Com as articulações entumecidas, mas felizes por estarmos de volta, saltámos para a margem, abandonando o barco que nos transportara nos últimos quilómetros pelo lago Tanganica. Uma tempestade de Abril formava-se no horizonte, pelo que nos apressámos a guardar as malas e o equipamento debaixo de lonas, no velho acampamento junto ao lago.

A chuvada tropical desabou de repente. Estávamos a transferir as coisas para as preservar do dilúvio que escorria por um rasgão na tenda, quando o meu marido, Hugo, agarrou no meu braço e apontou. “É a família de Flo!”, exclamei, sem acreditar no que os meus olhos viam. Três chimpanzés encharcados acocoravam-se sob uma pequena figueira em frente à tenda. Lá estava a rija e velha Flo com Figan, de sete anos, e a pequena Fifi, com apenas quatro anos e meio. De súbito, Flo levantou uma das mãos e vimos um quarto chimpanzé! Apesar da rapidez da observação, distinguimos nitidamente uma minúscula criatura de pêlo negro, agarrada ao ventre quente e seco da sua mãe.

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Ektachrome © NGS.

Por favor, pára de me fazer cócegas! Fifi, uma chimpanzé com cinco anos da Reserva de Caça do Rio Gombe, na Tanzânia, afasta a mão da sua companheira humana de brincadeiras, a baronesa Jane van Lawick-Goodall. Flint, o irmão de Fifi, com apenas um ano de idade, assiste à cena. A jovem cientista britânica  tornou-se a principal autoridade sobre a vida destes primatas em liberdade.

Uma breve mensagem em suaíli acelerara a nossa partida de Londres, de regresso à Reserva de Caça do Rio Gombe, junto ao lago Tanganica. Ali, entre montes cobertos de erva e vales frondosos, passáramos quatro anos a estudar os comportamentos dos chimpanzés selvagens.
“Flo amekwisha kuzaa”, anunciava a carta do nosso cozinheiro Dominic, que cuidava do acampamento na nossa ausência: “Flo teve o bebé.” Não pudemos partir imediatamente, porque eu precisava de terminar primeiro o semestre na Universidade de Cambridge e, no dia 28 de Março de 1964, esperava-nos um compromisso bastante importante: o nosso casamento. Depois de apenas três dias de lua-de-mel, regressámos à África Oriental para vermos o novo bebé de Flo.

Pouco a pouco foram-me aceitando e eu comecei a perceber as regras pelas quais se pautava o seu comportamento.

Agora, enquanto ali estávamos (os chimpanzés, Hugo e eu), aguardando que a tempestade passasse, recordei os primeiros tempos difíceis, durante os quais usara a mesma velha tenda como refúgio, quando os símios se dispersavam, assustados, ao avistarem o estranho primata sem pêlo que invadira o seu território.
Porém, pouco a pouco foram-me aceitando e eu comecei a perceber as regras pelas quais se pautava o seu comportamento. Descobri que, quando andam pelas montanhas em busca de alimento, deslocam-se em grupos temporários formados essencialmente com base em amizades pessoais e dormem como verdadeiros nómadas – no local onde o anoitecer os surpreende.
Mais importante, contudo, foi descobrir que estes chimpanzés utilizam – e chegam mesmo a fabricar – utensílios toscos para capturar e comer formigas e térmitas. Em último lugar, presenciámos e gravámos em filme a estilizada e admirável exibição de um chimpanzé a que chamámos a “dança da chuva”.

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O terreno montanhoso da Reserva de Caça do Rio Gombe funciona como laboratório. Jane mudou o seu acampamento de lugar duas vezes, afastando-o mais para o interior relativamente ao lago Tanganica, onde a actividade humana inibe os chimpanzés e altera o seu comportamento (mapa). O Acampamento Antigo, na margem do lago, atrai pessoas e símios: um pescador vem pedir medicamentos a Jane (em cima).  Kodachrome © NGS.

No entanto, só passados vários meses de observação principiei a compreender a subtileza das relações entre os chimpanzés e a complexidade da comunicação entre eles. Isso começou a ser possível graças a David Greybeard [David Barba-Cinzenta] que, em 1962, veio ao acampamento e aceitou uma banana da minha mão. Na esperança de partilhar a mesma sorte, seguiram-se os seus amigos, primeiro Goliath e William e, depois, outros – entre os quais Flo e os seus filhos.
Chegou então o dia, depois de quatro anos a cuidar da sua filha Fifi, em que Flo voltou a ser sexualmente atraente. Foi seguida até ao acampamento por uma comitiva de 15 machos, que reuniram coragem suficiente para tentar roubar algumas bananas. A partir de então, nunca mais deixaram de voltar.
Nesse instante, apercebemo-nos da magnífica solução que tínhamos encontrado: podíamos fazer observações regulares, num único local, dos diversos membros desta comunidade nómada. Foi assim que o Banana Club, nascido de maneira tão casual, se transformou num sistema de alimentação organizado que daria resultados de significado científico transcendente: um dos mais importantes foi o registo contínuo por nós feito do desenvolvimento da nova cria, que víamos agora tão incrivelmente perto, aninhada no colo da mãe.

De imediato, a cria, a que mais tarde chamaríamos Flint, largou o pêlo de Flo.

Por fim, a chuva abrandou. Hugo pegou em algumas bananas e Flo desceu da árvore. Aconchegando a sua cria entre o ventre e a coxa, caminhou sobre três patas na nossa direcção, seguida da pequena Fifi e do jovial Figan. Enquanto apertava a cria contra o peito com a mão, Flo pegou calmamente numa banana.
De imediato, a cria, a que mais tarde chamaríamos Flint, largou o pêlo de Flo com a mão, estendeu os dedos cor-de-rosa e voltou a agarrar-se a ela. Depois, rodou a cabeça e foi então que vimos o rosto pálido, os olhos escuros e brilhantes e um dos lados da minúscula e engraçada boca, antes de ela enfiar de novo a cabeça na pelagem de Flo. Começou a mamar ritmada e ruidosamente, enquanto Flo mastigava as suas bananas.


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De rostos encostados, Fifi, de quatro anos, pendura-se num ramo com uma companheira de brincadeiras, a fêmea de dois anos Gilka. Ektachrome © NGS.

O momento foi inesquecível: admirava-nos por completo que uma progenitora chimpanzé selvagem confiasse tanto em nós, ao ponto de trazer a sua cria até ao nosso alcance. Quando as bananas acabaram, Figan guiou a progenitora, a irmã e o seu novo irmão até às montanhas. Assim que desapareceram entre as árvores, Hugo e eu dançámos à roda do poste da tenda.
“Contente?”, perguntou Hugo, sem precisar de resposta.

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Flint, de onze meses, estende a mão à sua amiga. Tal como uma criança a dar os primeiros passos, Flint afasta-se dos braços protectores da progenitora para curtas expedições exploratórias. Flo, porém, mantém-se nas proximidades e não o perde de vista. Fotografia Barão Hugo Van Lawick  © NGS.

Nessa noite, comemorámos junto à fogueira do acampamento, saboreando um delicioso caril cozinhado por Dominic. No dia seguinte, voltámos à nossa rotina de trabalho na reserva.
As chuvas caíram sem parar, dia após dia, e os fungos atacaram, em sucessão, todas as objectivas das máquinas fotográficas de Hugo. Os víveres começaram a escassear, dado que as cheias tinham submergido a linha ferroviária entre Dar-es-Salaam e Kigoma, o pequeno porto situado junto ao lago, a quase 26 quilómetros de distância. No final, acabámos por ficar sem manteiga, sem açúcar, sem correio e com pouco de tudo o resto.  

Ao ver aproximar-se o robusto Faben, de 12 anos, Melissa teme pela segurança da sua nova cria, Goblin, na imagem escondido da objectiva por um tronco. A progenitora, preocupada, estende a pata em súplica, aguardando a resposta tranquilizadora do adulto. A princípio, Faben não reage, mas depois,  estende-lhe a pata com a palma virada para baixo. Fotografias Barão Hugo Van Lawick  © NGS.

Foi nestas condições lamentáveis que demos as boas-vindas à nossa nova assistente holandesa, Edna Koning, que veio no último comboio a chegar a Kigoma num espaço de três meses. Edna lera o meu primeiro artigo publicado na revista e decidira trabalhar comigo. Uma vez que, nessa época, residia no Peru, trabalhou duramente para pagar a viagem até África.
Eu falara brevemente com Edna antes de ela chegar à reserva, mas ainda havia muito a explicar-lhe sobre o trabalho que iria fazer. Na sua primeira noite, conversámos durante quatro horas.
Edna ansiava por saber mais sobre os chimpanzés. “Estou com tanta vontade de conhecer o David, o William e o Goliath!”, afirmou.
Tivemos de dizer-lhe que o William morrera – o velho e querido William, o bobo da terra dos chimpanzés, de lábio inferior pendente e cicatriz no lábio superior. A sua tosse agravara-se gradualmente e, um dia, deixou de aparecer. Oito semanas depois, abandonámos a esperança de o voltar a ver.

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Por recomendação de Louis Leakey, em 1962 o conhecido fotógrafo holandês de vida selvagem, o barão Hugo van Lawick, começou a filmar o trabalho de Jane Goodall com os chimpanzés. O holandês e a cientista britânica casaram-se em 1964 e prosseguiram este estudo sem precedentes dos chimpanzés em liberdade. Ektachromes Vanne Morris-Goodall.

Hugo trouxe a nossa “galeria de retratos” composta por fotografias de chimpanzés para Edna ver como os rostos dos animais variavam.
“A princípio, vai provavelmente achar que todos são muito parecidos uns com os outros, mas, passado algum tempo, conseguirá identificar facilmente cada um deles”, disse-lhe Hugo.
“Também se consegue identificar um chimpanzé pela maneira como caminha e pela voz”, acrescentei. “Todos têm características totalmente individualizadas.”
Folheámos lentamente o álbum, fazendo pausas para descrever as personagens mais importantes.
“Este não deve ser difícil de reconhecer”, afirmou Edna, apontando para Mr. McGregor. “Parece que tem a tonsura de um monge.”
Com efeito, com a sua coroa calva, o pescoço e os ombros desprovidos de pêlo e a sua predilecção por caminhar erecto, Mr. McGregor parecia-se bastante com um estranho velho da floresta.
Chegámos então à fotografia de Mr. Worzle, um dos mais invulgares chimpanzés que até hoje conhecemos. Mr. Worzle tinha os olhos semelhantes aos dos seres humanos. Nos outros chimpanzés, a parte do globo ocular em redor da pupila é fortemente pigmentada e castanha: em Mr. Worzle, essa área é branca, como no olho de um ser humano.

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Os olhos de aspecto humano distinguem Mr. Worzle. "Com excepção de uma fêmea, já falecida, este é o único chimpanzé que conheço com a superfície em redor da pupila de cor branca", diz Jane. Ektachromes © NGS.

Por fim, mostrámos a Edna fotografias de algumas fêmeas e dos seus filhos: Melissa, Olly e as suas duas crias e, por fim, Flo. Como sempre, Flo foi a estrela do espectáculo.
“Como é possível que ela seja tão feia?”, perguntou Edna. Parecia-lhe difícil de acreditar que a velha Flo fosse a fêmea mais popular do grupo.
Flo é efectivamente feia. É tão velha que tem os dentes gastos até às gengivas. O nariz é deformado e bolboso, uma das orelhas apresenta-se denteada, com um grande bocado a menos, e quase não possui queixo. E contudo tem tanta personalidade como um pelotão completo de chimpanzés.
Flo tem quatro filhos, e a ligação entre estes cinco chimpanzés não é muito diferente da que encontramos numa família humana. Com uma diferença, claro: os chimpanzés são animais promíscuos e o progenitor não faz parte da família.


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Ao meio-dia, Flo e Flint repousam nove metros acima do solo. Dobrando e entrelaçando galhos na bifurcação de um ramo, Flo construiu o seu ninho em menos de cinco minutos. Os chimpanzés constroem ninhos de dia durante a estação das chuvas para escapar ao chão húmido da floresta. A autora costuma trepar às árvores  para conseguir ver acima do capim da reserva, que chega a superar os quatro metros de altura. Ektachromes © NGS.

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Pouco depois da chegada de Edna, decidimos transferir o nosso acampamento cerca de um quilómetro mais para cima, no vale do ribeiro de Kakombe. Pareceu-nos que os chimpanzés se sentiriam mais à vontade se vivêssemos afastados do nosso pessoal africano. Estaríamos igualmente mais longe das praias para onde os pescadores trazem grandes quantidades de um peixe do tamanho da sardinha chamado dagaa, espalhando-o sobre o solo para secar, depois das pescarias nocturnas.
Hugo e eu descobrimos uma clareira com uma vista soberba sobre as encostas vizinhas. Espécie de paraíso na selva, encontrava-se rodeada de árvores brilhantes de flores vermelhas. Beija-flores de cor garrida sugavam o néctar das corolas.

Tudo teve de ser feito depois do anoitecer para não perturbar os chimpanzés.

A nossa mudança foi memorável, mas trabalhosa. Limpámos o mato no local de instalação das tendas, abrimos um trilho a machete pelo capim com mais de quatro metros de altura, carregámos o equipamento. Tudo teve de ser feito depois do anoitecer para não perturbar os chimpanzés. Então, quando tudo estava em ordem, foi preciso familiarizar os chimpanzés com a nova solução. Nunca me esquecerei da forma como o Hugo tratou do assunto. Eu partira para o Acampamento Novo de manhã cedo, na esperança de atrair a atenção de alguns chimpanzés que passassem por mim. Às 9 horas da manhã, liguei o intercomunicador e falei com Hugo, que estava no Acampamento Antigo.

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Olly esforça-se em vão por abrir a tampa de aço de um contentor de betão. Para atrair os chimpanzés e estudá-los de perto, Jane Goodall instalou 15 caixas como esta espalhadas pelos cerca de 200 metros quadrados da área do acampamento para simular uma fonte natural de víveres. Um sistema de alavancas e cabos permite abrir as tampas à distância. Ektachromes © NGS.

“Alô, consegues ouvir-me? Escuto.”
“Ouço-te alto e bom som”, ouviu-se a resposta abafada de Hugo. “Há aqui muitos chimpanzés...” A voz desapareceu e, depois, voltou a ouvir-se, prejudicada por interferências: “... bzz... bzz... Goliath... bzz... Flo”. Subitamente, com toda a clareza, escutei: “Queres que eu os conduza até aí?”
Concordei sem muita convicção, pois não me parecia que esta solução pudesse resultar.
O caminho entre o Acampamento Antigo e o Acampamento Novo passa por uma encosta íngreme e escorregadia, atravessa o alto de uma colina e, depois, desce até às nossas tendas. Normalmente, o passeio demora cerca de 15 minutos. Por isso, imaginem a minha surpresa quando, cerca de cinco minutos depois de ter desligado o intercomunicador, comecei a ouvir um tumulto de gritos e berros de chimpanzé e a voz de Hugo em frenesi.

Com gritos deliciados, a horda carregou, passando por Hugo e precipitou-se sobre a fruta.

Descendo do alto da colina, correndo como nunca antes o vira correr, vinha o meu marido de caixa de madeira na mão e gritando qualquer coisa acerca de bananas. Mesmo atrás dele, saltavam 14 chimpanzés, de pêlo no ar e gritando de excitação.
Agarrei rapidamente numa braçada de bananas e espalhei-as pelo chão. Com gritos deliciados, a horda carregou, passando por Hugo e precipitou-se sobre a fruta.
Afastei-me rapidamente do caminho, porque os grandes machos – Goliath e J.B. (John Bull), Mike e David Greybeard – tinham atingido um nível elevado de excitação. Ora chimpanzés agitados e muito mais fortes do que um homem são potencialmente perigosos e há sempre a possibilidade remota de atacarem.
Depois de recuperar o fôlego, Hugo contou-me que, no Acampamento Antigo, passara pelo grupo de chimpanzés carregando um dos nossos caixotes de bananas. A alguma distância deles, atirara uma banana e sacudira a caixa, como que a sugerir que estava cheia, e a seguir desatara a correr pelo trilho íngreme acima.

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A cientista e o objecto de estudo brincam no exterior da tenda da autora. Jane sorri quando Figan lhe dá palmadas e lhe faz cócegas atrás do pescoço. Ektachromes barão Hugo van Lawick © NGS.

Foi o nosso querido e confiante David Greybeard que, de imediato, começou a soltar gritos de satisfação e a correr atrás de Hugo, seguido de perto pela multidão de chimpanzés entusiasmados.
“O meu maior horror foi imaginar que os chimpanzés me apanhassem e descobrissem que a caixa estava, afinal, vazia”, contou-me Hugo.
Tal como esperáramos, os chimpanzés mostraram-se imediatamente mais descontraídos e confiantes quando nos visitaram no Acampamento Novo. Antes disso, tinham sido eles a ousar pôr o pé em território humano; agora, os papéis invertiam-se e éramos nós que mudávamos para o território dos chimpanzés, para a sua floresta natal.
As chuvas foram progressivamente abrandando. O sol começou a emergir, fazendo evaporar a humidade de sete meses de cargas de água, até que o solo endureceu e o capim se tornou amarelo e quebradiço.

Partia muitas vezes em busca dos nómadas, deambulando atrás destes meus velhos conhecidos.

Os chimpanzés principiaram a fazer a sesta no calor do chão seco, em vez de se espreguiçarem nos ramos das árvores ou de ali se aconchegarem em ninhos . À medida que a estação seca avançava, faziam incursões a distâncias cada vez maiores, em busca de figos ou abrunhos silvestres que amadureciam primeiro num e depois noutro vale fértil.
Partia muitas vezes em busca dos nómadas, deambulando atrás destes meus velhos conhecidos. Encontrava-os, alguns rostos familiares, outros não, a alimentar-se em grupos felizes e barulhentos ou cortejando alguma fêmea atraente. Dois outros chimpanzés nasceram durante este período. Acreditamos que nenhuma das progenitoras tinha tido crias antes disso.
Melissa, embora tratasse da cria com eficiência, parecia olhá-la como uma incapacidade. Mostrava a sua irritação quando Goblin lhe agarrava o pêlo nos lugares errados. Quando ele começava a escorregar-lhe do colo, ela raramente se preocupava em embalá-lo para o adormecer e empurrava-o frequentemente para o lado quando ele interferia com os seus afazeres.
Mandy, em contrapartida, era a mais devotada das progenitoras. A sua primeira preocupação era sempre que a pequena Jane estivesse confortável, ou agarrada a si com segurança. Foi trágico que Mandy, como adiante contarei, estivesse destinada a perder a sua cria, passados apenas três meses.

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Um dos passatempos preferidos dos chimpanzés é catarem-se uns aos outros. De ombros calvos, Mr. McGregor, inspecciona a pelagem de Leakey, em busca de escamas de pele seca e sementes de gramíneas. Flo (à direita) escabicha o seu filho Figan, enquanto o pequeno Flint se agarra à irmã, Fifi. O nascimento de Flint trouxe Jane de regresso a África para estudar o desenvolvimento do chimpanzé nascido em ambiente selvagem. Ektachrome © NGS.

Continuámos a distribuir bananas pelo Acampamento Antigo, onde tinha ficado o pessoal e a cozinha, até que todos os chimpanzés se habituassem ao Acampamento Novo. Não me surpreendeu que isto acontecesse tão depressa. Os chimpanzés vagueiam constantemente pela floresta em busca de alimento. E todos os anos o padrão alimentar altera-se: muitas árvores só frutificam em abundância de dois em dois anos e as variações sazonais exercem grande influência sobre a época em que os diferentes alimentos se encontram disponíveis. Por isso, a “frutificação” das bananas noutro tipo de local (como é evidente, importávamo-las para a reserva, trazendo-as de barco) parecia uma coisa natural para os chimpanzés. Em breve, até os mais tímidos perderam o medo.

Felizmente, apesar da sua paixão por chupar tecido, os chimpanzés não costumam cobiçar as roupas que trazemos vestidas.

Por vezes, isto tornava a vida um pouco difícil. Por um lado, um número cada vez maior do nosso grupo com cerca de 45 chimpanzés conseguia reunir coragem suficiente para entrar tenda adentro, e cada um deles era um ladrão em potência. Todos os chimpanzés adoram chupar tecido e mastigar cartão ou papel. Os nossos mostravam especial predilecção por toalhas de chá, mas, primeiro, tinham de as sujar!
Certo dia, a minha mãe, que nos visitara durante três meses, estava calmamente a escrever uma carta quando, “subitamente”, como nos contou, “uma mão peluda se enfiou pela abertura da tenda e, num ápice, a carta desapareceu. Espreitei e ali estava Figan sentado, com uma bola ensopada de papel mastigado na boca”.
Felizmente, apesar da sua paixão por chupar tecido, os chimpanzés não costumam cobiçar as roupas que trazemos vestidas. Uma vez, porém, quando eu andava sozinha pela floresta, um grande macho aproximou-se de mim e começou a puxar-me a camisa. Como ela não se soltava, o pêlo do chimpanzé começou a eriçar-se e ele puxou outra vez. Tinha começado a desapertar os botões quando, repentinamente, ele se conformou, sentando-se pacificamente ao meu lado e começando a chupar sossegadamente uma das pontas da camisa.


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o chimpazé Hugo, na imagem, dá um pio para saudar outro símio que se aproxima através da chuva. Ektachrome © NGS

Mr. McGregor tem uma paixão por ovos de aves. Por norma, parte o ovo dentro da boca, acrescenta-lhe um punhado de folhas e, depois, chupa e mastiga aquela “salada de ovo”. Lembro-me bem do dia em que ele roubou seis ovos de galinha que Edna acabara de cozer. Pobre Mr. McGregor! Ao partir o primeiro ovo, ficou à espera, com uma expressão de espanto crescente, que o líquido delicioso lhe escorresse para a boca. Mas nada aconteceu, porque o ovo estava bem cozido!
Passado pouco tempo, cuspiu a salada para a mão e ficou a olhar para ela. Então, deitou fora as folhas, agarrou noutro ovo e experimentou de novo. Tentou o processo completo pelo menos quatro vezes. Em cada ovo que punha na boca, acrescentava quantidades cada vez maiores de folhas, até mastigar uma grande bola de pedaços de clara e de gema e montes de verdura. Acho que foi com alívio que Mr. McGregor voltou às bananas, deixando-nos exaustos de tanto rir.

Muitos chimpanzés faziam exibições com os nossos objectos, mas só Mike se serviu deles de maneira a alterar radicalmente o seu estatuto social.

Quando se sentem frustrados ou excitados, os chimpanzés costumam fazer demonstrações de “investida”. Desatam a correr, arrastando ramos caídos ou quebrados, atirando pedras ou paus, saltando para balouçar em ramos, batendo com os pés ou com as mãos no chão.
Agora descobriram que as cadeiras e as mesas são ideais para arrastar, as chaleiras e outros pequenos objectos magníficos para atirar e os postes e as espias das tendas excelentes para balouçar. Certa vez, Goliath carregou tenda adentro, saltando de um poste para o outro. A tenda desmoronou-se. A partir daí começámos a utilizar troncos de árvore ancorados em cimento como postes de tenda!
Muitos chimpanzés faziam exibições com os nossos objectos, mas só Mike se serviu deles de maneira a alterar radicalmente o seu estatuto social.
No ano antes de nos instalarmos no Acampamento Novo, os machos de estatuto mais elevado eram Goliath, J.B. e Leakey. Mike, embora de tamanho idêntico, tinha um estatuto inferior. Não sabíamos bem porquê, mas estava constantemente a ser atacado ou ameaçado por quase todos os outros machos. Quando deixámos a reserva no final do ano, Mike mostrava-se intimidado e nervoso e encolhia-se ao mais pequeno som.

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J.B. (John Bull) põe uma pata afectuosa sobre a cabeça de Fifi. Os chimpanzés precisam do contacto físico para se sentirem seguros. Quando ficam nervosos ou preocupados, tocam uns nos outros e, ao cumprimentar-se, costumam abraçar-se. Ektachrome © NGS.

Quando regressámos, encontrámos um Mike diferente, temido por quase todos os outros membros da comunidade. Nunca teremos a certeza, mas parece provável que, ao deixarmos abandonadas no terreno latas vazias de querosene, contribuíramos para a sua ascensão no poder. Ele aprendera a atirar ao chão e a arrastar essas latas e elas faziam um enorme ruído.
Mike fazia frequentemente o seguinte: dirigia-se à tenda enquanto um grupo de chimpanzés descansava calmamente nas redondezas, escolhia uma lata na varanda e levava-a lá para fora. Então, de repente, começava a bambolear-se ligeiramente de um lado para o outro, emitindo gritos de tom grave. Assim que os gritos atingiam um crescendo, ele largava, arremessando a lata à sua frente. Era capaz de fazer este jogo com três latas, uma após a outra.

Na década de 1960, descobri que os chimpanzés de Gombe utilizam caules de capim, ramos e paus como ferramentas primitivas para se alimentarem de térmitas e formigas.

Por regra, os chimpanzés detestam ruídos sonoros, excepto os seus próprios gritos, e por isso, com esta estranha demonstração, Mike assustava os outros. Nós acabámos por lamentar o seu comportamento e escondíamos todas as latas. Por essa altura, contudo, Mike já não precisava de apoios artificiais, embora estes o tivessem ajudado a subir de estatuto. Quando ele se aproximava, os outros chimpanzés arquejavam nervosamente e inclinavam-se até ao chão, reconhecendo a sua supremacia.
Na década de 1960, descobri que os chimpanzés de Gombe utilizam caules de capim, ramos e paus como ferramentas primitivas para se alimentarem de térmitas e formigas. Agora, descobrimos entre estes símios uma nova e entusiasmante utilização de ferramentas.
Lembro-me, como se fosse hoje, do dia em que, caminhando pelas profundezas da floresta, Hugo e eu vimos pela primeira vez a utilização dessa ferramenta. O jovem Evered estava ociosamente sentado numa árvore. Outros chimpanzés descansavam nas imediações. Por acaso, reparámos que Evered esticou a mão, pegou numa mão-cheia de folhas e pô-las dentro da boca.
“Olha!”, exclamou Hugo. “O que será que ele está a fazer?”

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Os caçadores de térmitas fabricam as suas próprias ferramentas. Depois de escolherem um caule de capim, um galho ou um talo, os chimpanzés introduzem-no na termiteira. Na imagem, Fifi caça com um pedaço de capim. Ektachrome Barão Hugo van Lawick © NGS.

Enquanto o observávamos, Evered retirou as folhas da boca num monte amachucado, ligeiramente mastigado. Segurando-as entre o primeiro e o segundo dedos da pata, mergulhou-as num pequeno buraco do tronco ao seu lado. Quando de lá retirou as verduras em puré, vimos o brilho da água.
Abrimos os olhos de espanto ao repararmos que Evered chupava o líquido das folhas!
Voltou a mergulhar a sua “esponja” caseira no recipiente de água natural e bebeu mais uma vez. De maneira inteligente, Evered transformara um objecto natural e adaptou-o a um uso específico. Era uma nova ferramenta!
A partir desse dia, vimos outros chimpanzés beberem da mesma maneira, quando não conseguiam alcançar directamente a água com os lábios e, tal como Evered, eles mastigavam sempre primeiro um pouco as folhas, antes de com elas absorverem a bebida.

Comparámos a técnica de mergulhar os dedos com a utilização de folhas esmagadas e descobrimos que a “esponja” é oito vezes mais eficiente.

O toque de requinte é acrescentado quando eles amachucam de início as folhas, porque este processo aumenta a capacidade de absorção. Noutra região de África, foi observado um chimpanzé a embeber os dedos da pata numa taça de água e a lamber as gotas. Comparámos a técnica de mergulhar os dedos com a utilização de folhas esmagadas e descobrimos que a “esponja” é oito vezes mais eficiente.
Vimos também os chimpanzés utilizando folhas para outro objectivo diferente: costumam frequentemente limpar com elas qualquer substância peganhenta ou desagradável (lama, sangue, resíduos de alimentos) que a eles esteja agarrada. As progenitoras limpam-se imediatamente com mãos-cheias de folhas quando as suas crias acidentalmente as sujam.
Assim, o chimpanzé dá bom uso a muitos dos objectos do ambiente que o rodeia: paus e caules com que apanha insectos para se alimentar e folhas para beber e para se limpar.

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O engenho proporciona a Figan água para beber. Ao descobrir um recipiente natural de água dentro de um tronco, ele chupa a água com os lábios (em cima). Quando o nível fica demasiado baixo, mastiga um molho de folhas e fabrica uma “esponja”. Mergulhando as folhas na água, ele suga depois a humidade. Ao modificar um objecto natural, Figan fabricou uma ferramenta primitiva. Ektachromes © NGS.

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Também se serve de paus e de pedras como meios de valorizar as suas demonstrações de excitação e, muito raramente, como armas. Neste contexto, surpreende-me que os chimpanzés do rio Gombe não se tenham desenvolvido a apontar e arremessar objectos como meio de ataque e defesa. Em raras ocasiões vimos chimpanzés fazer pontaria e atirar. Mesmo nessas ocasiões, só em duas delas os objectos arremessados eram suficientemente grandes para causar danos se tivessem atingido o alvo.
Em alguns círculos científicos, discute-se se os hominídeos arcaicos teriam utilizado os objectos primeiro como ferramentas ou como armas. Ninguém pode extrair conclusões concretas a partir desta comunidade de chimpanzés, mas os exemplos por mim fornecidos demonstram repetidamente que estes chimpanzés, ainda que raramente utilizem objectos como armas, alcançaram um nível elevado de desenvolvimento, ao seleccionarem e manusearem objectos como ferramentas.


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Flo (em cima) apanha com os lábios os insectos que vêm agarrados a um caule, enquanto Marina (em baixo) tenta capturar com a pata um insecto que foge. Ektachrome Barão Hugo van Lawick © NGS.

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Alguns objectos cumprem ainda outra função: são utilizados como brinquedos, porque os filhos dos chimpanzés selvagens, à semelhança dos filhos dos seres humanos, adoram brincar com objectos e com outras crias. A floresta onde vivem fornece-lhes brinquedos maravilhosos. Um deles é o fruto redondo e de casca dura da árvore Strychnos, do tamanho de uma bola de ténis. Os jovens chimpanzés brincam frequentemente com estes frutos, mas foi Figan quem aperfeiçoou a arte. Deitado no chão de costas, ele fazia o fruto rodopiar, equilibrando-o sobre as mãos e pontapeando-o suavemente com os pés, como se fosse um urso no circo.

À medida que vão envelhecendo, os animais em ambiente selvagem brincam mais do que os seus parentes em jardins zoológicos.

Talvez o mais bizarro dos brinquedos fosse a ratazana morta que Fifi arrastou certo dia atrás de si, espreitando-a por cima do ombro, tal como uma criança olha para um carrinho de rolamentos.
Os jovens chimpanzés selvagens são tão brincalhões como em cativeiro. À medida que vão envelhecendo, os animais em ambiente selvagem brincam mais do que os seus parentes em jardins zoológicos, de movimentos mais confinados. Os próprios adultos brincam de vez em quando: uma vez, vi um jovem a perseguir J.B. à roda de uma árvore durante 20 minutos. O grande e gordo J.B., normalmente tão mal disposto, emitia os sons arquejantes da gargalhada dos chimpanzés enquanto corria. E Figan, o enérgico adolescente Figan, brincava mesmo connosco, rebolando pelo chão enquanto lhe fazíamos cócegas.

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Jade Goodall faz cócegas debaixo do queixo a Figan. Não conseguindo aguentar mais tempo, Figan empurra-lhe o braço com a pata. Ektachrome barão Hugo van Lawick © NGS.

Para os chimpanzés, tal como para os seres humanos, a adolescência é uma fase de experimentação. Para os machos, a puberdade começa aos sete ou oito anos. Com essa idade, começam a abandonar a progenitora durante períodos de tempo cada vez mais longos, embora regressem frequentemente a ela durante toda a adolescência.
Dentro do grupo familiar, o estatuto do jovem macho vai-se elevando gradualmente. A progenitora pede-lhe comida em vez de lha roubar. Se ele tem manifestações de raiva, ela grita e foge, em vez de ignorá-lo.

Lembro-me de uma ocasião em que o jovem Pepe chegou sozinho ao Acampamento Novo, ao crepúsculo.

Fora do círculo familiar, contudo, a vida social do chimpanzé em crescimento torna-se mais difícil. Como juvenil, ele raramente era ameaçado ou atacado, mas agora tem de aprender a comportar-se com respeito e precaução face aos indivíduos mais velhos. E, por isso, os machos adolescentes, raramente estão à vontade juntos aos seus anciãos, e tendem a passar cada vez mais tempo sozinhos.
Lembro-me de uma ocasião em que o jovem Pepe chegou sozinho ao Acampamento Novo, ao crepúsculo. Uma vez que muitos chimpanzés se mostram pouco à vontade na presença de seres humanos, ao chegar o fim da tarde os nossos colaboradores africanos aguardavam sempre no alto da colina que nós soprássemos o apito, indicando-lhes que os chimpanzés tinham partido. Nessa noite, Dominic e Anyango já tinham chegado para fazer a limpeza, trazer o jantar e reabastecer-nos de bananas.
No entanto, Pepe deu pouca atenção à actividade de rotina. Só quando acabou de comer a última banana e se tornou visível apenas à luz do candeeiro e do luar, é que se apercebeu de que a noite caíra. Subitamente nervoso por se ver no meio da escuridão e sozinho, Pepe correu rapidamente na direcção de uma palmeira e trepou – uma forma escura que o luar mal deixava ver. Enquanto puxava as folhas para baixo e as dobrava, para fazer um ninho para si, lamentava-se em surdina.

Divertiu-nos e maravilhou-nos descobrir, no final do ano, que o registo mais completo pertencia ao mais pequeno dos chimpanzés – Flint.

Três minutos mais tarde, estava pronta a cama e ele deitou-se, ainda queixando-se. Então, como que para estimular o moral, emitiu apelos semelhantes a pios de mocho que, embora trémulos, pareceram incutir-lhe confiança, uma vez que Pepe deixou de chorar. O jovem macho solitário adormeceu enquanto nós nos debruçávamos sobre a habitual montanha de papelada, no meio da sinfonia da noite africana – os eternos trilos dos grilos e coaxar das rãs arborícolas.
Chegados a Outubro, sentíamo-nos os três de tal maneira exaustos que acrescentámos outra ajudante ao grupo: Sonia Ivey começou a trabalhar connosco como secretária-assistente, para ajudar-nos a manter actualizado o registo cada vez mais exaustivo do comportamento dos chimpanzés.
Divertiu-nos e maravilhou-nos descobrir, no final do ano, que o registo mais completo pertencia ao mais pequeno dos chimpanzés – Flint. Ele é a primeira cria de chimpanzé nascida em estado selvagem estudada em pormenor, pois fomos capazes de manter registos quase diários do seu comportamento a partir das seis semanas de vida.

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Ansiosa por ser ama-seca, Fifi conformou-se em apenas tocar Flint durante os primeiros meses de vida da cria. Por fim quando ele já tinha 13 semanas, ela ficou responsável pela cria. Ektachrome © NGS.

Um aspecto fascinante da primeira fase da vida de Flint foi o relacionamento entre ele e a sua irmã de cinco anos, Fifi, feito de mudanças constantes. A princípio, Fifi estava sempre a tentar tocar em Flint ou a brincar com ele. Correndo na direcção de Flo, ela estendia o braço para pegar na pata de Flint ou tentava suavemente catá-lo ou fazer-lhe cócegas.
Então, à medida que Flint crescia, Fifi começou a tentar afastá-lo da progenitora. Nesta fase, Flo rapidamente se desembaraçava dela, empurrava-lhe a pata ou distraía-a fazendo-lhe cócegas ou catando-a.
Aos três meses, Flint já conseguia movimentar-se sobre o corpo da progenitora. Os primeiros dois dentes nasceram-lhe. Ele estava a crescer.

Logo a seguir Flint lamuriou-se debilmente e Flo puxou-o para o peito.

Nesse momento, Fifi redobrou de esforços para roubar Flint e, por fim, vimo-la ser bem sucedida. Enquanto Flo repousava, com Flint aconchegado entre o braço e o corpo, Fifi, beliscando repetidamente, com cautela, a pata do bebé, afastou-o ligeiramente da progenitora. Então, com infinitos cuidados, colocou o fardo precioso no seu colo, sentando-se muito quieta e mesmo ao pé de Flo.
Logo a seguir Flint lamuriou-se debilmente e Flo puxou-o para o peito. No entanto, à medida que os dias passavam, Fifi foi sendo autorizada a tomar conta da cria mais vezes e a ficar com ela durante mais tempo. Nenhum dos outros jovens chimpanzés conseguia aproximar-se de Flint sem que a irmã se zangasse. Por exemplo, se a pequena Gilka, de três anos, viesse espreitar Flint, Fifi expulsava-a, com os pêlos eriçados de fúria e os braços a abanar vigorosamente.


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Flint tenta agarrar a cauda de Goblina, uma babuína de dois anos. Os juvenis das duas espécies costumam brincar juntos, mas os adultos combatem pela posse dos alimentos. Quando andam em bando, os babuínos vencem normalmente, mas um chimpanzé agressivo pode triunfar em combate individual. Ektachrome © NGS.

Flint era uma criatura vivaça e, em breve, desenvolveu um espírito próprio. Por vezes, escapava à irmã para procurar o contacto de outros indivíduos ou trepar a uns ramos baixos e brincar neles.
Lembro-me de uma ocasião que pareceu marcar o princípio de uma nova era. Fifi transportara consigo Flint enquanto este dormia e levara-o para alguma distância de Flo. Mas Flint estava a crescer, a ficar mais pesado e pareceu magoá-la quando se agarrou ao seu pêlo.
Fifi girou sobre si mesma e afastou de si primeiro uma das patas e depois a outra. No entanto, Flint agarrou-se logo outra vez. Então, finalmente, e pela primeira vez em registo, Fifi agarrou na cria e levou-a de volta à progenitora, sentou-se e empurrou Flint na direcção dela.

Assim, e à medida que os meses iam passando, vimos Flint deixar de ser uma cria indefesa para se transformar num pequeno chimpanzé com personalidade própria.

Mais ou menos por esse tempo, em Outubro, começou a época da caça às térmitas. Fifi, uma aplicada caçadora de térmitas, ficava irritada por Flint passar a vida a roubar-lhe o caule que lhe servia de ferramenta, espalhando os deliciosos insectos que vinham agarrados a ele. Ela afastou-o com um empurrão forte. Então, pela primeira vez, os outros jovens tiveram autorização para brincar com Flint.
Assim, e à medida que os meses iam passando, vimos Flint deixar de ser uma cria indefesa para se transformar num pequeno chimpanzé com personalidade própria.
Entretanto, observámos o magnífico Faben a aproximar-se da maturidade social, aos 12 ou 13 anos de idade. Pouco a pouco, chegámos à conclusão de que Faben era, de facto, o filho mais velho de Flo. Isto tornou-se claro quando víamos os dois a catar-se um ao outro, quando observávamos Faben a tocar em Flint (gesto proibido a todos os outros) e quando este jovem macho deixava Flo apanhar as bananas primeiro do que ele. Acima de tudo, víamos que ambos acorriam sempre a ajudar-se um ao outro.
A velha Flo é rápida a acorrer em defesa de qualquer dos seus filhos, e eu acho que os babuínos, também residentes na Reserva de Gombe, têm mais medo dela do que de qualquer outro chimpanzé. Por vezes, os babuínos andam pelo nosso acampamento, na esperança de conseguirem uma banana. Se Fifi ou Figan são ameaçados, Flo carrega temerariamente contra o babuíno maior, batendo com os pés e com as mãos no chão, até que o agressor se retire a fugir. Graças à sua coragem e carácter, Flo tem um elevado estatuto na sociedade dos chimpanzés, e muitas das outras fêmeas e até os machos adolescentes mais jovens demonstram grande respeito por ela.

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O pequeno Flint apresenta-se, enquanto a progenitora, Flo, mantém a pata protectora em volta da sua cintura. Jane estende as costas da mão, com os dedos retraídos,para que Flo compreenda que ela não quer fazer-lhe mal. A cria faz a sua exploração com os lábios, mais sensíveis do que os seus dedos. Incapazes de opor o polegar ao indicador, os chimpanzés usam os lábios,para sentir os objectos. Ektachrome © NGS.

Tínhamos a noção de que a natureza se move por caminhos estranhos, mas, mesmo assim, ficámos chocados ao saber que os chimpanzés comem babuínos quando têm oportunidade, embora os juvenis brinquem uns com os outros. Uma vez assistimos à mal sucedida perseguição movida por um grupo de chimpanzés a um jovem babuíno que se tresmalhara do seu grupo. No ano seguinte, vi Faben a retirar os últimos pedaços de carne do crânio de um babuíno juvenil. No entanto, a presa mais comum dos chimpanzés são os macacos (normalmente os colobos-vermelhos) e os juvenis de antílope-pongo e de facoquero.
Anteriormente os cientistas acreditavam que os chimpanzés eram quase exclusivamente herbívoros e só raramente saboreavam um roedor ou um lagarto. Todavia, as observações que fizemos aqui, na Reserva do Rio Gombe, indicam que, ocasionalmente, eles suplementam o seu regime alimentar com carne crua de animais caçados, considerando-a um grande pitéu.
Certo dia, segui Flo, Figan e Fifi (e, claro, a cria Flint) até uma zona da floresta de que gosto muito e onde suspeitava que eles esperavam matar uma presa. Em vez de pequenos animais, encontraram búfalos, um dos mais perigosos animais de África! A manada deve ter-me cheirado, porque disparou em debandada.

Anteriormente os cientistas acreditavam que os chimpanzés eram quase exclusivamente herbívoros e só raramente saboreavam um roedor ou um lagarto.

O estrépito terminou tão depressa como tinha começado. Trepei a uma pequena árvore e avistei dois dos grandes animais. Estavam imóveis, mas o abanar da cauda denunciava a sua presença. Entraram em debandada mais duas vezes, sem sentido, até que finalmente se afastaram, penetrando no interior da floresta.
Nessa época, Flint tinha onze meses e encaminhou-se na minha direcção, cambaleando, quando eu desci da árvore até ao chão. Flo olhou com benevolência quando eu estendi a mão para ele. Dois meses mais cedo, ter-se-ia apressado a agarrar o filho e a afastá-lo de mim. Fiz-lhe cócegas por um momento e, então, uma folha de palmeira tombou: ao ouvir o som, a cria desatou a correr na direcção da progenitora. Flo ainda era o centro do seu mundo e só entre os seus braços conseguia encontrar segurança e conforto.

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Figan e Marina cumprimentam-se com um beijo. A necessidade de contacto físico dos chimpanzés não é diferente da do ser humano. Ektachrome © NGS.

Esta necessidade de contacto físico mantém-se até à idade adulta. Um chimpanzé nervoso ou preocupado costuma frequentemente estender a mão para tocar noutro. Quando um subordinado encontra um superior, é frequente pousar a mão nas costas do outro para conquistar as suas boas graças. Um jovem que tenha sido atacado ou ameaçado encolhe-se em sinal de submissão até que o agressor lhe toque ou lhe dê uma palmada – de facto, pode mesmo pedir-lhe um sinal de segurança, estendendo-lhe a pata.
Nesta necessidade de contacto físico, os chimpanzés não são diferentes do ser humano. Os chimpanzés dão palmadas nas costas uns dos outros, abraçam-se, beijam-se , chegando mesmo a dar as patas, gesto muito comum. Catar-se uns aos outros, com o prolongado contacto que isso implica, é uma das principais actividades sociais.
Os chimpanzés, tal como os seres humanos, costumam cumprimentar-se depois de uma separação. Alguns cumprimentos são impressionantemente semelhantes aos nossos. Quando o grande Mike se aproxima, os outros apressam-se a apresentar-lhe os seus respeitos, fazendo vénias ou estendendo-lhe a mão. Mike pode tocar-lhes brevemente com a pata ou simplesmente sentar-se e olhar fixamente. Quando está de mau humor, é frequente dar um sopapo aos subordinados que vêm cumprimentá-lo.

O primeiro “beijo” de cumprimento que vimos aconteceu quando Figan, ainda juvenil, regressou ao pé da progenitora após um dia de separação.

O primeiro “beijo” de cumprimento que vimos aconteceu quando Figan, ainda juvenil, regressou ao pé da progenitora após um dia de separação. Aproximou-se de Flo com o seu habitual estilo arrogante e esfregou-lhe o rosto com os lábios. Que parecido era com uma beijoca na bochecha, tudo o que uma mãe humana pode esperar de um filho em crescimento!
A utilização das patas para cumprimentar acontece mesmo, embora não com frequência. Quando chega ao grupo, por vezes, Melissa estende a pata a um macho dominante, até se sentir segura com o toque de dedos masculinos.
O mais espectacular dos cumprimentos recíprocos é talvez o abraço. Hugo e eu assistimos a um exemplo clássico entre David e Goliath. Goliath estava sentado quando David apareceu caminhando pelo trilho. Ao verem-se, os dois amigos correram um para o outro e ficaram num frente-a-frente, com o pêlo todo de pé. A sua aparência era magnífica, pois eles bamboleavam-se ligeiramente até darem um abraço com pequenos gritos de prazer e excitação.


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Com uma expressão desolada, Melisa abraça a cria, protegendo-a da chuva. Ektachrome © NGS.

Por estranho que pareça, apesar do complexo sistema de comunicação existente entre os chimpanzés, uma cria magoada ou ferida nem sempre consegue transmitir esse facto à sua progenitora. Mesmo que consiga, o adulto parece incapaz de lidar com a situação.
Uma vez, uma grande formiga mordeu em Flint e ficou-lhe agarrada ao beiço. Durante cerca de 20 minutos, ele chorou e contorceu-se de dores, mas Flo limitou-se a embalá-lo mais confortavelmente e a aconchegá-lo mais a si. Parecia não ter consciência da causa do seu sofrimento, embora a formiga fosse bem visível. A cria aguentou a dor até que, por fim, foi capaz de libertar-se do insecto.
Há outro exemplo que ainda hoje recordo com mágoa. Certa tarde, um grande grupo desceu a encosta rumo ao acampamento. No momento em que se aproximavam, ouvimos uma cria a gritar com dores lancinantes. Por fim, avistámos Mandy com a cria ferida, a pequena Jane. Sentimos um arrepio de mal-estar. Todo o músculo da parte inferior do antebraço esquerdo da cria tinha sido arrancado e pendia  em pedaços ensanguentados. O braço estava evidentemente partido, pois os ossos e tendões estavam expostos.

A única reacção de Mandy foi aconchegar a cria, fazendo-a chorar ainda mais.

O acidente acabara obviamente de ocorrer. Não havia qualquer esperança: se alguma vez tivéssemos tentado ajudar, Mandy teria fugido com Jane e a sua captura com utilização de uma armadilha teria provocado perturbação entre os outros chimpanzés.
A cria voltou-se para o único conforto que conhecia: o peito da progenitora. Mas o leite quente nada fazia para mitigar-lhe a agonia: tinha os olhos vidrados, de sofrimento e de perplexidade.
Mandy mostrou-se nervosa e sem saber o que fazer. Correu a fazer uma vénia a um dos machos grandes, e o braço da pequena Jane bateu no chão. Deu outro grito de partir o coração. A única reacção de Mandy foi aconchegar a cria, fazendo-a chorar ainda mais.
As lágrimas escorriam-me pelo rosto e, contudo, obriguei-me a assistir. Mandy nunca examinou a ferida, nem a lambeu, nem tentou aliviar a dor da bebé. Talvez devido ao susto, parecia ignorar a sua filha.
Dois dias mais tarde, vimos Mandy, na colina do outro lado, muito acima, pôr de lado a cria morta e voltar-se para um companheiro, catando-o. Algures, lá bem no alto das colinas, a progenitora abandonou finalmente o seu triste fardo.

Desde a morte da pequena Jane, nasceram mais três bebés [...]. Infelizmente, nenhuma das progenitoras quis mostrar-se durante a visita.

Desde a morte da pequena Jane, nasceram mais três bebés, dois dos quais durante a visita de três membros do Committe for Research and Exploration da National Geographic Society, Leonard Carmichael, T. Dale Stewart e Melvin M. Payne. Infelizmente, nenhuma das progenitoras quis mostrar-se durante a visita.
Mesmo assim, pudemos mostrar aos nossos convidados os alicerces de três edifícios semidefinitivos que, graças ao apoio da NGS, foram depois construídos. Instalámo-los ainda mais para o interior, além do Acampamento Novo.

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Chuchando no polegar, o pequeno Goblin, de três meses, é embalado ao colo por Melissa, aconchegando-se no seu braço. A imagem das crias chuchando no polegar é comum e ocorre sobretudo durante a dentição. Os primeiros dentes aparecem entre as 12 e as 15 semanas. As progenitoras amamentam os seus filhos entre os dois anos e meio e os três anos e meio. Ektachrome © NGS.

Quando Hugo e eu deixámos a reserva em Março de 1965, sentimos que a nossa ambição de continuar a investigação na Reserva de Caça do Rio Gombe a longo prazo começava a concretizar-se. Os edifícios estavam prontos. Edna e Sonia ficavam, para prosseguir os importantes registos científicos.
Das comunicações que chegaram de África desde o nosso regresso a Inglaterra, a mais excitante foi uma críptica mensagem recebida em Julho pelo telefone, transmitida pela voz de um funcionário dos serviços telegráficos, evidentemente intrigado com o seu conteúdo: “Passion [Paixão] filha 13”.
A mensagem informava-nos sobre o nascimento, no dia 13 de Julho, de uma filha, a que chamámos Pomegranate [Romã], da Passion, uma das fêmeas da Reserva de Gombe. A pequena Pom é a quinta cria nascida no nosso grupo desde que Flint entrou em cena.

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Nada bonita mas boa progenitora, Flo embala Flint ao colo. Ainda sem comer alimentos sólidos, Flint, com apenas três meses, ignora a banana, preferindo morder no dedo da mãe. Flo e as outras progenitoras deslocam-se menos do que os machos e os chimpanzés mais novos, o que facilitou a observação do desenvolvimento de Flint por parte de Jane. Ektachromes © NGS.

Calculo que seja precisa pelo menos mais uma década de estudos na comunidade de chimpanzés do rio Gombe para obtermos histórias de vida e registos comportamentais definitivos. Temos a plena convicção de que uma compreensão plena das actividades sociais dos chimpanzés afigurar-se-á de valor inestimável para a melhor avaliação de grande parte do nosso comportamento humano.
Relato um incidente que revela o facto de alguns dos gestos utilizados por seres humanos e chimpanzés terem uma origem comum ou terem evoluído em linhas paralelas estreitamente próximas. É que, nessa ocasião, o meu velho amigo David Greybeard comunicou efectivamente comigo, através de um gesto de chimpanzé.

Tinha a sensação de que David quase apreciava a minha companhia.

Eu partira do acampamento atrás de David, seguindo-o até às montanhas. Tinha a sensação de que David quase apreciava a minha companhia, porque ele esperou várias vezes por mim, enquanto me desembaraçava de vegetação emaranhada.
Infiltrámo-nos cada vez mais profundamente na floresta. David deitava-se e dormia, para depois se levantar e prosseguir, de passo pesado, na direcção de um rio de montanha. Chegados à margem do rio, lado a lado, bebemos a água cristalina.

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Esperando por uma banana, a paciente Fifi senta-se sobre uma espia da tenda. A vedação de madeira impede os chimpanzés de correrem tenda adentro, derrubando-a e espalhando o seu conteúdo.  Ektachromes © NGS.

Reparei numa noz vermelha de palma madura, que jazia no chão; peguei nela e ofereci-a ao meu companheiro, sobre a palma da minha mão aberta. Ele relanceou os olhos pela oferta e recusou-a. Então, quando eu lha ofereci mais perto, ele estendeu-me intencionalmente a pata, pousou-a sobre a minha mão e, pegando na noz entre o polegar e a palma da pata, apertou delicadamente a minha mão, enrolando os seus dedos debaixo dos meus. Só dez segundos mais tarde é que me libertou a mão do seu aperto firme; e então, deitando um último olhar à noz, deixou-a cair no chão.
E contudo, a suave pressão exercida pelos dedos de David tinha-me sossegado, garantindo que, embora desdenhasse a minha oferta, ele não se equivocara quanto ao meu gesto ao fazer-lhe essa mesma oferta.

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