22 AGO 2019
22 agosto 2019 às 00h12

Chamam-lhe o Dr. House: "90% do que fazemos não são atos médicos, são fantochadas"

Vítor Brotas é um ás no diagnóstico, um médico fora da caixa que escreve nos braços e nas mãos como se fossem folhas de papel, chamam-lhe o Dr. House. (entrevista publicada originariamente a 22 de agosto de 2019)

Céu Neves

O médico a quem chamam como a personagem da série de televisão, não tem telemóvel e apanhá-lo no telefone fixo do Hospital dos Capuchos, onde trabalha há 34 anos, é procurar uma agulha no palheiro. Fica o recado e ele é dos que devolvem a chamada. Inicialmente, diz que é um médico igual a tantos outros, mas acaba por aceitar e combina: "Entrei nesta sexta-feira às 08.00 e saio no domingo às 08.00, venha quando quiser."

Quem é Vítor Brotas?
Um médico de medicina interna, com um grande gosto no que faço, cultivo a disponibilidade, ter tempo. Posso estudar muito, ser muito sabedor e não ser mais do que um livro num instante. É preciso ser um médico com qualidade e ao serviço dos outros, há imensos mas este sou eu. Trabalho no Hospital dos Capuchos (uma grande casa), que me permitiu ser quem sou e onde há um espírito incrível, velhinho, todo podre, mas é um bom hospital. Aqui trabalha uma classe profissional que admiro, os enfermeiros. Mas quem é que lhe falou de mim?

Estudantes e jovens médicos, para quem é uma referência.
Fico preocupado com isso porque não tenho a certeza se consigo transmitir algo conveniente às pessoas e aos alunos que estão comigo, tenho um comportamento um bocadinho fora da caixa.

Porquê?
A aprendizagem e a formação em medicina é bastante difícil mas não é uma coisa excecional, para iluminados, são pessoas como as outras. Têm de estudar muito, provavelmente, não viverão a vida com tanta intensidade e poderão não reparar nas coisas que a vida oferece. Faz que estejamos muito formatados numa área e não tenhamos ferramentas sociais, inteligência emocional, afetiva, para reparar em pormenores e isso é um defeito dos médicos. Outra coisa é que muitos de nós nascemos em berços de ouro, somos selecionados a partir de famílias com um poder económico escapatório, da classe media e da classe alta.

É o seu caso?
Já vamos a isso, mas em minha casa não havia um sítio para estudar. Na minha família não havia essa representação de que era importante um indivíduo ter um sítio para estudar, para estar concentrado. Na casa de muitos alunos que vão para Medicina isso existe, têm um escritório, uma biblioteca, têm acesso a uma quantidade de instrução de pais e a um ambiente mais favorável. Se viermos dessa área e estivermos muito tempo a estudar, podemos não reparar nas coisas que a vida oferece e em medicina é fundamental a relação humana, que é algo que se aprende vivendo. O que quero transmitir aos meus alunos, às pessoas que estão comigo, é que usem o tempo em aspetos fundamentais e, na medicina, é a relação humana.

Como é que se passa essa mensagem?
Há um protocolo da Universidade [Nova] com escolas americanas que traz a Portugal alunos que acabaram o liceu e pensam ir para Medicina. Recentemente, acompanhei um aluno que esteve cá dez dias, dava-lhe dez minutos por dia. Disse-lhe: "Não sabes nada de medicina nem eu quero fazer um pequeno médico em dez dias, mas tens de apontar uma coisa que nunca tenhas visto." Quis explicar-lhe a importância de se relacionar com as pessoas para reconhecer padrões: de doenças, de comportamentos, de sofrimento, de dificuldades, etc. É preciso olhar, ver e saber analisar o que está a acontecer. Temos de adquirir a capacidade de ver, reconhecer e interpretar, fazer essa abstração mental, e traduzir em palavras corretas o que estamos a fazer.

Quando avalia um aluno dá mais importância à relação humana do que à técnica?
Isso é terrível. O professor ensina e ajuda a progredir, classificar alguém é um não assunto, a própria pessoa é que tem de se classificar, tem de pensar se está a fazer o seu melhor. Procuro transmitir um conhecimento não livresco aos alunos, essa é a minha marca.

Uma das queixas dos utentes é que falta essa capacidade humana aos médicos.
Por isso é que tem de haver pessoas como eu, e há muitas, para chamarem a atenção dos jovens médicos para se focarem no que verdadeiramente importa. O que está a dizer é que as pessoas deixaram de ter atenção aos outros como ser humano individual e estão focadas em outros problemas. Os médicos estão a ser desviados por um excesso de atos administrativos; a ser desfocados do assunto.

Qual é o assunto de um médico?
É a relação humana, ajudar o doente a resolver um bem; que é o seu bem-estar. Fora disso, temos um conjunto de problemas que são um não assunto. É o computador que não funciona, as listas disto e daquilo para contabilizar não sei o quê. É facílimo para um gestor pôr toda a gente a trabalhar para ele, mas desfoca-nos do assunto. Os computadores ajudam mas também prejudicam; por vezes, os programas não correm convenientemente e não estão feitos para a relação do médico com as pessoas. Não estão feitos para estimular o trabalho médico fulcral, que é diagnosticar e dar atenção aos pormenores. Estão feitos para dar resposta a uma quantidade de coisas burocráticas.

Voltando ao aluno americano, o que fez para o sensibilizar para a relação humana?
Uma coisa que fiz foi dar uma volta com ele pelo hospital e apontar várias coisas: bati no corrimão das escadas para ele perceber que tinha vários sons, disse-lhe que as escadas eram em pedra lioz, respondeu que eram bonitas, mas o gajo não viu os fósseis. Fomos à enfermaria e vimos um velhote com umas unhas dos pés muito grandes, encarquilhadas (onicomicose). Ele ficou muito admirado e perguntou que doença era. Respondi: "Pobreza." A pobreza é o principal fator para as pessoas terem doenças.

Falaram com o velhote?
Sim, e fui buscar um alicate, um corta-unhas maior, uma lima, cortei as unhas do velhote como deve ser e meti-as num saquinho de plástico. Expliquei-lhe que um médico vê, repara e olha, é responsável pelo que vê. Vi as unhas e podia dizer: "Não sou um podologista", um enfermeiro dizia a mesma coisa; um diretor de serviço dizia: "Estou numa cadeira de ouro, não me compete." Um médico não pode estar distraído permanentemente com tantos pormenores que não têm que ver com a sua formação, mas se não estiver atento está lixado.

E as unhas no saco foi para quê?
Para as mostrar aos colegas, para os picar, chatear. Passámos a visita durante a manhã, toda a gente viu as unhas e não as cortaram. Ou podem nem ter visto, mas temos de ver tudo, é nos pormenores que está a diferença. Quando se está a fazer medicina tem de se ver, olhar e escrutinar o que está por detrás do que a pessoa conta, reparar em pormenores que outras pessoas não reparam.

Mas também é preciso estudar e muito.
Sim, mas não pode ser um conhecimento livresco, ler uma coisa que não tem correspondência a uma memória efetiva, é quando o que estamos a estudar não tem uma associação suficientemente forte com outras coisas que construímos no cérebro que permita facilitar a formação de engramas especiais. Engrama é a pequena quantidade de proteínas fabricadas dentro das células para fazerem o circuito cerebral da memória, desaparecem ao fim de um tempo se não existir um reforço. Se um indivíduo agarrar no que estudou e ligar aos factos, às pequenas histórias, não ter vergonha de servir de modelo, de errar, é um bom professor. É isso que procuro fazer. A memória treina-se e há técnicas, quando estamos a estudar, temos de visualizar.

Fale-nos da "reunião dos cachopos e das gaiatas".
Eles é que as nomearam assim porque estou sempre com esse palavreado. São às terças-feiras, com colegas mais jovens, deste e de outros hospitais. Um indivíduo escolhe um caso clínico publicado no Journal of Medicine e não diz qual é, apenas diz o tema para todos o estudarem, o único que não tem acesso a nada sou eu. Abre-se a discussão e tenho de discutir com o meu lastro e o que vou ouvindo deles, para perceberem como é que alguém que não teve acesso ao caso se desenrasca. Geralmente, conseguimos acertar no diagnóstico com menos exames do que os que foram feitos na realidade, mas depois explico: "Conseguimos acertar porque estamos a trabalhar com rede, se fizermos asneira não acontece nada ao doente. Quem está na cabeça do toiro é que tem de pensar no que fazer para garantir que faz a coisa certa."

O doutor também não precisa de muitos exames para fazer um diagnóstico.
Às vezes consigo e outras não. Já havia um gajo, Houston Merritt - um neurologista famoso que foi chamado quando o Salazar caiu da cadeira [teve um AVC na fase final], como se isso fosse importante porque qualquer gaiato saído da faculdade sabia o que era aquilo -, que dizia assim: "Dizem que sou o melhor neurologista do mundo, coisa de que tenho sérias dúvidas, mas se algum mérito tenho foi por nunca ter recusado um doente." Um médico para progredir tem de ter atenção ao que está a fazer, em primeiro lugar, e, em segundo, ter as pernas abertas para entrar uma carreira de doentes. Nem recusa um doente nem uma pessoa que passa e o cumprimenta ou um colega que pede uma opinião.

Quando há um sem-abrigo, um toxicodependente a rondar o hospital é para o Dr. Brotas?
Vêm ter comigo porque sabem que treino a disponibilidade, estou de perna aberta para entrar uma camioneta cheia de pessoas. A maioria das pessoas que deixaram de se drogar têm uma experiência de vida muito superior às outras, ficam agradecidas à vida com uma profundidade extraordinária. Tenho tido lições de vida do caraças dessa gente.

Os colegas pedem-lhe pareceres com frequência?
Pedem, pedem, e é uma dádiva, é algo que me estão a oferecer.

E consegue ter tempo?
Comecei por falar do tempo, não tenho estado sempre a falar do tempo? Tenho sempre tempo e, se fizer isso, há uma espécie de uma aura à sua volta.

O que é mais importante na medicina?
Há três coisas muito importantes: Primeiro, tomar atenção ao que se está a fazer e aprender com isso; segundo, não recusar e estar disponível; terceiro, vencer o medo, o medo é do caraças. Um gajo tem um medo do caraças, medo de se enganar, de não corresponder. Quando um colega me manda um caso, ele já viu, outros viram, quem sou eu para dizer coisas? É um medo do carago, mas não se pode vir para medicina com medo.

A sua especialidade é medicina interna, mas sei que não gosta do termo especialista.
Irrita-me. Especialista parece que é uma pessoa muito especial, não é nada disso. Um especialista sabe muito de pouca coisa, é um profundista. Um generalista, ou um banalista, como gosto de chamar, sabe muito de muita coisa, pratica uma medicina mais eclética. É isso que é um internista, um médico de família, um cirurgião, um anatomopatologista. Costumo dizer aos alunos: "Se gostas mais do pormenor, da profundidade, vais para uma especialidade; se gostas de coisas gerais, relações humanas, vais para uma generalidade." A minha especialidade é medicina interna, o meu foco é o diagnóstico, porque muitas das doenças estão encriptadas por manifestações que nem todos os médicos estão aptos a interpretar, somos especialistas a desencriptar isso.

A sua especialidade é "desencriptar" e acertar sempre no diagnóstico?
Há outros médicos que também o fazem, sou um desses. É preciso saber ouvir as pessoas e interpretar as pequenas histórias. Quando estou a ouvir uma pessoa na minha consulta, não estou a fixar uma quantidade de coisas, como o nome, por exemplo. Isso não é o assunto, o assunto é o que ela quer transmitir-me: a posição em que está, como se queixa, etc.

Mas as consultas têm um tempo definido.
Você consegue esticar o tempo se for esperto, o tempo dá para tudo.

Ser médico agora é muito diferente de quando começou?
É muito mais difícil, a exigência é muito maior. Exigem aos alunos, aos jovens médicos, que estejam sempre a fazer relatórios sobre o que estão a fazer, isso é desfocar do assunto. Os diretores de serviço e os gestores hiperestimulam-se com os números (médias, taxas de ocupação, etc.) mas se lhes perguntarem se cortaram as unhas a alguém nunca cortaram. Se lhes perguntar: "Essa demora média tem que ver com o quê? Com o tipo de doentes que recebemos ou com a inépcia do que cá tens?" Não é capaz de responder. Não sabe medir a inépcia dos médicos, que pedem exames a mais ou a menos, mas eu sei fazer isso, faço isso no meu dia-a-dia.

Como é estar com médicos em formação?
É muito gratificante e, às vezes, procuro chocar os miúdos, por exemplo, usar uma navalha para apontar no ecrã ou nas radiografias, mas é para lhes mostrar que não tem de ser com um ponteiro com uma luzinha, é preciso provocar. Ando sempre com uma navalha no bolso, era essencial quando era puto, para cortar uma cana, fazer uma roda, um carrinho, etc. Tinha de se suar muito para ter uma navalha, pedir sete e quinhentos ao pai, ao avó, juntar dinheiro para a comprar na Feira de São Miguel, em Coruche. Quando me perguntam o que quero para os anos respondo uma navalha, mas o único gajo que me dá uma navalha é o meu irmão mais novo.

Não tem ponteiro e, pelos vistos, também não tem um bloco de notas, escreve nos braços e nas mãos.
Escrevo na mão ou no braço quando é preciso, anota-se no que se tem à mão. Tenho vários recados: uns na cabeça, outros no bolso, os que tenho do corpo são para fazer logo. Há uns anos esteve cá um colega a fazer medicina interna e via que eu escrevia na mão ou no braço - um rapaz muito inteligente, fez um doutoramento em neurociências num sítio excecional, concorreu com 250 indivíduos a nível mundial e ficou em segundo. Um dia contou-me: "Aprendi essa coisa de escrever nas mãos, nos braços, agora já há uma carrada de pessoas em Cambridge que escrevem nas mãos e em todo o lado." Pegou.

Referiu que os estudantes de Medicina e os médicos, em geral, nasceram num berço de ouro. É o seu caso?
Não, mas na minha aldeia era semidourado. As pessoas da minha aldeia ainda tinham menos condições do que a minha família.

Mas não o suficiente para pagar os estudos, foi por isso que foi para o seminário?
Sim, e era a forma de ter uma educação adequada. Adequada para uma finalidade: formatar pessoas.

Não saiu muito formatado.
Tiveram um bocadinho de azar porque eu saí mal formatado, mas aquela formação, a moral, os valores, os princípios, é uma boa forma de educar as pessoas. Agora tem de se dar o salto para não ser tudo um funil.

É católico?
Não, fui quando andava no seminário, depois tive as minhas dúvidas, agora sou ateu ou agnóstico, por aí.

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Exerce ou exerceu cargos de direção?
Não, tem de se fazer um esforço para isso, fazer uma preparação prévia, um currículo, não se coaduna com a minha maneira de ser, não é esse o meu assunto. O meu assunto é focar-me na minha capacidade de ser médico, capacidade que fica muito beliscada num cargo de direção. O meu objetivo é dar o exemplo para criar entre as pessoas que estão comigo o verdadeiro espírito.

Que espírito é esse?
O espírito é um conjunto de práticas e de abordagens que ficam depois de saírem os protagonistas, não imagina o espírito que existe no Hospital dos Capuchos, desapareceu muita gente mas continua o espírito. Encontrei um conjunto de pessoas boas, que me deixaram trazer as experiências do Hospital de Santa Marta [onde fez a especialidade] e fazer render esses talentos. Sou o produto de muitos colegas e pessoas que me marcaram profundamente e tenho o dever de me lembrar delas.

Também não faz medicina privada. Porquê?
Não há vagar.

Poderia ganhar mais dinheiro, ter uma vida mais desafogada.
Não falámos do tempo no início? Temos de ter tempo para várias coisas. Sabe o que significa "escola"? Significa ócio, vem do grego paidea. A educação do homem grego era ouvir os mestres, pensar, a escola era um bem, o tempo de poder estar, pensar, refletir. Se se quiser fazer o que faço, não se tem tempo para fazer privada, é impossível.

Como é que veio para medicina?
Esta é talvez a profissão em que melhor sublimo não ter ido para padre. No seminário formataram-me para ter uma consciência social. Não fui para padre porque deixei de acreditar em Jesus Cristo. Deus, para mim, é um esquizofrénico que apareceu, mas na altura não sabiam distinguir entre esquizofrenia e ser tocado por Deus. Não tenho a régua da fé, tenho a régua da lógica, não critico quem tem a régua da fé, mas se tenho uma régua em polegadas, não consigo medir em centímetros. A minha régua mede segundo o raciocínio e, como com o raciocínio não consigo saber se existe Deus, é um não assunto.

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Tem de haver outros motivos.
As experiências de vida moldam o que se pensamos, o caráter, e eu tive algumas experiências lixadas. O meu pai sofria da doença de Parkinson, desde muito jovem, conheci-o sempre doente, em sofrimento, revoltado. Trago essa memória para a minha prática médica, quando uma pessoa se revolta é o direito que tem e temos de lhe dar um conforto. Não tínhamos muito dinheiro e o meu pai foi operado por um médico em regime privado, não sei porque o fez porque essa operação já era feita nos Capuchos onde ele trabalhava e o meu pai era seguido. A operação custou 16 contos, o que na altura [há 50 anos] era muito dinheiro. Eu e os meus irmãos (éramos quatro mas um morreu) estávamos na sala e, quando o meu pai veio, no táxi do João Cavaco, disse a mãe: "Abram os vossos mealheiros para dar ao pai porque a operação foi muito cara." E ele comoveu-se, chorou. Há muitos pormenores na nossa vida que nos conduzem a qualquer coisa.

Contactou mais tarde com esse médico?
Esse médico que operou o meu pai morreu nas minhas mãos, aqui nos Capuchos. Imagine, alguém que está na sua infância termina nas suas mãos.

E acabou por trabalhar no hospital onde o seu pai foi seguido.
Tem que ver com a doença do meu pai, que participou nos ensaios do uso da L-dopa para tratar a doença de Parkinson, que ainda hoje é o mais eficaz. Recrutaram-se pessoas no mundo inteiro para fazer o ensaio clínico com a L-dopa e, em Portugal, quem ficou responsável foram o António Damásio em Santa Maria e o Carlos Macedo nos Capuchos. Eu tinha 8 anos e visitava o meu pai, conheci vários médicos no Hospital dos Capuchos, sobretudo o Dr. Gomes dos Santos, vi a bondade que punha nas coisas. E, em casa, sentava-me na banca dos porcos a ouvir a minha mãe e o meu pai contar coisas do Dr. Gomes dos Santos. Foi o grande motivo para escolher Medicina, disse-lhe isso mais tarde, infelizmente, no momento em que perdeu o filho, gostava de ter dito antes, mas não houve oportunidade.

Qual é o seu pior pesadelo?
Enganar-me.

O que faz quando acontece?
Tento remediar mas não é bom. Tem na mão alguém que confia em si, ou um colega, e engana-se? Mas tem de se ter a coragem de ser humilde e ultrapassar isso, remediar o que aconteceu. Todos temos medo da morte e do sofrimento e nós, através dos outros, vemos o nosso futuro. Isso também nos impressiona.

A morte é sempre traumática?
O processo em si nem sempre é traumático, a pena do que se deixa é que é. Não é o medo do que vai acontecer porque quando se morre não acontece nada, é o mesmo que levar uma anestesia. Uma pessoa acorda e sabe que passou tempo, que esteve ali umas horas, mas não se lembra de nada. Aquele tempo apagou completamente, é igual a ter morrido.

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Entrou no hospital na sexta-feira às 08.00 e vai sair no domingo às 08.00, como é que isso acontece?
Acontece porque me dá jeito.

Mas os bancos deveriam ser de 12 horas e os médicos fazem 24 horas e mais.
Disso não sei, só sei de medicina, mas sei de medicina a sério. Se me perguntar de bancos, horários, dinheiro, não sei. Se me perguntar quanto ganho, não sei, nunca soube.

Tem de saber quanto ganha.
Nunca, nunca. A minha mulher é que sabe de dinheiro.

Dá-lhe uma mesada?
Não tenho mesada, dá-me cinco euros para comer ao almoço.

Não tem um cartão multibanco?
Tenho, mas nunca soube quanto é que ganho. Já viu o bem que é não precisar de saber nada disso? Pagam aos médicos mais do que merecem porque o médico não está focado no seu ponto de aplicação, que é algo para o qual está capacitado e outro cidadão não consegue fazer. Os médicos, os enfermeiros, não têm a possibilidade de desempenhar as tarefas que deviam.

Está a dizer que estudaram 11 a 13 anos e, depois, o vosso conhecimento não é bem aproveitado?
Trabalho médico não é escrever no computador, telefonar, fazer requisições, ver se o exame foi marcado, ver não sei o quê, e isso é 90 % da atividade de um médico. Temos um serviço de saúde mau porque 90% do que os médicos e enfermeiros fazem não são atos médicos, são fantochadas, registozinhos, relatoriozinhos, passar atestados. É por isso que digo que não mereço o que ganho, só mereço o que ganho se o meu ponto de aplicação for o adequado, quando isso for possível, o Serviço Nacional de Saúde melhora logo.

Vamos nesse sentido?
Não sei, a atividade humana complexificou-se muito e todos temos de demonstrar momento a momento o que estamos a fazer. A demonstração do que se faz é superior ao que se faz, isso é que é um erro.

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O que é que resta na sua vida além da medicina?
Pouco, mas de uma grande intensidade. Gosto de andar de bicicleta com uma grande intensidade. Gosto muito de música, sobretudo da teoria musical, de tocar guitarra clássica, compreender como as coisas funcionam, em especial o som. O meu grande projeto é scoping a sound [apurar o som] Quero saber fazer guitarras, já comprei uma série de madeiras (a minha mulher passa-se comigo) e estou a ler tudo sobre a produção do som, como funciona a caixa da guitarra, quais são as madeiras e as fibras que posso incluir para melhorar a qualidade do som. Um destes dias vou inscrever-me num curso de luthier [fabricante de instrumentos de corda] para fazer a caixa, quero conseguir o melhor som, scoping a sound. Estou a tentar convencer um indivíduo a aceitar-me.

Quando é que isso vai acontecer?
Se não tiver a doença de Parkinson, que é hereditária na minha família, a partir dos 70 anos.

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Acabou a fase de esculturas com as árvores cortadas em Lisboa?
Estou mais virado para as guitarras, andar de bicicleta e coisas do género. A escultura foi depois de ter caído da bicicleta e tive de parar. A madeira vem da mesma expressão, mater, mãe, da qual nascem coisas, por outro lado, as árvores estão na base de captação de energia solar, logo são uma boa base para a expressão artística. Como não vamos cortar as árvores, as que morrem e ficam ao abandono podem sofrer a nossa intervenção, fazer coisas espetaculares. Foi isso que me motivou.

Anda sempre a magicar coisas.
O meu pai dizia; "Oh cabeça oca, cabeça oca, o que tens dentro é palha de arroz e ratos", porque quando era puto andava sempre a inventar coisas, com a cabeça no ar. No liceu chamavam-me "inventor".

Agora, chamam-lhe Dr. House, a série sobre um internista que consegue diagnosticar tudo, também fora da caixa.
Têm a mania de me chamar Dr. House. Por acaso, vi a série e conheço a Lisa Sanders, a médica internista que fez a série. Veio a Portugal, para o congresso que os alunos realizam todos os anos [Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Nova de Lisboa].

Mas revê-se na personagem?
Não me identifico com o endeusamento de alguém, a forma de ser de um indivíduo, e é razão da série, não pode ser. Mas revejo-me no ato médico e também sou duro com os alunos se percebo que não estão focados, por exemplo, reclamo se estão a olhar para o telemóvel.

Que é um objeto que não usa.
Nunca comprei, não preciso, é um não assunto. Tenho um telemóvel de serviço quando estou no hospital, é interno. Quando vou de bicicleta para muito longe, a minha mulher obriga-me a levar um.

A família queixa-se muito?
A minha mulher e a minha filha queixam-se porque tenho mau feitio, dizem que só dou atenção à medicina, às coisas que tenho dentro da cabeça.