23 AGO 2019
26 agosto 2020 às 15h25

"Ao homem que canta no Alentejo falta-lhe dar mais valor à mulher que canta"

É na sua casa de Beringel, ao pé de Beja, que a acordeonista, cantora e compositora Celina da Piedade recebe o DN. Filha de uma alentejana e um algarvio explica a paixão que a levou a ter o primeiro acordeão aos 3 anos. E como é na música do Alentejo que se sente confortável a cantar.

Helena Tecedeiro (texto) e Sara Matos (fotos)

Este texto foi publicado originalmente a 22 de agosto de 2019 e faz parte de uma seleção de entrevistas, realizadas pelo DN durante o último ano, para voltar a ler neste verão.

És sempre associada ao Alentejo, mas não nasceste no Alentejo...
É verdade, não nasci no Alentejo. Sou filha de uma alentejana, ali de Baleizão. E de um algarvio. O meu pai era de Estoi, perto de Faro. Vinham os dois do mundo rural, de meios simples, muito humildes. Os meus pais moravam no Algarve na altura em que eu ia nascer. Mas eu fui prematura. E fui nascer a Lisboa porque na altura, em 1978, não havia incubadoras em Faro. A minha mãe já tinha tido um bebé prematuro e as coisas não correram bem porque não havia incubadoras, por isso acho que ela entrou em parafuso quando percebeu que eu ia nascer naquela altura. Eu nasci no dia do aniversário dela. Foi totalmente inesperado. Acabaram por levar a minha mãe para Lisboa e eu nasci lá. O meu pai já tinha andado a ver a possibilidade de irem morar para Setúbal. Setúbal depois do 25 de Abril era a cidade de todas as possibilidades, a cidade do futuro.

Muita gente, sobretudo do Alentejo, foi viver para lá nessa altura...
Os meus pais foram um desses casais. O meu pai toda a vida foi carteiro. A minha mãe ao início não trabalhava fora de casa, mas depois começou a fazer limpezas. Fazia que era preciso. E eu acabei por crescer em Setúbal.

Cresceste em Setúbal mas a envolvente familiar ligava-te ao Alentejo?
Cresci num ambiente suburbano, em bairro sociais onde cabia de tudo. Pessoas de todo o lado.

Qual era o bairro onde vivias em Setúbal?
É o bairro 2 de Abril, mesmo em frente à Bela Vista. Cresci neste meio, mas a referência que eu tinha em relação às raízes dos meus pais era a que trazia das férias. Vinha muito para aqui, para Baleizão. Hoje olho para trás e percebo que tive vivências privilegiadas. Os meus avós já eram muito velhinhos quando eu nasci. A minha mãe era a filha mais nova, nasceu já a minha avó tinha 40 e tal anos. Eu vinha ver os meus avós mas quem cuidava de mim era uma tia. Os meus tios trabalhavam para a reforma agrária. Na altura ainda havia vários montes ocupados e os meus tios eram caseiros num deles. Era o Monte Vale-de-Vinagre, perto do Guadiana. Era um monte gigantesco onde viviam duas pessoas. Depois de ter sido ocupado, o monte tinha sido preparado para receber grandes trabalhos agrícolas, tinha armazéns, casas para os trabalhadores. Mas na verdade nunca chegou a entrar em funcionamento. Tinha grandes máquinas ceifeiras. Era assim um mundo incrível, mas...vazio. Ao qual só se acedia indo de carroça. O meu tio tinha-se exilado na Alemanha e quando chegou a Portugal teve de trocar o carro por uma carroça. Ali servia muito mais ter uma carroça [ri-se]. E pude viver isso toda a minha infância. A partir dos 8 anos os meus pais metiam-me no expresso - no "Presto", como dizia a minha avó! - e diziam ao motorista: "Esta menina sai em Baleizão, não a deixe sair noutro sítio." Eram outros tempos! O meu tio ia buscar-me na carroça a Baleizão, ao autocarro. E seguíamos para o monte. Foram experiências que ajudaram a montar o meu universo em torno do Alentejo. Nunca tive nenhuma dúvida de que era a minha terra. Apesar de não ter crescido no Alentejo. O mesmo se passava com o Algarve. Sinto o mesmo com o Algarve. Aliás, os meus pais depois foram morar para lá quando eu fui para a universidade, aos 18 anos.

Estudaste em Évora...
Sim, estudei em Évora. Eu tinha uma relação muito próxima com os meus pais, sobretudo com o meu pai. O meu pai era muito unha e carne comigo. E quando eu decidi ir para a universidade, o meu pai presumiu que era um projeto de família e também queria ir para Évora. Insistia que devíamos ir todos para Évora. Eu tentava explicar que queria ir para Évora, para a universidade. Eu. Não todos. Na altura acho que aquilo lhe custou muito - que eu não quisesse que eles fossem para a universidade comigo. E os meus pais acabaram por decidir ir morar para o Algarve. Já lá tinham uma casa que tinha sido construída num terreno que era do meu avô. Para mim o Algarve também é casa. É todo um sul!

Voltando a Baleizão, ainda apanhaste muito o Alentejo no rescaldo do 25 de Abril?
Nasci em 1978. Ainda estava muito presente. Baleizão tem toda essa carga, Catarina Eufémia! Ainda hoje tem, agora imagina nos anos 1980! Ainda havia essa memória, essa revolta, essa insubmissão que ficou nas pessoas. Uma memória, por um lado, de extrema pobreza. E eu senti isso um pouco na minha família, aliás na nossa genética [dá umas gargalhadas]. É verdade, eu percebo isso! A vida era muito dura para aquelas pessoas. E depois havia essa memória daquela injustiça e todo o fervor do rescaldo do PREC. Na altura não tinha noção de que estava a viver isso. Na escola estudei o 25 de Abril. É normal. Todos nós estudamos o 25 de Abril. Na primária, no ciclo. E o facto de ser ensinado nas aulas de História tornava-o uma coisa muito distante. Como o Afonso Henriques. Mas tinha acontecido há dez, 12 anos... Tinham passado 15 anos no máximo talvez a primeira vez que estudei o 25 de Abril.

Tu começaste a estudar música muito nova.
Aos cinco anos...

Mas tiveste o teu primeiro acordeão ainda mais cedo, aos 3...
Confirmo!

Porquê o acordeão? O teu pai era carteiro, a tua mãe só mais tarde começou a trabalhar, tinham alguma ligação com a música?
Não! O meu pai era o melómano. Era um apaixonado pela música. A nossa casa era só aparelhagens, rádios, gira-discos.

Que música se ouvia na tua casa?
Ouvia-se de tudo! O meu pai era esquizofónico! E eu herdei isso dele! Ouvia-se de tudo! Desde folclore, música clássica, rock, jazz, disco. Disco claro! Tínhamos montes de discos de disco. Bee Gees e coisas parecidas! O meu pai ouvia tudo. E pôs-me sempre a ouvir muita música. Ele gostaria muito de ter aprendido a tocar alguma coisa. Gostava muito de acordeão, mas também de outros instrumentos. Nunca teve essa possibilidade. Isso sempre beneficiou o meu gosto pela música. Encantei-me pelo acordeão porque tínhamos uma amiga que tinha mais nove anos do que eu e que já tocava acordeão. Era prima de uma vizinha do lado, com quem tínhamos uma relação muito estreita. A miúda ia para lá e muitas vezes levava o acordeão. Os meus pais contam que desde a primeira vez que a vi a tocar fiquei encantada. Ela tocava e eu ficava num... sabes aqueles vídeos que vemos com bebés a chorar, emocionados, e pensamos que é coincidência? Não é, é real. As crianças conseguem emocionar-se muito. E eu sentia isso com o acordeão. A ouvi-la tocar. Lembro-me de não saber o que havia de fazer. Se havia de chorar, se havia de rir. Ficava tão envergonhada com as emoções que estava a sentir. Com aquele extremo de contentamento. E eu sempre pedi para tocar. Sempre gostei de música. Sempre pedi para me comprarem instrumentos. Tinha dois anos e ficava congelada à frente das montras de lojas de instrumentos. Ficava a olhar e queria todos. Mais do que ir à loja de brinquedos, queria ir à loja de instrumentos. Queria tocar acordeão. E quando tinha três anos, o meu pai fez-me uma surpresa e ofereceu-me um acordeão. Eu queria um acordeão de brincar. Só que o meu pai levou o repto mais a sério. Elevou o patamar e comprou um acordeão a sério. Que era grande de mais para mim! Eu era muito pequena. Não há acordeões a sério para crianças de três anos. Tenho uma série de fotos em que só se veem os caracóis por cima do acordeão.

Quando começaste a ter aulas?
Comecei a ter aulas com essa amiga. Ela foi sempre minha professora. Ela tinha 14 anos quando começou a dar-me aulas. Como o acordeão era pesado para mim, ela sentava-se à minha frente e metade do peso do acordeão ficava no colo dela e metade no meu. Quando eu tinha 10 anos abriu o conservatório em Setúbal e ela foi para lá dar aulas. Não havia curso oficial, era um curso livre. Eu fui com ela, entrei para o conservatório e fui sempre aluna dela. Depois, quando ela teve os filhos, substituí-a como professora. A partir de certa altura ela começou a tocar com bandas de música pop-rock. Foi no período dos Sétima Legião, Madredeus, Sitiados. Ela tocou com a Mafalda Veiga, teve um grupo em Setúbal que eram os Piratas do Silêncio. E esse lado cativou-me.

Percebeste que o acordeão também podia ser pop?
Sim. E de repente podia ver uma pessoa ao meu lado, que eu admirava acima de tudo, a tocar com aquelas bandas que eu adorava. Sempre tive essas perspetivas do acordeão e das suas várias possibilidades. Não só a mais clássica, que era o que aprendíamos no conservatório.

Logo aí, muito nova, começaste a atuar em público?
Isso eram coisas do meu pai [gargalhada]! Logo aos 6 ou 7 anos atuei em público. A primeira vez foi em Castro Verde. Era comum no meio do baile fazer-se uma pequena atuação de uma criança artista. Eu tocava duas ou três músicas, não era bem um concerto. O meu pai mandou fazer uma cadeirinha para mim. Porque as cadeiras eram muito grandes. Ainda tenho essa cadeira. Era pesadíssima. Os meus pais andavam com ela de um lado para o outro. E tenho a foto: sou eu a tocar e o meu pai com o microfone na mão a apontar para o acordeão. Ele tinha imenso cuidado: metia a estante com a partitura. Era tudo muito carinhoso. Era ele que me incentivava.

Ele era uma espécie de manager?
Sim. Mas nunca foi muito insistente quando eu era miúda. Depois, na adolescência, tornou-se mais exigente. Porque achava que eu estava bem e devia tocar mais ao vivo. Mas em pequena eram só umas gracinhas aqui e ali.

Quando é que começaste mais a sério?
É difícil dizer. Sempre toquei em palco. Cheguei a fazer bailes. Muito contra a minha vontade e por pressão absoluta do meu pai que achava que eu devia usar o que sabia para ganhar algum dinheiro. Ele faleceu há seis anos e eu nunca lhe disse isto mas, apesar de ter odiado fazer aquilo, aprendi muito. E havia um lado de mim que se divertia e que aprendia muito. Adorava ficar a observar as pessoas, a dinâmica nos bailes, quem é que entrava. Eu via tudo. Ainda hoje continuo a ter esse hábito: vejo tudo. E irrita-me muito quando estou em palco e não vejo o público. Gosto de ver quem entra, quem sai, quem está a olhar para quem, quem está zangado. É delicioso.

O artista em palco também está a observar o público, portanto?
Não sei se toda a gente faz isso. Às vezes pergunto aos meus colegas se viram uma coisa e eles não viram nada. Se calhar estão concentrados, que era o que eu também devia estar! Se calhar foi na altura dos bailes que ganhei este hábito, para me distrair. Eram muitas horas a tocar e eu tinha de observar toda a dinâmica social - as mães com as filhas, a catrapiscarem algum rapaz! É um lado divertido da coisa. Mas também me permitiu ganhar estaleca de palco. Ter de aprender coisas de ouvido, ter de tocar durante horas, ter de lidar com pessoas muito diferentes. O meu à-vontade em palco nasceu porque desde pequenina me habituei a estar em palco.

Não sabes dizer, portanto, em que momento é que a música se tornou uma coisa mais séria na tua vida?
Este trabalho como música veio ter comigo em 2000. Eu sempre pensei que ia estudar música na universidade, que ia ser professora de música. Mas era uma ideia um bocado abstrata. Não sabia bem o que ia fazer com a música. Depois tive a experiência de dar aulas no conservatório. Gostei, mas não me imaginei a vida toda a fazer aquilo. Queria era tocar. Mas estava muito desiludida com os repertórios. Não havia nenhuma situação em que sentisse que estava a adorar tocar aquilo. Pelo menos o suficiente para fazer daquilo a minha vida. E depois comecei a interessar-me por outras coisas, nomeadamente por arte barroca. Entrei numa onda de obsessão total. Com 14, 15 anos. Acho que começou com um livro de história da arte que uns amigos me emprestaram. Comecei a ler muito sobre arte barroca, cultura, música. E comecei a pensar que podia estudar outra coisa na universidade. Na altura não havia curso superior de acordeão, teria de estudar outra coisa. Também ainda não cantava muito, por isso estudar canto não era uma opção.

Tocavas desde miúda mas cantar só surgiu bastante mais tarde?
Eu cantava, mas não era uma coisa que adorasse fazer. Não me sentia nada segura. Cantava mas não gostava muito de ouvir a minha voz. Na altura, quando decidi o que ia estudar, optei por Évora. Aliás, já tinha decidido que ia para Évora, só não sabia ainda estudar o quê. Foi uma escolha um pouco ao contrário. Geralmente a pessoa escolhe o curso e depois procura onde ele existe. Mas eu quando tinha 15 anos fui numa excursão com a escola a Évora. Nunca tinha lá ido, apesar de Évora ficar a uma hora de Setúbal. E fiquei apaixonada. Sentia-me superinjustiçada por nunca ninguém me ter levado lá e mostrado a cidade. Há sítios que nos tocam assim. E eu com aquela idade já tinha viajado um pouco, já tinha até ido com a escola à Grécia. Podia ter-me encantado por outra cidade. Mas não. Foi Évora. A excursão foi pouco antes do Natal, com o início do ano letivo, havia muitos estudantes na cidade, estava aquele tempo assim de outono. Mexeu comigo. Foi a primeira vez que entrei numa universidade. Meti na cabeça que queria ir estudar para lá. Quando acabei o secundário foi no ano em que abriu o curso de Música em Évora. Mas tinham também um curso que me interessou: História, vertente Património Cultural. Achei que era suficientemente abrangente, que até talvez falasse de música e que fizesse a ponte. Candidatei-me, foi a minha primeira opção, e entrei. Fui para Évora. Andei uns meses a patinar. Tinha uma aula à segunda de manhã que era muito lenta, uma cadeira teórica, e os meus colegas de música tinham aulas de coro na sala ao lado. E eu ouvia-os cantar e chorava. Só pensava: "O que é que eu estou a fazer aqui? Isto é uma seca!" Os meus pais não se chatearam comigo por eu querer estudar Património. Mas eu nem sequer era boa aluna a História [ri-se]! O meu professor do secundário pediu-me para eu não ir para História. Ele achava que eu inventava demasiado para ir para História. Fazia grandes ficções nos testes.

Quando é que percebeste que o teu caminho era mesmo a música?
Andei ali os dois primeiros anos dedicada a estudar. Tocava acordeão e alguns colegas sabiam, mas poucos. Aos fins de semana tinha uma espécie de vida dupla. Ia para Setúbal e dava aulas no conservatório. Entretanto em Évora fui também fazer algumas cadeiras do curso de Música. Mantinha-me nos dois mundos. Mas passados dois anos eu tinha consciência de que se começasse a ter mais trabalho com a música, além das aulas ao fim de semana, ia distrair-me dos estudos. Eu morava numa casa de estudantes e costumávamos fazer festas. Começou a aparecer por lá um saxofonista que era nosso vizinho e professor na universidade - o Alípio Carvalho Neto. É um saxofonista incrível. Na altura nem tive essa noção porque ele era do jazz e tão criativo que eu nem percebia bem a linguagem dele. Mas um dia estávamos em casa e ele viu uma caixa de instrumentos atrás do sofá. Eu disse que eram meus e ele ficou espantado por eu tocar. Foi uma festa. Ele começou a ir lá a casa tocar comigo, porque sabia que eu não queria tocar em público. Ao início resisti mas ele arranjou-nos uns concertos, pela Câmara de Évora. Nós os dois. A fazer umas coisas nas aldeias. E eu só pensava: "Oh, meu Deus, onde é que me estou a meter?" Mas ele foi superquerido. Ajudou-me. Era jazz, uma coisa totalmente nova. Eu nunca tinha improvisado. E aquilo começou a entusiasmar-me. Os concertos eram pagos e eu estava a tentar não sobrecarregar os meus pais. Convidaram-me para participar numa série de concertos em Évora no mês de abril. Por causa das comemorações do 25 de Abril. A ideia era chamar músicos de Évora para formar uma pequena orquestra para aquele período. Conheci muitos músicos e depois foi em catadupa. Entretanto tive de mudar de casa e fui viver para casa de um maestro americano. Fui parar a um caldeirão de música.

Tu bem tentavas fugir, mas não havia hipóteses...
Não havia mesmo hipótese. A casa dele era uma biblioteca de música! Que ele pôs à minha disposição. Fui parar ao céu! No ano letivo seguinte vi anunciado que ia haver uma aula de danças europeias. Eu não fazia ideia do que eram danças europeias. Pensei se seriam danças folclóricas. De toda a Europa? Foi pela curiosidade que fui lá. Era uma aula gratuita, organizada pela associação PédeXumbo. O Paulo Pereira, presidente da associação na altura, tinha acabado de se mudar para Évora para trabalhar num centro de investigação. Ele é biólogo. E decidiu fazer aquelas aulas. Ele tocava e ensinava aquelas danças. Andava numa missão de levar às pessoas o que tinha aprendido nos festivais em França para fazer crescer um movimento. E foi muito bem-sucedido. Eu comecei a ver aquelas danças de roda, aquele ambiente, como vemos hoje no Andanças. Fiquei deliciada. Adorei a aula, adorei as músicas que o Paulo ia pondo. No final ele disse que gostava muito de fazer uma aula com música ao vivo, que tinha uma amiga acordeonista que vivia em Inglaterra e que quando ela viesse faziam a aula. Eu fui ter com ele e disse que era acordeonista, que podia trazer o acordeão se ele quisesse experimentar. Ele ficou entusiasmado, deu-me a caixa com os CD e disse para tirar o que quisesse. Para mim, foi um momento de grande viragem. Começou com aqueles músicos em Évora, mas aqui encontrei um repertório que eu adorava, em que fiquei fixada. Que me tem dado todas as ferramentas e as bases para o que faço hoje.

Ainda usas essa base hoje?
Sim. Porque nós começámos por tocar músicas tradicionais de outros países - francesas, irlandesas. Eram músicas com as quais nos relacionávamos culturalmente com alguma distância. E não nos sentíamos perturbados por pegar nelas, desmembrá-las e pôr outros acordes. Mas seríamos incapazes de fazer aquilo com um tema português. Porque teríamos medo de ferir suscetibilidades. Comecei logo a tocar com o Paulo. Fui-me envolvendo com o trabalho da PédeXumbo. Também nesse ano, fui convidada, só como acordeonista, para entrar para um grupo que pegava em músicas tradicionais do Alentejo e as transformava. Aprendi muito com esse grupo que se chamava Modas à Margem do Tempo. Mas já estava também a usar as ferramentas que estava a retirar deste folk europeu. Foi por estar ligada a este mundo folk que um dia o Rodrigo Leão me ligou.

Ia precisamente falar-te dessa parceria com o Rodrigo Leão...
O Rodrigo Leão convidou-me por causa da minha ligação ao folk. Na altura, eu lidava muito com a associação Gaita de Foles. Quem estava à frente desta associação era o Paulo Marinho, o gaiteiro dos Sétima Legião e um dos melhores amigos do Rodrigo. Este deve ter-lhe dito que precisava de um acordeonista e o Paulo lembrou-se de mim. Toda a vida fui fã dos Madredeus, dos Sétima Legião, do trabalho do Rodrigo. Era uma grande referência. E tivemos logo uma ligação muito bonita. O Rodrigo e a mulher são pessoas incríveis. Encontrei-me com ele antes do primeiro ensaio, para me dar umas gravações e conversarmos um bocado. Ainda não se mandavam MP3 pela net! Entregava-se CD em mãos. Estamos a falar de 2000. Eu ainda gravava cassetes! O primeiro ensaio foi às 22.00 em Alfragide. Na altura vivia em Évora, conduzia uma carrinha que o meu pai me tinha dado. Era uma Vanette, que era muito boa para os concertos, mas não para andar dentro de Lisboa! Foi um caos, mas consegui lá chegar. Eu estava era preocupada com o regresso, porque o ensaio ia prolongar-se até tarde. E, na minha inocência, pedi ao Rodrigo se podia ficar em casa dele. Não o conhecia. Mas também não sabia o que havia de fazer. Ele disse logo que sim. Ele e a mulher receberam-me tão bem! Eu era um bebé! Com duas tranças! Com uma carrinha enorme. Perdida no meio de Lisboa. Ao final de um mês, recebi os cachês dos concertos que fiz com o Rodrigo e já não precisei que os meus pais me dessem mesada. No mês seguinte, o meu pai perguntou-me se fazia a transferência e eu disse que não precisava. Foi assim.

Percebeste que conseguias viver daquilo?
Sim, mas era mês a mês. A perceber como é que as coisas iam correndo. Felizmente, correram sempre bem.

Quando é que decides partir para uma carreira a solo que já vai em três álbuns?
Não foi bem uma necessidade de fazer coisas sozinha. Foi o resultado de um percurso com muitas pinceladas diferentes. Eu tocava com o Rodrigo que era um universo. A partir daí toquei com tanta gente: a Viviane, os Amor Electro, o Ludovico Einaudi. Fiz muitas parcerias neste universo da música pop. Depois tinha outro lado que era o da música folk. Tive um grupo chamado Os Chocalhos. Em 2000 criámos este grupo que era a continuação do trabalho com o Paulo Pereira. Os Chocalhos eram a minha banda. Eu tocava com os outros - e com o Rodrigo tinha muito trabalho - mas eles eram a minha cena. Quando compunha era para Os Chocalhos. Era ali que dava um fim às minhas músicas. Mas em 2008 as agendas tornaram-se incompatíveis e deixei de tocar com Os Chocalhos. A vida continuou, mas um ou dois anos depois senti que compunha mas não tinha para onde mandar as minhas músicas. Voltei a fazer alguns bailes, em meu nome. Mas havia coisas que não dava para ser só eu a tocar! Começou a nascer a vontade de fazer um disco. Primeiro a ideia era fazer um disco para baile, com repertório para as pessoas dançarem. O disco saiu em 2012 e era uma espécie de resumo de várias coisas que eu tinha feito, de músicas que eu estimava. Era algo que eu tinha de fazer, mesmo que fosse só esse. Senão para onde é que aquelas músicas iam?

E aí cantaste?
Aí cantei. O cantar começou de forma gradual. Começou com o Rodrigo. Nós tínhamos uma música, Pasión, que era um tango e foi gravada originalmente pela Lula Pena para o álbum Alma Mater de 2000 em que eu ainda não toquei. Nos concertos tínhamos sempre um convidado para cantar essa música: o Rui Reininho, a Marta Dias. Mas nos ensaios eu é que cantava. O Rodrigo começou a achar graça àquilo e no dia em que o Rui Reininho teve um imprevisto disse-me: "É hoje que tu vais cantar!" Eu estava superenvergonhada, mas cantei. Depois, de vez em quando, cantava aquela música. Depois apareceu outra, Jeux d'Amour. Mas para mim era o que sempre foi: eu toco acordeão e de vez em quando canto. Com Os Chocalhos também houve necessidade de cantar alguns temas. Não me elegi a mim própria como vocalista, mas eles insistiram. E comecei a perceber que as pessoas iam gostando. Mas eu não tinha muita confiança. As coisas mudaram mesmo quando comecei a aprender repertório do Alentejo. A música do Alentejo deu-me muita confiança na minha voz. Começou com os Modas à Margem do Tempo, depois houve uma atividade da PédeXumbo - um pequeno festival que juntava tocadores de instrumentos tradicionais e quem quisesse aprender. Conheci na altura o pessoal ali de Castro Verde que tocava viola campaniça: o Ti Manuel Bento, o Pedro Mestre, que era um miúdo na altura. E eu gostei muito do repertório deles, arranjei uns CD e comecei a aprender. Comecei a ouvir muito cante em casa. Sentia-me confortável. Tinha encontrado uma colocação para a minha voz que não conseguia fazer a cantar outro tipo de músicas. Só a cantar aquelas modas. Encontrei ali um estilo de que gostava. E passei a acompanhar algumas vezes as violas campaniças. Eles perceberam que eu gostava e convidaram-me porque sabiam que eu tinha aprendido o repertório. Na altura, não tinha noção do quão poucas pessoas tocavam e dominavam aquele repertório. Aparecer uma chavala, uma miúda, foi assim uma coisa...

Seres mulher ainda é uma exceção? Mesmo nos Tais Quais és a única mulher...
Pois é. Por exemplo nos Tais Quais, ao final de poucos ensaios, o Tim vira-se para mim e diz-me: "É a primeira vez que estou numa banda com uma mulher música!" Ele já tinha colaborado com mulheres, com cantoras, mas ter uma mulher música, que toca um instrumento e faz arranjos, que diz que ali se calhar ficava melhor um ré menor, era a primeira vez.

É um mundo muito masculino?
Não sei porquê, mas é. Não penso muito nisso mas quando estava no Uxu Kalhus, por exemplo, fazíamos grandes tiradas de concertos e estávamos juntos durante três semanas - no fim eu parecia um camionista, vinha bruta, a falar mal [ri-se às gargalhadas]. Vinha sujeita àquele ambiente... que era superdivertido! Com os Homens da Luta, as coisas eram diferentes. O Jel convidou-me a mim, uma mulher percussionista e uma flautista. O ambiente era mais equilibrado. Com o Rodrigo Leão também havia várias mulheres. A Viviane no violino. As minhas experiências não foram tão radicais assim. Mas é muito masculino.

Sobretudo a música alentejana, o cante, apesar de haver grupos femininos, está quase sempre associado aos homens.
Essa é uma imagem que foi muito difundida durante o Estado Novo. Historicamente, os ranchos de cantadores tinham homens e mulheres. Mesmo quando iam cantar a outra terra ia um rancho de gente, um grupo de homens e mulheres. Passava-se a palavra. Iam os que cabiam na galera do trator ou na carroça. Havia grupos só de homens, claro. Mas o cante era de toda a gente. Depois houve uma grande mudança no Estado Novo, com a folclorização. Para cada região do país foi estipulada uma arte perfórmica. Para o Alentejo foi o cante, com as regras a ditar que os grupos tinham de ser masculinos, ou, quando muito, mistos. Mas o cante é diferente da maior parte do restante folclore: continuou a compor, surgiram novas melodias. Há um lado criativo do cante que perdurou. O primeiro grupo exclusivamente feminino só se forma formalmente em 1979. Foram criados vários. Mas continuam em desvantagem - se não pelo número, também por este percurso histórico. Ao homem que canta no Alentejo falta-lhe dar mais valor à mulher que canta. No futuro, não sei o que vai acontecer.

Falaste há pouco dos Homens da Luta, como foi essa experiência, o Festival da Canção é outro mundo?
Foi muito giro! Nós levámos aquilo a sério porque levamos a sério o que fazemos. Os Homens da Luta nasceram do programa Vai Tudo Abaixo, de que eu era grande fã. Costumava ver com o meu pai, quando o ia visitar. Já conhecia aquelas personagens. E houve um Andanças em que o Jel foi à procura de músicos com perfil para os Homens da Luta. Eu acho que ele andou a ver quem é que aguentava mais tempo. Conheci-o numa noite em que comecei a tocar às duas da manhã e acabei ao meio-dia! Ele chegou ao pé de mim e disse-me: "Miúda, eu não sei como é que tu aguentas!" [Risos] Pediu-me o contacto e uns tempos depois ligou-me. Eu estava triste por ter saído do Uxu Kalhus, com pena de perder não só a parte artística mas também aquela coisa de ir para a estrada com os rapazes. De nos divertirmos, de fazer aquelas tournées em que nunca sabíamos que condições íamos ter. Com os Homens da Luta, percebi que era isso. Já conhecia a maioria dos músicos que ele convidou. Essa coisa do Festival da Canção começou um ano antes de participarmos. Queríamos ir ao Festival da Canção. Fizemos uma música e concorremos. Mas não lemos bem as regras, por isso tocámos a música uma vez para experimentar. Para ver se funcionava com o público! Como é que alguém leva uma música para um festival sem experimentar se funciona com o público? Devia ser proibido! Então experimentámos. Não dissemos nada. Só depois vimos nas regras que não se podia tocar as músicas ao vivo. Alguém filmou e fomos desclassificados! No ano seguinte decidimos: "Nós vamos!" Fizemos uma música. Por acaso já não era tão boa quanto a primeira! E ficámos à espera até ao fim de que alguém arranjasse maneira de nos desclassificar. Porque não combinava com nada do que se passava ali. A intenção era clara: para todos nós na banda, que éramos grandes fãs de José Carlos Ary dos Santos, do Tordo, do Carlos do Carmo, que conhecíamos todo o peso que o festival já tinha tido, a importância das canções, do E Depois do Adeus, aquela era a nossa forma de reclamar, de tentar devolver o sumo ao festival. Fomos lá. Até ao final achámos que nem íamos subir ao palco. Mas subimos. Resistimos a tudo, a mudarem-nos os figurinos. Mas a produção foi sempre muito simpática connosco. Quando chegou a hora, fizemos a nossa cena. Viemos, marcámos presença, dissemos o que tínhamos a dizer. Mas quando começámos a ver a pontuação a subir, o Jel diz assim: "É pá, se a gente ganhar, não aceitamos o prémio. A gente não veio aqui para ganhar!" Não era esse o plano. Ganhar até parecia um bocado... esquece! E decidimos que se ganhássemos dávamos o prémio a quem viesse a seguir. Mas depois começámos a pensar: "E se não gostarmos de quem vier a seguir?" [Gargalhada] Mas quando chegou a altura, depois de Bragança nos dar a pontuação máxima, não sei o que baixou sobre o Jel que aceitou o prémio. Foi uma maluquice. Passámos a ter muitos concertos. Depois foi a manifestação de 12 de março de 2011. Foi uma experiência lindíssima participar nessa manifestação. Estava tudo em tumulto à nossa frente. Vínhamos daquela vitória no festival, estavam a acontecer imensas coisas. Tínhamos muito tempo de antena. Auge da crise. Ver aquela gente toda na rua, como não se via desde o 25 de Abril. Sempre pacíficos. Uma festa linda! Os Deolinda não puderam ir, a música deles Que Parva Que Eu Sou tinha-se tornado uma espécie de hino da causa sem que eles o tivessem procurado e o Jel perguntou se eu queria cantar essa música na manifestação. Eu liguei ao Pedro da Silva, perguntei se eles se importavam. Ele disse que não. E foi lindo. Cantar a música com toda a gente a cantar comigo. Para mim foi encontrar um espacinho numa coisa em que eu acreditava mesmo. Houve ali um momento de esperança. De dizer: "Pelo menos temos força na voz!" Foi um dos momentos mais bonitos da minha vida. No ano a seguir Os Homens da Luta começaram a esmorecer, sobretudo por razões pessoais. Mas cumprimos a nossa missão.

Tens novos projetos?
Para já este meu grande projeto de vida aqui em Beringel. Há muito queria vir viver para o Alentejo. Mudei-me para aqui em janeiro, para esta casa. Não foi planeado, nem o momento nem a terra. Já andava a ver anúncios. Vi várias coisas mais para cima. Mas acabei por me centrar aqui à volta de Beja. E depois vi o anúncio desta casa e percebi: "É isto!" Passava por aqui mas não conhecia Beringel. Trabalho muito no Alentejo, sobretudo nos últimos anos. Tenho este espetáculo Celina da Piedade e as Vozes do Cante, com vários cantadores.

O cante ganhou ainda mais destaque quando a UNESCO o classificou como Património da Humanidade?
Começou antes. Com o processo da candidatura e com a atenção que os media deram ao cante. Criaram-se projetos de cante nas escolas, alguns deles já com 13 anos. Isto quer dizer que todas as crianças que passaram pelo ensino básico desde então tiveram essa experiência de cante. Este projeto é quase revolucionário. Todos os miúdos sabem que os outros miúdos também sabem aquelas modas. Nos últimos anos tenho ficado cada vez mais ligada ao Alentejo e ao cante. Também como investigadora - porque passei a fazer parte do Instituto de Etnomusicologia e tenho estado a colaborar com vários projetos. E esta casa é o corolário disso tudo. Até agora eu era de fora, mas agora estou aqui e tenho de criar uma nova relação - passar a ser da terra.