Pudim Abade de Priscos

by | 13 Mar, 2023 | Gastronómicas, Minho, Províncias, Tradições

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Apetrechado com o savoir-faire da cozinha francesa e pegando num doce de origem inglesa, um senhor nascido em Vila Verde e pároco em Braga fez uma obra-prima da gastronomia tradicional portuguesa. Ao nome de tal iguaria ficou para sempre associado a patente do homem que a criou: Pudim Abade de Priscos ou, para alguns, mais gráficos, Pudim de Toucinho.

Um pasmo que, sabe-se lá porquê, apenas foi finalista do célebre concurso 7 Maravilhas, não chegando a vencê-lo – curiosamente, um dos contemplados com o prémio foi o Bolinhol, também do distrito de Braga (mais concretamente de Vizela), e bem menos conhecido. Uma tremenda injustiça que, por outro lado, talvez ajude a que não seja destruído em variadas tourist traps de Braga, do Porto, ou de Lisboa.

Este escriba, que nem sequer é muito dado a doces, derrete-se com esta bomba calórica minhota. Ao ponto de não conseguir recusá-la sempre que se apresenta em cardápio. E é com enorme deleite e uma boa dose de saliva na boca que escreve as próximas linhas.

Origem do Pudim Abade de Priscos

Ao contrário da maioria dos doces portugueses, o Pudim Abade de Priscos não nasceu num convento. Mas não andou longe disso. A invenção veio de um pároco de nome Manoel Joaquim Machado Rebelo, famoso pelos seus dotes culinários e não só – dizia-se que era excelente bordador, artesão, até pintor.

Manuel Baptista da Cunha, Arcebispo de Braga e seu amigo, conhecia a excelência das suas criações e convidava-o para cozinhar refeições destinadas à alta nobreza, ao alto clero, e, conta-se, até à família real. É hoje relatado um episódio, talvez entre a lenda e a realidade, em que o Abade de Priscos, depois de oferecer um prato baseado em polme de palha ao rei D. Luís, deixando este irritado por ter comido uma pasta tão pouco requintada, lhe respondeu que toda a gente come palha e que o segredo estava em como a servir. O rei, segundo se fala, terá achado piada à contestação.

Eram apreciadas algumas das suas carnes, a sua cabidela (ou não fosse ele vila-verdense), o seu bacalhau, e dezenas dos mais variados doces. Imagine-se a quantidade de pratos nacionais que poderiam ser catalogados com a designação à Abade de Priscos. Infelizmente, quase nenhuma receita foi firmada em papel. O abade, como qualquer bom chef, usava a intuição mais do que o manual. Ainda assim, houve excepções.

Uma delas – a mais célebre -, acabou por ficar registada num livro de 1925, da autoria de Febrónia Mimoso, de nome “Biblioteca Culinária“. Porquê? Há quem aponte uma formação que o Abade de Priscos deu no então Magistério Primário de Braga, antes conhecido como Convento dos Congregados, e que desde aí a receita não mais se perdeu. Outros, como um dos co-autores do livro “A Vida e as Receitas Inéditas do Abade de Priscos“, Fortunato da Câmara, esclarecem que o segredo do Pudim Abade de Priscos revelou-se com uma aposta que o pároco fez, pretendendo mostrar como dar uma fórmula nunca é suficiente para se chegar a um determinado resultado, porque há elementos que não se conseguem teorizar, em especial o dom que é preciso ter no palato e no olfacto – a esse propósito, ficou famosa a sua frase: simples de fazer, difícil de acertar.

Teve vida longa, boa parte dela passada em Priscos, actual freguesia do concelho de Braga, lugar onde foi chamado a ser pároco. Contudo, nasceu e morreu em Vila Verde, concelho vizinho da cidade bracarense. Talvez por isso, ainda há quem goste de discutir se o Pudim Abade de Priscos é de Braga ou de Vila Verde. Na verdade, já é do país inteiro.

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Receita do Pudim Abade de Priscos

Ao contrário dos pratos vindos da cultura popular, a parte boa de uma receita ter dono é que as variâncias da mesma são poucas. Por mais que pesquisemos receitas de como fazer o Pudim Abade de Priscos, o desvião padrão é pequeníssimo. Mas há, no entanto, alguns truques a ter em conta.

O pudim é feito em três partes. E por isso, as três partes serão discriminadas em baixo.

O caramelo

Primeiro temos a feitura do caramelo. Basta misturar água com açúcar e mexer até caramelizar, ou seja, até ganhar tons entre o dourado e o alaranjado. Há quem goste de o fazer de uma vez só. Há quem ponha o açúcar em pouca água fria e vá, faseadamente, juntando mais água, esta já quente.

Colocamos então o caramelo dentro de uma forma (se quisermos ser puristas, esta deve ser de latão ou de bronze, porque assim se fazia o pudim na altura), idealmente com com dezoito centímetros de diâmetro e forma de coroa e, muito importante, com tampa. Deixamos o caramelo colar a toda a superfície da forma e reservamos.

O caldo

Aqui, invariavelmente, juntamos a um tacho quatro ingredientes fundamentais: a canela, o açúcar, a casca de limão, e, por fim, essecial, o toucinho. Pausa para explicação.

O toucinho é fundamental. Mais do que o sabor, é ele que vai dar consistência ao pudim, e deixá-lo com aquela pele de gordura que o distingue dos demais. Sem toucinho, não há Pudim Abade de Priscos, por muito que se use um produto substituto como banha de porco, por exemplo. Como tal, a escolha do toucinho não é indiferente. Tem de estar gordo e salgado. Pode ser de porco bísaro. Pode ser de Chaves. Pode ser de Melgaço. Pode ser de Lamego. Fundamental é que se cortem fatias apanhando a gordura, isto é, a parte branca do toucinho, e que esta se faça acompanhar de alguma carne.

Voltando ao tacho. Vamos espreitando o combinado até que fique em ponto de fio. Há cozinheiros que preferem o ponto de espadana. Experimente-se com as respectivas temperaturas de um e outro e veja-se o que fica melhor – sempre é desculpa para o comermos duas vezes. Depois disso, coa-se o composto para retirar os sólidos (a canela, o limão, e o toucinho) do caldo, e reservamos.

Os ovos

Numa tigela, colocam-se as gemas de ovos. Mexemos muito devagar, idealmente com um garfo ou, melhor ainda, uma colher. A ideia não é bater as gemas. Não é suposto ficarmos com um borbulhar amarelo, mas sim um creme limpinho de bolhas. A elas vai juntar-se, logo em seguida, um pouco de Vinho do Porto – normalmente, de uva tinta, embora haja excepções que usam a branca.

A seguir pegamos no caldo previamente feito e juntamos às gemas. A misturada deve passar novamente por um coador. Finalmente, juntamos o preparado à forma onde o caramelo já teve tempo de estagiar.

Finalização

A forma deverá ser vedada na base com papel de alumínio – alguns cozinheiros, para garantir a selagem, usam papel vegetal primeiro e de alumínio a seguir. Fecha-se a forma com a tampa e levamos a aquecer em banho-maria. Aqui as opiniões divergem. Há quem prefira que o banho-maria se faça no fogão, em tacho, e não no forno; e há quem prefira no forno e não no tacho.

Nova ressalva: a forma tem de estar mesmo muito bem fechada, se por acaso entra água ou vapor para dentro dela, todo o trabalho feito antes foi em vão. Ninguém merece comer um Abade de Priscos granulado.

No final, e antes de desenformarmos, levamos o pudim ao frigorífico. Ele quer-se frio. Sempre.

Quanto ao acompanhamento, uns quantos fãs gostam de o ter como parelha de um Porto ou de um Madeira. Da mesma forma, há ainda quem ponha fios de ovos no seu topo. Do meu lado, acho uma redundância – é somar um doce com outro doce. Prefiro combiná-lo com uma aguardente vínica, por exemplo, juntando um queijo intenso ao leque. Por vezes misturá-lo com pepitas de presunto tostado pode ser solução se estivermos numa de pecar à séria. Em alternativa, cruzá-lo com a acidez de alguns frutos, como a framboesa, sempre nos faz sentir menos mal.

Onde comer

Em Braga, se calhar são mais as casas que o têm do que as que não o têm – é famoso o da Cruz de Pedra, tive uma boa surpresa com o do Bem-me-quer, e, claro, o da Tia Bina, que fica mesmo em Priscos, goza de reputação nacional.

Descontando algumas desilusões, o mesmo se passa em Vila Verde. Destaco o da Sevilhana e o do Arroz de Feijão mas o melhor que há a fazer é ir perguntando de porta em porta e fazer um tour se tiver esse tempo – e esse estômago.

Já no Porto, não posso deixar de recomendar o Pombeiro, onde tudo é bom, inclusivamente o Abade de Priscos. Em Lisboa, apesar de ligeiramente adulterado na receita, todas as minhas recomendações recaem no Pudim do Abade, em Campo de Ourique, que se dedica exclusivamente à produção do célebre pudim minhoto, e que fornece algumas casas da capital. E no distante Algarve, o Cafézique tem uma excelente versão com queijo e maçã assada.

Um apontamento final: a Confraria do Abade, que visa proteger tão nobre manjar, promove alguns concursos sobre qual o melhor Pudim Abade de Priscos do país. É estar atento.

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