Centauros, tridente e golfinhos. Descobertos três mosaicos romanos em Alcácer do Sal

por Carla Quirino - RTP
Estação arqueológica de Porto da Lama junto ao canal de rega Raul Losada - Portugal Romano

Quatro centauros, dois golfinhos e um tridente são alguns dos motivos identificados num conjunto único de três mosaicos do período romano, escavados quase na íntegra, no sítio arqueológico de Porto da Lama, perto de Alcácer do Sal. Os resultados ainda são provisórios, mas duas das arqueólogas envolvidas nas escavações de 172 metros quadrados, neste verão, conversaram com a RTP e desenharam algumas interpretações da villa romana com cerca de 1.800 anos.

São os mais recentes mosaicos do período imperial romano encontrados em território português.

O caráter de excelência do achado assenta, para já, no conjunto único de três mosaicos de uma casa pertencente a um abastado proprietário romano a ser escavado quase na íntegra. Acrescenta-se o facto de as representações dos centauros de um dos mosaicos não terem paralelos conhecidos na Península Ibérica.

“Acertámos na mouche. Duas salas e um corredor com mosaicos. É a primeira villa romana em Alcácer com três mosaicos a ser escavada de forma quase integral”, explica Margarida Figueiredo, arqueóloga que dirige da escavação.


Mosaico dos centauros | Raul Losada - Portugal Romano
Importância de Salacia
Se no século I antes de Cristo as legiões de romanos impuseram-se pela força ao longo dos territórios da atual Península Ibérica, na viragem da era, o período imperial chegou com a implantação de um modelo cultural e económico eficaz. Roma era o farol de políticas, hábitos e modas que se replicavam e fixavam nas províncias conquistadas. O atual território português não foi exceção.

A região da foz do Rio Sado e o município de Alcácer do Sal já tinham um importantíssimo povoamento ligado a áreas portuárias consideradas estratégicas, tanto no domínio económico como cultural, assente em raízes fenícias da Idade do Ferro (primeiro milénio antes de Cristo). Com a instalação dos novos senhores da terra, o lugar adquiriu o nome latino de Salacia Urbs Imperatoria.

Neste recanto protegido das águas oceânicas da província da Lusitânia romana, as margens do estuário do Sado revestiram-se de centros de produção de sal, olarias, sem nunca esquecer Tróia - que é considerada uma das maiores fábricas de molhos à base de preparados de peixe salgado - o garum, muito apreciado no império do Mediterrâneo.

Será neste contexto que ricos proprietários atraídos por Salacia construíram as suas villas, a partir dos séculos I e II d.C., perto do Sado ou das ribeiras que nele desaguam, sendo as vias fluviais aproveitadas como “estradas”.


Local da escavação enquadrado entre o canal de rega e a paisagem de Alcácer do Sal | Raul Losada - Portugal Romano

“Muito perto daqui, de Porto da Lama, um ou dois quilómetros, temos Santa Catarina de Sítimos, onde também encontrámos outra villa romana”, refere Margarida.
 
“A parte interessante num contexto maior é que é essa villa romana está associada à ribeira de Santa Catarina e servir-se-ia desse afluente como uma espécie de autoestrada que vai dar a Alcácer – Salacia".

Com estes novos dados "a importância de Alcácer sai cada vez mais reforçada à medida que vamos descobrindo a quantidade de villas ao longo destas ribeiras que vão dar ao Sado e até mesmo a relação que teriam com Tróia”, explica a investigadora.

“Estava tudo muito povoado e nós não conhecemos este povoamento rural em volta dos grandes centros ou urbes. Conhecê-lo, é muito importante para compreender e contextualizar este mundo rural romano ligado às cidades”, argumenta.
Os três mosaicos: golfinhos, tridente, centauros
Uma villa romana era geralmente uma propriedade rural que se desenvolvia a partir da casa senhorial. Em redor haveria as áreas agrícolas, casas onde os trabalhadores viveriam, e eventualmente termas e lagar.

No caso de Porto da Lama, "o que nós encontrámos foi a residência – a domus - deste proprietário”, nomeadamente “a área social desta casa”, observa Margarida.
 
Durante a intervenção de três meses, de maio a julho, os 172 metros quadrados escavados revelaram “uma espécie de vestibulum que era um corredor com um mosaico bicromado - a preto e branco - com motivos geométricos”.

Seguem-se duas salas também pavimentadas com mosaicos. “Uma delas com um mosaico que cria uma forma quadrangular, mas só apanhámos metade dessa sala, e a outra com uma forma retangular, essa apanhámo-la inteira”, explica.

A primeira área poderia ser "uma sala de estar e nessa temos um florão central que não sabemos como seria porque foi cortado. Do que é possível identificar temos dois golfinhos, um tridente e os frisos à volta com motivos vegetalistas, também bicromado – preto e branco”, descreve a arqueóloga.


Representação de dois golfinhos com tridente | Raul Losada - Portugal Romano


O mosaico com quatro centauros (corpo de cavalo com tronco e rosto humano)  surge no que “nos parece um triclinium – uma sala de jantar”. Este mosaico apresenta-se com partes destruídas, mas a equipa aponta semelhanças a um pavimento existente na villa Adriana –, mandada construir pelo Imperador Adriano - em Tivoli, perto de Roma, em Itália. Não se conhece paralelos em Portugal ou Espanha.

“Um dos centauros é muito parecido com os existentes na villa Adriana, aí encontramos uma analogia. Esse centauro está a arremessar uma pedra a um bicho que não se vê porque tem um remendo de opus signinum – uma espécie de argamassa romana. Talvez fosse a representação de um leopardo”, caso seja o mesmo estilo do da villa do Imperador. Esse animal selvagem está, por sua vez, a atacar um segundo centauro. “No total temos quatro centauros”, descreve.


Representação de cena de caça ou batalha entre dois centauros e uma fera| Raul Losada - Portugal Romano


Margarida destaca ainda: “Uma coisa interessante deste painel de mosaico é que – os outros dois são bicromados mas este tem muitas cores”.

A arqueóloga Heloisa Valente dos Santos, que dirige a empresa Archeo´Estudos, Investigação Arqueológica contratada para fazer a escavação, explica que as cores encontradas vão dos pretos aos amarelos, dos cremes aos vermelhos e algumas em lilás e laranja mas “só se notam quando as tesselas são molhadas”. 

As tesselas são as pequenas pedras que compõem o mosaico e no caso dos pavimentos decorados cada cor pode corresponder a uma matéria-prima diferente. As arqueólogas remetem a identificação do tipo de pedras para a fase seguinte da investigação. Reforçam, porém, a ideia de que há vários tamanhos de tesselas e diferentes materiais utilizados: “Há muito calcário, as escuras parecem ser de granito”, o “amarelo ainda não sabemos” e as “vermelhas são cerâmica, são de barro”.

E como chegariam esses desenhos dos mosaicos?

Os proprietários seriam latifundiários daquele tempo, ou seja, teriam de possuir capacidade económica para contratar artesãos especializados que colocariam o pavimento. Heloisa explica que o trabalho seria “feito in sito, era feito ali. E sendo um trabalho especializado, não seriam escravos, quanto muito partiriam a pedra”. 

"O trabalhador artesão especializado, à imagem da Idade Média, poderia andar pelo território a vender os serviços”, observa. “Não sei se haveria uma espécie de catálogo mas haveria tipos de motivos e decorações. Eles baseiam-se muito em cenas de textos clássicos como a Ilíada ou Odisseia (de Homero) – e isso não era algo que saísse da cabeça nem do executante e se calhar nem do proprietário – haveria algum padrão predefinido”, argumenta.

Um quarto espaço escavado também revelou um pavimento de mármore. Heloisa sublinha a importância desses materiais, até porque “será muito interessante perceber de onde veio aquele mármore, pois não há mármore na região”.

“O que nós sabemos é que o normal seria ter vindo da zona dos mármores de Estremoz – mas sabemos que no baixo Alentejo, os romanos também iam buscar mármores a Trigaxe, perto de Beja”, assinala.


Pavimento de mármore | Raul Losada - Portugal Romano


As arqueólogas relembram que os resultados ainda são provisórios, mas Margarida considera que “o facto de haver uma zona de mármore" - embora tenha sido quase todo removido – poderia sugerir “uma área central da casa". "Tendo em conta que o mármore é uma matéria prima muito valorizada, poder-se-á colocar uma possível utilização social enquanto atrium, à volta do qual se distribuiriam as restantes salas", incluindo as dos mosaicos.
Villa que atravessou séculos
Geralmente, estas propriedades rurais romanas têm uma ocupação longa no tempo e sofrem remodelações. Cabe aos arqueólogos reconhecerem as fases de ocupação através das provas que vão encontrando durante os trabalhos. "Ainda não se pode dar uma diacronia de ocupação precisa. Ainda estamos a afinar cronologias. Vamos agora estudar os materiais datantes", explicam as arqueólogas. “Conseguimos apurar que esta villa tem uma ocupação longa”, sublinha Margarida.

Entre os diversos materiais arqueológicos que ajudam a datar as estruturas está uma “moeda que parece ser do Imperador Constantino – é uma moeda de bronze – e parece ser uma moeda comemorativa com a loba capitolina (loba fundadora de Roma a dar de mamar a Rómulo e Rémulo) e depois diz Urbes Roma

No anverso está o busto de Roma com capacete. É uma moeda de Constantino, que terá uma cronologia dos inícios do século IV d.C. "Os paralelos até agora encontrados apontam-nos para os anos 330 - 335 d.C.".

"Estava na base da última utilização da villa, argumenta Margarida. "Esta moeda foi encontrada numa área que parece ser um corredor de acesso à zona social da casa, a oeste da sala dos Centauros. Encontrava-se sob o último nível de circulação deste corredor", acrescenta.


Moeda de bronze | Raul Losada - Portugal Romano


"E depois, para baixo disto, temos o que parecem ser mais duas utilizações anteriores". "Estas primeiras fases são corroboradas pela continuidade dos muros a cotas inferiores, com outro tipo de construção, outro tipo de estuque e indícios de pavimentos mais abaixo", argumenta.

Entre outros materiais encontrados, as arqueólogas apontam a existência de certos tipos de cerâmica que ajudam a caracterizar e a estabelecer um intervalo de tempo da utilização da domus.
 
“Temos cerâmicas terra sigillatas hispânicas (cerâmica de mesa como pratos ou terrinas produzidas em território espanhol) e maioritariamente, temos sigillatas sudgálicas (cerâmica de mesa proveniente do sul de França) – que nos indicam séc. III d.C.”, explica a investigadora.

“Temos muitas ânforas – chamam-se Dressel 14. Era um tipo de contentor de cerâmica que circulou entre o século I d.C. e o século IV d.C. transportando garum". Como hipótese teórica, Porto da Lama consumiria provavelmente o preparado de peixe que era produzido ali ao lado, trazido de Tróia nestas ânforas.


Fragmento de ânfora Dressel 14 com marca de oleiro. "Estas ânforas poderão ter sido produzidas em olarias das margens do Sado" mas só depois de investigar o "carimbo" de oleiro "poderemos perceber qual o centro produtor", realça a arqueóloga | Raul Losada - Portugal Romano


A intervenção arqueológica também revelou muitas telhas, material de construção e pelo menos 16 muros que corresponderiam a paredes de compartimentos da domus. "Muitos deles são reaproveitados, outros são remodelados ao longo das diferentes ocupações da casa", fundamenta.

Dentro dos resultados provisórios, as arqueólogas identificam "uma fase intermédia da domus que nos indica uma utilização durante o século IV e que essa utilização se prolonga no tempo", observam . Nos achados dispersos que "fomos recolhendo ao longo do alargamento do caminho, identificámos cerâmicas que nos podem dar uma diacronia de ocupação deste grande espaço que vai dos finais do I d.C. ao V d.C. Mas não se pode colar esta cronologia à domus", salientam.
Breve história da descoberta e o canal de rega
Heloisa sublinha que o sítio arqueológico nunca tinha sido escavado, embora tenha sido “identificado em 1948 por um arqueólogo da época – Abel Viana. Nessa altura, o sítio foi parcialmente destruído pela construção do canal de rega, há cerca de 75 anos”. 

Nos finais dos anos de 1980, os arqueólogos da Câmara de Alcácer do Sal fizeram novas prospeções e elaboraram um artigo que fez uma relocalização do sítio de Porto da Lama.

Há um ano e meio a Associação de Beneficiários do Vale do Sado (ABVS) avançou com obras de beneficiação do canal de rega. Para ser feita a limpeza do canal e a substituição dos painéis que o revestem foi necessário alargar o caminho de servidão.

São cerca de três metros de largura e é ao alargar essa área que há novamente uma destruição parcial do sítio arqueológico que já tinha sido destruído nos anos 50”, dá conta a arqueóloga.

A Câmara Municipal de Alcácer do Sal (CMA) é alertada para a situação, faz uma visita à obra e desencadeia o processo de minimização de impactos. De acordo com a lei dos trabalhos arqueológicos e a aplicação do princípio poluidor-pagador, a ABVS – cuja função é garantir o fornecimento de água aos associados da associação de regantes - como dona da obra contrata a empresa de arqueologia e paga os trabalhos arqueológicos em curso.
Projeto de valorização de Porto da Lama
Durante o mês de setembro e após a escavação, a “empresa Archeo’Estudos está a realizar a consolidação dos mosaicos e das estruturas, estabilizar os taludes, efetuar a sua selagem e vedar a área escavada, indicou a CMA. O processo "é designado por conservação preventiva” para “o mosaico poder ficar lá, in sito”, prevendo-se a sua conclusão até ao final do mês de setembro, esclarece Heloisa.

À RTP, o Setor de Arqueologia da autarquia também reiterou a importância do achado e esclareceu que a estação arqueológica de Porto da Lama “está inserida num terreno privado com plantações de pinheiros”. Ou seja, embora o dono da obra de beneficiação do canal seja a associação de regantes, o terreno onde decorreu a intervenção arqueológica é de outro proprietário.

O sítio arqueológico “abrange uma grande área de terreno e, por se situar num terreno privado, impossibilita um projeto de escavações plurianual, mesmo com verbas comunitárias como defende a empresa Archeo’Estudos”, explicou a CMA.

Margarida deixa claro que a "decisão dos mosaicos permanecerem no local original não é nossa, não nos cabe a nós decidir – é a tutela que diz o que deve ser feito”. E a tutela é a Direção Regional de Cultura do Alentejo (DRCA).

De acordo com a autarquia, a posição da DRCA relativamente ao património arqueológico descoberto “defende a classificação do sítio romano de forma a proteger a área onde foram identificadas estruturas arqueológicas”.

Porém, a CMA acredita que a solução mais adequada para salvaguarda, nomeadamente, do mosaico dos centauros seria “fazer o levantamento dos mosaicos e colocá-los numa das paredes do Museu Municipal Pedro Nunes para usufruto de todos”, já que uma vez selados não "poderão ser usufruídos por todos nós".

E argumenta que a “classificação da DRCA nunca inviabilizará a destruição ou remoção” desse património arqueológico. Alerta mesmo para o “risco de serem vandalizados ou mesmo roubados” para integrarem “o mercado negro de venda de antiguidades”.

A CMA clarifica que a transladação para o Museu "nunca inviabilizaria o retorno dos mosaicos para o seu contexto original num futuro”, e acrescenta que o próprio Estado já ordenou o levantamento de vários painéis de mosaicos do seu contexto arqueológico como forma de salvaguarda”.
Continuar a escavar?
As arqueólogas não escondem a insatisfação de fechar esta etapa sem se poder conhecer melhor o sítio romano, mas acreditam na possibilidade de sinergias entre a CMA e os restantes parceiros para encontrar financiamento tendo em vista uma intervenção alargada. De momento, os trabalhos arqueológicos que decorrem em contexto de obra estão delimitados à área de afetação dessa mesma obra.

Para Heloisa, "a maior frustração é sabermos que as estruturas continuam, sabermos que os mosaicos continuam e não podemos escavar mais”.


Local da escavação de Porto da Lama | Raul Losada - Portugal Romano

“Acompanhámos a remoção das espaldas (plataformas de betão que revestem o canal) ao longo de 500 metros do canal de rega e apanhámos estruturas, muros e depósitos, muitas coisas que tinham sido destruídas em 1950”, descreve Mariana. O que indicia que “este síto é gigantesco e se prolonga, ao longo do canal” até porque faltarão, por exemplo, as “áreas das termas e necrópoles” que fazem parte do modelo de propriedade romana.

As arqueólogas sublinham que gostariam de fazer um estudo geofísico, com georadar, naquele terreno para “perceber a total extensão das estruturas”. “A prospeção geofísica (tipo radiografia do solo) seria uma grande ajuda para percebemos, mais ou menos, a planta da villa e depois poderíamos fazer escavações cirúrgicas”.

Deixam claro que este conhecimento seria de grande importância para a história de Alcácer do Sal.
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