugal ficou dividido entre um Sul mais favorável à República e um Norte mais fiel à Monarquia (com excepção dos centros urbanos).

mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

Para os mais distraídos: a República não nasceu da noite para o dia. Aliás, o Republicanismo é uma ideia antiga em Portugal. O seu objectivo era o de substituir a monarquia e a figura do rei por um regime presidencial apoiado numa assembleia que reunisse representantes votados pela população. Embora possamos encontrar um germe de ideias republicanas já durante a Revolução Liberal de 1820, é com a fundação do Partido Republicano Português (PRP) em 1883 – fruto da união de várias pequenas facções desta ideologia – que a discussão se torna mais séria.

Os republicanos passarão o final do século XIX muito ocupados, queixando-se que o regime monárquico é um bloco sem ideias e sem mudanças. A extrema instabilidade política, com o governo rodando entre apenas dois partidos, o Regenerador e o Progressista, ambos fiéis ao rei, não ajudava. Na óptica dos republicanos, só um verdadeiro governo baseado nos ideais liberais da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade, Fraternidade – podia responder aos problemas do país.

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A proclamação da República na varanda da Câmara Municipal do Porto a 31 de Janeiro de 1891 acontece na sequência de um levantamento militar contra as cedências do Governo (e da Coroa) ao ultimato britânico de 1890 por causa do Mapa Cor-de-Rosa, que pretendia ligar, por terra, Angola a Moçambique. Ilustração de Tony Beltrand & Eugène Dété. Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal

uma CRISE de regime

Os constantes problemas económicos levavam a aumentos de impostos e a população manifestava-se em revoltas, como é o caso da da Janeirinha em 1868. Nenhum dos partidos parecia oferecer soluções – eram, aliás, muito idênticos e não tinham princípios ideológicos claros que os distinguissem. Pairava no ar a sensação de que o caciquismo e a corrupção reinavam, o que garantia espaço a uma terceira alternativa no poder. 

As constantes intervenções dos monarcas que precederam 1910 também não ajudaram. D. Luís e D. Carlos recorreram amiúde à dissolução do parlamento, forçando eleições, mas as mudanças nunca resultavam e apenas descredibilizavam o sistema político português. 

Em 1890, Inglaterra lança um ultimato a Portugal para que abandonasse o território entre as suas colónias africanas de Angola e Moçambique e a cedência  do rei causou revolta. 

O Partido Republicano tenta agitar as águas com manifestações públicas, acções de intervenção cultural, verdadeiro luto histórico. O frenesim atingiu o auge a 31 de Janeiro de 1891, quando se ensaia a primeira tentativa de implantação da República em Portugal. Aconteceu no Porto, com Alves da Veiga, advogado republicano, a subir à varanda da Câmara Municipal do Porto para proclamar a República. Boa parte da acção foi organizada por militares e, no empolgamento, foi esmagada por outros militares fiéis ao monarca. Os líderes do golpe exilaram-se e mais de quinhentos revoltosos foram presos. No entanto, o fracasso trouxe experiências e lições importantes sobre o que não se fazer quando se quer derrubar um rei.

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Carlos I foi rei entre 1889 e 1908, ano do seu assassinato na Rua do Arsenal, em Lisboa,

O PRINCÍPIO DO FIM 

Os problemas agravavam-se no reino. Circulavam rumores acerca dos extravagantes gastos a que a Família Real se entregava, nomeadamente a rainha D. Amélia. O rei Carlos I não transmitia melhor imagem, com a sua fama de esbanjador e as suas aventuras amorosas transformavam a figura real numa anedota que se desprezava com gosto. Com o crescimento de popularidade dos Republicanos, defendendo acima de tudo os trabalhadores dos grandes centros urbanos, os Regeneradores elaboraram em 1901 uma lei que limitava a participação dos cidadãos nos actos eleitorais, principalmente os mais pobres, e se destinava a condicionar o número de deputados do Partido Republicano. Na altura, em pleno desaguisado com o governo de Hintze Ribeiro, João Franco (que não era propriamente um republicano) chamou a lei de “ignóbil porcaria”. 

Em 1906, D. Carlos dissolve o Parlamento, e entrega uma maioria de poderes ao mesmo João Franco, que governa de forma autoritária o país. Afonso Costa, conhecido republicano e figura central na Primeira República portuguesa, foi expulso numa sessão parlamentar em 1907 por protestar contra o aumento do orçamento da Casa Real. Justificam-lhe a prisão por ter insultado o rei. 

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Cartaz homenageando os deputados do Partido Republicano eleitos nas legislativas de 1908. Figuram os seus retratos de Afonso Costa, João de Menezes, Alexandre Braga, António José de Almeida, Estêvão de Vasconcelos, Feio Terenas e Brito Camacho, com indicação do círculo eleitoral que os elegeu. Em legenda: «Homenagem aos Deputados eleitos pelo Povo em 5 Abril de 1908». Fonte: Fundação Mário Soares.

um regicídio sem grandes obstáculos

O nosso penúltimo rei era óptimo a coleccionar inimigos internos. À acção política dos Republicanos, junta-se o músculo da Maçonaria, uma sociedade secreta, e da Carbonária, outra sociedade secreta fundada por operários e com uma ideia de acção mais violenta. Se o sistema não se muda por dentro, é necessária uma acção externa e extrema, defendem. 

O acto decisivo aconteceu a 1 de Fevereiro de 1908, quando, após o regresso da Família Real do seu Palácio de Vila Viçosa – onde o rei tinha ido passar uns dias a caçar – uma saraivada de tiros atinge a carruagem real na Praça do Comércio, em Lisboa. D. Carlos fora avisado de que, dois dias antes, a Polícia impedira uma conjura para assassinar o rei e João Franco. Porém, o rei quis mostrar que nada temia e, para dar uma sensação de normalidade, avançou pela cidade com pouca escolta e tejadilho baixado. 

Então, soaram disparos. D. Carlos foi imediatamente atingido no pescoço com um tiro de carabinaO seu filho e herdeiro do trono reagiu, disparando sobre os atacantes, todos da Carbonária. Acabou atingido também na face. D. Manuel, o segundo filho, foi ferido num braço. Uma das representações do regicídio da época mostra a rainha D. Amélia defendendo-se e à sua família com um ramo de flores. Já depois da carruagem chegar ao Arsenal da Marinha de Lisboa, onde rei e herdeiro foram declarados mortos, encontraram-se no local do crime os corpos de Manuel Buíça e Alfredo Costa, homens de profissões modestas que ficaram como os algozes do rei. Os restantes membros da conspiração fugiram – a maior parte não foi nunca apanhada. D. Manuel sobe ao trono com o nome de D. Manuel II e o regicídio causa ondas de choque numa Europa maioritariamente monárquica.

 

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O regicídio visto de fora: Ilustração do assassinato de D. Carlos I publicada no Le Petit Journal. Fonte: Bibliothèque Nationale de France.

mas aINDA NÃO É DESTA...

Durante dois anos, D. Manuel II, à altura um jovem de apenas dezoito anos, promoveu medidas de tolerância e liberdade, tentando acalmar a agitação política. Em 1910, há eleições parlamentares e os Republicanos obtêm uma grande subida nos votos, consolidando a sua ascensão política. Sentem que os ventos sopram a seu favor e, a 3 de Outubro de 1910, os acontecimentos precipitam-se. Não são surpreendentes: o caricato na revolta do 5 de Outubro é que o governo sabia que iria acontecer.

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Posto de socorros durante a Revolução de 5 de Outubro de 1910. 

As tropas da guarnição de Lisboa foram colocadas todas de prevenção. Vários militares favoráveis à República começaram a agitar casernas e quartéis, roubando armas, recolhendo apoios entre outros soldados. Uma força de à volta de 200 soldados rumou à praça do Marquês de Pombal, onde durante cinco horas confrontou militares afectos à causa real, sem desarmar, mas também sem avançar. A situação estava periclitante e era necessário outro apoio para dominar Lisboa. No rio Tejo, alguns militares tomaram três navios de guerra aí ancorados, após alguma resistência.

Juntamente com outros 1.500 soldados na zona de Alcântara, estava assim constituída a força militar republicana. Três tiros de canhão são disparados do Tejo, sinal pré-combinado para que militares e civis republicanos avançassem. Mas nada se sucede… Na rotunda do Marquês, notícias sobre a não-adesão da população e do exército desmoralizam os presentes. A notícia do suicídio de Cândido dos Reis, figura maior do almirantado português e um carbonário que liderava o golpe, não melhorou a moral: o Almirante Reis julgou o plano como falhado e, impelido pela sua natureza bipolar, tomou uma decisão drástica.

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Os revoltosos concentram-se na rotunda no dia 5 de Outubro de 1910. Foto de Joshua Benoliel.

Durante o dia 4, no entanto, boas notícias para os revoltosos: um ataque supostamente decisivo de Paiva Couceiro é rechaçado pelas forças no Marquês e os três navios de guerra capturados bombardeiam o Terreiro do Paço. O rei, que aí estava, vê-se obrigado a fugir para Mafra, deixando a liderança da defesa meia orfã. Não é que ele quisesse fazê-lo: ficou gravada a frase com que retorquiu os que o incentivavam a fugir, sem dúvida com a memória ainda fresca do assassinato do pai e do irmão dois anos antes: “Vão vocês, se quiserem. Eu fico. Dado que a Constituição não me marca outro papel que não o de me deixar matar, cumpri-lo-ei”. Mas perante a constância dos bombardeamentos, teve mesmo de fugir.

Uma mistura de indecisão crónica por parte das forças monárquicas e o constante falhanço por parte de Paiva Couceiro em obter uma vitória, mesmo moral, acaba por sentenciar o sucesso da intentona republicana. A situação tornou-se tão confusa que um acto inocente foi interpretado como capitulação.

O embaixador alemão em Portugal pediu autorização ao general Gorjão, monárquico, para negociar com os Republicanos a retirada dos estrangeiros da cidade. O general aceitou e o embaixador subiu então a Avenida da Liberdade de bandeira branca na mão, como sinal de boa vontade e não-agressão. Em virtude da sublevação da maior parte das forças militares sediadas no quartel do Rossio, o principal de Lisboa, não se conseguiu uma reacção. Assim, os Republicanos, no entanto, interpretaram isto como uma rendição monárquica e, como tal, as figuras políticas viram isto como a oportunidade que esperavam para entrar em cena.

Às nove horas do dia 5 de Outubro, José Relvas, político, liderou uma comitiva de republicanos a proclamar a "Republica Portugueza" na varanda da Câmara Municipal de Lisboa.

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Litografia colorida, alegadamente da autoria de Cândido da Silva, alusiva à revolução que "deflagrou" na noite de 3 de Outubro de 1910, em Lisboa, e que conduziu à proclamação da República Portuguesa no dia 5.