27 AGO 2020
27 agosto 2020 às 00h42

Covid-19. "Imunidade de grupo não é posta em causa" pelas reinfeções

Confirmados os primeiros casos de reinfeção pelo novo coronavírus, quais as consequências para a esperada imunidade de grupo? Virologista Pedro Simas diz que esta era uma notícia esperada, admite que o número de reinfecções venha a aumentar, mas sublinha que isso não obsta à criação da imunidade de grupo.

Há muito que a comunidade médica e científica vinha admitindo a possibilidade de reinfeção pelo novo coronavírus, mas até agora nenhum exemplo conclusivo tinha confirmado essa hipótese. Um cenário que, ao que tudo indica, se alterou. Na última segunda-feira, foi notícia o primeiro caso confirmado de reinfeção pelo novo coronavírus, um homem de Hong Kong, de 33 anos, que teve covid-19 em abril e que voltou a testar novamente positivo após o regresso, já neste mês, de uma viagem a Espanha. Investigadores da Universidade de Hong Kong estudaram as sequências genéticas das estirpes do vírus contraídas em abril e em agosto e concluíram que são "claramente diferentes".

"Muitos acreditam que os doentes de covid-19 recuperados têm imunidade contra as reinfeções porque a maioria desenvolveu uma resposta sustentada em anticorpos neutralizantes em soro", observou o estudo da Universidade de Hong Kong. Os investigadores recordaram, no entanto, que "existem evidências de que alguns doentes apresentam níveis decrescentes de anticorpos passados poucos meses".

Um dia depois da divulgação do caso de Hong Kong também os Países Baixos e a Bélgica vieram revelar dois outros casos, com virologistas dos dois países a garantirem que não se trata apenas de situações prolongadas de infeção. No caso holandês, trata-se de um idoso com um sistema imunológico "deteriorado" que contraiu pela segunda vez o novo coronavírus. No caso belga, a reinfeção ocorreu com uma mulher que voltou a testar positivo três meses após a primeira infeção. "Conseguimos examinar geneticamente o vírus, associado às duas situações de contágio, e temos dados suficientes para determinar que é uma outra estirpe", afirmou sobre este último caso o virologista Marc van Ranst, em declarações à televisão belga VTM News, citadas pela Lusa.

Pedro Simas, virologista e investigador do Instituto de Medicina Molecular da Universidade de Lisboa, diz que esta era uma notícia "esperada", dado que há reinfeções em todos os outros vírus respiratórios. "O que sabemos dos outros coronavírus é que a reinfeção faz parte da ecologia dos vírus, as pessoas vão sendo reinfetadas."

O facto de, ao que tudo indica, essa característica se estender também ao SARS-Cov-2 não deve ser motivo para alarme, sublinha o virologista, que defende que "não é por causa disto que deixa de se construir a imunidade de grupo", que "não é posta em causa" pelas reinfeções.

Começando pelo início: "Como é que é que funcionam as infeções por coronavírus? O nicho que ocupam é no trato aéreo respiratório superior: provocam uma infeção superficial, que não é sistémica, pouco inflamatória, que em geral causa uma constipação. Raramente evoluem para situações pneumónicas graves, só em situações muito especiais - que estão neste momento exacerbadas dado haver milhões de pessoas infetadas e não haver proteção dos grupos de risco porque não existe imunidade populacional".

Esta infeção, na grande maioria dos casos ligeira, "gera na pessoa infetada uma resposta imunológica em que há produção de células do sistema imunológico, que são específicas para aquele agente e que levam à produção de anticorpos neutralizantes, cuja função principal é prevenir reinfeções ou, quando há infeção, limitar a progressão do vírus", sendo que a "quantidade de anticorpos neutralizantes que é produzida pela infeção ligeira é pequena, é até proporcional ao grau de inflamação, ao grau da doença que provoca".

E terá sido isto que se passou no caso identificado em Hong Kong. "Esta pessoa teve uma infeção muito ligeira em março e passados quatro meses, após uma visita à Europa, teve uma infeção completamente assintomática. O que é que aconteceu? Aconteceu que quando os anticorpos deixaram de ter uma concentração protetora a pessoa foi reinfetada. Mas agora tem uma coisa muito importante: tem as células imunológicas. Quando contacta outra vez com o vírus, muito rapidamente estas células eliminam os vírus", explica Pedro Simas, sublinhando que o indivíduo reinfetado "ficou com um boost, com um sistema imunológico mais vigoroso".

"Em termos epidemiológicos é uma pessoa que rapidamente resolve a infeção e não constitui um perigo de disseminação do vírus, como acontece quando alguém está francamente infetado e tem ali várias semanas de possível contaminação", sustenta o virologista. "Têm que se fazer estudos, claro, mas o que a experiência nos diz é que estas pessoas têm uma janela de contágio muito pequena porque rapidamente resolvem a infeção", conclui.

A reinfeção "mantém a imunidade de grupo, é como se a pessoa reinfetada recebesse uma segunda vacinação", acentua Pedro Simas, admitindo que as reinfeções venham a tornar-se mais frequentes. "Já foram 23 milhões de pessoas infetadas. Passados seis meses, começa a haver possibilidade de reinfeção", acrescenta.

E quanto à vacina? Pedro Simas diz que as reinfecções poderiam ter implicações para a vacina contra o novo coronavírus caso se ficassem a dever a variações antigénicas - ou seja, a uma mutação do vírus que impedisse o sistema imunitário de o reconhecer. Mas o virologista não acredita neste cenário: "Duvido que assim seja, não é assim que funciona a ecologia destes vírus. É normal que estes casos de reinfeção tenham a ver com a diminuição de anticorpos neutralizantes".

O investigador do Instituto de Medicina Molecular da Universidade de Lisboa chama a atenção para outro ponto. "A vacina que se vai produzir para este coronavírus não tem de ser uma vacina como a do sarampo ou como a da rubéola, que protege 100% contra a infeção", argumenta, sublinhando que a Food and Drug Administration (FDA), a agência que regula o setor do medicamento nos Estados Unidos, já disse que aprovaria uma vacina que "proteja 50% contra a infeção ou 50% contra a doença".