A Hungria, a Ensitel e a liberdade de expressão

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2011 vai ser o ano em que vai ser preciso continuar a defender as liberdades. E os outros também

1. É tristemente irónico que a União Europeia entre em mais este ano da crise de 2011 sob a presidência de um país cujo Governo acaba de limitar de forma drástica a liberdade de imprensa. É como se os deuses nos quisessem forçar a encarar o facto de que nada está garantido no domínio das liberdades, que a União Europeia não é um porto de abrigo para ninguém e que a coberto do combate à crise ou da procura de maior eficiência todos os atropelos aos direitos dos cidadãos serão permitidos - da mesma forma que continuam a ser permitidos todos os atropelos feitos a coberto do combate ao terrorismo.

É triste que, perante uma lei que parece saída dos anos 30 do século passado, tudo o que a UE e os seus Estados-membros possam fazer seja exprimir o seu desejo de que a Hungria esclareça "as dúvidas" que se levantam a propósito desta lei. É que a lei não oferece muitas dúvidas. Entre outros mimos, o diploma permite que qualquer órgão de comunicação seja multado até 700.000 euros quando aquilo que publica não estiver de acordo com a defesa do "interesse público, da moral pública ou da ordem pública". Ou quando publicar histórias que refiram sexo, violência ou álcool (?) de forma imprópria. Ou quando fizerem uma cobertura desequilibrada da actualidade. Quem decide o que é próprio? Quem decide o que é equilibrado? Um grupo de cavalheiros nomeados pelo partido do poder.

E não se trata apenas de um excesso de zelo de um deputado neo ou velho-fascista: o Governo de Viktor Orban já tornou claro em vários casos que a sua intenção é mostrar aos jornalistas quem manda e que nenhuma crítica ao poder ficará sem castigo.

Alguém imaginaria que, 150 anos depois, ainda fosse preciso explicar John Stuart Mill aos políticos e aos cidadãos europeus? Basta revisitar a recente polémica sobre a WikiLeaks para ver como a liberdade permanece frágil e furtiva, como continuamos a dever escrevê-la, ainda e sempre, sobre todas as páginas brancas e sobre as paredes.

2. Que a liberdade é algo incompreendido aprendemos também há dias através de um outro exemplo, pela acção de uma empresa que vende telemóveis e que dá pelo nome de Ensitel. A história conta-se depressa: a Ensitel vendeu em 2009 um telemóvel avariado a uma cliente, mas, quando foi confrontada com o facto, recusou-se a trocar o aparelho ou a reembolsar a cliente. A cliente, Maria João Nogueira, foi contando no seu blogue (JonasNuts.com) as peripécias da reclamação junto da Ensitel, que chegaram ao Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo de Lisboa. Mas este também não resolveu a questão a contento da cliente, que acabou por mandar reparar o telemóvel à sua custa.

Fast forward. Antes deste Natal, Maria João Nogueira soube que tinha sido processada pela Ensitel, que a intimava a retirar do blogue os posts onde relatava a sua saga.

A Ensitel foi obrigada a recuar no processo judicial e a pedir desculpas publicamente, ainda que a contragosto, devido a uma verdadeira revolta online contra a empresa - traduzida em comentários no Facebook e no Twitter, sátiras no YouTube, páginas anti-Ensitel criadas um pouco por todo o lado - e o facto está a ser lido como uma manifestação do novo poder do consumidor na era da Internet, mas a história tem outras leituras.

De facto, que a empresa tenha uma política de qualidade algo descontraída, que tenha uma ideia original de como deve tratar os clientes, que não perceba em que consiste o valor daquilo que vende, que reaja de forma primária perante uma reclamação e que não saiba bem o que é um blogue e qual é o poder da Internet, ainda se pode compreender. O que é mais difícil de aceitar é que a empresa tenha achado que podia usar a lei para amordaçar e intimidar um cidadão apenas porque não gostava do que ele dizia.

A história da Ensitel mostra, à sua pequena escala, que é possível defender as liberdades. O que nos contará a história da Hungria? (jvmalheiros@gmail.com)

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