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Francisco Louçã, o deputado que usou sempre o trunfo do bluff

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"Não preciso de vos garantir que continuarei a minha vida política", afirmou, ao sair do Parlamento Miguel Manso

Discursa hoje como líder do BE pela última vez. Durante 13 anos foi o rosto mais mediático do partido e um tribuno temido no Parlamento. Fecha duas portas, mas continuará a sua vida política

Francisco Louçã não prescindiu, ao longo de 13 anos, de trunfos na manga para marcar o debate político e a agenda dos governantes. Tribuno reconhecido, o cessante líder do BE explorou o factor imprevisível nos debates parlamentares. Hoje discursa na convenção do partido, em Lisboa, e fecha, por sua iniciativa, a porta a 13 anos de liderança, os mesmos em que foi deputado à Assembleia da República.

Olhando para trás, desde 1999, Louçã entusiasmou a esquerda e assustou a direita. Travou combates verbais duros e confrontou cinco primeiros-ministros, a quem atribui cognomes: António Guterres, "o mais bem preparado", Durão Barroso, "crispado e pomposo", Pedro Santana Lopes, de quem foi "colega de liceu cinco anos", José Sócrates, "o mais combativo", e Pedro Passos Coelho, "o mais perigoso".

No mesmo estilo fala sobre si próprio: "Usei sempre bem o trunfo de fazer bluff até ao fim, 20 segundos que fossem". A frase de Louçã ilustra uma forma de fazer combate político vista pelos críticos com recurso excessivo aos "sound bytes" e à "demagogia" e encarada pelos seguidores como "um trunfo".

Metade do tempo da vida de deputado de Louçã foi partilhada com Sócrates em São Bento. "Eu vejo que, de intervenção em intervenção, o senhor vai ficando mais manso", dir-lhe-ia o bloquista em plenário. "Manso é a tua tia, pá!", responderia o primeiro-ministro, de microfone desligado. Ao seu lado, o ministro Augusto Santos Silva ria-se. Assim ia a política portuguesa em Abril de 2010. No ano seguinte, Sócrates, que Louçã acusou de ter feito a maior viragem de sempre à direita do PS, ficaria novamente irritado com o líder do BE, quando confrontado com o facto de a imprensa noticiar que recebera, na véspera, seis telefonemas de líderes mundiais, a propósito do bombardeamento da Líbia. Sócrates, outra vez num deslize de microfone desligado, reagiu assim: "Eu?! Você está parvo, pá!"

O chefe de governo socialista - a quem, em 2011, o Bloco apresentou uma polémica moção de censura, apadrinhada por um discurso de Louçã sobre "um tempo de medo e de confusão" e "uma política de nevoeiro e de falta de alternativas" - era, segundo o bloquista, "correcto do ponto de vista institucional". Tanto que Sócrates não deixou de almoçar com Louçã e com os dirigentes do Bloco Luís Fazenda e João Teixeira Lopes no dia em que tomou posse como primeiro-ministro pela primeira vez.

O almoço já estava marcado e com Pedro Silva Pereira e António Costa discutiram o referendo ao aborto. Apesar de alguma hesitação na agenda do PS, Louçã reconhece que os socialistas também tinham pressa. Estávamos em 2005, mas já quatro anos antes, era Guterres primeiro-ministro, o tema valeu ao líder do Bloco um aplauso da bancada do PS quando defendeu que a sociedade não aguentava mais tempo "um regime de apartheid" sobre as mulheres. E no dia em que o referendo ditou a vitória do sim, em 2007, Sócrates liga-lhe três vezes, como lhe ligara, numa conversa de mais de uma hora, sobre a privatização do BPN.

Mas a tensão foi crescendo: "O espaço político tinha passado a ser dominado pelas privatizações, parcerias público-privadas, vertigem da dívida, orçamentos de austeridade, luta dos professores, Código do Trabalho. Manuel Alegre votou contra o Código e ele dizia que eramos nós que o incentivávamos."

Mas foi com Guterres, "academicamente notável, que tinha uma carreira de destaque na administração pública e estava muito bem preparado", que Louçã teve "muito diálogo político" e se estreou como parlamentar. "Ele foi responsável por várias políticas sociais, como o Rendimento Social de Inserção, e fez caminho no combate à pobreza. Com o Guterres conseguimos atacar a violência doméstica, fizemos uma coisa extraordinária que foi a despenalização dos toxicodependentes".

E há um episódio que Louçã retém do guterrismo. Os técnicos de segurança rodoviária recomendavam reforço dos limites da taxa de alcoolemia a partir da qual os condutores deveriam ser autuados. Houve um "incêndio político" nas bancadas do PS e da direita, com os deputados dos círculos de Viseu e do Alentejo contra a medida e com o grupo parlamentar do PCP a defender a produção nacional. O Bloco, recorrendo ao argumento de que a segurança das pessoas vem primeiro e que "não se vende vinho nas auto-estradas", alinhava com o primeiro-ministro. Tanto que Guterres liga a Louçã para reconhecer o apoio dos bloquistas. "O Governo caía por si próprio, apesar de ter maioria", diz.

A única moção a três

Durão e Santana são mais fugazes no Parlamento. O primeiro "tinha um estilo crispado, pomposo, não tinha a presença dos outros. Aliás, Guterres vencia sempre os debates quando era primeiro-ministro e Durão Barroso presidente do PSD". Recorda que a Guerra do Iraque, antecedida da Cimeira das Lajes, nos Açores, marcou grande parte da discussão política com Durão Barroso, em 2003. Na altura, propôs a Ferro Rodrigues, então secretário-geral do PS, e a Carlos Carvalhas, secretário-geral do PCP, o mesmo que não conseguiu há pouco mais de um mês com António José Seguro e Jerónimo de Sousa: uma moção conjunta ao Governo. O cenário foi decisivo: "Eu combinei uma moção de censura com eles, mas era um mundo à parte na política internacional. Nós estávamos mesmo convencidos de que aquilo era tudo mentira [existência de armas de destruição maciça no Iraque]".

Com Durão, a discussão também aqueceu com a venda de cerca de 33% de capital da Galp. O alegado favorecimento de um consórcio detido pelo grupo Carlyle levou Louçã à procura de um vídeo que revelava a existência de uma reunião entre Durão e o ex-embaixador americano Frank Carlucci. O negócio havia de se gorar, mas nessa disputa o líder do Bloco ouviu críticas que a direita lhe faz recorrentemente de microfone desligado. E, perante o espanto da ministra Manuela Ferreira Leite, sentada ao lado de Durão, o primeiro-ministro contra-atacou: "É desonesto intelectualmente e insuportavelmente arrogante. Não merece qualquer resposta!"

Quando Durão parte para Bruxelas e Jorge Sampaio, então Presidente, dá posse a Pedro Santana Lopes como primeiro-ministro, o colega de liceu de Louçã, o único que trata por tu no PSD, sofre tratamento diferenciado. O líder bloquista arranca a intervenção no Parlamento com um "dr. Santana Lopes".

O último alvo de Louçã foi Passos Coelho, com quem nunca tinha falado até um frente-a-frente televisivo. "Prepara-se muito pouco para os debates, ele não tem um ministro dos Assuntos Parlamentares. O Sócrates tinha o Silva Pereira que lhe preparava uma ficha com tudo o que imaginava de questões que lhe poderiam colocar. O Passos Coelho não sabia do fecho da maior maternidade do país? Tem um secretário de Estado no caso da Lusoponte que lhe dá informação errada? A preparação dele é fragilíssima".

Louçã fechou a porta do Parlamento a 25 de Outubro, 13 anos depois do mesmo dia em que se estreou. Faz 56 anos na segunda-feira, dia seguinte à despedida da liderança e quando Angela Merkel visita Portugal. Para as estatísticas, ficam também 1012 intervenções em plenário e 606 projectos de lei. Aposta na universidade, onde é professor catedrático de Economia. Mas: "Não preciso de vos garantir que continuarei a minha vida política."

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