O cenário é austero, desprovido de quase tudo, dominado por infinitos cambiantes de cinzento dos gigantescos rochedos graníticos que algum Hércules paisagista dispôs aleatoriamente na paisagem, para lá dos tempos que a memória recorda. Erguida com mestria num recanto tão longínquo como belo da Beira Alta, Sortelha, cujo foral remonta a 1228, assume-se, hoje, como um exemplo de que o património histórico e arquitectónico tradicional é um trunfo de afirmação num território que o passado recente empurrou para o esquecimento, muito por causa da (e)migração e êxodo rural que sangraram o interior português durante o século XX.

sortelha

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Uma caminhada pelas ruas estreitas da vila fronteiriça, uma das 12 Aldeias Históricas, é como uma viagem ao passado, com construções espartanas e funcionais, como a Casa Árabe ou a Casa do Juiz, fachadas frias mas interiores acolhedores, onde o fogo amiúde arde em lareiras abertas, lançando baforadas de ar quente para o peito enquanto as costas se arrepiam com as correntes de ar que a serra envia sem aviso.

No Largo do Pelourinho, com a presença quadrangular da antiga casa da Câmara e cadeia a impor-se, a sonoridade de alguma forma surpreendentemente reconfortante de pratos, talheres e gargalhadas escoa-se para o exterior das portas abertas.

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Largo do Pelourinho.

O cheiro familiar de um bife grelhado invade o espaço e faz salivar o transeunte.

Acima, o castelo é rei e senhor da malha urbana, cumprindo uma função militar defensiva relevante e de afirmação da jovem nação portuguesa, dada a proximidade à linha de fronteira. Possui uma cisterna para permitir a resistência aos cercos e a sua torre de menagem quadrangular eleva-se acima do casario, altiva. Ao entardecer, com a paleta interminável de tons laranja dos céus beirões, Sortelha apresenta-se com a roupagem de gala. Subindo os degraus irregulares da muralha, absorve-se a verdadeira dimensão da aldeia, tão curiosa na sua forma quão diminuta na sua área, construída ao longo do eixo formado pelas ruas Direita e da Fonte, e à qual não falta uma saída de emergência – a Porta Falsa. O crepúsculo insinua-se então, primeiro na forma do sol poente, etéreo, depois na invasão do azul profundo que anuncia a noite escura, sem luar.

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Um aspecto das ruas que circundam o castelo.

É hora de partir. Cruzando relutantemente o grande arco de pedra que enquadra de forma perfeita a fortificação, o som dos passos na calçada tosca ecoa, até que, já fora de Sortelha, envolto pelo mato rasteiro, impõe-se uma última contemplação do casario, quase dourado pela iluminação pública que ousa quebrar a escuridão reinante.

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Cabeça da Velha, uma rocha antropomórfica.