31 outubro 2018 às 20h38

Portugal é o último reduto da bruxaria na Europa

Das bruxas más às boas, das videntes às curandeiras, até à criação do homem bruxo tudo faz parte da cultura popular portuguesa. Ainda têm algum peso? Pensa-se que sim, mas é tabu falar do assunto. O sociólogo das religiões Moisés Espírito Santo diz que a ideia de bruxaria fantasma acabou com os tempos modernos... ou melhor, com a iluminação pública.

Ana Mafalda Inácio

Ana Loira era mulher saloia, alta, forte, de formas grossas, olhos expressivos e cabelos negros. Deu à luz 19 filhos, mas só a cinco, todas raparigas, passou os seus segredos. Adelina Toca Félix, Maria da Piedade Félix e Assunção Félix, foram as que melhor uso fizeram dos dons que herdaram da mãe.

Mas foi a fama de Ana Loira que percorreu o país. Ao lugar do Casal das Neves, junto a Arruda dos Vinhos, chegava gente de todo o lado à procura de cura. Ana lia no azeite atirado à água os males dos outros, quer fossem doenças físicas, da alma ou malefícios do mau-olhado. Fazia consultas em dias próprios da semana, mas se havia uma urgência não se furtava à missão. Não marcava preço, porque ela, contam as histórias, não fazia negócio. "Aqui não se faz negócio, cura-se gente e adivinha-se coisas", respondia a quem lhe perguntava. Recebia o que lhe davam. Receitava fumo de ervas, purgativos, magnésio e até sal amargo. O certo é que quem ali fosse, dali saía com uma cura.

Os seus dons foram enaltecidos de tal forma que entrou para a história das aldeias e da cultura popular como a Bruxa de Arruda. Ana Loira - ou Loura, como consta numa carta de Tito Bourbon e Noronha, médico da vila, ao seu colega José Leite de Vasconcelos - "existiu mesmo". Na missiva datada de 2 de novembro de 1934 Tito de Bourbon explicava o fenómeno de Arruda. "Sim, a Bruxa de Arruda existe e existirá, quando vim para aqui em 1885, vai fazer 50 anos, já pompeava a célebre Ana Loura. Tive o prazer de lhe extrair o décimo sexto filho a ferros, uma bojuda pimpolha a quem deu o nome de Adelina, atualmente moradora em Vale de Grou, a um quilómetro da vila, que exerce como a mãe a rendosa profissão (...)."

Ana Loira notabilizou-se como "mulher sábia" e chegou aos jornais. O seu dom tornou-se notícia e um repórter do Diário de Notícias foi à sua procura em novembro de 1906. Nos dias 29 e 30 do mesmo mês eram publicadas duas reportagens com a história da mulher a quem na aldeia chamavam Loira mas tinha cabelos negros. A descrição que aqui se faz é-nos dada pela reportagem da altura, pela gente que dela falou, pelas histórias contadas pelas filhas e pela própria Ana Loira.

"Bruxa de Arruda" era o título que tudo explicava. Ao repórter, Ana desvendou o que fazia, sem segredos, mas que só ela sabia interpretar ou ler. "Uma pessoa quando adoece vem cá para eu a escutar e ver o que tem e depois faço a oração e leio na água, com letras d"azeite, a doença que essa pessoa tem. Quando o doente não pode vir manda outra pessoa qualquer, que traz uma peça do seu vestuário, sendo sempre melhor vir uma camisa, ceroulas ou meias. Essa peça deve ser tirada do corpo da pessoa doente sem ser lavada ou posta ao ar, embrulhada num papel ou num saco. Eu então tiro para fora essa peça de roupa, ponho-a sobre o oratório e depois faço a oração. Para saber a doença que essa pessoa tem cheiro muito bem a peça de roupa e depois leio a doença na água (...)."

Quando Ana, ou Ti Ana, também era tratada por quem a conhecia, morreu, dizia-se que tinha deixado uma herança de mais de 20 contos e uma geração de bruxas que se espalharam pela região de Lisboa. Dela muitas histórias se contaram e ainda contam, há quem lhe chame bruxa, vidente ou curandeira. A ser bruxa, era sem dúvida "uma bruxa boa", afirma o professor catedrático e sociólogo das religiões Moisés Espírito Santo, que estudou o tema da bruxaria na cultura popular portuguesa. Ou melhor, e como faz questão de sublinhar, que estudou o "poder das mulheres", já que toda esta linguagem simbólica e universal nasce precisamente da existência de um poder feminino superior ao dos homens.

"A Bruxa de Arruda era uma bruxa boa, tanto desfazia os malefícios das bruxas más como curava doenças com ervas medicinais. Era também uma espécie de médica popular. Na altura, acreditava-se muito nisto, a medicina estava muito atrasada. Mas como ela havia outras que ao longo dos tempos foram sendo identificadas localmente. Mas todas eram consideradas mulheres sábias, inteligentes, com grande intuição e capacidade de ouvir os outros. Era assim que conseguiam criar e manter a sua clientela", explica o professor.

Estas mulheres de Arruda, de Alcobaça, da Malveira ou de outros locais eram "bruxas reais, bruxas boas que passavam os seus segredos, novelos, como diziam, na maioria das vezes à hora da morte à mulher que ficava a substitui-las". Na hora da morte diziam o nome de uma mulher, quem com elas estivesse teria de ir chamar ou mandar chamar a dita para receber os seus segredos, os seus poderes de fazer o bem e continuar o trabalho.

A bruxa má surge para infernizar os vivos

Mas "a ideia de bruxa que sempre existiu e que faz parte da imaginação de uma cultura simbólica e universal muito forte é a de bruxa má, fantasma, noturna. É a ideia de seres ligados à morte que ressurgem para atormentar os vivos. É assim que surge esta ligação às festas religiosas de novembro, embora apareça como uma derivação pagã do antigo culto dos mortos".

Mesmo para quem estuda o assunto é difícil identificar o tempo em que o mito da bruxaria, ou, se se quiser, derivação pagã, terá integrado a cultura popular portuguesa. "Não é só difícil definir este tempo em Portugal, isso acontece um pouco em todo o lado. Pensa-se que a ideia de bruxaria faça parte dos primórdios da humanidade, o seu enraizamento está muito associado ao momento em que as populações começaram a fixar-se em aldeias", conta.

O seu poder foi crescendo e fortalecendo ao longo dos séculos e à medida que as populações conseguiam expressar "os seus medos noturnos - o medo da escuridão, da solidão e do isolamento. As aldeias viviam isoladas, sem comunicação entre si e muito viradas para si próprias e para as gentes que lá moravam. Portanto, tudo o que era diferente suscitava medo. Uma mulher mais masculina, solitária, que não precisasse ou que rejeitasse um homem, era uma mulher diferente. E eram estas que acabavam por integrar este imaginário da bruxaria má".

Daí as imagens replicadas da bruxa velha, feia, com verruga e dentes de fora. Da bruxa que "voava no pau de uma vassoura, de quem se dizia que tinha uma luz no rabo ou que aparecia e desaparecia pela fechadura da porta", afirma Moisés Espírito Santo. "A bruxa má era a que passeava pelas aldeias durante a noite, que infernizava os homens que regressavam dos campos quando o sol se punha e a escuridão caía, obrigando-os até a fazer sexo com elas e a carregá-las para casa às costas."

Estas bruxas noturnas eram mulheres poderosas. E Moisés Espírito Santo recorda a sabedoria popular: "As pessoas diziam que as mulheres têm segredos que os homens não conseguem descobrir. Ou que têm poderes que os homens não têm, uma certa intuição, um instinto muito forte. Era este poder feminino que marcava a sociedade e a cultura popular da altura, que era matriarcal. A ideia de uma sociedade patriarcal, ou do homem superior à mulher, é criada pelo nosso tempo, pelos tempos modernos, pela construção da ideia de Estado. Porque antes quem mandava era a mulher, ela era a patroa, tinha poderes e incutia medo nos homens, era ela quem melhor sabia defender-se."

A ideia de bruxaria associada à mulher tem que ver tão-só com "o poder que elas tinham, superior ao do homem." Por isso, sublinha, "uma das características das bruxas más era mesmo a de ser uma mulher que não estava às ordens de um homem. Qualquer mulher que vivesse sozinha, mais masculina de aspeto, com comportamentos diferentes, poderia ser apontada como bruxa, como tendo poderes maléficos que poderia lançar aos outros".

Quando se passava nas aldeias, havia casas que eram apontadas. E quem passava fazia figas atrás das costas para que o mau-olhado não lhe fosse lançado. Dizia-se até que as bruxas de aldeias vizinhas tinham o ritual de se juntar em descampados em noites de lua cheia para definirem as próximas vítimas. E tanto podiam ser elas a escolher como poderia ser uma "vítima encomendada".

O professor de Sociologia das Religiões diz que o mito da bruxaria perdurou em Portugal até há muito pouco tempo, "até há uns 40 anos." De tal forma que acredita que "Portugal é o último reduto da bruxaria na Europa. Andei por muitos países a estudar o assunto e nunca encontrei uma cultura de bruxaria tão enraizada como a que existia em Portugal", afirma.

A bruxa noturna acabou com a iluminação

Mas se é difícil definir o tempo em que a ideia de bruxaria integrou a cultura popular, "é fácil saber quando terminou", assegura. Nas suas obras Comunidade Rural a Norte do Tejo e Religião Popular Portuguesa, em que fala do poder das mulheres, Moisés Espírito Santo diz que a ideia das bruxas más das aldeias acabou com a chegada da iluminação pública.

Deu-se luz às aldeias e os medos desapareceram. "A luz acabou com os fantasmas da noite, com os medos da escuridão. Nos estudos que fiz em zonas rurais da região centro as mulheres deixaram de falar deste tipo de bruxaria quando a luz iluminou as ruas, as suas casas, e podiam passear à vontade sem os medos da escuridão", conta, acrescentando: "Mesmo assim, a cultura estava de tal forma enraizada que, quando percorriam comigo as aldeias, ainda me apontavam as casas das bruxas más e faziam figas para não serem atingidas pelos seus poderes maléficos."

Os tempos modernos deram cabo das bruxas más, mas trouxeram outras e até a criação do homem bruxo. "A escolaridade das pessoas, o fim do isolamento, a comunicação, trouxe outro tipo de bruxas, as videntes, médiuns e curandeiras. E estas tanto são das aldeias como das cidades, porque o limite entre meio rural e urbano já não existe. Hoje a diferença entre estes dois mundos é meramente uma linha geográfica", diz o sociólogo.

Saber que peso ainda têm na sociedade de hoje as bruxas modernas é algo que também não se sabe. Sabe-se apenas que não é uma marca tão forte como era na cultura popular. Quem ainda as consulta, não fala do assunto. É tabu, vergonhoso até, para uma sociedade tecnológica e informada. Quanto ao homem bruxo, existe, mas "é uma criação do nosso tempo. O homem acabou por se apropriar e trabalhar em si algumas características femininas, como o poder da mediunidade, da intuição e do instinto, uma certa capacidade para ouvir e escutar os outros. Por isso é que hoje se ouve falar de homens bruxos".

À pergunta se a bruxaria, mesmo moderna, tem os dias contados, Moisés Espírito Santo não tem dúvidas: "Tem, claro. Modernamente o poder da bruxaria pode ir-se perpetuando no imaginário, nos rituais, mas não com a força ou o peso que tinha."

Da história mundial fazem parte milhares de nomes de mulheres atiradas à fogueira, sobretudo entre os séculos XV e XVIII, por lhes ter sido apontado o dedo de tal prática, com ou sem indícios de verdade. Bastava sussurrar um nome. Foi o verdadeiro período da caça às bruxas. Fomentada também pela Igreja Católica, já que muitos atos eram associados ao Diabo. Na Europa os julgamentos atravessaram a Espanha, com o caso das bruxas de Basco, chegaram à Alemanha, com as bruxas de Fulda, passaram pela Suécia, com as bruxas de Torsaker, e pela Escócia, com as bruxas North Berwick. Mas o mito da bruxaria teve também uma forte presença cultural na Nova Inglaterra e também associada à adoração do Diabo. E há casos que continuam a acontecer pelo mundo fora, principalmente em África, associada à feitiçaria, e são considerados atos criminosos. Em 2013, a Organização das Nações Unidas pronunciou-se sobre casos de execução de pessoas acusadas de bruxaria na Papua-Nova Guiné.

O tempo passa e a aldeia global que agora existe não integra saberes não científicos, portanto, quaisquer poderes vindos ainda de videntes, médiuns ou de curandeiras, é pura ficção.