Na década de 1980, chegavam turistas alemães aos Açores que, sem se demorarem noutras ilhas, rumavam rapidamente às Flores. Nos guias, traziam inúmeros percursos pedestres desta ilha sem que os houvesse para as outras. Na altura, fazia-me confusão… mas, quando lá fui pela primeira vez, percebi. A evolução foi natural e exponencial a ponto de ser criada uma Grande Rota que, embora “grande”, não permite visitar tudo o que esta atraente ilha tem para oferecer, como as lagoas do planalto central ou a descida à Fajã de Lopo Vaz.

Santa Cruz, da Fábrica da Baleia do Boqueirão, é o ponto de partida desta viagem, por um litoral recortado, que pode ser serra, e nos conduz a locais deslumbrantes. Na Fajãzinha, encontramos uma das igrejas paroquiais mais graciosas de quantas tem as Flores e a única filarmónica da ilha. Os Mosteiros, com uma população de apenas 19 moradores, mostram os tradicionais arcos de volta inteira de pedra que rematam as portas das “lojas”. E o Lajedo, primeira povoação ocidental da ilha, com as maiores peregrinações para pagamento de graças a que a ilha assiste, viu em 1909 encalhar a 25 metros da costa o paquete Slavonia que navegava para Itália. Foi possível evacuar todos os 597 embarcados, que continuaram viagem noutros navios, e retirar muitos bens e salvados, hoje guardados no Museu das Flores ou em moradias no Lajedo.

Ilha Flores_Rocha dos Bordões
JEROEN MIKKERS / SHUTTERSTOCK

A Rocha dos Bordões

O porto da Fajã Grande, lugar de mar, mergulho e peixe, onde vararam as primeiras canoas americanas a chegar à ilha, converte-se no Verão numa zona balnear procurada, mantendo-se no resto do ano como local fascinante, de enquadramento único entre o mar e a montanha.

Esse mar que fecundou a Terra, que gerou ilhéus, nomeados, que fazem as delícias dos que os circundam pelas mãos dos hábeis skippers. Nenhum é tão representativo como o ilhéu de Monchique, marco geográfico que fecha as portas do Velho Mundo e abre uma janela para o mar ponente. Continua a ser o ponto mais ocidental da Europa, embora a cada ano se afaste mais desta e do resto do arquipélago, viajando à boleia da placa tectónica americana.

As paisagens encerram vestígios de usos imemoriais do território e de ruínas de antigos povoamentos que contam a história dos florentinos, algumas das quais já esquecidas pelo povo. Percebe-se isso em antigos núcleos como a Aldeia da Coada ou a Caldeira, ou no emparcelamento das terras de cultivo, que criam um espantoso reticulado na paisagem com os seus típicos muros de pedra solta.

Deliciosas e antigas veredas empedradas, refrescadas pelas árvores e pelo curso dos ribeiros, levam-nos a locais como o Poço da Alagoinha, uma encantadora lagoa abastecida por uma dezena de cascatas que deixam cair incessantemente as águas, criando um dos mais icónicos postais das ilha. Também obrigatório é visitar a Cascata do Poço do Bacalhau que se despenha a mais de 100 metros de altura.

Atinge então uma simpática lagoa, que nunca ouviu o silêncio e que esconde eiroses (Anguilla anguilla), uma enguia de água doce que não se incomoda que refresquemos ali os pés.

Ouvi certa vez dizer: “Um dia, esta ilha afunda-se em tanta água.” De facto, a água satura os terrenos, enche ribeiras e por vezes transborda, arrastando pontes, enormes pedregulhos e rebentando com estradas. É, no entanto, a mesma água que cria as majestosas quedas de água, que promoveu os primeiros assentamentos nos férteis vales, que fez funcionar todos os moinhos de pão, que rega os inhames para a gastronomia local e que encharca as florestas de altitude do cedro-das-ilhas.

Há muitas comunidades naturais valiosas, com numerosas populações endémicas e raras. Até há uma planta considerada extinta pela comunidade científica desde 1938 que reapareceu (Veronica dabneyi). Mas há também georraridades, como a emblemática Rocha dos Bordões, imponente penedo de beleza singular, formado há mais de meio milhão de anos.

É um geossítio também classificado como Monumento Natural Regional. Trata-se da mais expressiva disjunção prismática que se pode observar nos Açores, caracterizada por mais de duzentas enormes colunas de basalto de até 28 metros de altura, a que popularmente se deu o nome de bordões, dispostos verticalmente ao longo de mais de 100 metros de extensão.

Boa parte da ilha é Reserva Natural e toda integra desde 2009 a Rede Mundial de Reservas da Biosfera. Mas também há reservas florestais, muito património construído a visitar e muita história a conhecer. E se porventura o vento não deixar que o avião aterre, lembre-se sem stress da expressão favorita dos florentinos: “Hoje, aqui… amanhã nas Flores!”

Artigo publicado originalmente na edição nº39 da revista Viagens National Geographic dedicada aos Açores e à Madeira.