"Há um complexo masoquista na Europa depois da guerra"

Pessimista e ansioso, Marcello Duarte Mathias reserva boa dose de ironia para falar sobre si. O futuro da Europa merece-lhe reservas, diz que Macron é uma figura literária e não poupa George W. Bush pelo estado actual do mundo.

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Tudo começa à mesa de um bar de hotel a falar de Lawrence Durrell. O mar logo ali, uma piscina ao sol. Marcello Duarte Mathias, 78 anos, embaixador na reforma, escritor com 12 livros publicados, está em Cascais, perto da casa onde vive desde que em 2003 deixou de ser um nómada ao serviço do Palácio das Necessidades. É ali que escreve os seus diários, memórias, reflexões sobre política internacional, ironiza sobre o mundo e os pares, fala de cinema, pintura, literatura, conta histórias como alguém dotado da arte da conversa se quer conhecer melhor através do que escreve. “A escrita é uma forma de compensação”, diz numa conversa onde não disfarça o seu pessimismo acerca da Europa. Aconteceu pouco depois de publicar Caminhos e Destinos, A Memória dos Outros II (D. Quixote). 

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Tudo começa à mesa de um bar de hotel a falar de Lawrence Durrell. O mar logo ali, uma piscina ao sol. Marcello Duarte Mathias, 78 anos, embaixador na reforma, escritor com 12 livros publicados, está em Cascais, perto da casa onde vive desde que em 2003 deixou de ser um nómada ao serviço do Palácio das Necessidades. É ali que escreve os seus diários, memórias, reflexões sobre política internacional, ironiza sobre o mundo e os pares, fala de cinema, pintura, literatura, conta histórias como alguém dotado da arte da conversa se quer conhecer melhor através do que escreve. “A escrita é uma forma de compensação”, diz numa conversa onde não disfarça o seu pessimismo acerca da Europa. Aconteceu pouco depois de publicar Caminhos e Destinos, A Memória dos Outros II (D. Quixote). 

Nasceu em Lisboa, viveu o Brasil, foi educado em França. Foi diplomata em muitos lugares do mundo. Até 2003. Desde então vive no Estoril. Como está a ser este sedentarismo?
Não é pelo gosto do paradoxo, mas não gosto verdadeiramente de viajar. Gosto de ir aos sítios que conheço, gosto de ir a Itália, à França; a Inglaterra não tenho tido oportunidade de ir. São países que conheço e admiro, cuja cultura me é familiar. Mas não me apetece nada agora ir para a Tailândia ou para o Senegal, ou para o Canadá. Por força da minha profissão tive de o fazer, em grande parte por causa dos estudos dos meus filhos, ficámos seis anos em Bruxelas, e depois oito ou nove em Portugal, o que é muito tempo para um diplomata. Mas gosto muito desta casa, gosto de vir a Cascais, tenho aqui amigos e não faço da viagem o suprassumo. E difícil explicar, mas agora não me sinto sedentário.

A sua vida foi sempre a prazo nos sítios.
Sim. Isso acabou. É curioso, o diplomata vai para um posto e está marcado. Mas não fica mais do que três ou quatro anos. Há uma relação com o tempo fixada de antemão. Um ano para conhecer os sítios, os cantos à casa, o segundo e terceiro anos para retirar os rendimentos do investimento em termos pessoais e profissionais, e o último ano que já é de despedida, em que se está com o pé no estribo. 

Como é que, quotidianamente, gere o tempo e a relação com essa geografia de passagem?
Julgo que se vive muito mais para si e consigo próprio por causa disso mesmo; porque não se é um turista. O turista vai com uma espécie de deslumbramento antecipado. Quando se é diplomata tem-se uma profissão e é-se sempre diplomata mesmo ao domingo; é-se sempre diplomata quando se está a viajar. O diplomata está sempre circunscrito a deveres e a uma maneira de estar. Vive-se muito mais para a leitura. Muitas pessoas criticaram o meu Diário da Índia, dizendo que tinha pouco da Índia. No fim acrescentei algumas páginas onde recordo um pouco a Índia porque tive a impressão de que ela era a grande omissão daquele livro; tive a necessidade de recapitular, de reavivar, de reinventar a Índia. Mas a gente vive da leitura, vive dos amigos, da família. Nunca pensei em mim entre ser sedentário e nómada. Por outro lado, se aos 30 anos me dissessem que iria ficar 30 anos em Portugal talvez ficasse aflito.

E a gestão do tempo?
Há em mim um sentido muito aguçado do tempo. Tenho, de uma maneira quase doentia, a sensação de transitoriedade das coisas, da precariedade das situações, da contingência. Escrever seja o que for é colmatar essa sensação de ausência, essa espécie de orfandade. Tenho muito a sensação de ser póstumo. Hoje em dia tenho ainda mais, na medida em que já tive três cancros, e em que tenho 78 anos de idade. Cheguei ao fim da picada, como se diz. Isso acrescido da sensação muito premente do correr do tempo que tinha desde os 15, 16, 17 anos.

É filho de um diplomata, de alguém que também andou pelo mundo. Como é que construiu a sua relação com a língua portuguesa?
Quando alguém me felicita pelos meus livros, ou quando ganho prémios literários, para mim isso é o reconhecimento de uma aprendizagem comigo mesmo. Fui para o Brasil quando era miúdo, e fui para França aos oito anos. Vinha a Portugal no Natal, pela Páscoa, no Verão. A minha mãe era grega, mas em casa falava-se português. Aos 18 anos fui para Oxford. Por isso, o facto de eu escrever português e de me felicitarem porque gostam do meu português é uma grande vitória sobre mim mesmo.

Como foi esse treino?
Foi pouco a pouco, lendo, vendo; houve pessoas que me ajudaram. Levou tempo. Se ler os primeiros livros acho que se nota a diferença em relação aos que escrevi depois. O que publiquei sobre Camus [A Felicidade em Albert Camus, D. Quixote] foi corrigido, por exemplo. Acho que se nota um enriquecimento, uma maior precisão e concisão, maior elegância na escrita. Mas julgo que devo isso à nação literária por excelência que é a França. Eu, que nunca fui grande estudante, fui primeiro no que eles chamavam a composition française. Parece que tenho essa tendência pela escrita desde muito novo. Havia uma élite notável, há uma tradição. É muito curioso ver que em França não se é ninguém antes de se escrever um livro. Édouard Philippe, o novo primeiro-ministro, acaba de escrever um livro.

Funciona como legitimação intelectual?
É uma legitimação intelectual. Ainda não o li, mas é sobre os autores que o influenciaram. Pense em Portugal! Dizer a um primeiro-ministro que escreva sobre os autores que o impressionaram. O Pompidou fazia antologias de poesia; falou-se De Gaulle para prémio Nobel, o [Alain] Jupé escreveu um livro chamado A Tentação de Veneza, sobre a tentação de largar a política, Bruno Le Maire, ministro da Economia, tem um livro com um titulo inspirado num livro do Cardoso Pires [Sens Memoire le Present se Vide, Gallimard] Toda essa gente não é ninguém antes de mostrar que tem talento literário. Isto não há em nenhuma outra parte do mundo. Em Inglaterra há memórias extraordinárias de grandes estadistas ou ministros, mas não há isso que é tipicamente francês.

Significa que França o ensinou a escrever em português?
Sim. Aprendi a escrever e adaptei ao português.

Nessa altura pensava em que língua?
Acho que em português. 

A primeira escrita sai-lhe sempre em português?
Acho que seria incapaz de publicar em qualquer outra língua. 

Há outra tradição, a do diplomata intelectual.
Há. O diplomata sofre de um certo isolamento, viaja, tem muitas vezes uma inclinação de espírito que o leva a escrever, a observar, a diagnosticar. No caso de António Patrício e de tantos outros, leva-o à literatura. Veja o Eça de Queirós, o António Feijó, o Batalha Ramos. Há muitos casos. 

O seu último livro [Caminhos e Destinos, D. Quixote, 2017] sublinha a capacidade de análise, faz parte da tal arte da diplomacia. Característica comum à literatura.
A diplomacia exige muita intuição psicológica. No início do livro digo isso. Às vezes não há outros recursos e há a necessidade de apreender com quem é a pessoa com quem se está a conversar, quem é o interlocutor que temos pela frente e como é que chegamos a ele.

No que é que repara primeiro?
Primeiro, no olhar, no modo como aperta a mão. Depois nas mãos, o modo como estão vestidos.

Refere que as mulheres só puderam entrar na carreira diplomática em 1975.
E não se esqueça que começaram a votar em França em 1944. Isto é tudo muito recente.

Tem memória da chegada das mulheres à diplomacia?
Sim, muitas estão agora a reformar-se. Não sou nada feminista, mas pensar que no mesmo emprego uma mulher tenha um salário inferior é uma obscenidade. 

Isso não é ser feminista?
Estão sou feminista. E um diplomata não podia casar com uma estrangeira. Era um bocadinho a ideia da espionagem. As mulheres trazem para a diplomacia uma aproximação diferente, um olhar diferente, uma sensibilidade diferente. Nota-se quando estão no governo. Costumo dizer que a mulher vê e o homem olha. Regra geral, a mulher tem o dom de observação e de análise muito superior aos homens. 

Qual foi a sua motivação, o que o levou às Necessidades?
A família. Tenho a sorte de ter tido um pai que foi um grande embaixador. O meu irmão Leonardo foi um diplomata brilhante. Julgo que não escreverá as suas memórias porque não tomou notas, mas escreve muito bem. À medida das minhas possibilidades, segui o exemplo do pai e do irmão, e tenho dois filhos que são diplomatas.

No último capítulo do seu livro escreve sobre uma reunião de diplomatas: “Sob aparência diversa, compõem esta singular sociedade clubista, fechada, hierarquizada, dividida, queixosa e mal amada que são as Necessidades”, um lugar onde “há de tudo”. A tipologia que se segue é feita com um sorriso irónico.
Sim, um sorriso irónico quando olho para a fauna e a diversidade de motivações.

Como se descreveria a si nesses termos?
Punha-me no grupo dos diplomatas, filhos de diplomatas que se julgam diferentes. Foi a pensar em mim que escrevi isso. [ri]

Diferente porquê?
Por conhecer a casa. 

Que conselhos lhe deu o seu pai?
Ensinou-me uma coisa muito importante: a liberdade de espírito. A mim, ao meu irmão e à minha irmã. Era um homem com uma grande autonomia mental. Talvez por influência dele não pertenço nem nunca pertenci a partidos políticos; tenho alguma simpatia pelo CDS; acho importante que haja no xadrez político português um partido que se inspira na democracia cristã. Num país como o nosso, que adora os bastidores, nunca beneficiei ou beneficio de nenhuma confraria, de nenhum compadrio. Tenho amigos em todos os quadrantes, mas não tenho amigalhaços. Chego ao fim da vida com alguma vaidade nisso.

Nessa tipificação que faz fala dos que vestem fatos castanhos
Ah, os fatos castanhos. A gentlemen never wears brown ("um cavalheiro nunca veste castanho").

Que fatos veste?
Isso é uma piada. Mais importante é a maneira como um diplomata sente ou veste o fato da nação ou do país.

Isso mudou?
Mudou a metodologia. Não mudou a essência da diplomacia e a representação na negociação, o estar presente. O que mudou tem muito a ver muito com a Internet, o que é que o diplomata faz hoje em dia, em que tudo está disponível. Mas continua a existir a necessidade de estar in locco, em Moscovo, em Teerão, em Brasília, a criar relações, relações que não estão na Internet, não vêm nos jornais. Isso continua a ser muito útil ao país. Falo do que é essencial nas relações de proximidade, o tacto, o olhar, a simpatia, a consideração por parte dos interlocutores. É muito importante a forma como os nossos interlocutores nos vêem e como nós somos obrigados, quando estamos num posto, a ter contactos com os colegas que estão no sítio.

No livro sublinhei a expressão: diplomata como mestre da arte da conversa. E refere as conversas sem assunto.
É uma ironia, não há assuntos, as pessoas conhecem-se, há uma superficialidade que, aliás, é simpática. 

Isso aprende-se?
Vem pelo decurso das coisas. Qualquer profissão é uma aprendizagem permanente; está-se sempre a acertar agulhas. Há uns que têm mais jeito do que outros. Há diplomatas extraordinários a expor o assunto e a argumentar e outros que, como dizem os ingleses, são good on paper, muito bons a escrever, a redigir. Um diplomata deve saber redigir, porque no fundo está sempre a redigir, a fazer apontamentos de conversas, telegramas, relatórios, ofícios; e a fazer análise, diagnósticos. Há um estilo diplomático.

Como é esse estilo?
É conciso. Convém não ter um estilo literário, que acho um bocadinho ridículo. [Pausa]. Muitas vezes a gente sente a falta de autenticidade do interlocutor, que o que ele está a dizer não é uma verdade ou é uma meia verdade. É uma banalidade dizer que o diplomata não deve mentir, mas não implica que tenha de dizer toda a verdade. Não deve mentir porque se o interlocutor percebe que ele não merece confiança porque mentiu, está perdido como diplomata. Mas às vezes dizer toda a verdade é inconveniente e não se impõe. 

No último ano falou-se muito da diplomacia portuguesa. O que é que estes tempos pedem à diplomacia?
Nós, portugueses, somos obrigados a ter tacto, somos obrigados a ser diplomatas. Quando o país tem uma enorme extensão territorial, forças armadas consideráveis, um índice demográfico importantíssimo, pode permitir-se, por vezes, a ser mais assertivo. Não quer dizer que a diplomacia portuguesa não seja afirmativa, mas nós, e a maior parte dos países, somos obrigados a ter uma noção das realidades, temos consciência das nossas carências, das nossas vulnerabilidades e temos de agir em conformidade. A prova de que agimos bem, por exemplo, é a eleição de Guterres. A diplomacia portuguesa certamente exerceu o seu papel nesse domínio, mas a vitória deve-se fundamentalmente ao talento do engenheiro Guterres que era o melhor candidato. A diplomacia é feita de uma teia muitas vezes indecifrável. Mas vou falar agora da Europa. Há um livro que saiu agora, de um homem chamado Douglas Murray, The Strange Death of Europe. Eu, que tenho uma tendência para defender as causas perdidas, sinto uma enorme mágoa perante a agonia da Europa que estamos a presenciar.

Acha que a Europa é uma causa perdida?
Acho. Há duas Europas agora. A Europa construção do senhor [Jean] Monnet e daquela gente que tinha, à partida, o pressuposto de acabar com o estado-nação, fomentando as corporações transfronteiriças, a regionalização através da transferência dos poderes de soberania para Bruxelas. Essa Europa é uma Europa francesa, uma ambição francesa, um projecto francês. Foi andando mais ou menos. Depois houve a reunificação alemã e ficou tudo em pantanas. Desde então a Europa não tem destino, não tem rumo, não tem defesa, não tem fronteiras, suscita enorme animosidade aos povos europeus. Inglaterra, França, Itália, Hungria, Polónia... Esta Europa falhou, precisamente com a reunificação alemã. Foi a prova dos nove. E fez boomerang. Daí o regresso da ideia de estado-nação hoje em dia. Vou dizer uma enormidade, mas a meu ver quem tinha razão eram os ingleses com a EFTA nos anos de 1950; criar uma vasta zona de livre-câmbio e depois, com o pragmatismo britânico, pouco a pouco, reforçar cooperações, estender o âmbito de aplicação de certas normas. Esta Europa, a francesa, com os códigos e os tratados após tratados, não funciona do ponto de vista institucional, não há um povo europeu, ninguém se sente representado na Comissão. É burocrata, é eurocrata, são o tamanho dos biscoitos, o tamanho da laranja, uma burocracia doentia, maníaca e contra-producente. O lado institucional falhou. Era preciso um grande conclave dos países europeus para uma nova orientação. Agora há um elemento novo, este personagem extraordinário e literariamente fascinante: o Macron. Na fotografia oficial como chefe de Estado ele tem três livros: aberto, está as memórias do De Gaulle [Memoires de Guerre], e depois Les Nourritures Terrestres, do [Andre] Gide, e O Vermelho e o Negro, do Stendhal. 

Como interpreta isso?
Ele é a reencarnação do Julien Sorel [protagonista de O Vermelho e o Negro]. Esperemos que não tenha o mesmo fim, o Sorel morreu no cadafalso. É uma figura excepcional. Como é que num país tão céptico, tão manietado por toda a espécie de instituições, de partidos e de personalidades, ele consegue furar e ganha as eleições?! É uma figura literária. Tem três romances que a mulher, que foi professora dele, não deixa que se publiquem. É stendhaliano. Um fenómeno. Era o único candidato favorável à Europa; nos comícios dele havia bandeiras europeias. Teve essa determinação, essa vontade de ser pró-Europa. A Alemanha deve perceber que esta é a única chance desta Europa de ir para a frente. Há um ano a situação era muito má, com o que se passava na Hungria e que é, aliás, incompreensível em Portugal.

Falava em duas Europas. Qual é a outra?
Tem a ver também com a morte da Europa e é muito mais grave, a morte da Europa. A emigração. O ingresso na Europa de milhões de somalis, paquistaneses, Sri Lanka, gente do Magreb que vem ao Deus dará vai acabar por fazer o que os franceses chamam de "a grande substituição". Neste momento a população britânica em Londres é minoritária. Um país é um rosto, um perfil, uma memória, uma raiz. Estas pessoas que vêm de fora, a maior parte com vontade de se inserir, de trabalhar, de constituir família. Muitos não conseguem, ficam excluídos, sentem-se excluídos e constituem uma verdadeira quinta coluna terrorista. O grande problema na Europa já não são as tais instituições ou como melhorar a democracia interna da Europa. A meu ver, é o problema da emigração. Sei que isto é muito pouco popular, mas é o meu pensamento sobre o assunto. Acho que é trágico e continua. Há um complexo masoquista na Europa depois da guerra. 

Que complexo é esse?
É o complexo de que a Europa foi colonialista, criou o nazismo. Nunca se falou tanto de nazismo como agora. Foi há 70 anos. Agora sai outra biografia sobre o Hitler. Há a célebre do Alain Bullock, de 1952, depois a do Joachim Fest, em 1973; a do Ian Kershaw, em 2008, e agora outra, de um homem chamado [Volker] Ullrich. Isso para lá da documentação toda sobre o nazismo. Há um mea culpa permanente que explica isto. Os nacionalismos vêm de um movimento de recuo e de medo de perder um certo estilo de vida. Está criada uma bomba-relógio. Estou muito pessimista em relação a isto e tenho muita pena, parece não haver solução. 

Falou da palavra emigrante, mas não falou de refugiados.
É uma diferença a estabelecer. Uma coisa é um refugiado político outra é um emigrante. É preciso dar asilo ao refugiado político, mas como disse o [Michel] Rocard há anos, a Europa não pode acolher toda a miséria do mundo. Parece uma evidência. [Pausa] Digo o que penso, não tenho nada a certeza de ter razão, mas sou um homem livre, não sou político. Enfim... Mas política externa depende sempre da política interna, como se vê no caso do Trump.

Como vê essa figura?
É um ignorante, e como ignorante é imprevisível e pode ser nefasto. Está há muito pouco tempo no poder. Até agora não fez a monstruosidade que fez o senhor Bush, invadir e dar cabo do Iraque. Em grande parte o caos que se vive no Médio Oriente ao senhor Bush se deve. O senhor Milosovic, o sérvio, foi julgado e condenado e o senhor Bush está na sua herdade no Texas a pintar. É um imbecil e um ignorante. Muitas pessoas na altura vieram dizer que os iraquianos não tinham nada a ver com os ataques de 11 de Setembro. Parte da Europa foi na onda do senhor Bush, ir a fazer surf. 

Neste momento é um escritor, um diarista, escritor de memórias, biógrafo.
Esses livros são uma maneira de ir ao encontro daquilo que eu sou, daquele que escreve. Acho que a verdade de um homem é aquilo que ele não diz, aquilo que ele esconde, a verdade de todos nós fica na nossa cave e no nosso sótão. E depois nós não nos conhecemos a nós mesmos; conhecemos apenas parte daquilo que somos.

Escrever ajuda?
Ajuda muito. Costumo dizer que não vou ao psiquiatra, escrevo diários. 

Falou há pouco da biografia de Camus. O que é que Camus tem?
O Camus teve muita importância para mim e para a minha geração. Primeiro, pelo escritor que foi. Descobri-o com O Estrangeiro, tinha 18 anos, estava em Oxford. Gosto muito do escritor. E aquele livro, Núpcias, é uma coisa magnífica! A exaltação telúrica e panteísta. Depois há a mensagem que ele dá, de como criar valores e ter uma ética de vida e de acção destituída de qualquer transcendência religiosa. Isso é muito importante para mim.

Para a sua relação com Deus?
A minha relação com Deus ou a minha não relação com Deus. Aos que não têm uma relação ou uma intimidade com Deus, ou sofrem dessa omissão e dessa ausência, ele vem dizer "nem tudo vale"; o niilismo não é a solução. Nas cartas que escreveu a um amigo alemão depois da guerra dizia que há os valores da solidariedade, da felicidade... Ele cria balizas, uma moral que prescinde da transcendência religiosa. É isso que acho fundamental no Camus, que me atrai e faz com que ainda hoje me sinta ancorado nele. 

Os seus livros estão cheios de referências. Cineastas, pintores, muitos políticos, mas sobretudo escritores. A literatura é a sua grande formadora?
Também sou muito sensível à pintura, muito mais do que à musica. A pintura diz-me imenso. E hoje em dia leio menos romances. Se quero interrogar o destino de cada um faço-o através dos ensaios, diários, das memórias, muito mais do que nos romances. 

Montaigne?
Montaigne é uma referência e um tipo muito original para o seu tempo. Ele põe-se dentro dos ensaios, o que é extraordinário para a época. É um revolucionário, interrogando e deixando-se cativar; É preciso dar fantasia ao quotidiano. 

Como vive o seu quotidiano?
Acho que de forma muito entusiasmante e entusiamada, talvez porque me falta pouco tempo, mas enquanto cá estiver o quotidiano é fundamental. É muito simples. Todas as manhãs, com uma falta de imaginação notável, vou beber um café com uns amigos ao Estoril. São dois ou três, às vezes vou sozinho. Sou um grande leitor de jornais. E à tarde fico em casa, vejo televisão, tenho uma box com 30 e tal canais franceses.

Referiu a complexidade do casamento de diplomatas portugueses com mulheres estrangeiras. O seu pai casou com uma grega. Foi complicado?
Não foi. Acho que só mais tarde era preciso pedir autorização. A minha mãe tinha uma devoção extraordinária pelo meu pai.

Qual é a sua relação com a Grécia?
Através de um filho meu mais novo quis compensar a minha não relação com a Grécia, sendo um amante da Grécia e falando grego. Ele diz sempre: “Eu tenho uma avó grega”. Conheceu-a já muito débil. E reatou conversa com a família grega.

Fala grego?
Não. Lia grego sem perceber, um bocadinho como quem joga xadrez sem perceber. A minha mãe ensinou-me e eu juntava as letras e lia. O meu pai teve muito receio, vivendo nós no estrangeiro e vindo pouco a Portugal, que o facto de ter uma mãe grega ainda nos dispersasse mais, que ficássemos desnacionalizados. A meu ver fez mal e vedou-nos completamente o acesso à Grécia.

No livro diz que quando se está longe aumenta a proximidade do país.
A diplomacia cria uma visão idealista do pais. É a questão da lonjura. Defendemos um país que não digo que seja imaginário, mas criamos uma visão ideal e depois chega-se aqui e há um choque. Eu tive isso, os meus filhos têm isso. Ao contrário do que se possa julgar não há uma desnacionalização. Há uma aproximação ao país através dessa imagem idealizada.

O que está a escrever agora?
N
ão estou a escrever. Agora não me apetece. Mas quero ver se escrevo um livro sobre o meu pai. Já tenho um título: Os Dias Sem Idade. Quando estávamos no Brasil, o meu pai caiu de um cavalo. Eu tinha uns cinco anos. Ele apareceu. Estava num álbum da minha irmã, mas desapareceu. A primeira página é a descrição de eu a correr para o meu pai. Posso imaginar a fotografia, não preciso dela para escrever, mas ficava muito bem na capa.