23 agosto 2017 às 00h12

Viragem em Angola: "Não estamos aqui para brincar"

Alguns eleitores, como Paula, queixaram-se de serem obrigados a atravessar o país para exercer o direito de voto. Formadores da CNE deram últimas informações antes da votação hoje

Cristina Lai Men

Passo decidido, rosto afogueado, Paula chega indignada à sede nacional da CASA-CE, a única coligação que concorre às eleições gerais em Angola, ao lado de outros cinco partidos. Já esteve na Comissão Nacional Eleitoral (CNE), depois de ter percebido que tem de votar noutra província, a centenas de quilómetros de Luanda. A irmã também foi encaminhada para outra província, o Namibe, a mais de 900 quilómetros da capital. Como elas, há muitos eleitores descontentes, obrigados a atravessar o país para exercer o direito de voto.

"O próprio funcionário da receção da CNE vive o mesmo caso", conta Paula, que não se conforma com a resposta da Comissão Eleitoral. "Disseram-me que se não conseguisse, fico sem votar, mas tem de haver uma resposta. Eu exijo votar, exijo que haja respeito pelos cidadãos! Não estamos aqui para brincar. Vamos escolher o presidente que vai governar Angola nos próximos cinco anos." Por isso, Paula pede uma solução urgente, a poucas horas do início do escrutínio.

O caso destes eleitores foi denunciado durante a campanha, levando a oposição a falar numa abstenção forçada. Nélson Pestana, investigador universitário e fundador do Bloco Democrático, um dos partidos que integra a CASA-CE, desconfia de "várias formas de fraude", realçando que "a fraude é uma forma de golpe de Estado. Vamos opor-nos civicamente a qualquer golpe de Estado", com recurso a todos os meios, incluindo a impugnação, adverte Nélson Pestana. Para defender o sistema de voto, a CASA-CE anunciou que terá um sistema de contagem paralelo, envolvendo 52 mil pessoas em cada local de votação. Estes delegados vão comunicar por sms com os órgãos nacionais da coligação, de forma a conferir se os números batem certo com os que forem divulgados pela Comissão Nacional Eleitoral.

Nélson Pestana pede ainda a cada cidadão que seja um "fiscal das eleições", acreditando que "até alguns apoiantes do MPLA estão interessados na fiscalização". O partido no poder precisa da "terapia da oposição", defende o fundador do Bloco Democrático, que considera a revisão constitucional "imperiosa", para viabilizar uma geringonça angolana. Haverá uma "plataforma da oposição para defender interesses comuns", adianta o dirigente da CASA-CE, podendo existir o mesmo tipo de "coabitação" que se verifica em Portugal, entre o governo e o presidente da república.

Indiferente às movimentações políticas no cenário pós-eleitoral, milhares de formadores da CNE continuaram, nas últimas horas, a informar os cidadãos sobre os locais de voto. De colete preto, tablet na mão, credencial e mini-impressora ao pescoço, Ernesto Mujinga explica que há muitas pessoas que ainda não conhecem a sua assembleia de voto, umas por não saberem ler nem escrever, outras "por ignorância e outras porque não querem saber." Apesar disso, Ernesto considera que existe muito interesse pelas eleições gerais e aproveita para apelar ao voto, lembrando que "o sofrimento depende do nosso voto, o benefício também depende do nosso voto. Quem não vota, não tem direito a protestar."

Num país onde 65% da população é jovem, muitos eleitores vão votar pela primeira vez. Hélder Pereira, 19 anos, não queria votar, porque a mãe nunca gostou de exercer esse direito, mas o estudante de petroquímica decidiu estrear-se pela experiência. O jovem divertiu-se com a campanha da UNITA e CASA-CE. "Os líderes diziam coisas, como gatuno, que me faziam rir", mas "o MPLA é um bom partido que admiro muito. Há muito a melhorar, mas se não fossem eles a governar, Angola não estava assim."

Amaro Chinango, 20 anos, outro estreante na votação de hoje, não revela o sentido de voto, mas afirma que "tem de haver uma mudança, novas oportunidades", a começar na saúde, com mais hospitais. Mudança é também a palavra-chave para Minguito Zé, apoiante da CASA-CE, para quem uma vitória do partido no poder não traria nada de novo. "Eles estão lá há 42 anos e não mudaram nada, a não ser para um pequeno grupo de amigos." Se o MPLA ganhar, será "a desgraça total", antevê o crítico do regime. Tem a palavra o povo angolano, neste que será o primeiro dia do adeus a José Eduardo dos Santos.

enviada DN/TSF a Luanda