À distância, são manchas no horizonte, que surgem em função dos humores do oceano. As vagas de três metros fazem os marinheiros de ocasião desejar estar em qualquer outro local do mundo.

As ilhas Selvagens anunciam-se e a toponímia é fiel às lendas: rochedos inóspitos erguem-se das profundezas marinhas, sem ponta de verde, tão estéreis quanto a imaginação possa conceber. São o cenário perfeito para histórias de piratas, onde facilmente se imaginam tesouros enterrados, sob um mágico “X” desenhado num mapa tosco. Na Selvagem Grande, o catamaran fundeia na baía das Cagarras. O desembarque inicia-se e, pouco depois, a aventura começa.

A primeira saída de campo está montada: a Gruta do Capitão Kidd aguarda-nos. Parte da equipa do Projecto Microceno, que conta com 17 membros de sete países diferentes (Portugal, Espanha, Itália, Inglaterra, Rússia, Países Baixos e Canadá) parte, carregada, subindo penosamente o trilho sinuoso sobranceiro às únicas edificações na ilha, que acolhem a equipa permanente de vigilantes da natureza, polícia marítima e a família Zino.

Um grupo constituído por Luís Asensio, responsável pela segurança, Matteo Massironi, geólogo da Universidade de Pádua, Sergei Kud-Sverchkov, cosmonauta da agência espacial russa, e o holandês Rogier Miltenburg, da Thermo Fisher Scientific, começa a vertiginosa descida, com recurso a cordas de segurança, rumo à linha de água. O acesso à gruta só é feito na maré baixa, pelo que Luís mantém um olho nervoso no relógio: como a descida foi mais demorada do que o previsto e as distracções científicas abundaram, o tempo esgota-se.

De martelo em riste numa das mãos e o bloco de notas na outra, o corpulento Matteo é o exemplo clássico do cientista explorador. Ágil, só o cabelo grisalho sugere que já passou a barreira dos 50 anos. O olhar perscruta a falésia sobranceira à entrada da gruta. Chama-lhe afectuosamente o seu “puzzle geológico”, ao qual dedicou muitas horas, dado que pouco parece fazer sentido na amálgama de camadas rochosas que ali se acumulam. Para desvendar este enigma natural, conta com o auxílio precioso de Rogier, especialista no microscópio eletrónico de varrimento portátil Thermo Phenom XL G2, o mais sofisticado dos muitos equipamentos de ponta que a expedição trouxe a estas remotas paragens em frente da costa de África. Num instante, 150 mil euros de equipamento passam perigosamente por cima da água. Aliás, é a primeira vez que um microscópio electrónico é instalado numa ilha tão isolada, fruto de uma delicada operação da Marinha Portuguesa.

gruta Selvagens

De volta ao campo-base, a dupla analisa ao microscópio, quase de imediato, amostras de fragmentos de rocha e espeleotemas retirados da falésia. As observações realizadas permitem detectar a presença de células de microrganismos e identificar fósseis e minerais, datados com 24 a 17 milhões de anos.

O ano de 2021 tem sido o Ano Internacional das Grutas e também o do cinquentenário da Reserva Natural das Ilhas Selvagens. Essas duas efemérides foram o mote para o Projecto Microceno, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia e coordenado por Ana Zélia Miller, da Universidade de Évora. A investigadora, líder da expedição e uma das três mulheres presentes, enquadra: “O principal objectivo é estudar, pela primeira vez, a microbiologia e mineralogia das grutas vulcânicas terrestres e marinhas das Selvagens, para compreender que microrganismos crescem nestes ecossistemas prístinos e quais as suas interacções com os minerais.

Estas questões estão a ser investigadas através de uma abordagem multidisciplinar em áreas tão distintas como a microbiologia, a mineralogia, a geologia, a biogeoquímica, a paleoclimatologia e a biotecnologia.” A investigadora tem metas ambiciosas: “Queremos identificar espécies microbianas com interesse para a astrobiologia, caracterizar actividades antimicrobianas e enzimáticas com interesse para a indústria farmacêutica e, finalmente, estudar as características geoquímicas e mineralógicas dos espeleotemas, para determinar alterações ambientais e reconstruir paleoclimas.” Objectivos que também contam com o apoio dos cientistas e membros desta expedição, Ana Teresa Caldeira, da Universidade de Évora, e Igor Tiago, da Universidade de Coimbra. Outra inovação é a utilização de tecnologia de ponta portátil: foram testadas nestas ilhas soluções que poderão vir a ser utilizadas em futuras missões tripuladas a Marte para a exploração de grutas vulcânicas e detecção de vida microbiana no subsolo. Destaca-se a sequenciação de DNA in situ, realizada pela primeira vez nas Selvagens.

Ana Zélia Miller descreve o processo: “A extracção e sequenciação de DNA com equipamentos portáteis permite a leitura em tempo real e a identificação dos microrganismos nas amostras recolhidas nas grutas em menos de 24 horas. O uso da tecnologia Nanopore possibilita a identificação de uma grande variedade de microrganismos capazes de interagir com os minerais, especialmente bactérias quimiolitoautotróficas, que utilizam minerais como fonte de energia (não necessitam de matéria orgânica). Estas bactérias poderão ser utilizadas como modelos para a procura de vida microbiana passada que possa ter existido nas grutas vulcânicas de Marte.”

Os primeiros resultados foram conhecidos logo nas ilhas. “A exploração geológica desta expedição permitiu já encontrar características na Selvagem Grande análogas às de Marte, devido à geologia e localização numa zona de movimento lento de placas tectónicas”, diz a especialista. Além disso, está a ser criado o primeiro modelo tridimensional de alta resolução das principais grutas da Selvagem Grande pela equipa de geólogos italianos. O estudo da sua génese, com recurso a equipamentos como o espectrómetro de fluorescência de raios X portátil e um scanner laser portátil, permitirá obter informação útil sobre grutas planetárias em terrenos semelhantes no espaço.

gruta Selvagens

Foi uma façanha levar até um destino tão remoto como as Selvagens um microscópio electrónico, que tornou possível analisar in situ amostras de espeleotemas como os da foto.

Por serem tão distantes e livres de intervenção humana ao longo da história, as Selvagens constituem um autêntico laboratório natural. Poucos o podem afirmar com tanta propriedade como Francesco Sauro, geólogo da Universidade de Bolonha e explorador Rolex, que faz de destinos como a Gronelândia e das mais profundas grutas do mundo o seu escritório.

Segundo ele, esta experiência “foi muito especial, porque embora uma pequena ilha não seja o cenário que imaginamos para uma expedição, o isolamento e o desconhecimento acabam por criar muito por explorar e o inesperado acontece”. Nas suas palavras, “as cavernas são arquivos no tempo” e uma expedição tão multidisciplinar como esta permite ir mais longe do que o habitual: “A percepção de como foram formadas as grutas (com a ajuda de geólogos), o que elas nos podem dizer (tarefa dos paleoclimatólogos) ou que microrganismos albergam (identificados por microbiólogos) é uma oportunidade única”, diz.

A expedição deste Verão, para a qual António Candeias, pró-reitor da Universidade de Évora, muito se empenhou, encontrou também uma nova gruta nunca antes identificada neste território. Com recurso a fotografias de satélite e drones, Francesco e outros membros da expedição circum-navegaram a ilha com potentes binóculos e percorreram a pé muitas das suas falésias. A recém-descoberta Gruta do Sopro do Dragão foi o resultado dessa investigação.

Com 95 metros de profundidade e 22 de altura, esta gruta tem a particularidade de apresentar uma câmara a mais baixa altitude do que a de entrada, com lagoas salobras no interior, às quais só se tem acesso por uma estreita passagem vertical. No interior, o ar é intensamente comprimido pelo movimento das ondas na secção inferior, fazendo o capacete dos espeleólogos elevar-se acima da cabeça com a diferença de pressão. À saída da cavidade, o geólogo italiano aponta para as encostas aprumadas da ilha, repletas de pequenas cavidades rochosas que oferecem abrigo à ave mais conhecida da ilha – a cagarra.

Formadas pela erosão salina, são elas que tornam a ilha tão especial para a avifauna. “É um óptimo exemplo de como a geologia influencia a vida e de como tudo está inter-relacionado na natureza: sem buracos, não haveria aves!”, diz. Com cerca de sessenta mil indivíduos nas Selvagens, a cagarra é a soberana do arquipélago, senhora dum chamamento muito particular e ruidoso que todos os membros da expedição conheceram intimamente: durante a noite, junto das tendas. Dormir tornou-se quase impossível! Ao pequeno-almoço, numa manhã em que os rostos da equipa denunciavam o cansaço acumulado, ouve-se Sergei murmurar: “Nem na Estação Espacial Internacional dormi tão mal!” Do outro lado da mesa, alguém resmunga: “É pior do que passar a noite com uma dúzia de palhaços às gargalhadas na cama.”

Uma das entidades integrantes do Projecto Microceno é a Agência Espacial Europeia (ESA), que procura aqui aprofundar o interesse astrobiológico de ambientes hostis, semelhantes em alguns aspectos aos de Marte. O conhecimento destes ambientes é uma mais-valia para a instituição, que treina metodologias de trabalho e os membros das suas equipas para futuras missões espaciais. O astrobiólogo britânico Sam Payler é um deles e não esconde o entusiasmo: “Tudo nesta ilha parece ser incomum, começando pelo isolamento e consequente ecossistema com poucas perturbações até à geologia, que assume formas que não conhecemos. Isso cria espaço para que a vida que aqui se desenvolveu tenha também ela características únicas.”

baía das cagarras

A baía das Cagarras é o local mais protegido da costa da Selvagem Grande, onde os veleiros da expedição fundearam ao longo de duas semanas, tendo como apoio os pequenos semi-rígidos. É ali que as únicas construções permanentes da ilha se encontram também.

Bem longe dos laboratórios de alta tecnologia onde costuma gravitar, o cientista recorda com um brilho nos olhos um momento de tensão: “Nunca esquecerei a emoção de entrar numa gruta marinha inexplorada e estreita num semi-rígido minúsculo, com as ondas e a maré a empurrarem-nos cada vez mais contra as paredes do interior e com caranguejos coloridos a caírem do tecto.” A dupla constituída pelo fleumático Sam e pelo espadaúdo Sergei personifica a verdadeira colaboração científica num dos mais exóticos campos da exploração, capaz de ultrapassar barreiras culturais e políticas. Após uma campanha de seis meses na Estação Espacial Internacional, o russo visitou um cenário radicalmente diferente, focado em treinar a recolha de amostras e o contacto com um dos ambientes terrestres mais próximos dos que poderá vir a encontrar noutro planeta. “Sob pressão, aqui somos obrigados a corrigir e ajustar os planos de exploração em tempo real”, diz o cosmonauta, um dos poucos seres humanos que viu a Terra de fora. “Todos estes especialistas e ferramentas permitem desempenhar estudos da forma mais eficiente possível. É muito semelhante a um voo espacial tripulado.”

De volta à Terra, o espírito das Selvagens é encarnado por dois dos seus mais leais guardiães: os vigilantes da natureza Jacques da Mata e João Mendes. Cada um completa missões de 15 dias aqui, em total autonomia. Já perto da reforma, Jacques é uma figura incontornável há 40 anos, conhecido pela sua especialidade: coze pão, um bem raro nas Selvagens. Ninguém fica indiferente ao maravilhoso e improvável cheiro do pão quente. Apesar de a Selvagem Grande ser o principal foco da investigação deste grupo internacional, o subarquipélago não se limita a esta ilha, contando ainda com a Selvagem Pequena e o ilhéu de Fora. E é lá que Frank Zino, o médico, ornitólogo e activista madeirense de origem inglesa, conduz a equipa do Projecto Microceno. Com a âncora já lançada ao largo de uma praia de areia branca, vislumbra-se ao longe uma barraca de madeira e nada mais... Robinson Crusoe não se sentiria desconfortável aqui! João Mendes também não: chegou a passar 30 dias seguidos na Selvagem Pequena, quando pescadores ilegais rondavam a ilha. Para lá da linha de água, a ordem é inequívoca: ninguém põe pé fora do trilho marcado! Incontáveis pequenos buracos na areia indiciam os ninhos de calcamar! Sob apertada vigilância, José María de la Rosa, do CSIC (Espanha), e Nicasio Jiménez, da Universidade de Évora, retiram amostras de sedimentos, entre destroços de um navio naufragado que ainda hoje perduram para o estudo de mudanças ambientais e climáticas.

Após duas intensas semanas nas Selvagens, com o sol a aproximar-se do horizonte, a hora da partida chega, antecipada pela previsão de uma tempestade. O oceano encapelado ameaça, mas a operação está lançada. A expectativa vira-se agora para os vários laboratórios envolvidos nesta expedição, um pouco por todo o globo. Os próximos meses trarão certamente novas informações sobre este incrível território nacional, que permite um raro vislumbre sobre a vida na Terra e para lá dela.