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Quando eu sou o Outro: problemas de ethos e identidade no filme Pequeno Grande Homem
Carlos Böes de Oliveira
Carlos Böes de Oliveira
Quando eu sou o Outro: problemas de ethos e identidade no filme Pequeno Grande Homem
When i am the Other: matter of ethos and identity in the movie Little Big Man
Texto Livre: Linguagem e Tecnologia, vol. 11, núm. 2, pp. 1-17, 2018
Universidade Federal de Minas Gerais
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Resumo: Este artigo pretende estudar a relação da construção do ethos e da identidade no personagem principal do filme Pequeno Grande Homem (Little Big Man, 1970) de Arthur Penn, além de salientar as representações do Outro (os nativos norte-americanos) na narrativa fílmica. Através de um encontro interdisciplinar entre componentes da Análise do discurso (AD), da linha francesa de Maingueneau, e os estudos culturais, propomos uma visão mais ampla sobre a questão do eu e do Outro no gênero de faroeste. Os referenciais teóricos estão focados em Tzvetan Todorov e Stuart Hall, para analisarmos a questão do Outro, a cultura e a identidade. Para enveredarmos na temática do ethos, buscamos teorias do discurso baseadas nos estudos de Dominique Maingueneau, que, por sinal, pertencem à linha de pesquisa da AD de linha francesa. Pretendemos, através deste estudo, problematizar a questão do Outro, entendendo que o personagem principal do filme desconstrói um ethos pré-discursivo, estabelecido na cultura norte-americana, em que a tradição via o nativo como selvagem e bestial.

Palavras-chave:Pequeno Grande HomemPequeno Grande Homem,OutroOutro,EthosEthos,IdentidadeIdentidade,FaroesteFaroeste.

Abstract: This paper intends to analyze the relation of ethos and identity construction in the protagonist of the film Little Big Man (Arthur Penn, 1970), besides stressing out the representations of the Other (the North American natives) in the filmic narrative. Through an interdisciplinary approach between components of the Discourse Analysis from the French studies of Maingueneau, and cultural studies, we propose a substantial vision about the matter of the other and I in the western genre. The theoretical references are focused on Tzvetan Todorov and Stuart Hall, to analyze the matter of the other, culture and identity. To analyze the discursive ethos, we relied on discourse theories based on the studies of Dominique Maingueneau, that, by the way, belong to the French Discourse Analysis. Through this study, we intend to problematize the issue of the other, understanding that the protagonist of the film deconstructs a pre-discursive ethos, established on the North American culture, where tradition saw the native as a savage.

Keywords: Little Big Man, Other, Ethos, Identity, Western.

Carátula del artículo

Linguística e Tecnologia

Quando eu sou o Outro: problemas de ethos e identidade no filme Pequeno Grande Homem

When i am the Other: matter of ethos and identity in the movie Little Big Man

Carlos Böes de Oliveira
Universidade Feevale, Brasil
Texto Livre: Linguagem e Tecnologia, vol. 11, núm. 2, pp. 1-17, 2018
Universidade Federal de Minas Gerais

Recepción: 24 Julio 2017

Aprobación: 24 Noviembre 2017

1 O gênero faroeste

Os faroestes clássicos pertencem a mitologia da América, e mostram, na maioria dos casos, uma América verdadeiramente heróica, decente, branca e masculina. Os faroestes clássicos revelam um mundo governado por homens. As posições de gênero são estáticas e hegemônicas: homens são homens e mulheres são mulheres, e ninguém ali está reivindicando alguma mudança. Os homens brancos servem para proteger suas subordinadas mulheres dos homens de cor, sejam eles índios, negros ou mexicanos, já que na tradição do faroeste clássico uma tonalidade mais escura de pele é, quase sempre, um sinal iminente de perigo e ameaça. “No faroeste, o homem branco incorpora o Destino Manifesto da América. Ele é um tipo qualquer e sem nome, um símbolo de uma coragem real ou desejada, de uma independência e triunfo de uma América comum” (KORD; KRIMMER, 2011, p. 62).

O gênero fílmico faroeste foi, durante a maior parte do século XX, um dos maiores sucessos dos estúdios cinematográficos norte-americanos, tendo em vista o baixo custo da produção, pois o cenário estava à disposição e caubóis reais participavam gratuitamente como figurantes. Quando o cinema ainda era mudo, cineastas como Allan Dwan (1885 – 1981) e Raoul Walsh (1887 – 1980) produziam um filme de faroeste por semana, incluindo o roteiro e a edição final (KEMP, 2011).

O faroeste também consolidou carreiras proeminentes de diretores, como John Ford, Sam Peckinpah, Howard Hawks, Sergio Leone e Clint Eastwood. Em 1939, John Ford lançou No tempo das diligências, iniciando um tempo em que importantes diretores se dedicaram ao gênero, como ainda Michael Curtiz (1886 – 1962), Fritz Lang (1890 – 1976) e Howard Hawks (1896 – 1977) (KEMP, 2011). Segundo Kemp:

Após a Segunda Guerra Mundial, o interesse cada vez maior de Hollywood se ateve, a princípio, a diretores como Ford, e, depois, ao próprio gênero do faroeste, que acabou sendo visto como parte da mitologia americana, um espaço imaginário para a batalha entre os fora da lei e os defensores da ordem, entre a selvageria e a civilização (KEMP, 2011, p. 242).

Esse gênero fílmico também lançou atores, como John Wayne e Clint Eastwood, os quais interpretaram personagens que se diferenciam diametralmente. As personagens de Wayne são representadas como um bom americano, o desbravador e conquistador do Oeste, o justo, enquanto as personagens de Eastwood representam, normalmente, um homem atormentado, solitário e violento. A diferença de ethos entre as personagens interpretadas pelos dois atores já é simbólica na construção histórica dos faroestes.

John Wayne representa a época de ouro, até 1970, quando o cowboy era visto como um herói da nação, construtor da identidade vitoriosa e conquistadora da América, enquanto os índios eram selvagens, estupradores e estavam constantemente trazendo o terror e o caos às comunidades dos homens justos e trabalhadores. Já com Clint Eastwood, o faroeste inicia um momento de desvirtuação, a partir de meados dos anos 60, já que seus personagens não podem ser classificados como heróis bonzinhos.

De fato, essa característica torna-se um tanto opaca, pois a representação da identidade já se mostra problemática, e as relações éticas e morais, mais ainda. O Oeste é retratado como um território sem lei, com homens selvagens, violentos, racistas e um tanto megalomaníacos. É nesse momento histórico desse gênero fílmico que começa a se desconstruir o imaginário das representações do nativo norte-americano. A partir de então, já é possível vê-los, não como demoníacos e selvagens, mas como companheiros de viagens, conhecedores da natureza e do espírito humano, leais e com fortes características morais e éticas.

A representação do nativo americano como selvagem começa a ser rompida com o filme Flecha quebrada (Broken Arrow, de Delmer Daves, 1950), assim como O último bravo (Apache, 1954), de Robert Aldrich; A última caçada (The Last Hunt, 1956), de Richard Brooks, e Renegando o meu sangue (Run of the Arrow, 1957), de Samuel Fuller, segundo Kemp (2011).

Contudo, é Pequeno Grande Homem, de Arthur Penn, a obra fílmica considerada por muitos críticos e historiadores um filme que foi um grande divisor de águas no quesito da representação do índio norte-americano. O jovem protagonista, Jack Crabb, é adotado, aos dez anos, pela tribo Cheyenne, é educado como indígena e recebe o nome Pequeno Grande Homem. Quando é “resgatado” por soldados confederados, ele volta a viver no mundo dos brancos, mas seu comportamento e estilo de vida é Cheyenne, de modo que apresenta sérias dificuldades em se adaptar a um mundo cujos valores não compartilha.

Os esforços neste artigo focam as condições de mudança de identidade pelo personagem Jack Crabb, e seus problemas decorrentes disso. Primeiro, será apresentado um panorama histórico da construção da identidade do Outro, desde a descoberta da América até o seu desdobramento na realidade da peça cinematográfica. A seguir, será exposta a teoria sobre ethos discursivo, como se constrói e se consolida. Em um terceiro momento, será problematizada a questão da identidade na cultura pós-moderna, para, finalmente, ser realizado estudo da narrativa fílmica a partir da análise do discurso e dos estudos culturais.

2 A questão do Outro

O estudo de Tzvetan Todorov sobre a descoberta da América e a descoberta que o Eu faz do Outro, no caso exemplar de Cristóvão Colombo e dos nativos americanos, embasará as discussões deste artigo. Mesmo depois de cinco séculos da experiência colonizadora na América, a forma de ver o Outro e de impor-lhe uma identidade só começa a mudar no final dos anos sessenta do século XX, marco temporal em que se encontra o filme Pequeno Grande Homem (1970), que se constitui como um momento de ruptura da fixidez racial e identitária imposta ao Outro, visto que a luta pelos direitos civis trouxe alguns direitos para os nativos americanos, como, por exemplo, maior respeito por suas crenças e cultura.

O sujeito é constituído por muitos Outros, já que o Eu não é matéria homogênea e unitária; a identidade é constituída através do encontro com o(s) Outro(s) com os qual o sujeito se relaciona. É apenas através da ilusão do sujeito em se ver como uno, dissociado dos outros sujeitos – eu estou aqui e os outros estão lá - que se torna possível separar e distinguir o Outro do Eu (TODOROV, 2003). Essa ilusão não está restrita à distinção de indivíduos, mas de grupos inteiros também, como: as mulheres e os homens, oriental e ocidental, homossexual e heterossexual. Essa distinção também pode ser aplicada a grupos exteriores à sociedade em que o Eu vive. E este é o exemplo que Todorov apresenta: a relação do Eu com o Outro que vem de uma cultura completamente diferente, com uma língua diferente, com costumes completamente estrangeiros à tradição eurocêntrica. A conclusão do autor é arrebatadora, pois reconhece que, em toda a história, nós, como civilização, nunca passamos por um momento tão singular em relação ao encontro com o Outro como aconteceu com a descoberta da América e dos nativos que habitavam essas terras. O europeu encontrou a América, mas não encontrou o homem que cá vivia. Ao se deparar com o Outro, que era o nativo americano, não o reconheceu como semelhante e o ignorou. E é a negação desse encontro que marca o maior genocídio da história da humanidade.

Para Todorov (2003), foi em 1492, quando os europeus conquistaram a América, que se fundou a identidade ocidental, pois, até aquele momento, o mundo não tinha fim, era aberto. O homem não era, senão, uma parte sem todo. Com a conquista, o mundo tornou-se total, e ocidental também.

De acordo com Todorov, ao negar a existência do Outro, reservando-lhe apenas a condição de besta irracional e lasciva, Colombo e sua comitiva desumanizaram os nativos, considerando-os seres inferiores. Com isso, iniciou-se um processo de tomada de posse em termos físicos e simbólicos. No físico, houve a tomada das terras, das riquezas e, também, do corpo dos índios; na esfera simbólica, pode-se fazer referência à instalação do ato de nomear. Colombo começa a dar nomes novos a terras, ilhas, montanhas, rios, vales etc., pois “[...] sabe perfeitamente que as ilhas já têm nome, de uma certa forma, nomes naturais (mas em outra acepção do termo); as palavras dos outros” (TODOROV, 2003, p. 38). Mas como usar as palavras dos outros, se esses Outros não são Outros? A atividade de denominador de Colombo não se restringiu à geografia, uma vez que “[...] nem os índios escapam da torrente de nomes: os primeiros homens levados à Espanha são rebatizados de Don Juan de Castilha e Don Fernando de Aragón” (TODOROV, 2003, p. 39). O primeiro momento do encontro entre a Europa e o Novo Mundo foi igualmente marcado pelo ato de nomear e pela tomada de posse, conforme explica Todorov:

Colombo desce a terra numa barca decorada com o estandarte real, acompanhado por dois de seus capitães e pelo escrivão real, munido de seu tinteiro. Sob os olhares dos índios provavelmente perplexos, e sem se preocupar com eles, Colombo faz redigir um ato. “Ele lhes pediu que dessem fé e testemunho de que ele, diante de todos, tomava posse da dita ilha – em nome do Rei e da Rainha, seus Senhores” (TODOROV, 2003, p. 40).

Colombo tinha uma visão naturalista e universal do ser humano, que se aplica também à sua concepção de línguas estrangeiras, uma vez que não reconhecia a diversidade das línguas e, nesse sentido, declarou que os índios não sabiam falar. Afinal de contas, para o explorador, os índios faziam parte da paisagem e nada mais.

Essa negação do Outro, iniciada com Colombo e sua comitiva, pode ser vista na empreitada calvinista, e sua filosofia de Destino Manifesto dos americanos, que pressupunha que eles eram os verdadeiros donos daquelas terras e deveriam, como missão colonizadora, de tomar conta do território. Isso se alastrou pelos Estados Unidos durante a colonização. Nesse sentido, o filme Pequeno Grande Homem retrata um período em que o genocídio dos nativos norte-americanos é levado às últimas consequências e o nível de crueldade é extremo. As Guerras Indígenas (1778 – 1890), como são chamadas, levaram ao extermínio de muitas nações indígenas, além de construírem a imagem do americano como um povo de desbravadores, corajosos e destemidos, ao passo que representou os índios como selvagens, violentos, estupradores e demoníacos. Tais características marcaram as narrativas fílmicas de faroeste, principalmente até o início da década de setenta, quando filmes como Pequeno Grande Homem (Little Big Man, de Arthur Penn, 1970), Um Homem Chamado Cavalo (A Man Called Horse, de Elliot Silverstein 1970), Jeremiah Johnson (Jeremiah Jonhson, de Sydney Pollock, 1972), Josey Wales: Um fora da lei (The Outlaw Josey Wales, de Clint Eastwood, 1976) e Grayeagle (Grayeagle, de Charles B. Pearce, 1976) começam a deslocar a representação dos nativos como seres selvagens para uma visão mais antropológica.

Para analisar a representação dos nativos americanos na narrativa fílmica em questão, os próximos segmentos focar-se-ão na análise do ethos e da identidade.

3 Ethos Discursivo

A questão do ethos remonta à retórica grega e, embora tenha sido negligenciada por muito tempo, há crescente interesse pelo tema nas disciplinas do discurso e também nas ciências humanas. O ethos discursivo coloca em pauta a imagem de si que o enunciador coloca em cena através de seu discurso. Mas trabalhar a noção de ethos não é tarefa simples, tendo em vista que ele não está explícito no discurso, mas sim, de forma intuitiva e interligada, a uma extensa intertextualidade, como lembra Maingueneau:

Um dos maiores obstáculos com que nos deparamos quando queremos trabalhar a noção de ethos é o fato de ela ser muito intuitiva. A ideia de que, ao falar, um locutor ativa em seus destinatários uma certa representação de si mesmo, procurando controlá-la, é particularmente simples, é até trivial. Portanto, com frequência somos tentados a recorrer a essa noção de ethos, dado que ela constitui uma dimensão de todo ato de enunciação (MAINGUENEAU, 2008a, p. 12).

Para alcançá-lo, intuitivamente, o orador ativa inúmeros outros conhecimentos discursivos onde o ethos precisa estar integrado a uma cenografia adequada para legitimá-lo, necessita conectar-se a um gênero discursivo coerente. De todo modo, podemos conceber o ethos como um conceito “univitelino” ligado ao tema da identidade, a qual, por sua vez, é um tópico em voga e problemático, que movimenta múltiplos círculos acadêmicos e sociais na era pós-moderna.

Na Retórica, o ethos tem a função de causar uma boa impressão através da construção do discurso. Nesse sentido, Maingueneau (2014) salienta que o ethos tem papel persuasivo, de modo que um tipo de indivíduo pode ser convencido de que uma pessoa (aquela que fala) assumiu determinada imagem de si no discurso, ou seja, o ethos serve para convencer e ganhar a confiança de um auditório. Devemos estar cientes de que o ethos não é um conhecimento extradiscursivo sobre aquele que fala, mas sim que está ligado à própria enunciação. É, pois, através da construção do discurso que o ethos se consolida (ou não) na interpretação e no imaginário de seu destinatário, e não no que se acredita previamente sobre o caráter do orador. A sinceridade do orador não é relevante na construção do ethos, mas sim o que ele mostra como atributos de caráter em seu discurso, assumindo uma posição em que adota uma identidade e rejeita outras. Dessa forma, segundo Maingueneau:

A eficácia do ethos relaciona-se, assim, com o fato de ele envolver de algum modo a enunciação sem ser explicitado no enunciado. Por mais que esteja ligado ao locutor na medida em que este se acha na origem da enunciação, é a partir de dentro que o ethos caracteriza esse locutor. Com efeito, o destinatário atribui ao locutor inscrito no mundo extradiscursivo características que são na realidade intradiscursivas, porque estão associadas a um modo de dizer (MAINGUENEAU, 2014, p. 268).

A construção do ethos não se vale apenas do discurso; elementos extradiscursivos também entram em cena, como, por exemplo: o modo de gesticular, a roupa que se está usando, o tom de voz, o ritmo da fala, as expressões faciais, a postura etc.. Todos esses elementos ajudam a construir e legitimar o orador em determinada posição no imaginário de seus receptores. A construção do ethos é dinamizada, escapa à estática e à representação definida e sólida, já que é idealizada pelo destinatário no processo de elaboração da fala do orador. Nessa relação dinamizada entre orador e destinatário, é que se vê como se dá a construção de sentidos. Esse dialogismo do discurso, no qual o locutor dialoga com discursos anteriores para angariar os sentidos que busca alcançar, é o mesmo fenômeno realizado pelo receptor para interpretar e devolver uma contrapalavra, consonante ou dissonante à palavra do locutor. Esse acontecimento não é apenas o movimento da construção de sentidos, mas também da construção de identidades do Eu e do Outro. Maingueneau frisa a relação entre identidade e ethos:

[...] a questão do ethos está ligada à da construção da identidade. Cada tomada de palavra implica, ao mesmo tempo, levar em conta representações que os parceiros fazem um do outro e a estratégia de fala de um locutor que orienta o discurso de forma a sugerir através dele certa identidade (MAINGUENEAU, 2008b, p. 60).

Não cabe, neste artigo, analisar o ethos retórico, mas sim o ethos discursivo. Para tal tarefa, devem ser ressaltadas algumas atribulações que surgem com a noção de ethos discursivo. Em primeiro lugar, “[...] o ethos está crucialmente ligado ao ato de enunciação, mas não se pode ignorar que o público constrói também representações do ethos do enunciador antes mesmo que ele fale” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 60). Nesse sentido, temos uma diferenciação entre ethos discursivo e ethos pré-discursivo. Ao lembrar que apenas o ethos discursivo faz parte dos estudos da Retórica, Maingueneau lança luz sobre o aspecto pré-discursivo do ethos e todos os desvios que essa nova abordagem propicia sobre a tônica da interpretação e compreensão do discurso. O autor ressalta que “[...] mesmo que o destinatário não saiba nada antecipadamente sobre o ethos do locutor, o simples fato de o texto pertencer a um gênero do discurso ou a certo posicionamento ideológico induz expectativas em matéria de ethos” (MAINGUENEAU, 2008b, p. 60). Portanto, essa imagem prévia que o público tem do enunciador colabora para a criação de um ethos efetivo, em outras palavras, o ethos pré-discursivo. Por um lado, essa imagem poderá ser comprovada ou desaprovada, isso dependerá dos traços linguísticos e das analogias a determinados gêneros discursivos na manifestação do discurso pelo enunciador, ou seja, a imagem do orador só encontrará seu ethos solidificado no decorrer da manifestação discursiva.

O ethos discursivo não é estabelecido apenas pelo ethos pré-discursivo e pelo ethos discursivo, também entra em cena o ethos dito. Há que se compreender que o ethos de um discurso é uma interação de múltiplas condições. A noção de ethos para Maingueneau é “[...] instância subjetiva que se manifesta através do discurso não se deixa perceber neste apenas como um estatuto, mas sim como uma voz associada à representação de um ‘corpo enunciante’ historicamente especificado” (MAINGUENEAU, 2014, p. 271). Esta voz do discurso não está apenas reservada ao discurso oral, mas também ao texto escrito. Ainda que se recuse, o texto escrito possui uma vocalidade que possibilita submetê-lo a uma caracterização do corpo do enunciador, o qual não deve ser tomado como o locutor extradiscursivo do texto escrito, mas sim um “fiador”, que, através do tom utilizado, assevera o que é dito. Este “fiador” é “construído pelo destinatário a partir de índices liberados na enunciação” (MAINGUENEAU, 2008a, p. 18).

Essa concepção “encarnada” de ethos abarca não somente o aspecto verbal, mas, da mesma forma, um aglomerado de caracterizações psíquicas e físicas ligadas ao “fiador” através de representações coletivas. De acordo com Maingueneau acerca do papel do “fiador”,

[...] este vê atribuídos a si um caráter e uma corporalidade cujo grau de precisão varia de acordo com o texto. O “caráter” corresponde a um conjunto de características psicológicas. A “corporalidade”, por sua vez, associa-se a uma compleição física e uma maneira de se vestir. Além disso, o ethos implica uma maneira de se movimentar no espaço social, uma disciplina tácita do corpo apreendida mediante um comportamento global. O destinatário o identifica com base num conjunto difuso de representações sociais avaliadas de modo positivo ou negativo, de estereótipos que a enunciação contribui para confirmar ou modificar (MAINGUENEAU, 2014, p. 272).

Nesse sentido, o “fiador”, por meio de sua enunciação, deve legitimá-la através de seu próprio enunciado e seu modo de dizê-lo. Para que esse ato enunciativo tenha sucesso, é necessário também que o destinatário se posicione concomitantemente de acordo, validando, assim, o enunciado e o ethos empreendido. Percebe-se, dessa maneira, que o corpo do fiador lhe é conferido por intermédio de sua própria enunciação, ao mesmo tempo em que o co-enunciador se adapta e assimila esse corpo. É essa incorporação que assegura o sucesso ou o fracasso do discurso.

O termo incorporação é usado para designar o intérprete, sendo ele ouvinte ou leitor, que se apropria do ethos empreendido. Maingueneau designa o papel da incorporação a três registros:

- A enunciação da obra confere uma “corporalidade” ao fiador, dá-lhe um corpo.

- O destinatário incorpora, assimila um conjunto de esquemas que correspondem a uma maneira específica de se relacionar com o mundo habitando seu próprio corpo.

- Essas duas primeiras incorporações permitem a constituição de um corpo, o da comunidade imaginária daqueles que aderem ao mesmo discurso. (MAINGUENEAU, 2014, p. 272, grifo do autor).

Identificar-se com o fiador não é um atributo único designado ao ouvinte, que, por sua vez, deve incorporar o universo ético do fiador. Essa orbe ética dá acesso a determinado grau de situações estereotípicas ligadas a comportamentos e contextos em que determinado número de ethé habitam.

O próximo passo deste estudo recai sobre o aspecto da identidade, pois entendemos que, concomitantemente ao conceito de ethos, o conceito de identidade será fundamental para compreender e analisar o filme referenciado neste trabalho.

4 Identidade

Não há, talvez, no universo pós-moderno, maior problemática do que a da identidade. Stuart Hall coloca a questão de forma sucinta e objetiva, ao afirmar que:

Em essência, o argumento é o seguinte: as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A assim chamada “crise de identidade” é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social (HALL, 2001, p. 7).

A partir disso, pode-se inferir que já houve estabilidade quanto à identidade; contudo, a era pós-moderna coloca todos os significados e sentidos em jogo, pois nada é permanente, nada é seguro ou estável. Hall questiona quais acontecimentos possibilitaram essa enorme crise de identidade vivida pelo homem da modernidade tardia, e quais são suas consequências. Para Hall (2001), uma mudança estrutural modificou as sociedades modernas no final do século XX, fragmentando os panoramas culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade. Essa fragmentação desestabilizou segmentos da cultura que por muito tempo eram tidos como estáveis e sólidos, do que decorre o descentramento do sujeito. As identidades pessoais não possuem mais a característica de integridade que era reservada ao sujeito iluminista e ao moderno. A crise de identidade coloca-se em duas esferas: no ambiente social em que o sujeito encontrava seu lugar no mundo e também no meio cultural em que o indivíduo assumia uma posição em relação a si mesmo.

A problemática da identidade só vem à tona quando há uma crise, na medida em que algo que se supunha fixo e estável é transposto para a categoria da dúvida e da incerteza. Stuart Hall apresenta, em seu livroA Identidade cultural na pós-modernidade (2001), três concepções de identidade: o sujeito do iluminismo, o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno. O sujeito do iluminismo

[...] estava baseado numa concepção de pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades da razão, da consciência e da ação, cujo “centro” consistia num núcleo interior, que emergia pela primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendo essencialmente o mesmo – contínuo ou “idêntico” a ele – ao longo da existência do indivíduo. O centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa (HALL, 2001, p. 10).

Essa visão de identidade é carregada de um tom individualista, colocando o Eu como se fosse dotado de características independentes, apto a tomar decisões e completamente ciente de si. Essa característica individualista muda com o sujeito sociológico, pois, na concepção sociológica, a identidade aporta-se no espaço entre o “interior” e o “exterior” do sujeito, ou seja, no seu universo pessoal e no ambiente público. Segundo Hall, a noção de sujeito sociológico

[...] refletia a crescente complexidade do mundo moderno e a consciência de que esse núcleo interior do sujeito não era autônomo e auto-suficiente, mas era formado na relação com outras pessoas importantes para ele, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos – a cultura – dos mundos que ele/ela habitava (HALL, 2001, p. 11).

Aqui, a identidade é formada no diálogo entre sociedade e o Eu. Há ainda uma primazia do Eu interior para com o mundo social exterior, como ressalta Hall: “o sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o ‘eu real’, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais ‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem” (2001, p. 11). Na concepção sociológica, o sujeito é interpelado pela ideologia, construindo-se mutuamente com o mundo exterior, identificando-se com ele. Nessa abordagem, percebe-se o estabelecimento dos Estados-Nação interiorizados no imaginário cultural dos indivíduos que o habitavam.

Com o advento da globalização, ocorre uma mudança de paradigma quando se pensa a identidade. O mundo exterior do sujeito, aquele que lhe fornecia os valores, sentidos e símbolos, expandiu-se para além das fronteiras nacionais, razão por que o sujeito não pode mais habitar uma identidade estável, fixa e unificada. A identidade é fragmentada, já que não há uma identidade a ser assumida, há várias identidades possíveis. Hall (2001, p. 12) menciona que “o próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático”. O sujeito pós-moderno é, portanto, habitado por inúmeras identidades cambiantes e passageiras. Não há mais espaço para uma identidade fixa, essencial e permanente, uma vez que a identidade é criada e recriada ininterruptamente com referências a como o sujeito é interpelado e representado nos complexos culturais que o cerceiam. O Eu não é mais um Eu coerente, ele é colocado em movimento contínuo, assumindo diferentes identidades e adaptando-se ao universo ao seu redor, identificando-se com os sistemas de significação cambiantes do mundo pós-moderno.

5 A grandeza de Pequeno Grande Homem

A narrativa do filme tem início em 1970 em uma casa de repouso para idosos, onde o personagem Jack Crabb (Dustin Hoffmann), aos 121 anos, dá uma entrevista para algum tipo de acadêmico (provavelmente um antropólogo ou historiador) interessado nas relações entre indígenas e brancos. Ao contar sua história, apresenta seu testemunho, característica que pode ser associada à Nova História, que está interessada em recontar eventos históricos através de outra perspectiva que não seja tradicional, universalizante, centralizadora e que representaria a verdade (JENKINS, 2013). A “História contada de baixo” é o que o filme apresenta, a história dos nativos americanos, narrada por um homem branco que é adotado por nativos norte americanos.

Jack Crabb inicia sua narração sobre fatos passados há 111 anos, quando, aos 10 anos, toda a sua família, ao cruzar as planícies, foi chacinada por um bando de índios Pawnee. Apenas ele e sua irmã mais velha foram poupados do massacre. Um índio Cheyenne, ao passar pelo local, resgata os dois irmãos e os leva a seu acampamento (Figura 1).


Figura 1
O momento em que os irmãos são levados ao acampamento indígena
Fonte: Pequeno Grande Homem (PENN, 1970).

Os Cheyennes se denominavam “Os Seres Humanos”, e essa denominação é interessante para a análise das representações, tanto do índio quanto do homem branco. Os Seres Humanos apresentam características que podem ser associadas aos lemas de igualdade, fraternidade e liberdade, características que representam a democracia, e que, obviamente, não foram os traços de caráter nas representações da sociedade americana no filme em análise.

Jack Crabb é adotado pelos índios e recebe uma criação Cheyenne, aprendendo a língua, os costumes, as técnicas de caça, enfim, sendo tratado como um igual. Quando se torna adolescente, acompanha um grupo de Cheyennes para investigar um acampamento Pawnee, onde salva um companheiro da morte. Esse ato de coragem e bravura faz com que seu avô adotivo, o Chefe Peles Velhas de Cabana (Chefe Dan George), em um ritual que marca a passagem da adolescência para a maturidade, lhe conceda um nome indígena (Figura 2), com o seguinte discurso: “Este rapaz deixou de ser rapaz. Ele é um bravo. É pequeno no corpo, mas seu coração é grande. O nome dele será Pequeno Grande Homem”.


Figura 2
Cerimônia onde o jovem Jack Crabb recebe o nome indígena de Pequeno Grande Homem
Fonte: Pequeno Grande Homem (PENN, 1970).

Ao receber este nome, Jack Crabb assume um ethos que nunca desaparecerá, ditando seu caráter como de um homem justo, honesto, ponderador, leal e sensível. Devemos lembrar que ethos é a imagem que o enunciador cria de si ao enunciar, e que não está apenas ligado ao dito, mas também a ordens extradiscursivas, o modo de agir e de se portar. Sobre a importância do nome, Cassirer (2013, p. 68) explica que:

[...] o eu do homem, sua mesmidade e personalidade, estão indissoluvelmente unidos com seu nome, para o pensamento mítico. O nome não é nunca um mero símbolo, sendo parte da personalidade de seu portador; é uma propriedade que deve ser resguardada com o maior cuidado e cujo uso exclusivo deve ser ciosamente reservado.

Assim, o nome Pequeno Grande Homem está ligado essencialmente ao ethos do personagem na narrativa como marca indelével.

Ao visitarem um acampamento vizinho, os Cheyennes se deparam com um massacre, em que todos os índios, incluindo mulheres e crianças, haviam sido mortos pelos soldados americanos. Diante disso, o Chefe Peles Velhas de Cabana declara guerra aos soldados brancos. Contudo, a ideia de guerra por parte dos nativos era diferente daquela dos colonizadores. O filme explicita que os nativos entendem como guerra não necessariamente matar o inimigo, mas humilhá-lo tocando-lhe o corpo.

No duelo contra os soldados, o Pequeno Grande Homem sacrifica sua liberdade para salvar o companheiro Sombra Que Se Faz Luz. Ao ser capturado, e tentando salvar sua própria vida, Pequeno Grande Homem começa a falar inglês. Suas primeiras palavras são: “Deus abençoe George Washington! Deus abençoe minha mãe!”. Essas palavras não surtem efeito algum, e as investidas contra a vida do personagem só cessam quando ele limpa a tinta de seu rosto, revelando a sua brancura. O conteúdo dessa cena contém elementos que podem ser relacionados aos textos de Fanon, em Pele negra, máscaras brancas (2008), quando afirma que não importa o uso correto da língua do colonizador pelo colonizado, pois este será visto pelas representações que a cultura colonizadora fez dele.

Pequeno Grande Homem volta a ser, então, Jack Crabb, mas o ethos de Pequeno Grande Homem não o abandona. É nesse momento que emergem mais fortemente as representações do mundo ocidental como um mundo imoral, sem sentido, violento, desrespeitoso − características que dificultarão a existência de alguém com o caráter do Pequeno Grande Homem. A partir desse instante, Jack Crabb começa a assumir diferentes identidades, mas sem abandonar a filosofia que o nome Pequeno Grande Homem carrega. A primeira identidade que assume é a de menino puritano, quando é adotado por um reverendo e sua esposa. O reverendo Pendrake é castrador, intolerante e perverso, em cujas palavras as representações que o ocidente faz dos índios ficam claras (Figura 3): “Os índios nada sabem de Deus e da moral. Comem carne humana, fornicam, são adúlteros, misóginos, e comungam constantemente com os desígnios do demônio. A nossa tarefa tem que ser... Não, nosso dever cristão, vencer a miséria pela pancada”. Sua esposa, Sra. Pendrake, é uma mulher que fala constantemente de Deus e das tentações do demônio, mas ela mesma é adúltera.


Figura 3
Reverendo Pendrake pregando sobre a condição bestial dos nativos
Fonte: Pequeno Grande Homem (PENN, 1970).

Jack Crabb, ao perceber que a vida do casal é uma farsa, decide abandonar a família religiosa, passa fome por um tempo e depois se une a um charlatão que vendia bebidas milagrosas. Nas palavras do próprio Jack: “Depois da Sra. Pendrake, a honestidade dele era um bálsamo”. Em uma conversa entre Jack e o charlatão Meriweather, este tenta persuadir o protagonista a abandonar a veia honesta que carrega:

Meriweather: O que te arruinou foi aquele índio, o Velho “Tepee”. Ele transmitiu-te uma visão de ordem moral no universo, e essa ordem não existe. As estrelas brilham no vazio, caro rapaz, e os esquemas e os sonhos das criaturas de duas pernas são todos vãos. Fica com o Allardyce Meriweather, e vestirás seda.

Jack: Eu não sei se quero vestir seda.

Meriweather: Meu caro rapaz, que mais usa um homem de posses além de seda?

Jack reencontra sua irmã e esta o ensina a atirar. Ele se mostra um ótimo pistoleiro, mas, ao presenciar um assassinato, vende suas armas e roupas, de modo que prevalece a filosofia de Pequeno Grande Homem sobre a identidade ocidental. A respeito da representação de masculinidade, a irmã de Jack menciona: “Um homem não é nada sem sua arma... Não há nada mais inútil do que um pistoleiro que não consegue matar pessoas”. Essa representação é diametralmente oposta ao comportamento e modo de vida do povo indígena que educou Pequeno Grande Homem, constituindo, portanto, o comportamento do branco como violento e assassino. Jack casa-se com uma sueca que mal sabe falar inglês e abre um pequeno negócio com um sócio, o qual se revela desonesto e o rouba, condenando-o a declarar falência. Naquele momento de bancarrota, o personagem se depara pela primeira vez com a figura do General George Armstrong Custer1, que é um personagem histórico, herói na guerra civil norte-americana e implacável caçador de índios.

Jack Crabb alista-se no exército com a intenção de procurar sua esposa que havia sido raptada por índios. Em uma investida contra um acampamento indígena, ele revolta-se com a postura sanguinária dos soldados, que atiravam em crianças, mulheres e animais. General Custer comenta sobre as mulheres indígenas: “Elas procriam como ratazanas” (Pequeno Grande Homem, Arthur Penn, 1970), revelando a face preconceituosa e de menos valia do Outro por parte do exército americano. Já o protagonista tenta impedir a matança, mas é caçado pelos próprios soldados.

Ao fugir, reencontra sua tribo Cheyenne e volta a morar com eles, formando família e encontrando a felicidade. A nação Cheyenne estava morando em uma reserva, junto com outras nações indígenas, que lhes havia sido concedida em um tratado com o governo dos Estados Unidos. Lá, ao menos, se sentiam seguros. Essa segurança é interrompida quando o exército do general Custer avança com todas as forças, dizimando todos os nativos. Pequeno Grande Homem consegue escapar e salvar seu avô Peles Velhas de Cabana, mas testemunha a morte de sua esposa e seus dois filhos.

Com isso, Pequeno Grande Homem enlouquece e se exila da civilização, vivendo como eremita na floresta. Era melhor se afastar de todos. Nesse momento da narrativa, Pequeno Grande Homem encontra uma armadilha com uma pata de lobo roída pelo próprio lobo para salvar a sua vida. O personagem, então, decide cometer suicídio, por ter compreendido que ninguém seria salvo naquela sociedade (Figura 4). Ato extremo de negação da sociedade do colonizador, novamente retratado como destruidor da sociedade nativa e, igualmente, da natureza.

Prestes a jogar-se de um penhasco, Pequeno Grande Homem escuta uma trombeta, avista a cavalaria do general Custer e decide matar o “demônio” com as próprias mãos. Assim, aceito novamente no exército, à noite, entra na cabana de Custer, com o pretexto de servir-lhe chá, mas com o intuito de matá-lo a facadas. Mais uma vez, Jack Crabb não consegue abandonar o ethos que seu nome indígena carrega, não sendo capaz de matar um homem, nem mesmo se esse homem merecesse, que é o caso de Custer.

O General George Armstrong Custer é retratado como um homem megalomaníaco, cheio de certezas, impetuoso, arrogante, incrivelmente racista e, de forma muito irônica, sempre que enuncia algo, enuncia errado. Embora ele tenha certeza de estar correto, o espectador tem consciência de que Custer está equivocado. Isso revela uma versão do patético no herói norte-americano: sua impetuosidade custa-lhe a vida e a de outros mil soldados que obedecem a suas ordens. Na famosa batalha de Little Big Horn, quando mil soldados são mortos por um número três vezes maior de índios, Pequeno Grande Homem consegue sua vingança. Melhor ainda, consegue sua vingança sem precisar abandonar o ethos de um homem justo (Figura 5). Custer decide avançar suas tropas “sem dó nem piedade” sobre o acampamento indígena, embora os soldados de alto escalão o pressionassem a mudar de tática, pois acreditavam que seriam emboscados pelos índios. Para, finalmente, ter certeza de sua astúcia, Custer decide perguntar ao Pequeno Grande Homem o que aconteceria se os soldados seguissem seus planos, acreditando que este tentaria enganá-lo.


Figura 4
Momento em que o protagonista está prestes a matarse
Fonte: Pequeno Grande Homem (PENN, 1970).

Custer: O que devo fazer, condutor de mulas?... Devo ir até lá ou bater em retirada?

Jack: Ele estava nas minhas mãos. Mas, desta vez, o que eu tinha na mão não era uma faca, mas a verdade.

Custer: Então? Qual a tua resposta, condutor de mulas?

Pequeno Grande Homem: General, vá até lá.

Custer: E não há índios por lá?

Pequeno Grande Homem: Eu não disse isso. Há milhares de índios por lá, e, quando eles acabarem com o senhor, restará apenas uma mancha gordurosa. Isso não é o Rio Wachita, General. E não terá a sua espera mulheres e crianças indefesas. Eles são guerreiros Cheyenne e Sioux. Vá até lá, se tem coragem para isso.

Custer: Continuas a tentar ser mais esperto do que eu, não é, condutor de mulas? Queres que eu pense que não queres que eu vá até lá, mas a sutil verdade é que não queres realmente que eu vá até lá.


Figura 5
Momento em que Custer decide avançar as tropas sobre o acampamento indígena
Fonte: Pequeno Grande Homem (PENN, 1970).

Com os soldados mortos, Pequeno Grande Homem volta a viver com os índios. Seu avô ainda está vivo, mas está envelhecido, cego e com cicatrizes de batalhas. Juntos, em uma tenda, eles conversam. Seu avô faz constatações sobre o futuro do homem branco e dos Seres Humanos:

Peles Velhas de Cabana: Quero morrer na minha terra, onde os Seres Humanos são enterrados no céu.

Pequeno Grande Homem: Por que queres morrer, avô?

Peles Velhas de Cabana: Porque não há outra maneira de lidar com o homem branco, meu filho. Com tudo o mais que se possa dizer deles, é preciso admitir, não é possível vermo-nos livres deles. [...] Há um infinito suprimento de homens brancos, mas sempre houve um número limitado de Seres Humanos. Ganhamos hoje, mas não ganharemos amanhã.

O filme termina de forma pessimista quando vemos o envelhecido Pequeno Grande Homem no asilo pedindo ao entrevistador que pare o que está fazendo, desligando o gravador e finalizando a entrevista. Percebemos que o personagem está nitidamente abalado. Contar sua história era contar a história dos nativos, e perceber que eles foram enganados. A eles, o governo prometeu terras e liberdade cultural, mas a luta social dos nativos se alastrou por todo século XX.

6 Considerações finais

O filme Pequeno Grande Homem pode ser considerado um divisor na composição do gênero faroeste no cinema, tendo em vista que, pela primeira vez, de forma contundente, um filme desse gênero explorava a perspectiva histórica pela ótica dos colonizados, trazendo protagonistas que eram, de fato, indígenas. O próprio Chefe Peles Velhas de Cabana, interpretado pelo Chefe Dan George, foi indicado ao Oscar e ao Globo de Ouro pelo papel. O respeito pela cultura indígena no filme não se restringiu ao papel do personagem coadjuvante, mas também pelas tradições e pela identidade das nações indígenas – o filme contou com a participação de membros das nações Cheyenne, Pawnee e Crows ‒ e pela fidelidade histórica ‒ as filmagens foram realizadas nos territórios onde batalhas históricas aconteceram e onde acampamentos estavam localizados.

Como o filme inverteu as representações dos indígenas e dos homens brancos típicas do gênero faroeste, em que o índio era retratado como selvagem, bestial, violento e o homem branco era um defensor da liberdade e o reflexo de coragem, a nova representação é marcada pela “veia” cômica, instituindo um posicionamento crítico em relação ao peso da cultura dominante. Em Pequeno Grande Homem, os Seres Humanos são os índios, os quais compartilham um código moral “civilizado”, marcado pelo respeito ao Outro e a sua diferença. Os índios retratados no filme até aceitavam, em sua comunidade, sujeitos que fugissem às normas, como é o caso de Pequeno Cavalo, que assumia uma identidade diferente do padrão, pois era homossexual. Segundo Pequeno Grande Homem: “Os Seres Humanos não precisam de um rapaz para ser guerreiro se ele não tiver o temperamento e o Cavalo Pequeno não tinha. Se ele queria ficar no acampamento com as mulheres, os Seres Humanos não viam problema com isso”.

Essa marca revela um dos componentes da construção da imagem do enunciador fílmico, no caso, Arthur Penn: o diretor subverte o gênero americano por excelência, para acrescentar um ponto de vista irônico na formação do povo americano. A representação da comunidade religiosa, da comunidade comercial e também a do governo, representado pelo exército, apresenta identidades que diferem de seus respectivos ethos oficiais. No caso da comunidade religiosa, a identidade puritana prescrevia um código de conduta severo e disciplinado eticamente, mas há um ethos em que os personagens projetam a si mesmo com enunciados contrários: o Reverendo Pendrake se revela um homem cruel, violento e racista, pregando o extermínio dos nativos; e a Sra. Pendrake, embora se posicione como puritana, revela-se, através dos aspectos discursivos e extradiscursivos, como uma mulher adúltera, libertina e com requintes de perversão. A comunidade comercial é retratada em dois momentos: primeiro com o charlatão Meriweather, que engana seus consumidores e vai perdendo partes de seu corpo pelas cidades por que passa; e também com o parceiro de negócios de Jack Crabb, que é ladrão. Com os soldados, a crítica é mais implacável, pois estes representam o discurso institucional do governo, e aqui há a posição que, na tradição, é ocupada pela honra e pela coragem, enquanto a narrativa fílmica dá lugar ao racismo extremo e generalizado, à crueldade, à intolerância e à violência. Os soldados rompem tratados, são covardes, matam mulheres e crianças, do que decorre que a “grande” conquista do Oeste não é retratada pela bravura, mas pela imensa covardia e violência.

Não há dúvidas de que o filme Pequeno Grande Homem marca uma mudança de paradigma no gênero faroeste, pois rompe com a tradição na representação que faz dos índios e da sociedade ocidental e sua conquista do Oeste, ou seja, sua história. A narrativa fílmica é capaz de recontar os fatos históricos por uma visão de baixo, em que o Pequeno Grande Homem está à margem da história, e à sua pequenez nunca havia sido reservado um papel de destaque nos discursos. O filme permitiu que essa voz – do índio marginalizado nos discursos históricos – pudesse, enfim, se enunciar.

Material suplementario
Referências
CASSIRER, E. Linguagem e mito. São Paulo: Perspectiva, 2013.
FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
JENKINS, K. A História repensada. São Paulo: Contexto, 2013.
KEMP, P. Tudo sobre cinema. Rio de Janeiro: Sextante, 2011.
KORD, S.; KRIMMER, E. Contemporary Hollywood masculinities: gender, genre, and politics. Nova York: Palgrave Macmillan, 2011.
MAINGUENEAU, D. A propósito do ethos. In: MOTTA, A. R.; SALGADO, L. (Org.) Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2008a.
MAINGUENEAU, D. Cenas da enunciação. São Paulo: Parábola, 2008b.
MAINGUENEAU, D. Discurso literário. São Paulo: Contexto, 2014.
PEQUENO Grande Homem. Direção: Arthur Penn. Produção: Stuart Millar. Los Angeles: Stuart Millar & Arthur Penn productions, 1970 (139 min.) Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=r46UERKGeLk. Acesso em: 10 jun. 2018.
TODOROV, T. A conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
Notas
Notas
1 Foi um famoso militart norte-americano. Destacou-se durante a guerra civil como oficial da cavalaria da União. Depois da Guerra Civil, dedicou-se fervorosamente a enfrentar índios, sendo o militar mais lembrado e violento nas guerras indígenas.

Figura 1
O momento em que os irmãos são levados ao acampamento indígena
Fonte: Pequeno Grande Homem (PENN, 1970).

Figura 2
Cerimônia onde o jovem Jack Crabb recebe o nome indígena de Pequeno Grande Homem
Fonte: Pequeno Grande Homem (PENN, 1970).

Figura 3
Reverendo Pendrake pregando sobre a condição bestial dos nativos
Fonte: Pequeno Grande Homem (PENN, 1970).

Figura 4
Momento em que o protagonista está prestes a matarse
Fonte: Pequeno Grande Homem (PENN, 1970).

Figura 5
Momento em que Custer decide avançar as tropas sobre o acampamento indígena
Fonte: Pequeno Grande Homem (PENN, 1970).
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