Administrar justiça em nome do povo

17 novembro, 2017 às 00:10

"Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar justiça em nome do povo". Assim estabelece o artigo 202.º, n.º 1 da nossa Constituição. São órgãos de soberania que administram justiça sob a figura da representação constitucional dos cidadãos.

No tão divulgado caso de violência doméstica sobre "mulher adúltera", a comunidade nacional e internacional indignou-se com a decisão do Tribunal da Relação do Porto que, atenuando consideravelmente a culpa dos arguidos, condenou-os em pena de prisão, suspendendo a sua execução, a par de penas de multa. O que mais indignou a comunidade foi a fundamentação com tiradas bíblicas (do Antigo Testamento) e alusões ao Código Penal de 1886. A Igreja lamentou "o acórdão que usa a Bíblia para justificar violência".

A censura jurídico-penal pertence ao povo, filtrada pelos órgãos constitucionalmente competentes que o representam, os tribunais. A estes cabe valorar factos e normas, vinculados à axiologia social envolvente, ao seu pluralismo e à sua inexorável evolução. Se o poder for exercido, ignorando tais premissas, emitindo valorações ou convicções próprias de quem decide, existe abuso (do poder constitucional) de representação, defraudando expectativas comunitárias e abandonando os cidadãos ao arbítrio de cada juiz de causa. Com as implicações constitucionais de violação de direitos humanos e de avaliação do mérito dos magistrados que daí possam advir.

A democracia nacional, com todas as virtudes e defeitos, vai amadurecendo, fazendo o seu caminho. Não esqueçamos, todavia, que o modelo de um Estado de direito democrático, que se pretenda liberal e plural, envolve a tripartição de poderes, de entre os quais o poder judicial. Não tomando a nuvem por Juno, a verdade é que alguma "cultura obsoleta" (residual, mas..) que dimana, por vezes, dos nossos tribunais (quem não se lembra da "coutada do macho ibérico"), denegrindo-os injustamente, deve ser contrariada. A formação pedagógica, neste particular, assume papel fundamental. Começa nos variados contextos da sociedade civil e perpassa diversas instituições. Às faculdades de Direito cabe, na prossecução do serviço público, conferir sólida formação (não só técnica, mas também) humanista, social, ética e cultural.

Para que Portugal possa vir a posicionar-se, definitivamente e na plenitude dos seus poderes soberanos, como democracia liberal.

* DIRETOR DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE LUSÍADA - NORTE (PORTO)

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